1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2014:
Queridos amigos,
Não sei como os outros fazem, regresso de qualquer viagem ajoujado de papelada de variada espécie, em muitos casos é tudo metido num saco de plástico e nas circunstâncias de uma mudança eventualmente haverá uma rememoração de tudo quanto se viu, ou quase. Neste mundo em que vivemos emulsionados em imagens, achei fazer tudo o sentido recapitular alguma dessa papelada e expô-la aqui, estes foram os sentimentos vividos, nestes momentos coincidentes com estas imagens era este o meu estado de alma, era assim a alegria do viajante. E que no caso de Inglaterra está sempre pronto a regressar, tudo aquilo tem caráter, tal como estes materiais vão para um saco de plástico, vale sempre a pena revisitar.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (8)
Notas soltas de viagem em Inglaterra, Maio-Julho de 2014
Beja Santos
Não é novidade para ninguém que vivemos numa sociedade de hiperconsumo onde as imagens, a estética e o entretenimento em geral nos estilizam e padronizam. O viajante tira fotografias, compra álbuns, aqui e acolá saca brochuras, às tantas regressa com um saco cheio que inevitavelmente irá parar a certas caixas que jamais voltarão a ser consultadas, ou quase.
No campo das imagens, é quase sempre intolerável ter que selecionar: o que nos sensibiliza a fundo, as recordações afetivas, a sedução daquela paisagem, as alegrias que se viveram naquela hora, por exemplo, e sabemos todos nós que o se vê de manhã não é o que se vê à tarde, o mesmo se passa com as estações do ano e com uma coisa sobre a qual não filosofamos muito, o chamado estado de espírito.
A que propósito vem este arrazoado? É que já estive em Oxford, em Faringdon, já lhes teci hossanas, e cheio de convicção. Mas tenho aqui material solto, que me é prazenteiro, estamos em férias, permitam-me que vos fale dele, antes de continuar a viagem por outras paragens.
Primeiro, este espantoso celeiro a poucas milhas e Faringdon, conhecido por Great Coxwell Barn, vem do tempo do rei João, data de meados do século XIII, pertenceu à Abadia de Beaulieu. Sempre que venho a Faringdon, rumo até esta construção austera, estou absolutamente convicto que o Siza Vieira partilharia da minha admiração. Tentei vezes sem conta uma boa imagem, saía tudo truncado. Por isso recorro ao postal do National Trust, uma fundação nacional do património reconstruído e paisagístico. O monumento é rigorosamente aquele que eu amo, o azul envolvente nunca o vi, deve ser um toque de artista para relevar o ebúrneo daquela pedra talhada para guardar cereais, silo precioso para proteger os cereais na longa invernia. Não é uma beleza?
Segundo, deixo-vos algumas reminiscências de Oxford. O grande museu da cidade é o Ashmolean, visito-o para me reencontrar com os Pré-Rafaelitas, há para ali dádivas solenes, desde preciosidades egípcias até às vestimentas que o coronel Lawrence usou nas guerras do deserto, onde se cobriu de glória. Estava então patente uma exposição sobre Cézanne e seus contemporâneos, quadros pertencentes à famosíssima coleção Pearlman. Sempre apreciei o figurativismo de Amedeo Modigliani e gostei de conhecer este retrato de Jean Cocteau, pintado entre 1916 e 1917, dou-me bem com estas formas adelgaçadas, os tons carmins e alaranjados a contrastar com a fatiota acinzentada e um fundo que até pode lembrar a pintura cubista. E, sabe-se lá porquê, lembrei-me do nosso Amadeu Souza Cardoso com quem Modigliani conviveu, em cuja casa se aboletou, em cujo estúdio trabalhou. É revoltante pouco se falar desta ligação de dois artistas ímpares, há bem dez anos visitei em Paris uma exposição no museu de arte contemporânea da cidade dedicado à primeira escola de Paris, só se falava de raspão de Souza Cardoso, não gostei, mais tarde ou mais cedo a verdade virá à tona de água, de há muito que os investigadores sabem como Souza Cardoso era estimado por Modigliani. Viva Amedeo!
Saí do Ashmolean com uma grande vontade de ir visitar lojas de velharias e passear-me por onde se vende música e livros. Dei comigo a olhar esta ponte que liga dois colégios, de há muito que aqui paro, sempre curioso, há nesta construção algo que me lembra a Ponte dos Suspiros, no Palácio dos Doges, em Veneza, é um construção sóbria, uma réplica do renascimento italiano mas cabe bem nesta cidade. Não acham que é verdade?
Já vos falei de que os colégios em Oxford, tal como em Cambridge, têm as suas igrejas e capelas. A mais célebre está em Cambridge, a capela real, com o teto em leque, do tempo dos Tudors, uma obra-prima. Mas esta igreja cuja imagem vos mostro é dedicada à Virgem Maria, faz parte da tradição liberal católica da Igreja de Inglaterra, empolgou-me o cromatismo dos vitrais, espero não vos desiludir.
Um bom acumulador que se preza não deita fora os programas musicais, lembrança dos espetáculos a que assistiu. Fui ouvir no Sheldonian Theatre o Quarteto de Cordas Elias, executaram três quartetos de Beethoven. São aqueles fios de música que nos infundem a vontade de lutar, de deixar o ouvido à escuta a enovelar-se com a gratidão, a vastidão dos mares, o arrebatamento puro. É um bom agrupamento musical e nem me atrevo a compará-lo com os agrupamentos míticos que se podem escutar na temporada musical da Gulbenkian. Soube-me muito bem, a despeito desta histórica sala não ter os requisitos mínimos de conforto e haver até imprevisíveis pontapés nas costas ou pisões de dedos dos pés, tal a estreiteza dos corredores, é claro que tudo isto foi concebido no tempo em que tínhamos estaturas médias e a obesidade e a corpulência eram pouco comuns.
Pronto, estamos a viajar para o Norte, alguém sugeriu que fossemos até Devizes, no Wiltshire, visitar a rede de canais, tem a sua magia. E tem mesmo, a gente sobe e desce nas bermas dos canais recuperados depois de séculos de abandono ou maus tratos. Tirei duas ou três fotografias, ficou tudo esborratado. Entrámos numa casa de chá e vi este postal, comprei logo. Elucida, parece-me com é a vida dos canais e das suas comportas, dá gosto ver estas embarcações, por vezes em filas enormes, parecem bairros em trânsito aquático. Deixem-me divagar…
Porque é que guardei esta brochura numa viagem num velho comboio até Swanage? Se a nossa civilização é um espetáculo, a permanente busca do deslumbramento, esta imagem tem a marca da realidade, o comboio existe, tal como as ruínas, lá no alto, de Corfe Castle, tudo se conjuga e harmoniza, dentro da carruagem vê-se tudo a correr, esta imagem retém, em perenidade, a panorâmica de um castelo em ruínas, em cujo vale uma locomotiva a vapor sacode o silêncio. Gostei muito desta imagem. Por isso vos ofereço o que me parece invulgar, muito belo.
Prossegue a viagem para o Norte, vamos para Ilam Hall, em pleno Dovedale, Peak District, o primeiro parque nacional inglês. Ilam Hall é do século XIX, construção vitoriana, a igreja é medieval, com vitrais novecentistas. Não resisti a estas cores vibrantes, goste-se ou não está aqui a apologia da fé, uma das fontes que nos pode levar a crer na superioridade do imaterial. Seja como for, tocou-me, aqui fica à vossa consideração.
Estamos agora em Haddon Hall apresentado como “The most perfect english house to survive from the middle ages”. Tenho mais para vos mostrar, fica para a próxima. Vejam este teto que nos deixa pequeninos, é impressionante o vigamento, percorre-se a casa sala por sala e sente-se que há uma gema inconfundível, houve, com rara felicidade, uma intervenção feliz, apropriada, que permite olhar o passado e sentirmos que não há ali cenários de papelão, para turista se impressionar.
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Setembro de 2014 >
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