Guiné > Mampatá > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, mais a sua Maimuna...
Foto:©
José Teixeira (2005)
Viva Luís.
Baseado num
bate-estradas (*)
que enviei à minha mãe alguns meses depois de chegar à Guiné, escrevi mais um texto reflexão sobre o que andava por lá a fazer.
Se entenderes que pode entrar no blogue. . .
Noto que ainda não me deste a tua opinião sobre a ordenação das Companhias em termos possibilitar uma consulta rádida. Já te mandei o trabalho sobre as Compªs de Artilharia. Gostava de ouvir a opinião e sugestões do
distribuidor de jogo.
Um abraço
Zé Teixeira
Sob a protecção do embondeiro
São dez da noite em M
ampatá (**). Tempo de luar que transforma a noite em dia. Uma brisa suave faz-me lembrar o meu Porto, nos meses quentes do verão. Ao longe ouvem-se o troar dos canhões que há momentos massacravam Gandembel. Agora parece ser em Guileje ou Gadamael. Aqui ao lado uma criança chora inconsoladamente, é a filha da Fatma ( Fatinha) e do Siriano, o comerciante cá do sítio.
-
Boa noite fermero! - Saúda-me Hamadú o sargento da milícia, incansável todas as noites a fazer a ronda de controlo do silêncio junto da população.
-
Na pinda (está tudo bem ?) - respondo-lhe na língua dele.
-
Jame tum (Obrigado). Tudo está bom, tabanca está contente, mas tem perigo, bandido stá na mato lá.- E aponta para os lados de Cumbidjá / Colibuia.
Os ataques que temos sofrido têm sido montados desse lado da tabanca. Quando vamos para Buba pela estrada de Sinchã Cherne, cruzamos esses caminhos e há sempre encontros desagradáveis. Os canhões continuam ao longe, agora também dos lados de Buba, talvez Nhala e Saltinho. Mas, ao longe, de lugares indefinidos ou desconhecidos para mim, parecem-me foguetes. Fazem-me voltar aos meus tempos de criança na aldeia, no Domingo de Páscoa, quando ia contigo ao cair da noite ver a chegada do compasso à Igreja, mais ou menos à mesma hora em todas as freguesias, com um Cristo cansado de tanta beijoquice, depois de um dia a correr de porta a porta, em que os foguetes como que gritavam bem alto para que se ouvissem ao longe
Cristo ressurrécit, alelluia.
Os meus camaradas dormem uns, outros estão de sentinela e eu estou para aqui escrevendo-te.
Pergunto-me, porque aceitei pacificamente, como o cordeiro a caminho do matadouro, ir para a tropa, vir para a Guiné, para esta terra vermelha e inóspita que me enjeita. Vim de arma na mão para matar ou morrer. Matar os inimigos da mãe pátria. Eu? Porquê eu !
O Pires teve medo e fugiu para França a salto. Despediu-se de mim numa noite fria no Café Bissau no Porto. Encarregou-me de avisar a família, mas só três dias depois, o tempo suficiente para passar a fronteira.
O Custódio, disse não à violência, furou barreiras e está em Lille a estudar.
O Nascimento (1) foi apanhado com o companheiro de aventura pela
guardia espanhola e entregue à GNR mas ao menos tentaram . . .
Eu, nem sequer tentei. Deixei-me conduzir por fantasmas. Palavras que me meteram na cabeça, desde os bancos da escola em Sub-Ribas. Ainda te lembras, quando me levaste lá pela mão, quando tinha sete anos ? Aquela escola velha, destelhada, com paredes esburacadas !
Talvez mais cedo ainda. A catequista ficou contente quando no primeiro dia de catequese lhe disse de cor, o Pai Nosso, graças à avozinha, que tanta paciência teve em mo ensinar e que nos últimos anos de vida ia duas vezes à missinha, uma por ela e outra por este malandro que se podia esquecer !
Como pagamento, a catequista ensinou-me que Portugal era um país de heróis e de santos, que fomos para África para salvar os pretinhos, coitadinhos, e que tínhamos de rezar muito a Nossa Senhora de Fátima para salvar Portugal das garras do comunismo que vinha da Rússia. O que era o comunismo ? Quem era a Rússia ?
Mais tarde no grupo de jovens alguém disse que Cristo foi o primeiro comunista. Que confusão foi na minha cabeça !
Em 1961 os pretinhos, coitadinhos, passaram a mauzões. Estriparam, degolaram e mataram os brancos no norte de Angola. Quem lhes ensinou essas coisas ? Os Portugueses não foram. A esses tiravam-lhe, eles, o sarampo.
Ah ! Foram os comunistas. Então os comunistas foram para África. Será que a catequista tinha razão ?
- Para Angola e em força! - clamava Salazar. As suas palavras ecoaram pelo País fora, levadas pelos
patriotas do Império. Para Moçambique ! para a Guiné ! . . . e cá vim eu cair uns anos depois
Que faço aqui ? Quem é esta gente que tão bem me acolheu aqui em Mampatá ?
Na partida em Abrantes um
patriota de galões dourados disse no seu discurso de despedida:
-Todos vós tendes um bocadinho de terra na Guiné, é nosso dever de portugueses defendê-la até à última gotas de sangue.
Alguém respondeu baixinho:
- Eu dispenso o meu bocadinho -. Eu pensei:
- Podia o meu coronel ficar com o meu bocadinho e ir na minha vez... - mas o que é que ele percebe de enfermagem ? Um enfermeiro, mesmo às três pancadas, pode ser útil, e, aqui estou.
Ao longe os canhões continuam a troar, não há descanso de ambas as partes e eu aqui estou nesta terra linda de Mampatá, não fora a guerra, como seria bom estar aqui.
Muita gente jovem, mulheres bonitas. Tu sabias que as pretas são muito bonitas ? Gente hospitaleira (os tais pretinhos, coitadinhos) que acolhe com um sorriso, que quer que beije as suas crianças, que me ofereceu uma bebé, duas para minhas mulheres a quem tenho de ir
parte mantanhas (beijar) todos os dias.
Todos os dias uma mãe(2) a quem curei a menina de paludismo crónico vem ter comigo, com a bebé ao colo e uma caneca de água fresquinha que vai buscar à mesma fonte de que se abastece a aldeia inimiga existente a poucos quilómetros daqui (dizem). Há tempos cuidei de um dos poucos velhos que há por aqui. Como forma de pagamento o filho, ofereceu-me a sua própria mulher.
Povo que têm a sua cultura de padrões muito diferentes da ocidental, de que tanto nos orgulhamos, mas cheia de valores, que talvez não tenhamos.
Às vezes quando parto para o mato ou para as colunas aparecem, na berma da picada, a dizer-nos adeus, com um sorriso aberto. Também surgem olhares carrancudos. Sou tentado a pensar se não vou reencontrar esses mesmos olhares, agora de ódio, lá mais à frente, no fogo cruzado de uma emboscada assassina. Não, não podem ser estes os olhares, que se escondem na mata.
Como eu gostava de lhes dizer a esses que nunca vi, que não estou aqui para matar, mas para viver. Deixem-me ir embora que eu deixo-vos o meu bocadinho de terra que dizem que é meu.
Pensava que me ia sentir um estanho, mal amado, rejeitado. Fui acolhido com natural carinho aqui em Mampatá. Não fiques preocupada. Criei amigos. Estou bem. Sinto-me numa ilha rodeada de guerra por todos os lados. De vez em quando a maré vem até aqui, mas tem sido a brincar. O pior será quando sair daqui para outra zona, ou eles lembrarem-se de nós.
Duas pequenas coisas para terminar:
1º - Não entendo esta guerra em que fui metido. Não tem sentido, irmãos contra irmãos, pais contra filhos, filhos contra pais. A família da Fatma Baldé viviam em Colibuia. Tiveram de fugir para Mampatá, ou teriam de passar-se para os terroristas, deixando lá tudo, casa, terreno, antepassados e sobretudo o sonho. É isso, matam-se em nome de um sonho – a Independência. Primos, tios, cunhados, estão da outra banda. São os nosso inimigos, que se escondem na mata, ou nos atacam no cair da noite.
2º- Impressiona-me a forma respeitosa como respeitam a bandeira de Portugal. Ao toque do corneteiro do quartel indicativo do içar ou do desfraldar da bandeira no quartel, toda a Tabanca pára e fica em sentido. Que Pátria esta que tem raízes tão profundas aqui na Guiné !
__________
(1) Ironia do destino, foi parar à Guiné e viveu o drama da retirada de Gadamael Porto, tendo-se safado porque fugiu para o mato e foi salvo por um Barco, suponho que foi a Orion. Gostaria de voltar a encontrá-lo, mas perdi-lhe o rasto.
(2) Na minha partida de Mampatá, para Buba, a Ansaro veio trazer-me a Maimuna, a sua bebé, e
minha mulher para levar comigo. Acto simbólico, creio eu, mas que me comoveu profundamente, pois ela sabia que tal não era possível. Por esta e outras razões Mampatá esta gravado no meu coração. A minha estadia, lá foram umas pequenas férias no meio da guerra - uma pequena ilha como digo no texto rodeada de guerra por todos os lados – Gandembel, Gadamael Porto, Guileje, Cacine, Mejo, Buba, Saltinho, etc.
Estava tão calmo que quando deixei esta tabanca para ir até à Chamarra cerca de dois meses, a sua segurança foi entregue ao pelotão de milícias, formado por nativos locais, comandados pelo chefe da tabanca, Alferes Aliu Baldé e pelo sargento Hamadú.
Interessante a atitude do Aliu Baldé, cuja filha tive o prazer de reencontrar em 2005 no Saltinho. Quando o meu grupo de combate recebeu ordens de partida para Buba, ele, foi a Aldeia Formosa pedir ao comandante do sub-sector para que eu ficasse em Mampatá, como enfermeiro, enquanto a minha Companhia ficasse em Buba e na Chamarra (1 grupo de combate).
A solução encontrada, foi eu ser transferido para a Chamarra por troca com o colega que lá se encontrava e que seguiu para Buba, com o compromisso de eu ir duas vezes por semana a Mampatá , aproveitando as colunas que fazíamos a Aldeia Formosa. Assim, a viatura deixava-me em Mampatá a trabalhar com o milícia que lá ficou como enfermeiro e que ia fazendo alguns curativos e no regresso voltava para a Chamarra.
Cerca de meio ano depois, com a chegada da estrada nova de Buba para Aldeia Formosa ( Quebo) a situação alterou-se muito, tendo havido a necessidade de se fixar uma Companhia em Mampatá para garantir a segurança local.
O Chefe da Tabanca acabou por morrer durante um ataque, creio que em 1972. O Sargento Hamadú é actualmente o responsável pela condução das orações na mesquita de Buba, como aliás já o fazia no meu tempo em Mampatá.
_________
Nota de L.G.
(*) Aerograma, também conhecido por
corta-capim, na zona leste (1969/71)
(**) Vd. o diário do Zé Teixeira,que é um dos mais notáveis documentos que já aqui publicámos no nosso blogue > 14 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi
Vd posts anteiores:
1 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).
2 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).
2 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXIII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (3): Aldeia Formosa, Julho de 1968 Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).
2 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968 (...) Aldeia Formosa, 28d e Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).
6 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968 (...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).
11 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968 (...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).
17 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 -
CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).
19 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969
(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).
24 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDLXXIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (9): Buba, Fevereiro/Março de 1969, 'manga de chocolate' Buba, 20 de Fevereiro de 1968: Estou em Buba desde 7 de Fevereiro e as perspectivas não são muito boas. Gandembel foi abandonada e o IN entretinha-se por lá. Agora, talvez porque se está a construir uma estrada nova para ligar Buba a Aldeia Formosa, esta linda terra está a ser a preferida pelo IN para as suas brincadeiras.A estrada nova já causou um morto, o primeiro da minha Companhia quando eu ainda estava em Chamarra. O IN estava emboscado com dois fornilhos montados e, ao fazer rebentar a emboscada, provocou a explosão das armadilhas e um homem, o velho, foi pelos ares. Mais uma vida roubada (...).
30 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDLXXXVI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!" (...) Buba, 19d e Abril de 1969: (...) Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia [CC 2381] e um Comando Africano, quando tomavam banho, originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece estar tudo louco (...).
6 de Fevereio de 2006 >
Guiné 63/74 - DII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (11): Desenfiado, em férias na Metrópole (Maio/Junho de 1969)(...) Bissau, 19 de Junho de 1969: Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.A minha [licença] de férias foi cheia de aventura. O Comandante não assinou o Passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o Comandante foi para uma Operação.(...) Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao Comandante da Esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro Bombardeiro nada menos que o meu Comandante que regressava da Operação (...).
8 de Fevereiro de 2006 >
A Guiné 63/74 - DV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (12): A morte do Cantiflas (Julho de 1969)(...) Buba, 18 de Julho de 1969: (...) Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele (...).
9 de Fevereirod e 2006 >
Guiné 63/74 - DVIII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (13): Vi a morte à minha frente (31 de Julho de 1969)Buba, 31 de Julho de 1969: Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à Bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os Picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:- Desta não escapo (...).
11 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (14): De que lado estaria Deus ? (Agosto de 1969)(...) Buba, 7 de Agosto de 1969: As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e, ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projectando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado (...).
20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 -
DLXVII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)(...) Empada, 9 de Setembro de 1969: Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência... (...)
8 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXVII: Dia Internacional da Mulher (5): 'Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer' (Zé Teixeira) .XVI Parte de O Meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (16)
9 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (17): Este gajo estava mesmo apanhado (...) Empada, 16 de Outubro de 1969: Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r (...)Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem a envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto (...).
12 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXXII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (18): Empada, Novembro/Dezembro de 1969Empada, 20 de Novembro de 1969: O Kebá aparecia todos os dias na Enfermaria. É o nosso ajudante no tratamentos da população. Trata as pequenas feridas. Elas já sabem:- Kebá põe mercuro ! - e ele põe.- Kebá, parte quinino! - e ele vai buscar LM. Vão-se embora todos contentes.Ao Almoço lá lhe trazemos uma cantina cheia de comida. É a nossa paga. Há dias deixou de aparecer. Estranho, mas como tem duas mulheres e vários filhos no mato, admiti que tivesse ido embora.Ontem vi-o a carregar barricas de água, da fonte para o jardim do chefe de posto. Perguntei-lhe porque deixou de aparecer e fiquei horrorizado. Estava preso por não pagar o Imposto de Pé Descalço.Vim para o Quartel e a minha revolta fez-me agir. Um quarto de hora depois estava a casa do Chefe de Posto cercada por militares armados de G3 a exigirem a libertação do Kebá (...).