Guiné > 1969 > A jangada, de reserva, com sobreviventes da tragédia de Cheche, no Rio Corubal, na retirada de Madina do Boé (1)
Foto: © Paulo Raposo (2006)
XI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 31-35.
MINI FÉRIAS em BISSAU
Foi nesta altura (1) que meu pai me foi visitar à Guiné. Como tinha muito medo de andar de avião, seguiu de barco. Era um barco misto, de carga e passageiros, e por esse facto ainda parou em Cabo Verde. A muito custo consegui uma licença para, a pretexto de ir tratar de assuntos da companhia, estar uma semana em Bissau, com ele.
Tanto o Brigadeiro Nascimento como a sua mulher, a Sra. D. Beatriz, que foram uns pais para todos os rapazes de Oeiras, tinham em sua casa um quarto para lá ficarmos. Fizémos cerimónia e instalámo-nos no Grande Hotel. Nunca tinha estado a sós com o meu pai tanto tempo. Conversámos muito naqueles dias.
Durante esta semana fomos visitar no Palácio o Ten Cor Pedro Cardoso, Secretário Provincial. Recebeu-nos muito bem, era uma simpatia. O meu pai tinha relações de amizade com o pai dele. A saída o meu pai deixou um cartão de cumprimentos ao Sr. Governador. Meu pai muito gostava destas cortesias.
Guiné > Bissau > 1969 > O Paulo Raposo com o pai, de férias, no Grande Hotel
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Como eu tive de regressar entretanto ao mato, e o avião para Lisboa era apenas duas vezes por semana, o meu pai ainda ficou no Grande Hotel mais dois dias sozinho. Valeram-lhe a amizade e a companhia do casal Ten Cor Pedrosa.
Como disse atrás, o meu pai tinha muito medo de andar de avião e, por isso, andei à procura de alguém conhecido que fosse no mesmo vôo e lhe fizesse companhia. Achei um rapaz amigo que também ia e, como na altura os lugares no avião não eram marcados, pedi a este amigo que lhe arranjasse um bom lugar no avião e o acompanhasse na viagem. Assim o fez.
NOVAMENTE NO MATO
De regresso ao mato, enviaram-nos para outra Tabanca, com a missão usual de a ordenar e armar em Auto Defesa. Já estávamos treinados mas nunca gostei deste trabalho. Esta Tabanca ficava numa zona de paz a sul de Bambadinca (2). Ao todo fiz este trabalho em quatro Tabancas.
Um belo dia vou à sede do Batalhão buscar mantimentos e cruzo-me com o comandante que me dirige esta pergunta:
- Você pode reforçar um aquartelamento, uma vez que a companhia que lá está vai fazer uma operação?
Eu respondo-lhe:
- Meu Comandante, mesmo que eu diga que não posso, o Senhor manda-me na mesma, portanto diga quando nos quer lá.
Poucos dias depois para lá fomos, o local ficava a sul da Tabanca aonde estávamos, na estrada que ia ter à mata de Fiofioli. A companhia foi fazer a sua operação e nós por lá estivemos a fazer de baby-sitter.
Terminado o serviço, regressámos e Nossa Senhora nos valeu novamente. Saímos do aquartelamento de madrugada e passados uns 200 metros, ao começarmos a descer um relevo da estrada, no cimo da subida à nossa frente, dá-se um grande rebentamento e surge um grande tiroteio.
Eu ia logo à frente, atrás dos picadores (picadores eram os rapazes que iam à frente com umas varas, com um ferro na ponta para picar o chão à procura de minas), e deito-me imediatamente para o chão. A árvore atrás de mim fica toda picada com tiros do inimigo. De repente noto que algo se passa de estranho, que havia outro tiroteio cruzado.
Então o que se passara? Vinha na estrada, em sentido inverso ao nosso, uma secção de milícias nativas. O inimigo tinha na estrada uma mina comandada e montara uma emboscada. Como eles chegaram primeiro à mina foram eles a apanhar com a metralha.
Resultado: 3 mortos e três feridos graves evacuados de heli Se tivéssemos sido nós a lá chegar primeiro, tinha apanhado eu e os picadores com aquela mina. Durante toda a tarde andei com o caixão daqueles rapazes noUnimog para os entregar às famílias. Ao fim do dia, por causa do calor, o sangue ainda não tinha coagulado.
Voltámos à nossa rotina das Tabancas em Auto Defesa, de que o Capitão [Jerónimo, da CCAÇ 2405] muito gostava. Deste modo tinha a companhia dispersa, e pensava que não nos chamavam para operações, a nível de companhia.
FÉRIAS
E chegou a altura das minhas férias. Eu recebia ao todo 6.600$, dos quais ficava na Guiné com 2.200$, e ainda me sobrava dinheiro pois não havia aonde gastar. Os restantes 4.400$ ficavam em Lisboa e o meu pai ia levantá-Ios à Estefânia. Nessa altura, o bilhete de ida e volta a Lisboa, na TAP custava 4.000$ (3).
Pedi dinheiro ao meu pai, fiz a marcação das passagens, no Sr. Palma, o representante da TAP, em Bissau. De Bafatá para Lisboa fui na TAG. Ainda na pista e antes de embarcarmos no Heron, diz-me um rapaz que também seguia para Bissau, que aquele avião embora de alta segurança e usado para transporte do Eisenhower durante a guerra, tinha grande turbulência, mesmo com céu limpo. Julguei que ele brincava. Disse-me depois que era da PIDE. Mas era verdade. De Bafatá para Bissau, aquele avião parecia um canguru.
Chegado a Bissau, instalei-me no Grande Hotel para no dia seguinte, de madrugada, apanhar o avião para Lisboa. Com a excitação das férias, nada dormi naquela noite. De madrugada, levantei-me e tomei um táxi para o aeroporto de Biassalanca.
Conforme disse atrás, a TAP só ia a Bissau duas vezes por semana. Quando ia, era o dia do São Boeing. Toda a gente que prestava serviço em Bissau ia ver o avião, para ver quem chegava e quem partia, e encher os olhos com as meninas da TAP.
Já sentadinhos no Boeing 727, voámos para Lisboa. O vôo durou 4 horas que nunca mais passavam. A alegria e a excitação eram tantas, que a bordo fechavam o bar. Vim a saber depois que isto era hábito especialmente nos vôos da Guiné.
Curiosamente, depois do bar ter fechado, nós que já estávamos um bocado apanhados pelo clima, continuávamos a tocar nas campainhas do avião, mas sem sucesso.
Nesta altura dirijo-me ao que eu julgava ser um comissário, e digo-lhe que não são formas de tratar o pessoal que estava no buraco. Era o co-piloto, o Ricardo Silva Pires, e caímos nos braços um do outro. Hoje é um prestigiado comandante da TAP. Eu vivi até aos meus 10 anos na Rua João Penha, em Lisboa, e ele vivia mesmo do outro lado da rua. Chegava-se a casa dele através de umas escadinhas, aonde julgo que hoje há um bar. Todos os dias o pai dele, que trabalhava na Papelaria Fernandes, nos levava para o Liceu Pedro Nunes.
Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné (3), lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.
Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio.
A 5ª e última semana já não sabia ao mesmo. Comecei a contar os dias e novamente recomeçava a ansiedade. No princípio de Junho, à 1 da manhã, regressei no mesmo avião da TAP.
Durante estas férias morre a minha avó Ana, que vivia connosco. Parece que esteve à minha espera. Era uma Senhora muito especial, não sabia dizer mal de ninguém. Embora tivesse ficado privada de sair por efeito de uma trombose que tinha tido, tinha o quarto sempre repleto de visitas. Sempre foi assim toda a vida.
No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.
A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós.
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Notas de L.G.
(1) Vd. post anterior, de 7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé
(2) Provavelmemnte tabancas do regulado do Corubal, situadas a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole
(3) Vd. post de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)
(...) Humberto Reis:Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.
"O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção (...).
"Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola: 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos." (...)