segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8795: Notas de leitura (275): A Força Aérea na Guerra em África - Angola, Guiné e Moçambique, 1961 - 1974, por Luís Alves de Fraga (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
Tanto como me é dado saber, este trabalho do coronel Luís Alves de Fraga é o primeiro que abraça toda a actividade aeronáutica nos três teatros de operações. Permite uma leitura sugestiva e ter a percepção em sequência do historial da Força Aérea. Valerá talvez a pena procurar articular melhor este estudo com os pára-quedistas.

Tenho agora pela frente as quase 900 páginas de “Bordo de Ataque”, de José Krus Abecasis, porventura o melhor conjunto de memórias que permite exactamente iluminar algumas dimensões do trabalho do coronel Luís Alves de Fraga.

O abraço do
Mário


A Força Aérea na Guiné

Beja Santos

“A Força Aérea na Guerra em África – Angola, Guiné e Moçambique, 1961 – 1974”, por Luís Alves de Fraga, Prefácio, 2004, apresenta-se como o primeiro trabalho que abrange a actividade aeronáutica nos três teatros de operações africanos e tem a pretensão de proceder à descrição do esforço militar da Força Aérea no decurso da guerra. O coronel Luís Alves de Fraga dá-nos um quadro sumário dos antecedentes da aviação militar em África, como o nosso ingresso na Nato introduziu um fluxo renovador na Força Aérea como terceiro ramo das Forças Armadas. Foi graças a um novo conceito estratégico da NATO que Portugal foi dotado com elevado número de aviões de caça (175 em 14 esquadrilhas). Para os cérebros da NATO a aviação de caça era a prioridade e não a aviação naval. Depois, o autor traça uma resenha dos sinais de subversão em África e comenta a evolução das hostilidades militares na Guiné, nomeadamente chama a atenção para o enquadramento da Força Aérea segundo as directivas do Governador e Comandante-Chefe António de Spínola. Mais adiante, esmiúça o papel da Força Aérea nos três teatros de operações.

Centrado no teatro guineense, conta a história da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné, integrada na 1ª Região Aérea. O Aeródromo-Base nº 2 foi inaugurado em 25 de Maio de 1961 (converter-se-á, anos depois, depois de obras de beneficiação, na Base Aérea nº 12). Comenta que os guerrilheiros do PAIGC desde cedo mostraram forte desejo de fazer frente à mobilidade e liberdade de deslocação da Força Aérea, atacando com um certo à-vontade as aeronaves, e refere concretamente as primeiras baixas: perda de um F-86F do Capitão Barros Valla, a perda de um T-6 do Sargento Lobato que colidiu com o Furriel Casal; sinistro em que morreu o Capitão Rebelo Valente que pilotava um T-6. A deslocação dos aviões F-86F para Bissau suscitou grande contestação do governo dos EUA visto tratarem-se de aeronaves atribuídas à NATO. E escreve: “O governo do Estado-novo foi habilidosamente argumentando, ao nível diplomático, de forma a fazer crer que qualquer empenhamento militar em África correspondia a um processo de contenção da expansão do comunismo internacional. Washington mostrou-se inamovível. Mesmo assim, os F-86F conseguiram-se manter na Guiné até 1964, data em que regressaram definitivamente a Portugal”.

De que aeronaves dispunha a Guiné no início da guerra? Para além do F-86F, havia T-6, DO-27, Austers, Alouette II e dois C-47. Observa o autor: “Com estes meios começou-se a dar apoio de fogo ao Exército, a efectuar transporte ligeiro e a fazer frente à guerrilha. Também actuaram sobre o território aviões P2V-5, partindo da ilha do Sal, para efeitos de bombardeamento nocturno. Os Alouette III só chegaram à Guiné no final de 1965. E explica porque é que a missão dos T-6 era essencialmente de apoio às tropas do Exército e às lanchas da Marinha, referindo a amplitude das marés que fazia com que as rias substituíssem as picadas e assegurassem o abastecimento dos aquartelamentos em muitos casos com mais facilidade por via fluvial de que por terra. Os T-6, principalmente nas rias do sul faziam escolta às lanchas como em certas zonas do Geba e do Cacheu. Escreve: “O apoio de fogo com T-6 fazia-se, pelo menos entre 1963 e 1965, usando as metralhadoras Browning com o calibre de 7,7mm, retiradas dos Spitfire e dos Hurricane; evitava-se a utilização de foguetes, por estar condicionado o seu consumo. Inicialmente, os guerrilheiros temiam o fogo de metralhadora mas com o passar do tempo teve de fazer-se a opção pelo uso de foguetes de fragmentação Sneb de 37mm”. O DO-27 era o meio aéreo mais comum para o transporte ligeiro e o PCA; os Auster acabaram por deixar de operar, após sucessivos acidentes; os C-47 estavam destinados ao transporte médio e pesado para longas distâncias.

Referindo-se a actividade antiaérea, o autor lembra que os guerrilheiros possuíam metralhadoras antiaéreas 14,4mm que chegavam a pôr em risco os próprios T-6, obrigando os pilotos a voar a 8 mil pés de altitude; logo em 1963 houve notícia da existência de metralhadoras 12,7mm montadas em tripés, responsáveis pelo abate de vários aparelhos. Em finais de 1965, desencadeou-se a operação “Resgate” que tinha por objectivo calar as armas antiaéreas existentes na península do Cantanhez. Foram lançadas 30 toneladas de bombas e a ofensiva antiaérea desapareceu do Cantanhez durante vários meses. Quando, na segunda metade de 1966, aumentou a resistência do PAIGC na península de Quitafine, atacando os aquartelamentos de Cacine e Cameconde, impedindo as guarnições de saírem, foi lançada a operação “Estoque” que empenhou consideráveis meios aéreos. Lançaram-se cerca de 800Kg de bombas e granadas sobre as armas antiaéreas logo nas primeiras horas e no balanço final concluiu-se que se haviam lançado 6800Kg de bombas e 50 granadas incendiárias. O Exército teve o caminho desimpedido, baixou significativamente a actividade antiaérea na Guiné. O ataque às baterias antiaéreas constituía uma missão perigosa, visto que o piloto tinha de aguentar a sua aeronave dirigida às bocas-de-fogo no solo. Krus Abecasis, em livros que mais tarde serão alvo de recensão, deixou um relato onde escreveu: “O inimigo batia-se e morria no seu posto. Fazendo-nos frente com bravura invejável e desconhecida da generalidade dos militares portugueses”. Todo este panorama mudou radicalmente em 20 de Março de 1973 com o aparecimento do míssil Strela, já estava a ser utilizado no Vietnam. Este míssil obrigava à existência de uma equipa de dois homens – um para carregar o tubo de lançamento e um apontador – e implicava sempre uma guarnição de segurança de outros 15 homens, havia ordens de nunca deixar as tropas portuguesas apanhar um míssil Strela.

O autor deixa-nos um relato condensado das operações aéreas na Guiné de 1966 até ao final da guerra. Um só exemplo, a operação “Valquíria”, em finais de Dezembro de 1966 destinada a desalojar os guerrilheiros que no rio Cumbijã procuravam destruir as lanchas que abasteciam Cufar. 6 toneladas de bombas levaram os guerrilheiros a abandonar as posições que punham em risco a navegação no Cumbijã. Luis Alves de Fraga detalha o cativeiro do Sargento Lobato, já largamente documentado no nosso blogue.

Por último, e de forma condensada, o autor descreve as tropas pára-quedistas e as suas operações em África. Na Guiné, durante toda a campanha, morreram 3 oficiais, 6 sargentos e 47 praças.

A guerra de África foi para os oficiais e sargentos do quadro permanente da Força Aérea o elemento agregador que fez nascer e individualizar este ramo das Forças Armadas. E segundo o autor gerou um espírito de corpo que tornou possível, no fim do conflito, não se ter verificado uma debandada geral dos efectivos permanentes em busca de outras fontes de rendimento.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8785: Notas de leitura (274): Hna Bijagó, de António Estácio (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8794: Agenda Cultural (154): Exposição de fotos e lançamento do Livro Na Kontra Ka Kontra de autoria do nosso camarada Fernando Gouveia, ocorridos no dia 13 de Setembro de 2011, na Casa da Cultura Mestre José Rodrigues, em Alfândega da Fé


1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2011:

Luís e Carlos,
Aí vai a reportagem do evento sobre o meu livro e a exposição em Alfândega da Fé*.
Não é minha intenção que publiquem isso, no entanto deixo ao vosso critério...

Fernando Gouveia





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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8752: Agenda Cultural (150): Exposição de fotos e lançamento do Livro Na Kontra Ka Kontra de autoria do nosso camarada Fernando Gouveia, dia 13 de Setembro de 2011, na Casa da Cultura Mestre José Rodrigues, em Alfândega da Fé

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8781: Agenda Cultural (154): Comemorações do 37.º aniversário da independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde e do 87.º aniversário do nascimento de Amílcar Cabral, dia 23 de Setembro de 2011, no ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa

Guiné 63/74 - P8793: (In)citações (35): Mamadú Baldé, amigo do meu pai, deveria ser natural do Futa Djalon, Guiné-Conacri (Pepito)

1. Mensagem do nosso amigo Pepito, de ontem, às 20h13, em resposta a um pedido meu para esclarecer a identidade de Mamadú Baldé (*):


Amigo Luís
Gostei muito de reler o poema do meu pai, que decidiste colocar no nosso blogue (*).
 

Não me recordo de ter ouvido o meu pai falar de Mamadú Baldé, mas creio que ele o terá conhecido na Guiné-Conacri, nos confins do Futa Djalon, zona de que ele me falava apaixonadamente como sendo das que mais gostou. (**)

Sempre foi um sonho meu (re)visitar Mamou, Dalabá e Labé, povoações deste país vizinho, para poder deliciar-me com o que ele me contava frequentemente. Penso fazê-lo com um amigo e com o irmão da Isabel que virá cá propositadamente em Janeiro do próximo ano.

Sendo que, no dizer do poeta 
...O sol parou o seu caminho,
espreitou para Labé,
viu Mamadú morto...
 
Creio que Mamadú Baldé seja da Guiné-Conacri [, que acedeu à independência em 1958].
 

abraço
pepito
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Notas do editor: 

domingo, 18 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8792: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): Queimados

1. Em mensagem do dia 16 de Setembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos mais algumas das suas boas memórias da guerra.


Memórias boas da minha guerra - 22

Queimados

Queimados (na vida)

Já há muitos anos que não me oriento bem na parte velha da cidade do Porto. À medida que o tempo passou e suas consequentes alterações, eu também me fui afastando desse trânsito infernal, optando por não ir lá muito para o centro mas adaptar-me mais ali à zona do “Baticano” (Antas). Ora hoje, tive que ir ao IGAC, para registar as “ Memórias boas da minha guerra”, lá na esquina da Praça da Republica com a Rua Gonçalo Cristóvão.

Junto da passadeira de peões está escrito: 316 mortes na cidade do Porto, aqui somos todos peões.

Eu queria atravessar a rua, no sentido descendente, para as ruas do Almada e Alferes Malheiro. Porém, como não há semáforos, estive ali a secar alguns minutos, à espera que algum condutor respeitasse a minha prioridade de peão sobre a passadeira. Metia pé e tirava pé, repetidamente. Cheguei a pensar se aquela velocidade dos veículos em autêntica competição, não será influência do apoio do Maire, Mr. Rui Rio, ao regresso das provas automobilísticas dentro da cidade do Porto.

Já não sabia o que fazer quando, de repente, senti o barulho dos pneus de dois veículos em paralelo a derrapar, devido à travagem; um carro “tuning”, de escape ruidoso e uma carrinha de 5 lugares e caixa aberta, cheia de trolhas e de tralha inerente à sua actividade, que estacaram ali, junto à passadeira.

Que se passou? Alguém me conheceu? Não, nada disso. Muito simples: uma jovem escultural, linda de morrer e com vestes escassas fez-se à passadeira, na minha direcção, desfilando toda altiva e segura do seu valor, sob uma chuva intensa de piropos. Quando, ao cruzar-me com ela, lhe disse :
- Obrigado menina, estava a ver que nunca mais vinha.

Ela parou e, voltada para mim, esperava mais alguma explicação. Acrescentei:
- É que estes gajos não respeitam os idosos.

Depois dos piropos, iniciais, de “ah faneca!” , “que monumento!” , “até os ossos te comia!”, etc., misturados com algumas assobiadelas, oiço:
- Oh beilho larga o osso quisso num é pra ti!

- Desinfecta daí, morcom! - dizia o outro motorista.

A carrinha ao arrancar, quase me apanhava os calcanhares. Vi o jovem ajudante, todo sorridente, virado para trás, a dizer-me:
- Tás queimado “beilho”, bait’imbora, “beilho”, que já ardeste!

Achei piada à situação e, estiquei-me, levantei a mão direita, bati com ela duas vezes contra o cotovelo, “salientando”, isoladamente, o dedo anelar, de forma bem provocatória, na direcção deles, enquanto comentei: - Invejosos!


Queimados (no fogo)

Esta referência a “queimado”, fez-me recordar outras situações. A primeira foi aquela em que eu, no Bar dos Bombeiros, da minha Associação, ouvi uma mensagem entre um Operador de Serviço e um motorista de ambulância, num fim de tarde de verão :
… 67-12 vai regressar do Hospital – escuto.

Responde o Operador de serviço:
-  Ok, não esqueças de trazer o Queimado - escuto.

- Com maca ou sem maca - escuto? voltou o motorista.

- Com maca vai muito melhor - terminado. – sugeriu o Operador.

Perguntei quem se tinha queimado e acabei por saber que se referiam ao frango de churrasco com piripiri, a trazer da churrasqueira “Picante”.


Queimados (na guerra)

A referência a “Queimado”, “Apanhado” e “Cacimbado”, era aplicada muitas vezes na guerra da Guiné e tinha a ver com a forma descontraída (e amalucada) como alguém se comportava. Pois, na nossa Companhia, havia vários militares marcados por tais comportamentos, de onde se destacava o Furriel Silveira.

O Silveira parecia que andava sempre noutra onda e dava tudo pela aventura. Numa das últimas noites em Viana do Castelo, aproximou-se da malta, já dentro de um táxi. Enquanto o Silveira ia distraindo o motorista, a malta foi entrando. Seguimos logo para Afife, onde fomos jantar.
Quando o motorista parou, depois de ter tocado com o fundo do carro nos carris do comboio, gritou: - Foda-se, tudo lá para fora!.

Foi então que ele contou em voz alta: - Um, dois, três, quatro...Oito???!! Mais eu? Não havia mais ninguém, para trazer?

O Silveira acalmou-o e acabou dizendo-lhe: - Oh chefe, só lhe pagamos, quando nos vier buscar. Debite por cabeça, por quilómetro ou por aquilo que quiser, mas tem de nos vir buscar.

Fomos comer uma churrascada de frango, um dos petiscos predilectos do Silveira. Porém, o tempo passou rapidamente e o taxista apresentou-se com outro colega, alegando estar por conta do Silveira e a cobrar ao minuto. A malta, preocupada, que sabia não haver outro transporte, apressou-se para o regresso.

Já na avenida da Estação de Viana, alguém perguntava pelo Silveira. Foi então que apontaram para um individuo, encostado à montra dos vestidos de noiva, aproveitando a luz, para acabar uns ossitos de frango que trouxera nos bolsos (é que, com ele, não podiam sobrar ossos de frango...)

Em Fá, logo no início da comissão militar, dizia-se que o Silveira andava a ensinar o “seu” macaco a ler. Era tanto o barulho a ensiná-lo e tanta a porrada que lhe dava que o macaco se mijava todo. Como os macacos não aprendiam, trocava-os constantemente. Curioso era ver o Silveira a aproveitar para insultar alguém, através dos diálogos com os macacos.

Em Catió, quando chegou de férias, trouxe o disco “Delilah” do Tom Jones, que estava no auge do sucesso. Estava sempre a metê-lo no gira-discos. O Sargento Viscoso, que o Silveira odiava, chegou a mandar um mensageiro para que lhe vendesse o disco, porque aquilo estava a pô-lo maluco. A partir daí, o Silveira encontrou mais um motivo para ouvir mais e mais o Tom Jones. (http://www.youtube.com/watch?v=8a_T3U1rg2I&feature=related).

Tocava regularmente entre as 30 e as 40 vezes seguidas! Como o cansaço se apoderava do DJ, ele decidiu criar uma escala de serviço ao “Delilah/Dia”.

Silva de "Delilah/Dia"

Quando chegou a Canquelifá e verificou que havia uma “Folha de Honra” exposta no Bar da Messe, onde se mostravam as 14 misturas efectuadas que compunham o “Cocktail do Alferes Martelo”.
Não levou muito tempo para que o Silveira, já bem aviado, agarrasse num copo dos grandes e se pusesse a meter lá para dentro tudo que lhe vinha à cabeça. Parecia que queria ficar na história, através daquele cocktail. Às bebidas disponíveis, teve que inventar outros “condimentos” como comprimidos, sal, açúcar e piripiri. Dizem que até mercúrio lá meteu. Foram 23 as misturas que ele emborcou. Mal bebeu um gole, sentiu-se esquisito, e afastou-se, atordoado, para junto das mangueiras. Não parava de se mexer e remexer e de se queixar, enquanto o Berguinhas insistia com ele para que vomitasse.

Logo que o Silveira melhorou, o Doutor Berguinhas dizia:
- Este gajo está tão “queimado”, tão “queimado”, tão “queimado”, que não há nada que o foda. Quando morrer, vai ser adorado como santo, porque não há bichos que o comam!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8723: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (21): O Básico apontador de Morteiro de Rajada

Guiné 63/74 - P8791: Facebook...ando (13): Recordação de um conterrâneo, amigo de infância, morto em Moçambique por mina A/C (Francisco Palma, natural de Alcaria Ruiva, Mértola)


Mértola > Alcaria Ruiva >  Cemitério local > Setembro de 2011 >  A campa do Sold José Joaquim Morgado Correia, morto em Moçambique em 1970.

Foto: © Francisco Palma (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Palma (ex-Condutor Auto Rodas na CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72)... Foto adicionada ao mural da nossa página no Facebook, Tabanca Grande Luís Graça, em 14 do corrente. Vd. também a sua página no Facebook.





Este passado fim de semana fui à minha Aldeia Alentejana [ Alcaria Ruiva, Mértola], e de visita aos meus Pais no cemitério, resolvi tirar esta foto,  mesmo ao lado, à campa do único combatente falecido lá da aldeia.

Era da minha idade e amigo da Escola Primária. Faleceu  com uma mina A/C, [em Moçambique,] 2 dias antes de eu partir no Uíge para Bissau. Aqui exponho a lápida para o saudarmos e relembrá-lo.

Demorou 6 meses a chegar o corpo depois da morte. Já a Mãe tinha falecido.....

À memória do José Joaquim Morgado Correia.

Francisco Palma

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8638: Facebook...ando (12): Voz dos Combatentes... (Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519)

Guiné 63/74 - P8790: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (11): A primeira missão - parte II

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 16 de Setembro de 2011:

Caros camaradas Editor e Co-Editores
Em anexo envio em conjunto os vários comentários (com alguma pequena revisão) que enviei a propósito de questões que foram colocadas no post* com o relato da minha "primeira missão", que pretendia servisse para provocar algum sorriso de boa disposição mas que acabou por suscitar vários esclarecimentos, dos quais aqui estou a tentar dar resposta a parte deles, sendo que acabei por completar com mais informação.

Podem proceder conforme melhor for considerado.

Um abraço para todos
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (11)

Caros camarigos
Motivado por várias questões que foram colocadas no artigo anterior relativo ao tema a que chamei “A primeira missão”, vou tentar adiantar alguns esclarecimentos, os que puder e souber, relativamente ao que me solicitaram, chamando agora

“A primeira missão – parte II”

Nesta parte vou procurar responder e corresponder às questões ‘técnicas e práticas’ deixando para uma “parte III” as que envolvem outro tipo de sensibilidades, com as que se prendem com a opinião manifestada pelo nosso camarada C. Martins quanto às "irresponsabilidades confrangedoras", de acordo com a sua visão do que apresentei, a qual, sendo dele, tem o meu total respeito, embora com parcial desacordo.

Vou então começar pelas questões do Luís Graça, relativas ao percurso efectuado e ao "perímetro de segurança", sendo que alguns esclarecimentos podem também servir para outros amigos.

O percurso
Sobre isso gostava que fizessem um esforço par se procurarem colocar-se um pouco na minha pele, ou seja, na minha situação. Muitas vezes encontro aqui no Blogue, mas não só (isso é comum a muitas situações), casos em que as pessoas colocam objecções, questionam, opõem-se, etc., ao que é descrito mas não fazem um esforço para enquadrar a situação de que estão a "mandar bitaites" no tempo e no espaço.

Reparem, eu cheguei à Guiné a 9 de Novembro, a partir de 10 entrei em estágio no STM e o meu percurso era das instalações do alojamento dos sargentos para o STM, para a messe e uma ou outra noite para ir ao centro de Bissau conhecer a "Meta", o "Pelicano", o "Chez Toi", o "Solmar", a "5ª Rep.", etc.
Foram estes nomes que começaram a ser familiares, mais "Amura", "QG", "Palácio do Governador", "Cupilão", e alguns outros mais.

Também comecei a ouvir outros nomes: "Tite", "Morés", "Óio", "Cantanhez", "Pirada" "Aldeia Formosa", "Teixeira Pinto", "Buba", "Bula", "K3", "Mansoa", "Guileje", "Guidaje", e mais alguns outros sendo que nessa altura eram só nomes, não sabia graduar as dificuldades, as perigosidades, de cada um desses locais.

Havia outros nomes que já conhecia, pelo estudo da geografia e das notícias dos jornais, tais como "Bolama", "Bafatá", "Madina do Boé", "Bijagós", "Como", etc.

Deste modo podem perceber que, para mim, "Prabis", "Quinhamel" e outras coisas semelhantes, não tinham nenhuma carga valorativa, quanto a ser favorável ou perigosa.

Julgo que com esta explicação, e se fizerem um esforço de acompanhamento do que poderia pensar na ocasião, poderão concordar comigo que, ao fim de talvez nem sequer uma semana, não tinha nenhuma noção sobre esses locais.

Pergunta então o Luís se não teria feito um esboço do percurso dos ensaios. Não, não fiz, nem estava preparado mentalmente para o fazer, não fazia ideia do que iria suceder.

Eu não era mau de todo na grafia e tinha jeito para "afinar" as sintonias, "tirar o bigode", como o pessoal que trabalhou com a ANGR-C9 costumava dizer. Por isso, e por estar "disponível", já que estava em estágio, tal como mais três dos outros Furriéis que chegaram comigo, fui indicado para a missão, mas não sabia muito bem o que é que era pretendido com a experiência.

E de facto quando saímos do edifício das Transmissões é que fomos recebendo as indicações para onde pretendiam que fossemos. Disseram "até Antula", que era onde situavam os emissores, mas para mim isso era apenas um nome, não sabia para onde ficava, só depois é que fiquei a saber que ficava a leste da Santa Luzia. Mas eu não saber era obviamente irrelevante, só tinha que receber a indicação, transmiti-la ao condutor que, naturalmente, sabia.

Depois disseram, "até Quinhamel". Outro nome sem significado geográfico, sem outro tipo de referências, mas do conhecimento do condutor.

Em abono da verdade devo dizer que nessa viagem, feita de dia, à tarde, não cheguei a ver o caminho, ia na parte de trás da viatura, que era fechada, junto ao rádio, do operador de grafia e do Oficial sul-africano. Não me apercebi da envolvência exterior, se era em descampado, se no meio de arvoredo, se no meio de casas.

Já no percurso de noite aconteceu o mesmo. Ia na parte operacional e o outro Furriel na cabina junto ao condutor. Por isso sei que fomos até Prábis (foi o que se falou) e aí andou-se um bocado para a frente e para trás, como relatei. Na volta de regresso fomos até à "Missão Católica".

Essa “Missão” acho que sim, que são as instalações de Cumura que ficam a cerca de 2,5 km de Prabis, no lado norte da estrada, já no sentido de Bissau, a cerca de 10km desta. Julgo que com estas indicações será possível localizar aproximadamente. Sai-se de Bissau para oeste, para Prábis, e cerca de 10km do lado direito da estrada, ou seja, lado norte, está a "Missão Católica" de Cumura.


Perímetro de segurança

Bem, quanto a isto, e mais uma vez, as coisas são relativas...
Posso dizer que em 1971, depois de ter estado em Piche e ser requisitado no final de Maio para a "Escuta", nos meses de Agosto, Setembro, Outubro e talvez ainda Novembro (aqui já não me lembro bem), fui algumas vezes, de motorizada, conduzindo uma, ou como pendura, até Nhacra, visitar um Furriel meu amigo e antigo colega da escola em Vila Franca, numa Companhia de Cavalaria que estava lá colocada depois de ter estado antes na zona de Farim e que na altura era comandada pelo Cap. Cav. Mário Tomé que foi tomar conta dessa Companhia depois da morte do anterior e titular comandante.

Tenho ideia que das duas primeiras vezes não houve qualquer problema, impedimento ou condicionalismo. Mas depois passou a haver controlo em Safim e só podíamos seguir quando houvesse viaturas militares em circulação, acompanhando-as.

Depois da partida (regresso a Portugal) desse meu amigo não voltei mais a Nhacra. No entanto posso dizer que já no ano de 72, não sei precisar o mês, o controlo passou a ser junto ao aeroporto. Nessa ocasião o destino das viagens que fazia de moto passou a ser a estrada para Quinhamel, que se tomava a sul do aeroporto e depois virava para oeste.

Nessas viagens ia à civil e, obviamente, desarmado, aliás, não tive arma atribuída. Na "Escuta" estava um armeiro com várias G3 e se necessário eram essas as usadas.

Não sei dizer se era seguro ou inseguro, mas que se notou uma retracção do perímetro de segurança isso foi para mim inquestionável. Também se era psicológico ou "profilático", é coisa que não posso nem sei determinar.

Interiormente, nos bairros populares, nomeadamente no Cupilão, já na altura que lá cheguei corria o boato que "cortavam cabeças" a quem por lá se aventurava sozinho, à noite. Mas confesso que nunca tomei conhecimento de qualquer confirmação nesse sentido. Agora que era aventureirismo, isso sim.


Agora, os rádios

O que o Belarmino diz, está correcto. O Racal TR28 B2 equipava as unidades móveis, quando substituiu gradualmente os ANGR-C9.
No entanto, para os postos do STM, normalmente colocados nas sedes de Batalhão, que trabalhavam, ia a dizer "exclusivamente", em grafia (morse), eram usados os "marconi".

Era para proceder à modernização destas comunicações, portanto do STM, que se procurou equipamento melhorado e os Racal TR15 vieram à experiência. Na altura dos testes eram 3 os aparelhos. Um estava no posto director, outro na viatura móvel e o outro de reserva.

No imediato sei que um ficou em Bissau, um foi para Catió (porque o Furriel Batalha que tinha estado comigo nos testes trabalhou com um deles até ser ferido e evacuado) e não sei o destino do restante. Depois da encomenda vieram mais uns quantos mas não sei para onde foram, até porque depois ingressei na "Escuta" e fiquei aí dedicado, acabando por não acompanhar o que se passou noutras áreas.

Pergunta também o Belarmino se era para trabalhar em grafia, fonia ou ambas as vertentes.

Honestamente, agora, não sei afirmar de forma peremptória, mas acho que seriam então para trabalhar "preferencialmente" com chave de morse, embora tenha ideia que podiam ser também utilizados em fonia. Digo isto porque a disposição do aparelho, tipo caixote em cima da mesa de trabalho e a ideia que tenho de ter havido comunicação verbal entre o posto director e a viatura durante os testes (podia ter sido para outro aparelho...) fazem agora ter essa opinião.


Interferências nas comunicações

A "paisagem" da Guiné, com imensos espelhos de água, provocava como que uma espécie de reflecção das ondas rádio das comunicações. Mais do que os obstáculos florestais eram esses, os cursos de água, rios e bolanhas, que mais prejudicavam as transmissões.
Por outro lado, durante a noite, havia interferências de carácter magnético que também eram bastante prejudiciais, daí os tais estalidos, quase constantes, que se ouviam nos auscultadores e que deram cabo de bastantes aparelhos auditivos.

Caro amigo José Câmara, isto que acima escrevi serve, reconheço que com pouca profundidade de esclarecimentos, para dar uma aproximação de resposta à tua questão. Era mesmo assim, com trovoadas, alterações de condições climatéricas e das próprias alterações magnéticas, as interferências aumentavam e era necessário introduzir mais filtragens e melhores antenas, o que no mato não era fácil.

No “Centro de Escuta”, durante a noite, havia períodos em que a recepção era muito difícil e tínhamos boas antenas. Também para os exercícios de radiolocalização a tal situação dos planos de água era bastante prejudicial, já que se tornava quase aleatório determinar a direcção de um emissor pois o tal efeito de "espalhar" as ondas induzia a erros grosseiros. Mesmo com as triangulações, havia grandes desvios.

Um abraço
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8774: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (10): A primeira missão

Guiné 63/74 - P8789: Blogpoesia (160): Na morte de Mamadú Baldé, descendente do régulo Monjur: E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu (Artur Augusto da Silva)

 1. Do poeta Artur Augusto da Silva (1912-1983), que foi casado com a decana da nossa Tabanca Grande, Clara Schwarz  da Silva (n. 1915) e é pai do nosso amigo Pepito (n. 1949), nunca é de mais divulgar os seus sublimes poemas sobre a Guiné que conhecemos... Desta vez fomos recuperar um texto em prosa, cuja última frase deu origem ao título da coletânea de poemas, recolhidos pela sua viúva e publicados, a título póstumo, em 1997 [, 14 anos depois da sua morte,], pelo Centro Cultural Português em Bissau. 

Não sabemos quem era exatamente a figura, Mamadú Baldé, aqui homenageada pelo poeta aquando da sua morte... O nome é vulgar, mas tudo indica ter sido um importante dignitário muçulmano da Guiné, um homem bom e sábio, tal como o Tcherno Rachid [ou Cherno Rachide] de quem Artur Augusto da Silva também era particular amigo e admirador... Talvez o Pepito nos possa dizer algo mais sobre esse Mamadú Baldé...  

A levar à letra o poema (que não está datado), Mamadú Baldé era descendente do famoso régulo do Gabu, Monjur, aliado dos portugueses no tempo do Cap Teixeira Pinto (1912-1915), e que é citado por Artur Augusto da Silva no seu livro Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas da Guiné Portuguesa (1958). Por sua vez, Jorge Velez Caroço escreveu, em 1948, uma biografia sobre Monjur (Monjur : o Gabú e a sua história. Bissau : Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948, Vd. foto da capa à esquerda). 

Espero, por outro lado, que ele, Pepito, e a sua mãe me perdoem a ousadia de ter convertido, para formato poético, o texto original, em prosa. Respeitei ao máximo a oralidade do texto. (LG)



Morreu o homem

Ao meu amigo Mamadú Baldé

Mamadú Baldé,
filho de Salifo,
filho de Indjai,
filho de Tchamo,
filho de Monjur,
filho de Mutari,
cuja linhagem se perde há mais de dois mil anos
nas terras do Egito,
e de quem os antepassados remotos viram Moisés e Maomé
e com eles conversaram sobre o tempo e as colheitas.
Mamadú Baldé morreu.
Mamadú Baldé, o sábio que falava com Alá
e era bom
e era justo,
morreu.
Cavaleiros e tambores  levaram a notícia a toda a parte:
subiram as encostas do Futa-Djalon
e desceram para o mar.
Percorreram, o Sudão até Cao e Tombucutú
e desceram o lado  Tchade.
E toda a terra dos fulas repetiu:
morreu Mamadú Baldé.
O sol parou o seu caminho,
espreitou para Labé,
viu Mamadú morto,
e continuou.
A lua parou também o seu caminho,
espreitou e continuou.
Os rios que nascem no teto do mundo,
pararam na sua corrida para o mar
e prosseguiram.
E o poeta pegou num pedaço de papel 
e escreveu:
Morreu o Homem.

In: Artur Augusto da Silva -  E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu:  Poemas.
Bissau, Instituto Camões - Centro Cultural Português. 1997. p.21 [Vd. recensão feita ao livro pelo nosso camarada Beja Santos, no poste P8093, de 13 de Abril de 2011]


[Fixação de texto / Revisão em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]


2. Comentário de Felismina Costa [, foto atual, à esquerda,] sobre o poema Terra Negra, do supracitado autor,  publicado em 10 do corrente, sob o poste P8761, e que muito sensibilizou a nossa amiga Clara Schwarz, ao ponto de telefonar expressamente ao editor do blogue para manifestar o seu agradecimento:

(...) Eu já tinha lido e referido outro poema de Artur Augusto da Silva, mas, achei este extraordinário. É lindo! intemporal!
 
Os sentimentos, são intemporais! Manifestam-se em todas as eras naqueles que são capazes de os sentir e expressar: Quanto ignoramos do que de bom e mau sente o nosso semelhante?

Por isso fico tão feliz, quando descubro no poeta, no escritor, a expressão do sentimento grandioso como é o da fraternidade. 

A Dra. Clara Schwarz, foi sem dúvida uma mulher feliz, e, deve continuar a sentir-se assim. Quem ama desta forma a terra onde nasce e os seus irmãos, ama o mundo inteiro, tudo o que o rodeia, e é capaz de compreender e ser tolerante perante a intolerância alheia, porque sabe que nem todos são dotados dessa capacidade. Por isso, é preciso mostrar a diferença entre o amor e o ódio. Entre o construir e o destruir.

Sinto-me tão feliz, quando leio a paz, a alegria, a compreensão, a amizade, sentimentos que constroem, que enaltecem o ser humano, que o tornam grande, valoroso!

Através deste Blogue, tenho conhecido valores humanos extraordinários, de homens do meu tempo que, vivendo uma guerra longa e sem sentido, saíram dela, saudosos dos lugares que pisaram, da sua beleza, das gentes com quem confraternizaram... e até do próprio 'inimigo'.

Bem-hajam, todos os homens de boa-vontade! Felismina Costa (...)


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 Nota do editor:

Último poste desta série > 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8727: Blogpoesia (159): O Mar que nos levou (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 – P8788: Memórias de Gabú (José Saúde) (2): Os conflitos tribais e a acção da tropa portuguesa. A “Psicó”!

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos a segunda mensagem desta sua série.

OS CONFLITOS TRIBAIS E A ACÇÃO DA TROPA PORTUGUESA

A “PSICÓ”!

A vulgar “psicó”, ou seja, acção psicológica feita junto das populações visava, sobretudo, uma aproximação das nossas tropas às tabancas situadas no mais recôndito lugar. O primeiro passo da tropa aquando a chegada ao local previamente estabelecido, passava com rigor pela presença do chamado “homem grande”, normalmente chefe da tabanca, e a partir dele seguia-se inevitavelmente uma ampla conversação com toda a rapaziada, ouvindo os seus pedidos, os seus problemas, as suas queixas, mormente físicas, e dessa troca de impressões tentava-se arranjar formas de auxílio. Lembro que o Jau, e não Géo como antes o havia baptizado, dominava os dialectos das tribos da região – fulas, futa-fulas e mandingas – apresentando-se como o cordão umbilical decisivo para o contacto próximo com as populações que viviam em pequenas aldeias dispersadas no mato. Depois da auscultação ficava a promessa para o cumprimento das “faltas” sentidas no seio do aglomerado.

A manhã apresentava-se calma. Desbravávamos o trilho inseguro, suspeito, o capim e o mato cerrado, visualizávamos a nobreza das enormes árvores e rogávamos a todos os santinhos que nenhum dos motores dos nossos velhos “unimogues” não desse “buraco” e, sobretudo, um eventual contacto sempre indesejado com o IN. O momento impunha, naturalmente, cuidados redobrados. O pessoal, sempre feito para o facilitismo, deliciava-se com as brincadeiras dos macacos, os bandos de perdizes (galinhas do mato) que, a espaços, pintavam os nossos horizontes visuais, com a correria de uma cabra de mato, uma lebre que se havia levantado da malhada, sendo também certo que as informações previamente dadas ainda no quartel determinavam rigidez na nossa acção. Aprendi em Lamego no curso de Operações Especiais – Ranger – eloquentes formas do saber lidar com a guerrilha e a nossa firme determinação quando confrontado com o imprevisto. Por isso tentava passar a mensagem para a segurança do grupo mas… nem sempre o meu pedido era devidamente aceite.

Rodeados na densidade do capim, e com os estridentes motores dos “unimogues” a protagonizarem um ronco intenso, a dada altura pareceu-nos ouvir vozes exaltadas vindas de uma tabanca próxima. Parámos, troquei impressões com o Jau (um homem que dominava, e bem, os dialectos tribais) e partimos em direcção aos ecos que entretanto nos chegavam. A nossa reacção foi, em princípio, dúbia. Não entendíamos a razão do conflito. O Jau, atento como sempre, constatou de pronto que a desavença se prendia como uma afirmação pelo poder. Duas tribos, fulas e futa-fulas, discutiam entre si quem seria o novo chefe de tabanca dado que o anterior havia falecido. Claro que cada uma das etnias defendia a sua dama. Lembro perfeitamente o meu papel no conflito tribal. Pedi ao Jau que chamasse os dois homens grandes envolvidos na pretensa discussão, juntei-os frente a frente, e propus o fim da polémica com este dado: “A minha opinião é para acabarem de imediato com a algazarra e que atribuem o título de chefe de tabanca ao homem mais velho em idade”. E a verdade é que as partes da população envolvidas no confronto fizeram contas, penso eu, e passado pouco tempo a tabanca voltou à normalidade.

Soubemos mais tarde que a proposta foi aceite e o novo chefe de tabanca – o homem mais velho – já exercia o seu mandato.

Pormenores interessantes de um povo que vivia envolvido com a guerrilha mas nunca descurando princípios éticos herdados de gerações antecedentes!


 Foto 1 – Com a menina de Nova Lamego ao colo (FILHOS DO VENTO)


Foto 2 – No meio do conflito. Dois homens grandes – um fula e outro futa-fula – discutiam entre si qual deles seria o chefe de tabanca. Prevaleceu a minha opinião: o homem com mais anos de vida, ou seja, o mais velho (A “PSICÓ”)

Um abraço,


José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. primeiro poste desta série em:

13 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 – P8772: Memórias de Gabú (José Saúde) (1): No declinar da nossa presença em terras guineenses… A despedida!


sábado, 17 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8787: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Encontros e reencontros com o PAIGC, de 1 de Maio a 31 de Julho de 1974 (Parte I) (Jorge Canhão)

1. Retomamos mais algumas páginas da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), unidade que foi rendida pelo BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)... (Sobre esta aparente confusão de dois batalhões com o mesmo número, ler o poste do nosso camarada Agostinho Gaspar, P7414, de 10 de Dezembro de 2010).



Um exemplar (aliás, uma boa cópia)  da história desta unidade, o BCAÇ 4612/72,  foi-nos oferecido em tempos  pelo nosso camarigo Jorge Canhão (ex-Fur Mil 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74) (*).  O Jorge há havia aqui publicado uma série de postes com a história do batalhão... (se bem que incompleta). 

Interessa-nos agora focar a atenção sobre os últimos 3 meses do batalhão, no setor de Mansoa, a seguir ao 25 de Abril de 1974. 
Vamos recorrer a alguns excertos do relato da atividade operacional nesses últimos 3 meses (Maio, Junho e Julho de 1974), para perceber melhor como se fez a aproximação, no terreno,  das duas partes em conflito (as NT e o PAIGC). Esta série poderá incentivar outros camaradas, que estiveram na mesma altura no TO da Guiné, neste e noutros setores,  a partilhar os seus documentos e as suas memórias.  
Recorde-se que o nosso camarada, coeditor, Eduardo Magalhães Ribeiro, já aqui publicou uma série de postes relativos á transferência de soberania entre o BCAÇ 4612/74 e o PAIGC, em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974.   
Em Maio de 1974, no setor de Mansoa, a atividade operacional das NT e do PAIGC continuou, indiferente ao que se passava em Lisboa (o golpe militar de 25 de Abril)... As relações entre as duas partes estavam longe de ser amistosas... As NT continuavam empenhadas na construção da estrada Jugudul-Bambadinca, bem como no prosseguimento de uma série de reordenamentos... 

Neste período, o BCAÇ 4612/72 realizou 81 ações, para além da atividade operacional de rotina (emboscadas noturnas e diurnas, escoltas, colunas, etc.). Na primeira quinzena de Maio ainda há escaramuças, com baixas de parte a parte. No final do mês, começa a desenhar-se um pato (mútuo) de não agressão... 

O comando do BCAÇ 4612/72 reconhece que, "após o Movimento das Forças Armadas de 25ABR74, a atitude geral da população é de grande expetativa, reinando grande euforia entre a massa jovem com a perspetiva da Independência. Contudo os chefes, os homens grandes e pessoas mais idosas parecem não comungar dessa euforia"... 

 Quando o BCAÇ 4612/72 assumiu, em 28 de Novembro de 1972, a responsabilidade do Sector 04, o seu dispositivo no terreno era o seguinte, integrando cerca de 1300 homens em armas:


- CCS / BCAÇ 4612/72: Mansoa
- 1ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72: Porto Gole e Bissá
- 2ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72: Jugudul, Rossum, Uaque,  Bindoro
- 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612 /72: Mansoa, Infandre, Braiua, Pista e  Mancalã


Outras subunidades: CCAÇ 15 (Mansoa), CART 3567 (Mansabá), Pel Caç Nat 57 (Cutia), Pel Caç Nat 58 (Infandre e Braia), Pel Rec Daimler 3088 (Mansoa), Pel Mort 3030 (Mansoa, Mansabá, Porto Gole, Infandre, Braia, Rossum,  Uaque, Bindoro, Jugudul, Bissá), 13º Pel Art (obus 14) (Mansoa), além de diversos pelotões de milícia... (LG)






Extratos da História do BCAÇ 4612/2, Capítulo II, Fascículo VXIII, pp. 102, 104 e 105. Período correspondente ao mês de Maio de 1974.
 
Imagens: Cortesia de  Jorge Canhão (2011).

[ Selecção / edição / legendagem: L.G.] 
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 Nota do editor:

 (*) Vd. poste de 16 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8681: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte III) (Jorge Canhão)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8786: Nós da memória (Torcato Mendonça) (1): Hesitação





1. Em mensagem do dia 14 de Setembro de 2011, o nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), enviou-nos este texto para publicação na sua nova série Nós da memória:






NÓS DA MEMÓRIA
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

1 – Hesitação

Estavam, sentados a uma mesa, três amigos em amena cavaqueira. Um ntrara de férias, o segundo período de férias, de sua comissão da Guiné. Os outros já haviam regressado de todo.

Um recentemente viera de Angola, Cabinda,  e ainda buscava rumo. O outro voltara há muito da Guiné e estivera nos Caçadores Especiais. Falavam, claro está, da guerra colonial.

Preferia ouvir mais e falar menos. Estava ainda, duas semanas após a chegada, confuso, desconfiado, irritadiço com tantas luzes e barulhos.

– ... O diabo da emboscada rebentou e atirei-me, sem o jeep parar, para uma vala da estrada. Demorou pouco mas marcou-me muito. De repente tudo se calou e fez-se um silêncio enorme. Voltei ao jeep e vi o assento, o meu assento, ao lado do condutor, todo esburacado das balas. Fiquei lixado…

– Lixado, uma ova. Ficaste borrado de medo  – dizia o que estivera na Guiné.

–  Talvez. Tu, vós sabeis como é.

– Pois sei. Por isso e porque não quero lixar este gajo. Que ainda por lá anda, só conto as mais leves.

Riam-se os dois.

 – Estás lá há quanto tempo?

 – Mais ou menos um ano.

 – Estás lixado,  pá. Tens que “papar” um ano mais. A Guiné é diferente, o clima, a humidade…

A conversa continuava ou da guerra virava para “gajas”. Aí só dois alinhavam. Os da Guiné. Ambos tinham os seus afazeres, as suas cumplicidades, gentes em amizades comuns e amores a serem escondidos ou as mulheres seriam olhadas de atravessado. Vidas de outrora, mas, como hoje, eram assuntos para pouco palavreado.

Despediram-se mais cedo nesse dia.

Ficou sozinho. Necessitava estar um pouco só. Necessitava de beber mais uma “1920”.

Bebeu mais uma “1920” ou “CRF" e, naturalmente navegou com seu pensamento até á Guiné, até às milhentas recordações. O álcool suavizava e abria aquele emaranhado de recordações. Sem querer (ou quis…?),  recordou-a. Lembrou-se das primeiras férias da Guiné. Do penúltimo dia, dia de partida – 8 de Setembro – o dia de regresso à Guiné.

Desta vez não a vira. Chegou quase a meio de Janeiro, dia dez ou doze. Ela, caso tenha vindo, teria vindo mais cedo por volta do Natal. Talvez. Não perguntou a ninguém. Seria aborrecido. Tinha namorada de alguns anos, amiga especial – digamos assim – e, naquele momento, recordou e sentiu o forte desejo de esquecer aquele ultimo encontro. Não foi um encontro normal, não. Foi só uma, duas visões, duas trocas de olhares a perdurarem no tempo. Forte recordação. Dia a não ser esquecido facilmente. Dia? Ou a fusão dos olhares e o que só eles disseram? Até isso roubaram a esta geração, até isso.

Agora só, ali estava em recordação e era quase presente. Lembrava bem o encontro fortuito, a troca forte de olhares, o sobressalto de ambos – ou só dele? – Não o olhar fala e diz muito, muito mesmo. Saiu e nada disse. Ficou confuso, pensativo e alterou a hora da partida. Adiou para a puder ver e falar.

Procurou-a mais tarde, pois sabia onde. Viu-a. Sentiu ter sido visto, sentiu o afastamento dela para uma hipotética troca de palavras. Parou. Pensou, hesitou, raio hesitou. Um turbilhão de pensamentos entulhou o seu querer, a sua decisão. Olhou, olharam-se e ele voltou para trás. Justificou-se a ele mesmo.
– Tens quem tens, a guerra é para aonde vais e apressa-te para chegares a Lisboa, à Portela, a horas.

Só que recordou lá, na Guiné, e ali naquele momento, o rosto, aquele corpo de mulher… diabo.

Na sua guerra não cabiam assuntos e prisões daquelas. Mesma a que tinha teria que desaparecer. Isso era para outros.

Agora ali estava só, mais só se encontrou no regresso final, na dita desmobilização. Mas aí começou a fúria de viver, a tentativa de recuperar tempo perdido. Felizmente por pouco tempo e, mesmo assim a deixar mossas…

E voltou a recordação. Haverá recordações eternas, algo eterno?

Lembra-se naquele dia ter rejeitado mais uma “1920” e ter saído para o frio da noite.
O frio e a humidade do rio, ali ao lado, limpavam a memória.

Agora não, agora não. É tarde, está calor, a memória tem demasiados nós… desatemos, de quando em vez, um…
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8770: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (25): A essas Mulheres o nosso reconhecimento e o nosso bem hajam (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P8785: Notas de leitura (274): Nha Bijagó, de António Estácio (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
António Estácio, um dos nossos confrades luso-guineenses, puxa pelos galões e descreve-nos Bissau e a sua mudança de vila obscura para buliçosa capital da província. Há que lhe fazer justiça, ele tinha que gravar a cinzel a Bissau da sua infância e adolescência. Escolhe muito bem o ambiente em que se moveu uma figura prestigiada de negociante influente da sociedade crioula, uma das últimas sinharas que os mais velhos ainda hoje recordam. Estácio foi feliz no delineamento desta sua viagem ao centro das memórias que guarda de Bissau, ficamos-lhe a dever mais esta incursão cultural e outras que seguramente nos dará, sempre com agradável surpresa.


Um abraço do
Mário


Nha Bijagó

Beja Santos

O nosso confrade António Estácio já nos tinha dado uma agradável surpresa, em 2010, quando escreveu “Nha Carlota”, uma distinta sinhara de Nhacra. Temos agora a “Nha Bijagó”, nome pela qual ficou conhecida outra sinhara, de seu nome Leopoldina Ferreira. O prefaciador avança as suas convicções para a atracção que move António Estácio para este tipo de estudos. Porque estamos diante de personalidades influentes, matriarcas que vêm na esteira das grandes figuras femininas que deram contributos decisivos para moldar a sociedade guineense, ao longo dos séculos.

Como escreve Eduardo J. R. Fernandes: “Essas mulheres eram na sua maioria crioulas, geriam com enorme maestria os negócios dos seus maridos europeus ou eurodescendentes, resolviam conflitos, realizavam pactos com as autoridades locais. A sua condição de crioula, dava à sinhara uma capacidade negocial ímpar, pois sendo detentora de uma dupla identidade cultural, era com facilidade que fazia a ponte entre as populações locais e os alógenos, nomeadamente os europeus. Algumas dessas sinharas ficaram famosas, como a Bibiana Vaz, a Aurélia Correia conhecida por mamé Aurélia, a Júlia Silva Cardoso também conhecida por mamé Júlia e a Rosa Carvalho Alvarenga, mãe de Honório Pereira Barreto, entre muitas outras”.

“Nha Bijagó, respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959) ” é uma edição de autor de António Estácio (citassi@yahoo.com.br).

António Estácio esmerou-se: consultou livros, boletins oficiais, documentos, entrevistou contemporâneos da sinhara e seus descendentes. Quando a sinhara veio ao mundo, as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo, a sede do Governo fora transferida para Bolama. Tornou-se tão influente que quando teve lugar o seu funeral, em 27 de Maio de 1959, nele tomaram parte centenas de pessoas que em marcha lenta se dirigiram para a zona de Tchada de Burro, na cidade velha, ficou sepultada no cemitério municipal de Bissau.

Era uma crioula austera, ter três ligações matrimoniais e um rancho de filhos. António Estácio procede a laborioso levantamento desta genealogia e até ao levantamento dos seus bens. Tudo isto é um bom pretexto para uma incursão do autor sobre a família Ledo Pontes, originária de Cabo Verde.

O autor aprimora-se no registo que faz sobre o ambiente urbano em que se moveu Nha Bijagó. E dá-nos logo um fresco de uma das maiores autoridades da época, o padre Marcelino Marques de Barros, que descreve assim Bissau no final de 1884: “… a vila de Bissau… tem uma vista agradável, e muito mais o seria se precipitassem do alto dos seus baluartes aqueles pilões medonhos, que se chamam onças. As casas descem num plano inclinado até às águas do Geba, e a praia é orlada de uma fileira de acácias, de mafumeiras e outras árvores. São baixas e umas 20 sobradas, postas em alinhamento menos que regular, olham todas para o porto e para as bandas do Sul e de Este, d‘onde sopram os ventos ardentes do deserto e os famosos tornados que fazem tanto mal às embarcações… Edifícios públicos que mereçam tal nome, nenhuns. No extremo esquerdo vê-se o baluarte de Pidjiquiti… à direita o primeiro sobrado… de portão ao centro e duas janelas no alto, pertence ao sr. César Gomes Barbosa e à esquerda, na rua de S. José, o do sr. Álvaro Ledo Pontes…”.

Trata-se de uma descrição minuciosa de quem é quem no que pode ser designado por Bissau Velho. A coroar a descrição, o padre Marcelino refere o cemitério murado por detrás da fortaleza, e refere o mausoléu que Tomás Ribeiro mandou erigir para honrar as cinzas de Honório Pereira Barreto, “enérgico e incorruptível, um misto reflexo do Marquês de Pombal e de D. João de Castro, no estilo e nas obras. Era um preto a quem Portugal deve muito”.

António Estácio é minucioso na toponímia do Bissau velho. Convém recordar que o concelho de Bissau foi criado em 1877, viviam 573 habitantes na área murada, uma população composta por 361 nativos, 166 cabo-verdianos e 16 europeus. Tinha a Nha Bijagó 12 anos quando a província da Guiné foi dividida em 4 circunscrições (Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola). Ao chegar a adulta, a Nha Bijagó presenciou incidentes graves no interior da fortaleza de S. José da Amura, a vila sofreu um grande cerco movido por elementos da etnia Papel a que se juntaram os Balantas de Nhacra. Bissau parece cercada por hordas selvagens.

Na sequência das campanhas de Teixeira Pinto, Bissau é alvo de um plano de urbanização. A Avenida da República, que todos nós conhecemos (hoje Avenida Amílcar Cabral) data desse tempo. Tinha a Nha Bijagó 65 anos quando a comarca judicial da Guiné passou de Bolama para Bissau. Nha Bijagó assiste, pois, ao desenvolvimento urbanístico, ao aparecimento de monumentos, edifícios emblemáticos, à construção das moradias do Bairro Portugal, Bairro de S. Luzia, Catedral, Museu e Biblioteca, conclusão na nova ponte cais, aeroporto de Bissalanca, edifício da Associação Comercial e Industrial da Guiné, etc.

O que havia de incomum em Nha Bijagó? Filha de um comerciante branco e de uma Bijagó, D. Leopoldina tinha uma personalidade muito forte, era constantemente ouvida pelas autoridades locais que apreciam a sua capacidade organizadora e força mobilizadora. Era madrinha de meio mundo, uma das características de qualquer mulher influente. Viam-na a atravessar Bissau para ir à missa, se bem que severa pelava-se por organizar festas, ficaram célebres os bailes que organizava em casa. Presava a comemoração de eventos e encomendava pratos típicos quando juntava a família, como o brindge (à base de carne de pato, galinha ou porco, temperado, cozido e frito), servindo-se com mandioca ou batata cozida, o arroz é obrigatório.
António Estácio recolhe inúmeros depoimentos, é uma ternura o enlevo que ele põe neste testemunhos que atravessam décadas e que parece pôr Bissau a falar. A cidade é uma constante neste exercício monográfico sobre D. Leopoldina: a identificação dos negociantes, a listagem da gente famosa do tempo, a visita ao património da sinhara, o conteúdo dos testamentos.

No seu inconsciente, António Estácio, que nasceu em Bissau em 1947 e que aqui viveu até à sua adolescência, salvaguarda a memória de uma cidade que ele conheceu a palmo, vai do passado até à sua juventude, é uma viagem de afectos a pretexto de iluminar talvez aquela que tenha sido a última sinhara de uma Bissau que é hoje fantasmática. Percebe-se a saudade de António Estácio e ficamos devedores de este retrato de uma mulher de prestígio no contexto do desenvolvimento de Bissau, uma Bissau que todos nós conhecemos e que, sob muitos aspectos, se descaracterizou e profundamente decaiu.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8769: Notas de leitura (273): Dezoito anos em África, notas e documentos para a biografia do Conselheiro José D'Almeida (Mário Beja Santos / António José Pereira da Costa)