quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9315: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (2): Três emboscadas na fonte, em julho e setembro de 1968



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "O caminho (frondoso e, outrora, perigoso) para a fonte" (AC).






Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "A fonte de Mansambo, que continua a ser usada pela população local para abastecimento de água, higiene pessoal e lavagem da roupa" (AC)...






Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "A fonte de Mansambo, quase 40 anos depois: aqui foi gravemente ferido, em emboscada montada pelos guerrilheiros do PAIGC, em 19 de Setembro de 1968, o Saagum, do 1º pelotão da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... É o primeiro dos tugas a contar da esquerda" (AC). (*)




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "Junto à fonte. A foto é elucidativa da tensão que vai principalmente no Almeida e Saagum, a sensação daquele momento só os próprios a podem descrever, e era giro que eles o fizessem, aqui fica o desafio para o António Almeida. Da esquerda para a direita: o José Clímaco Saagum, o António Almeida, o Manuel Costa, o Aguiar e o Casimiro" (AC). 





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "O Aguiar e o Casimiro na fonte de Mansambo". (AC)



Fotos:© Albano Costa / Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados

(Legendas do Albano Costa;  as fotos são do filho, Hugo Costa, que integrou esta expedição à Guiné-Bissau, em Abril de 2006; ambos são membros da nossa Tabanca Grande)


 




Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole.


Fotos do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Comentário de Carlos Marques dos Santos (CMS):

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular e que pessoalmente agradeço - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita. Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339.


"Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água".


Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Mansambo > Posição relativa de Mansambo, uma antiga pequena tabanca abandonada onde construído de raíz um aquartelamento pelo CART 2339 (1968/69).  A vermelho, a estrada a estrada que vinha de Bambadinca, a norte, para o Xitole e o Saltinho, a sul.  A fonte ficava a sudeste do aquartelamento, na direcção da ponte sobre o Rio Bantancunto.



Carta do Xime (1961) (Escala 1/25000) (Pormenor)


1. Mais duas notas pessoais no diário do Carlos Marques dos Santos (ex-Fur Mil da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69; professor de educação física reformado, vive em Coimbra) (**):



11/7/1968

Chegou o novo furriel de transmissões. Fui a Bambadinca [, sede do BART 1904, e não do BCAÇ 1904...] saber se haveria transporte para Bissau para ir tratar dos dentes. Quininos e mais quininos destruiram o meu aparelho mastigador, mas convenhamos, seria mais uma tentativa de afastamento do cenário de guerra. Há que aproveitar.


Fui informado que, em Mansambo, tinha desaparecido um nosso soldado, na fonte, concerteza levado pelos turras. Logo de seguida a Companhia saíu para uma batida, na área e o Alferes de Mílicia de Moricanhe morreu com o rebentamento de uma mina A/P.

Na realidade, o que se passou ? A 11 de Julho de 1968,  o IN reteve um dos nossos elementos, na fonte, e na perseguição, em conjunto com as NT, o Cmdt do Pel Milícias 103 accionou uma mina A/P, tendo sucumbido aos ferimentos. Deste nosso camarada só houve notícias depois do 25 de Abril de 1974: era o Soldado Armas Pesadas Francisco M. Monteiro.


Continuo a aguardar transporte. Só a 19 de Julho de 1968 saí para Bissau, de barco - chamado Corubal... Rápido, pois demorou só 5 h e meia.

Dia 20 fui ao Hospital. Marcaram consulta para 22. Lá estava eu. O médico queria arrancar-me 5 dentes. Não concordei. Tive alta. Fui para a guerra outra vez.

Ainda, em Julho de 1968, a 24, morre em combate o 1.º Cabo Aux Enfermagem Fernando R. de Sousa. (**)

19/9/1968


Haverá uma outra emboscada  na fonte em que o Saagum ficou ferido: seria a 19/09/1968 e nessa altura não houve desaparecidos. Eis o meu registo:

Em 19 de Setembro de 1968, a CART 2339 sofre uma emboscada, vinda da copa das árvores, também na fonte, enquanto procedia ao abastecimento de água. 

07 h. Pequeno almoço. 8.30 h, rebentamentos na direcção da fonte. O 1.º Pelotão estava à água (o Saagum era do 1.º Pel). Ataque IN do cimo da copa das árvores. Reacção imediata do Pelotão, apesar do insólito.


Das árvores? Nunca tinha acontecido. Feridos! Antevê-se a tragédia. 1 morto e 11 feridos, 5 deles graves. O morto é o Soldado de Transmissões Humberto P. Vieira. Um dos feridos graves viria a falecer no Hospital Militar de Bissau (241),  a 25 desse mês. Era o 1.º Cabo Condutor João M. J. Figueiras. De entre os feridos graves, registe-se o José Clímaco Saagum que perdeu uma vista.

Evacuação urgente. Três helis evacuaram os feridos graves para Bissau e os menos graves para Bambadinca. Chegou coluna do Batalhão em ajuda. Reconhecimento da Zona. Trilhos, vestígios de sangue. Mau dia, este. (****)

Dia 20 [de Setembro de 1968]. Comandante em Chefe, Governador da Província - Spínola. Trouxe notícias dos feridos e conforto moral.

30/9/1968


Em 30 de Setembro, há uma nova emboscada na fonte a Pelotão de Milícia e uma mulher da Tabanca.


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Notas do editor:

 (*)
14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)

(**) Último poste da série > 2 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9303: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (1): Op Gavião: Abril de 1968, antes o fogo do IN que o ataque das abelhas



(***) Vd, poste de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DIX: As baixas da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) [Carlos Marques dos Santos]

(****) [Vd. também a evocação deste dia trágico, para  CART 2339, feita pelo Torcato Mendonça; passados meses, acrescenta ele, foi aberto um poço dentro de quartel; construíram-se duches e vieram dois obuses 10.5; segundo o prisioneiro Malan Mané, feito mais tarde, em Agosto de 1969, o grupo do PAIGC que emboscou as NT na fonte de Mansambo, em 19/7/1968, seria comandado ou enquadrado "por um ou mais cubanos"].

Guiné 63/74 - P9314: Parabéns a você (362): Ricardo Figueiredo, ex Fur Mil da 2.ª CART/BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, Soldado Condutor Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9300: Parabéns a você (361): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 – P9313: Memórias de Gabú (José Saúde) (20): Passagem de ano 1973/74



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


PASSAGEM DE ANO 1973/74
O odor do mato

Pensei enviar esta mensagem em tempo considerado oportuno, ou seja, antes as badaladas do sino da igreja que nos indicavam a chegada do novo ano de 2012, porém repensei a minha decisão e fiquei com ela em carteira. Hoje, voltei a relê-la e entendi ser ainda oportuno traze-la à estampa uma vez que reconheço que a opinião relatada se enquadra com situações vividas por antigos camaradas que se depararam ao longo da sua comissão na Guiné com situações parecidas como aquela que descrevo. Num dos meus relatos sobre AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU sublinhei que um dia falaria sobre a única passagem de ano em território guineense. Uma promessa que ficou suspensa mas agora cumprida!


A passagem do ano 2011/2012 já lá vai. Passou. Fica para a história. Bebeu-se uma taça de champanhe, comeram-se as doze passas como manda a tradição e deu-se alvíssaras pelo tempo que se avizinha. Não vou, obviamente, cingir-me sobre o futuro que nos espera, respeito escrupulosamente as opiniões que cada um de nós partilha. O meu repto passa, sobretudo, por uma viagem no tempo, recuar 38 anos e trazer à estampa a minha passagem de ano de 1973 para 1974 na Guiné em tempo de guerra.

31 de Dezembro de 1973. Coube-me a missão comandar o grupo operacional cujo objectivo era  proteger os camaradas que entretanto ficavam no interior do arame farpado para, ao menos, contemplarem a entrada do novo ano de 1974 com alguma segurança. Lembro-me sair do Quartel ao final tarde e caminhar (mos) rumo a um objectivo indefinido. A noite esperava-nos. Claro que a situação considerada normal numa outra ocasião do ano apresentava-se, agora, descabida, tendo em conta a nossa ânsia em festejar a célebre data. Todavia o cumprimento do dever e o clima de guerra vivido, impunha restrições ao mais incauto militar.

Partimos então a caminho destas volúveis incumbências. Fez-se noite. Cerrada. Porém, recomendei, a dada altura, o fim da viagem. Toda gente ficou surpresa com a determinação. “Furriel, estamos ainda longe do local onde vamos ficar”, dizia-me o cabo Rodrigues já conhecedor destas andanças. “Não faz mal, pensei uma outra coisa. Talvez que esta noite não seja tão enfadonha como as outras”, atirei. “Porquê, furriel. Olhe, para mim é uma grande trampa. Pela primeira vez não festejo uma passagem de ano entre a família e os amigos”, respondeu o “nosso” cabo. “Tem calma que a nossa presença no breu da noite poderá ser hoje encurtada!”, respondi. “Não me diga que esta noite não haverá guerra com os mosquitos? Vamos mais cedo, não é verdade”, interpunha o homem do bigode farfalhudo e sempre astuto nas conversas. “Acertaste”, retorqui. 

Os ponteiros do relógio entretanto avançavam. Vieram as nove, dez, onze horas e o pessoal começou a procurar o melhor espaço para descansar. As conversas sobre o convívio da passagem do ano não paravam. “O ano passado já estava na tropa em Penafiel e tive licença para passar três dias em casa e agora passo o fim do ano no mato”, lembrava o soldado Antunes com a sua pronúncia do Norte. Um outro camarada, mentalizado com o destino que a vida lhe pregou, divagava nas suas aventuras, algumas amorosas, vividas em anteriores passagens de ano. Eu, claro, materializava excelentes recordações de uma vida passada ao rubro e longe do cenário por ora visualizado. Pensava nas noites electrizantes dançando ao som do twist-twist ou de melodiosos sons sul-americanos. Calmos. Aqueles que davam para um desejado enroscar de corpos ainda jovens. 

Lembro que as namoradas, à época, alindavam-se para uma noite divinal e nós, já quentes, a ferver, embeiçávamo-nos com o tornear dos seus esbeltos corpos.

Agarrado à minha camarada G3, companheira em momentos de aflições, meditava na revolta sentida e engendrei, aliás, já estava engendrada, uma solução para por fim ao sofrimento partilhado entre os meus companheiros.

Inesperadamente soltei um grito: “Meus amigos estamos todos no mesmo barco, arrumemos a tralha e toca andar a caminho do Quartel. Aconselho, porém, que a nossa entrada à porta de armas seja feita o mais silenciosamente possível e vamos festejar, também, o novo ano de 1974”. O regresso foi encarado euforicamente, recordo. Seguiu-se a entrada para o interior do arame, a festa e o ênfase, natural, que a madrugada declarava.

A estratégia de ficarmos próximo do Quartel suscitou, obviamente, uma réstia de esperança para aqueles homens entregues então à solidão de uma noite, para mim, e para eles, inesquecível.

Para a posterioridade ficou a certeza que numa noite de festa – 31 de Dezembro de 1973 para 1 de Janeiro de 1974 – em que partilhámos a inequívoca realidade do odor do mato!

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados. 

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

31 DE DEZEMBRO DE 2011 > 
Guiné 63/74 – P9297: Memórias de Gabú (José Saúde) (19): Um poço no mato  

 

Guiné 63/74 - P9312: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (8): Foto do refeitório do destacamento fronteiriço de Sare Uale, disponibilizada pelo Aristides Gomes Teixeira, o nosso ex-padeiro



Guiné > Zona leste > A posição relativa do destacamento de Sare Uale, mesmo junto à fronteira com o Senegal, e que pertencia a Fajonquito, dentro do triângulo Cambaju, Sare Bacar e Contuboel.  Fajonquito fica na carta  de Colina do Norte (1956) (Escala 1/25000). Sare Uale fica já na carta  de Tendinto (que, por qualquer razão, não está disponível "on line", lapso a corrigir em breve).

Fonte: Carta da Provínica da Guiné (1961). Escala 1/500 000 (Pormenor)


1. Mensagem do nosso camarada José Cortes (ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74), com data de 1 de Janeiro de 2012:


Caros amigos,

Desejo,  a toda a tertúlia, um Bom Ano de 2012.


A foto que vai em anexo, foi-me enviada pelo camarada Aristides Gomes Teixeira, que era padeiro e esteve neste destacamento de Sare Uale, durante toda a comissão, por opção própria.


Em fundo era o refeitório do pelotão, que estava aí destacado. Passaram por lá os quatro pelotões da companhia e o companheiro Aristides sempre no seu destacamento durante os 26 meses de comissão.


Um abraço,
José Cortes.


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Nota de CV:


(*) Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8983: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (7): Fotos enviadas a Cherno Abdulai Baldé - Chico de Fajonquito (2)

Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Janeiro de 2012:

Olá Carlos, boa noite,
Estive alguns dias a alentejanar, sem computador nem sinal de telemóvel, e ao chegar a casa tinha alguma curiosidade em ver o Blogue. Antes da minha partida já o Zé Brás tinha-me enviado uma nota sobre o que se propunha fazer, e acho que lhe transmiti entusiasmo. Também já o Joaquim tinha feito um poste de oposição, onde inseri um comentário. Faltava-me ver os restantes. Por isso, escrevo agora a propósito de um comentário do António Rosinha, que me parece susceptível de correcção, e talvez ajude à melhor compreensão do fenómeno colonial português, sobre a questão das concessões, e de truques para parecer o melhor dos mundos, sustentado em números de grande hipocrisia, onde o interesse particular primava sobre o público.
Se julgares que estas linhas podem corroborar os textos do Zé Brás, ficas à vontade para o fazer.


A propósito de CITAÇÕES, post 9286**, e comentário do ´"Mais Velho"

Desde meados do sec. XIX que se sabia do potencial económico sustentado na riqueza mineira de Angola, bem como do potencial económico que a agricultura poderia proporcionar. O estado facilitou a demarcação de terras para explorações agrícolas, e criou legislação que facilitava o recurso à mão de obra, sendo que, em alguns casos, mediante a corrupção ou subordinação de sobas e chefes tribais. Até àquela data Angola era um imenso território onde viviam tradicionalmente as tribos, sem qualquer organização político-administrativa (que se limitava às regiões próximas das cidades do litoral), para além do traçado das fronteiras.

A situação dos indígenas, que eram sujeitos a trabalhos quase-forçados, ou à condição de quase-escravos, está bastante documentada, e os resultados agrícolas causavam espanto na metrópole. Com a segunda nomeação de Norton de Matos para Alto-Comissário, o general exigiu condições que podem resumir-se pela "garantia de governar Angola durante, pelo menos cinco anos, e de lhe serem disponibilizados fundos necessários para desenvolver a colónia, ou deixarem que os arranjasse contraindo empréstimos". Entretanto, o Parlamento consagrou a autonomia administrativa e financeira das colónias. Tinha em mente grandes projectos de obras públicas, nos portos de mar e nos caminhos de ferro, pelo que tentou negociar empréstimos em Inglaterra. "Enquanto na Europa se tratava de assuntos da maior importância para o futuro do continente e do mundo, tentando Afonso Costa defender ao máximo os nossos interesses no âmbito da Sociedade das Nações, a deplorável situação política interna acarretava-nos o descrédito dos outros países, que consideravam Portugal ingovernável". Lançou um plano de obras públicas que ampliava a rede de caminhos-de-ferro, a construção e ampliação de portos de mar, a abertura de estradas, e uma rede de comunicações telegráficas. "O seu primeiro ano foi, assim, em grande parte dedicado a produzir o suporte administrativo e legal dos meios postos ao dispor do desenvolvimento da província". ... "Este quadro legislativo foi ainda completado com diplomas que atendiam a aspectos da educação, da posse da terra, da exploração dos recursos naturais e, finalmente, com os decretos sobre o trabalho e a protecção do indígena, que tão fundos dissabores acarretariam para o alto-comissário". Tornou-se por esta razão um homem a abater, e acabou antecipadamente destituído.

Digamos que, em Angola, a Administração andou colada aos interesses particulares, nomeadamente os das empresas que garantiam o progresso. Ora, como vimos antes, o Estado não reunia meios para o fomento da província, pelo que muitas infraestruturas eram garantidas por contratos de exploração com empresas de capitais migrados que, em contrapartida, conseguiam condições muito vantajosas para instalação e desenvolvimento dos seus negócios. Foi o que aconteceu com a Companhia de Diamantes de Angola, "um estado dentro do estado", no dizer popular, que construía barragens e fornecia electricidade para vastas regiões (embora os autóctones pouco ou nada beneficiassem dela), "garantia" a assistência médica e medicamentosa através de pequenos hospitais e dispensários (houve trabalhadores que diagnosticados de gripe exibiam nas suas fichas a resochina como tratamento, e outros sujeitos a cirurgias hediondas), que, no Cafunfo, chegou a contratar "snipers" para combater a "camanga", e uma grande parte dos vinte mil trabalhadores rurais que era oriunda das tribos do sul, atravessaram a pé o território angolano, devidamente enquadrados por guardas, e definitivamente separados das famílias.

Sobre o episódio entre Adriano Moreira e Venâncio Deslandes, em 1962: "ao provocar a demissão do General Deslandes após um processo de averiguações em que este terá sido acusado de se haver transformado em bandeira dos separatistas de Angola", estava lançado um período de desenvolvimento, e o governo viu-se obrigado a aumentar as autonomias das províncias.

Refere o meu estimado António Rosinha que todas as empresas de capitais estrangeiros a operar em Angola, portaram-se sempre dignamente para com o estado português. Não me parece que tenha sido assim, pelo menos no que respeita à exploração diamantífera. Já vimos como socialmente a Companhia deixou muito a desejar. Veremos agora como se processava o negócio e os efeitos decorrentes para a economia nacional:

Durante dezenas de anos a C.D.A. - Diamang teve o exclusivo para prospectar, definir as zonas de "claims", e explorar em todo o território de Angola. Era monopolista. Na composição do capital social o Estado detinha 51%, e o restante correspondia a participações de empresas estrangeiras que integravam o "trust" (capitais de confiança), que dirigia e controlava o negócio mundial (com insignificantes excepções).

A Diamang chegou a ostentar dezassete administradores, três executivos, e os restantes, em proporções parecidas, ora representavam o capital externo, ora representavam uma prateleira dourada de antigos governantes e pessoas gradas ao regime, e que parecia poderem defender o interesse nacional.

blá-blá, anos a fio. No que à cotação dos diamantes respeita, e qualquer pessoa pode saber pelas estórias dos camanguistas, deve ter-se em conta a qualidade superior das gemas angolanas, o principal factor de valorização, associado ao peso, grau de purificação e modelo de cristalização, e tentar perceber porque eram vendidos ao preço médio - cotação, tal e qual os diamantes russos ou liberianos. Pois é, o "trust" manipulava os preços. E Salazar saberia que era fácil de abater.

Não satisfeito ainda, no início da década de 70 começou a Condiama a prospectar em Angola. A empresa era constituída essencialmente por capitais do "trust". Falava-se em "abertura" do regime. Coisa para oligarquias! Quer dizer que a empresa tinha obtido acesso a zonas que eram exclusividade da Diamang. Mais curioso, porém, foi que os diamantes provenientes da prospecção efectuada pela Condiama, eram guardados no mesmo cofre da Diamang, na Estação Central de Escolha, em V. P. de Andrada, no que podemos considerar uma medida absurda e de promiscuidade, difícil de entender. Em 1972, o então director-técnico da C.D.A. manifestou oposição à actividade e às circunstâncias da Condiama, e ao prejuízo resultante para o interesse nacional, e foi promovido a uma prateleira dourada, sem intervenção significativa, pelo que se demitiu. "Seguiu a marinha". Os acontecimentos subsequentes (a independência) não o permitem confirmar, mas tudo indica que o "trust" era guloso e queria mais, e mais àvontade, pelo que, a prazo, a Diamang poderia tornar-se inviável face à relação custos/rendimento, enquanto a Condiama daria provas de "boa gestão e progresso". Ora estas manobras só eram possíveis com a conivência de gente muito bem instalada e acesso aos cordelinhos, sem enfermar do espírito patriótico que pode tolher as boas iniciativas.

Assim, desafio os historiadores e especialistas mais credenciados, a desenvolverem estudos comparativos, que, certamente, vão permitir verificar como a sociedade portuguesa foi altamente lesada, e o desenvolvimento angolano inibido de mais e melhores resultados, em lugar de a tudo e nada recorrerem para minimização do estudo do Zé Bràs, que só falhou pela nota de cansaço.

De Portugal, na época. pode dizer-se que comportou-se ingénua e teimosamente, como um país colonizador que, afinal, não passava de um instrumento útil à prossecução dos interesses das grandes fortunas, ontem e hoje, as verdadeiras colonizadoras. Mesmo assim, a guerra em Angola praticamente terminou por virtude do desenvolvimento sócio-económico.

Nota bibliográfica:
- Relatórios do Banco de Angola;
- Memórias de África , de Jorge Eduardo da Costa Oliveira;
- Norton de Matos - biografia, de José Norton;
- Salazar, vol V, Franco Nogueira
- Coisas do Tempo Presente, de Cunha Leal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

(**) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9286: (Ex)citações (170): As colónias portuguesas antes da Guerra (3): Guiné e Cabo Verde - Notas finais (José Brás)

Guiné 63/74 - P9310: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (6): Fragmentos Genuínos - 4

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 4

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Transportados para Fulacunda um dos lugares que se pretendia servir de tampão e dissuasor de pelo sul o IN chegar a Bissau, apenas tenho memória da viagem até ao porto no rio Geba que ficava a 4/5Km da localidade, de se avistar a perder de vista uma imensa e impenetrável floresta e da linguagem do inefável barbeiro da Companhia, o grande amigo Antonino Marques, já então como que de sobreaviso com as tropelias e prepotências que se vieram a verificar por parte do Alf. Serigado e do medroso Ferreira de Almeida, altamente vernácula e que se tornou paradigma nos considerandos e conversas que frequentemente mantínhamos.

Diversas vezes entrou em choque com o Serigado, nunca lhe perdoando; de tal modo que na primeira confraternização para a qual depois de já termos feito algumas, lá ter eu próprio convencido o Serigado a participar, tendo vindo acompanhado por um filho adolescente, e obrigando-me a tentar por em prática uma política de boas relações, o bom do Antonino quando nas despedidas o Serigado o pretendeu cumprimentar lhe disse na sua voz estentória: eu não conheço o senhor de lado nenhum, e assim ficou. É hoje este meu grande amigo o Barbeiro de Meruge – Oliveira do Hospital.

Aqui após o desembarque e posterior transporte por uma desesperante picada cheia de buracos e enlameada de tal modo que um dos unimogues que nos veio buscar se atolou, e em que um dos jovens desconhecedor como todos, das características da floresta bateu inadvertidamente com o corpo num arbusto ficando com uma comichão que o fez arrastar-se no chão para tentar suavizar o ardor; era, viemos a saber depois através dos velhinhos que íamos substituir o feijão-macaco. Chegados ao aquartelamento, um rectângulo rodeado de arame farpado e sem ligações com nada excepto este porto ou uma improvisada pista de aterragem, dentro do aquartelamento existiam algumas casas de antigos colonos e que serviam de messes enfermaria etc… e um refeitório e Bar, para além de já construídas duas casernas; no exterior havia uma tabanca e algumas casas abandonadas mas funcionando ainda um posto de correio, onde estava colocado um jovem cabo-verdiano que era o nosso companheiro de actividades e alinhando na fragilíssima equipa de futebol do sul, donde éramos meia dúzia e servíamos de batuta para o resto do pessoal. A nossa Companhia tinha como maior componente, pessoal oriundo das beiras.

Aqui começávamos a sentir a realidade de uma vivência em guerra cheia de agruras turbulências e peripécias algumas delas rocambolescas mas qualquer delas traumáticas e de inimaginável tensão; para além da tragédia da morte e desaparecimento de grandes amigos e camaradas. Na primeira noite ainda muito confiante e pouco avisado deixei-me adormecer numa cadeira tipo baloiço (de design militares das colónias - feitas com as tábuas dos barris do vinho), no alpendre das nossas instalações, só acordando por mor das milhentas picadelas de mosquitos que por ali pululavam aos milhões. Que banquete, eu já na altura era suficientemente anafadinho. Enfim fui o motivo para risada geral: os trastes hem!!!

Após poucos dias de estadia em Fulacunda e ainda sem uma completa adaptação ao meio, onde as noites eram passadas em sobressalto com os ruídos naturais tanto de algum movimento na Tabanca o natural rumorejar da floresta, e os guturais gritos dos macacos-cães, principalmente em dias de chuva e ventos, e que se tornavam verdadeiramente assustadores para estes neófitos e isolados guerreiros, saímos em patrulhamento no sentido de Uaná Porto. Esta tabanca ficava situada no terminus de um vale junto do rio Corubal e à beira duma mata intensa, sendo que por todo aquele vale/planície se via uma extensa plantação de arroz, vindo só junto ao rio a aparecer a povoação; era uma paisagem paraisidiaca, tendo nós assistido ao nascer do sol que era mesmo no sentido do Rio, é indescritível a beleza e sentido de paz que pairava etereamente no ar; no meio de um silêncio profundo, um camarada não se conteve, mandou às urtigas as recomendações de surpresa e disse em alta voz: “Oh meu Deus porque é que fazes guerras aqui”. A ansiedade era enorme, transformando-me numa autêntica pilha de nervos. Exceptuando uma rajada que um camarada nosso com menos auto-domínio executou e em que a espingarda logo encravou regressámos ao aquartelamento sem mais qualquer incidente. A sugestão do médico da Companhia, Dr. Dias Neves, do Montijo (era talvez o melhor atirador da Companhia; vi-o matar em pleno voo um pato bicanço), tinha pela sua maneira de ser um grande ascendente sobre o Cap. Caria e influenciava facilmente as decisões deste, toda a Companhia foi para a pista de aterragem fazer fogo para o mato a fim de testar as armas. Uma percentagem elevada estava inoperacional.

Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga.
Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um Homem Grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.

Reunida a Companhia, já transformada em três Pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois Grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive, ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.


Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento, valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.

Questionei o Malan Sanha!
E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse: - É a mar… Rios, é a mar…

É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
Prosseguimos e ao alvor da madrugada entrámos no objectivo: afinal uma tabanca com todos os vestígios de ter sido abandonada recentemente e onde havia um imenso laranjal onde nos abastecemos, após o que regressámos sem incidentes e em menos de um quarto do tempo a Fulacunda.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

Guiné 63/74 - P9309: Memória dos lugares (170): Regresso a Missirá em Janeiro de 1990 (Mário Beja Santos)


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.



1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
 
Espero que a lembrança vos dê satisfação. Aí a páginas 250 deste calvário que levo na escrita e que tenho que aprontar até ao fim de Fevereiro, reconstituo a visita que fiz a Missirá vinte anos depois de lá ter estado. Foi um encontro inolvidável, o mundo mudara mas aquela paixão pelo Cuor mantinha-se firme. Mantinha-se e mantêm-se.

Desejo-vos do coração um novo ano com a saúde em pleno e sinto-me grato pela vossa amizade,
MBS


O regresso a Missirá em Janeiro de 1990

Maria Leal Monteiro e o Tangomau iam comer regularmente à Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, sempre superintendida por D. Berta de Oliveira Bento. Foi aqui que conheceram outro cooperante, o Dr. Francisco Médicis, que estava ligado a um projecto da segurança social. Suspirava-se, no fim de uma tarde de quinta-feira, para encontrar um transporte no fim-de-semana para ir até ao Cuor, era mesmo crucial fazer esta visita durante o fim-de-semana, pois estariam de regresso a Portugal na terça-feira seguinte. Com uma enorme candura, o Dr. Francisco Médicis assegurou-lhes que os levava ao Cuor no domingo, aquele domingo ficava por conta de alguém que sentia um enorme fascínio por aquele regulado que ele não conhecia nem nunca ouvira falar. Estava prometido, o Tangomau voltava ao seu chão.

Alvorecia em Bissau quando os três se puseram ao caminho numa carrinha de caixa aberta, de Bissau até Nhacra, antes de Mansoa tomaram a estrada em Jugudul, era a primeira vez que o Tangomau percorria caminhos outrora interditos; não se entrou em Porto Gole, a nova estrada alcatroada seguia por Malafo e passava perto do Enxalé. 

Nesta altura já o Tangomau estava alvorotado, via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendeu-se com as culturas do cajueiro, a grande novidade; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentiu-se desnorteado, pois percebeu que o novo traçado da estrada se afastara do rio, era impossível ter perdido de vista aqueles formosos palmares nas vizinhanças de Mato de Cão; viu a indicação da povoação com este nome, muito depois de Saliquinhé, perguntou aos passantes onde estava o rio e todos disseram que estava longe, mais a mais o curso de água encontrava-se na vazante, era impossível aproximar-se daquele local mágico que visitara todos os dias, uma das razões porque se atirara ao caminho, vem pelos homens e vem pelos lugares, vem pelos cheiros, pela fauna e pela flora, está de regresso ao Cuor, que lhe pertence; conformou-se com a desfeita da natureza, mas não deu o tempo por perdido, nesse mesmo Mato de Cão foram mostrar-lhe o planalto, foi então que se apercebeu que por ali houvera um quartel exactamente no local onde pernoitara tantas vezes, que calcorreara em todas as direcções, agradeceu a recepção, a carrinha de caixa aberta, por indicação de outros passantes, mais adiante, em Gambana, inflectiu à esquerda e tomou o caminho da velha estrada do Geba, que ele tão bem conhecia, em dado ponto até exclamou que estava a ver Malandim, no lado direito e ao fundo a opulenta, a luxuriante bolanha de Finete.

É um dia de Janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, o caminho é acidentado, predomina a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá começam a despontar terrenos cultivados, o Tangomau entra em transe, já se avista a curva de Canturé, a carrinha vai sempre em frente, mesmo aos tombos em tantos buracos, disseram em Bissau que é preciso ter muito cuidado pois há muitas estradas alagadas, são os resquícios da época das chuvas, o Dr. Francisco Médicis prefere a segurança deste empedrado que muito mais adiante, de acordo com a carta e a percepção do Tangomau, irá desembocar em Cancumba.

 Agora está um calor de enlouquecer, vê-se uma indicação de Maná, a carrinha prossegue imperturbável, e quão curioso vai o antigo alferes de Missirá, Maná é um percurso de antanho, prenhe de memórias, por ali há um túmulo de um régulo do Cuor, um nome inesquecível de um Soncó; dentro da viatura não se ouve um comentário, tripulante e passageiros levam frequentemente à boca a garrafa de água; o terreno agora é mais escalavrado, o Tangomau tem um arrepio, recordou à esquerda a entrada para Mato Madeira, num ponto alto do alcantilado avista-se uma tabanca à direita, pelas informações que dispõe trata-se de Sansão, foi recriada no fim da guerra, estão pertíssimo de Missirá; agora a estrada alarga-se, melhor dito é a natureza liberta da floresta, temos ali as palmeiras de Cancumba, a carrinha inflecte numa picada, alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá; o estradão está de facto pejado de hortas, o Tangomau reconhece os altos poilões e o mar de cajueiros, Missirá está em frente, quando a viatura franqueia a entrada ouve-se o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, os viajantes põem-se em terra.

Sempre que descrevia o acontecimento, o Tangomau comentava: entrei e saí de Missirá a soluçar, é uma experiência inenarrável, 20 anos depois sentir a atmosfera, ver alguém que se aproxima e logo se reconhece, é Lamine Mané, a criança tornou-se num homem robusto, guarda a inocência no sorriso, pega o Tangomau pelos ombros e dá-lhe as boas-vindas dentro de um abraço caloroso. Explode a gritaria, o Baké regressara, claudicando aparece Quebá Soncó, depois dos cumprimentos efusivos dá instruções para se juntarem os bancos, vai começar o cerimonial das conversações, mas o Tangomau está frenético, procura as mulheres grandes, encontra duas, partem mantenha, elas fazem a reverência, perguntam pela família, pedem cola; se já vinha desnorteado, dentro de Missirá perdeu a bússola, está tudo modificado, a única referência a que se agarra é ao edifício dos abastecimentos, não o demoliram; o cerco estreita-se, ele tem pela frente alguém que lhe estende os braços e que o ampara, vibrante, é Bacari Soncó, o seu irmão, o Tangomau já não pode mais, soluça encostado a uma estaca de querentim, sente a cabeça à volta parece o dia da ressurreição dos vivos, que andavam tão distantes. Quebá Soncó sente-se na obrigação de pôr ordem, há autoridades do PAIGC que pedem explicações para esta explosão de alegria, trocam-se cumprimentos, as autoridades falam em crioulo e Quebá traduz: nosso alfero é muito bem-vindo.

Cumpre-se o protocolo dos cumprimentos, Quebá perora em mandinga, Maria Leal Monteiro e o Dr. Francisco Médicis estão manifestamente siderados com o cerimonial, olham para a pequena multidão silenciosa, o povo aguarda o ritual dos cumprimentos, parece que voltámos aos tempos bíblicos. A assembleia posiciona-se: no extremo de um longo U um banco para os visitantes, estes já receberam pratos de papaia e copos de água fresca; em frente, sentado numa cadeira de vime, pontifica Quebá, compete-lhe a batuta de toda a conversa; logo atrás todos os homens grandes, estão ali festivos nas suas fatiotas multicoloridas, vêem-se ali os Soncó, os Sani e os Mané; aos lados, temos os jovens adultos e os blufos, a maior parte mantém-se de pé, são obrigados ao respeito, compete-lhes ouvir a confirmação de uma história que já ocupou muitas noites da vida de Missirá, o Baké existe, é um Soncó que regressou nesta visita meteórica, mas existe, não é lenda nem tem a forma de um Deus; ao fundo estão todas as mulheres e as crianças, só as mais velhas estão sentadas, elas tiveram o privilégio de conviver com o branco da família, que não pára de chorar, coisa inconcebível de se mostrar em público, ele deve ter um amor muito entranhado, deve ter vindo amarfanhado pelas saudades para quebrar os deveres da honra, um homem não chora, mais a mais ele é o guerreiro que nenhuma bala pode derrubar.

É longo o discurso de Quebá e mal se faz silêncio um homem jovem, vestido à europeia, começa a traduzir para português, fraseia e articula sem mácula, o Tangomau está intrigado e pede explicações e Quebá prontamente responde: é o nosso irmão mais novo, Abudurramane Serifo Soncó, é professor, está de férias, tinha sete anos quando houve o grande ataque que destruiu Missirá, em 1969. Feita a saudação inicial, levanta-se imponente Aladje, o ancião dos Soncó, lança uma oração de graças, o Deus misericordioso nunca falta ao apelo dos seus crentes, é bom este regresso de alguém que jamais foi e será esquecido, chegou o momento do ilustre visitante falar com a família. O Tangomau, para sua própria surpresa, tem o coração oprimido mas discursa sem nenhuma congestão narrativa, recorda todos os seus amigos, as idas ao médico e os trabalhos do abastecimento em arroz, naquele preciso momento sentia grande comoção em recordar Mussá Mané, praticamente todos os dias o chefe de tabanca lhe vinha suplicar uma coluna extraordinária para suprir carências de toda a espécie, recordou o régulo Malã e aquele dia de despedida em que ele se transformara num Soncó. Aqui a sua voz tremelicou, resolveu abreviar, que ninguém duvidasse que ele nunca esquecera Missirá e Finete, as belezas indizíveis do Cuor, o regulado mais belo do mundo, que vinha para colaborar com a Guiné-Bissau e que sentia uma grande alegria por este reencontro e que pedia licença para ir rezar com os homens grandes à mesquita, dar hossanas e desejar as maiores venturas a quem ali vivia.

O que se passou nas horas seguintes ainda hoje permanece confuso, veio o novo régulo, um Soncó que vivia no Senegal, no tempo da guerra, de nome Mamadi; furtiva ou abertamente, entregavam-lhe bilhetes, trouxe dezenas deles, pedindo equipamentos de futebol, livros, chapa ondulada, bancos para a escola; percorria Missirá de uma ponta a outra quando foi sacudido pela emoção maior: sempre discreto e estendendo-lhe as mãos ali estava Cherno Suane, que tanto sofrera na prisão do Cumeré, andara a monte e finalmente fora autorizado a residir perto de Missirá, em Biassa. 

O Tangomau nunca se arrependeu da promessa impulsiva que logo ali lhe fez: juro-te que tu vais para Portugal, se quiseres. É quando começa o fim do dia que o Dr. Francisco Médicis, com mansuetude, lhe recorda que a viagem até ao tapete alcatroado tem os seus riscos, é melhor partirem, tem consciência de que é muito difícil agora a despedida, apela à sua compreensão. E começa o cerimonial do adeus, garante a todos que é bem provável que volte em breve, na caixa aberta vão as prendas, várias galinhas a cacarejar, com as patas atadas. Cherno Suane vai erecto e altaneiro na caixa, despede-se de todos como se amanhã partisse para Lisboa. Esta despedida é igualmente emocionante, a carrinha está imobilizada à entrada de Missirá, são adeuses sem fim, o Tangomau parece querer congelar no olhar aquele céu sem uma nuvem, agora a temperatura é benfazeja, depois prosseguem pela estrada alcantilada, em Cancumba os habitantes insistem em cumprimentar, correu célere a notícia da presença do Baké, muita desta gente veio de Madina, Belel e Quebá Jilã, se fosse necessário prova mais eloquente de que já se consumou a reconciliação entre guineenses e portugueses, ela aqui estava, neste final feliz da visita.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9305: Memória dos lugares (169): A CCAÇ 2464 em Biambe e Binar (António Nobre)

Guiné 63/74 - P9308: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (3): Começar o ano novo com medo de levar uma porrada

1. Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu (AGA), publica-se mais um excerto do seu Diário da Guiné, 1972/74, a partir do ficheiro em word que serviu de base à edição do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).


Com seis meses de Guiné, ele estava no princípio do ano de 1973 ainda em chão manjaco, no Canchungo (Teixeira Pinto), no CAOP1, servindo sob as ordens do Cor Cav Pára Rafael Durão (que ele nunca identifica, a não ser pela incial do apelido, D.).  Recorde-se que o AGA era Alf Mil, com a especialidade de Secretariado, Serviço de Pessoal:

" [Sou] chefe de secretaria, chefe de pessoal, controlador das limpezas, secretário dos majores, responsável pelas obras, encarregado dos correios, pequeno oficial na ligação diária com os meios aéreos" (...).

Com 25 anos, culto e viajado, paisano no meio de militares puros e duros, ainda mal ambientado à Guiné e ao trabalho que lhe é exigido no CAOP1, o AGA é confrontado com o risco (real) de "apanhar uma porrada", ao abrigo do RDM, ser despromovido e perder o direito de licença às tão desejadas férias na Metrópole (o que, diga-se de passagem, não virá a acontecer, sendo o AGA um felizardo com direito a 3 períodos de férias no "Puto", durante a sua comissão, que vai de Junho de 1972 a Abril de 1974)...

No entanto, as coisas tinham aparentemente começado bem quando ele chega, de armas e bagagens, em rendição individual,  a Teixeira Pinto, em 26 de Junho de 1972:

(...) "Tive uma simpática recepção, um coronel pára-quedista, comandante do CAOP 1, meu chefe e o dono da guerra aqui, mais dois majores, Barroco e P., o capitão Borges e o alferes Carvalho que venho substituir" (...).

Em 12 de Julho de 1972, o AGA descreve o seu trabalho (burocrático) no CAOP1:

(...) "Não vivo num paraíso tropical, tão pouco numa colónia de férias para brancos em África. Mas é verdade que faço uma guerra pacífica, sobretudo com papéis. Tenho dois subordinados, o furriel Peres que, tal como eu, veio para a Guiné já com 21 meses de tropa em Portugal e o 1º. cabo Pereira, escriturário que escreve à máquina, arquiva a papelada e vai buscar umas laranjadas ou cervejas ao bar.

"Eu abro a correspondência que leio e organizo, dou ao Peres para ele registar no livro de entradas, depois vou levá-la ao gabinete do major P. que tem o pomposo título de Chefe do Estado-Maior, o major entrega ao coronel D., o comandante do CAOP 1 e vai a despacho com ele. O coronel assina e anota os papéis, devolve ao major, este entrega-mos a mim, seguem para o furriel que faz a descarga no livro de entradas e por fim vai tudo para os arquivos, trabalho do cabo Pereira. Temos três secções no CAOP, Operações, Informações e ainda a chefia do Estado-Maior.

"A correnteza da correspondência, com idas e vindas, pode demorar pouco mais de uma hora ou pode prolongar-se por dias se uma peça graúda do sistema estiver ausente, por exemplo o meu coronel que se desloca frequentemente a Bissau onde tem a mulher e onde participa em muitos dos planos de operações para a nossa zona de intervenção. Este coronel pára-quedista vem da arma de Cavalaria, a mesma do general Spínola de quem é confidente e amigo.

"O furriel e o cabo encarregam-se dos passaportes, das guias de marcha, etc. Compete-me a mim redigir um ou outro ofício. Faço o rascunho, vai ao cabo para ser batido à máquina, revejo o texto, segue para o major e o coronel. O major P. já notou que eu escrevo bem, uma prosa limpinha até nos ofícios militares". (...).

Diz-nos igualmente o que é o CAOP1 e para que é que serve:

(...)"O CAOP engloba quase quarenta homens. Somos os 'operacionais da retaguarda'. Aqui se fazem os briefings sobre as operações, se trata do apoio logístico, temos as transmissões e os condutores auto com os unimogs, as viaturas que transportam as tropas operacionais para o terreno. Sob as nossas ordens encontram-se a 35ª. Companhia de Comandos e os pára-quedistas, estamos acima do Batalhão de Infantaria 3863 aqui estacionado, com uma CCS (Companhia de Comando e Serviços) e mais alguma tropa. Estamos ainda acima das companhias distribuídas pela zona geográfica que nos pertence, entre os rios Mansoa e Cacheu, e para leste temos mais uns trinta a quarenta quilómetros de território. O resto da Guiné  não tem a ver connosco". (...)
Em 30 de Julho de 1972, fala do seu coronel, como homem e como militar, nestes termos:

(...) "Do coronel D. [, Durão,], áspero, cem por cento militar, muito duro de nome e de trato, não tenho razão de queixa. Usa um bigodinho, a cabeça quase rapada com uma pequena poupa à frente. Não gostei de saber que, enervando-se e em situações extremas, dá murros nos soldados." (...).

Mais à frente, voltará a falar da dureza do Cor Pára Durão, numa cena que lhe deixa "marcas":

(...) "Canchungo, 2 de Setembro de 1972: Ao fim da tarde, na coluna de Bissau chegou um Unimog com quarenta telhas e umas pranchas de madeira para as obras que estamos a fazer no edifício do CAOP. Chovia imenso e era preciso gente para descarregar a viatura. Passava das seis, já não tinha pessoal no meu serviço. Fui ao bar dos praças e pedi três voluntários para ajudarem na descarga. Ninguém se ofereceu. Nomeei três soldados. Os três, repimpados no bar a comer sandes e a beber cerveja, recusaram-se e disseram-me, por palavras mais delicadas do que estas, que se estavam cagando para mim e para o material a descarregar. Ora o coronel dera-me ordens para eu tratar de arrumar os materiais vindos de Bissau. Ele, tal como o major que está de férias em Portugal, fiscaliza sempre o meu trabalho, era uma tarefa que tinha de ser feita naquela altura. Arranjei outros três soldados que se prontificaram a ajudar e a esvaziar o Unimog. Continuava a chover copiosamente e ficámos todos encharcados.

"Os outros três, à distância, gozavam o espectáculo. Eu respeito os soldados, também exijo que me respeitem. Não aguentei, fui ter com o coronel e disse-lhe: 'Meu coronel, os soldados Ramalhete, Silva e o Victor recusaram-se a obedecer ao pedido que lhes fiz para descarregarem a telha e a madeira do Unimog que veio de Bissau.' O coronel mandou imediatamente chamá-los, os rapazes ficaram em sentido e, à minha frente, a cada um deles deu uma daqueles socos impressionantes de que já tinha ouvido falar. Os rapazes cambalearam e foram mandados embora.

"Ficámos sós, o coronel e eu. Berrou comigo, acusou-me de ser mole demais por isso havia sido preciso chegar àquela situação. Eu devia ter tido pulso, fazer-me obedecer na altura própria. Como militar ele tinha razão, aliás como militar é muito raro o coronel não ter razão, só não tinha razão para me chamar 'imbecil'. Foi o murro que levei, mais suave do que os que pespegou nos soldados. Mas também doeu." (...).


AGA fala sempre do "meu coronel" com um misto de respeito e de admiração, louva-lhe a coragem, a determinação e o sangue-frio nas situações difíciais, e descreve o seu paternalismo autoritário nas relações com os seus subordinados. Oriundo da arma de cavalaria, é paraquedista, tem a mulher em Bissau, não tem filhos e é amigo e confidente de Spínola... No entanto, AGA pensa que está "debaixo de olho" do chefe... No início do ano de 1973, ele escreve no seu diário que tem receio de "apanhar uma porrrada"... Aliás, o diário é fértil em pequenas histórias passadas com o Cor Pára Durão que, a seu tempo, poderão de novo aparecer aqui no blogue. O AGA esteve com o Cor Durão em Canchungo e Mansoa, até Junho de 1973. Em Cufar, passará a estar à frente do CAOP1 o Cor Joaquim Curado Leitão, um hoem que é descrito pelo AGA como "calmo, educado e periquito",  ...(LG).



(...) Canchungo, 5 de Janeiro de 1973

Quando a avioneta ou os helicópteros chegam de Bissau, não é preciso comunicarem por rádio que vão aterrar. Nós ouvimo-los no ar, pegamos nos jipes, vamos para a pista e quando aterram estamos à espera deles.

Hoje ouvi a DO, fui para a pista com o major P., a avioneta sobrevoava Canchungo, mas nunca mais descia, dava voltas e mais voltas por cima do campo de aviação, até que por fim aterrou. Estranhámos bastante. O piloto vinha a suar, era “periquito”, baixava pela primeira vez em Teixeira Pinto, estivera uns minutos largos a estudar a pista. Chama-se [João] Baltazar [da Silva, abatido por um Strela em 8 de Abril de 1973], é um furriel piloto aviador com um ar castiço, inconfundível, alto, magro, os cabelos muito ruços e encaracolados. Pediu desculpa ao meu major pela demora na aterragem.

Canchungo, 8 de Janeiro de 1973

O general Spínola e o general Costa Gomes estão na sala ao lado, com o coronel, o tenente-coronel (do Batalhão) e os majores todos. Vieram arejar as cabeças ou poluir os ares? Que congeminam estes crânios iluminados pelos clarões da guerra?

Canchungo, 11 de Janeiro de 1973

Problemas, as relações humanas difíceis, recalcamentos, fingimentos. No lidar quotidiano com os meus chefes tudo depende de mim.

Dói. Faço um esforço de gigante para conseguir não levar uma “porrada”, ou seja, não ser castigado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar. O coronel espera a minha próxima grande asneira para, zás, me punir disciplinarmente. O que equivaleria a ser despromovido, de oficial para sargento, a mudar de unidade – o que talvez não fosse mau, seria colocado em Bissau, quase de certeza - a passar a comissão para vinte e quatro meses e a deixar de ter férias. Até Junho de 1974 não iria mais a Portugal. Inimaginável eu levar uma "porrada".

A semana passada estava eu a almoçar sossegado na messe e entra o major P., furibundo, a berrar comigo. Havia-me esquecido de entregar duas garrafas de azeite ao pessoal da coluna que seguia para Bassarel. As garrafas destinavam-se a um protegido, um informador do CAOP e na verdade nunca mais me lembrara de dar sequência a esta importantíssima oferta. O major tinha razão, mas era desnecessário aquele barulhão todo. Reconheci o erro, disse que ia tratar do assunto. Quando ele voltou costas, fiz um daqueles meus sorrisos cínicos, irritantes, entre a tristeza e o gozo. Azar meu foi o coronel estar em cima da cena. Não havia reparado mas ele almoçava na mesa ao lado, quase de frente para mim. Viu o meu sorriso, meio de desdém, meio de estupidez, levantou-se, veio ter comigo com aquela fúria reprimida, muito sua, e disse: “Abreu, você tenha cuidado, muito cuidado!”

Soube ontem pelo capitão Pancada – ele é miliciano e faz a charneira informativa, de amizade e trabalho entre os oficiais de carreira e nós, pobres alferes – que o sucedido foi comentado na sala dos bigs e que o coronel afirmou esperar a primeira oportunidade para me dar uma “porrada exemplar”.

Tenho de salvar a pele, ser cauteloso, não posso cometer mais erros. Eu detesto vocábulos com conteúdo semelhante a “eficácia, dedicação, subserviência”. Sou chefe de secretaria, chefe de pessoal, controlador das limpezas, secretário dos majores, responsável pelas obras, encarregado dos correios, pequeno oficial na ligação diária com os meios aéreos. Às vezes tenho medo de mim, sou distraído, esqueço tarefas, deixo escapar palavras que não funcionam no mesmo comprimento de onda do vocabulário dos meus chefes. Fundamentalmente, sou ainda um civil fardado de alferes do exército, o que desagrada a estes homens que escolheram ser militares toda a vida, por opção e profissão.

Este tipo de problemas não cai apenas sobre mim. O tenente-coronel Correia, comandante do Batalhão 3863, também já ameaçou os alferes Gamelas e Teixeira. Encontram-se, tal como eu, na eminência de uma “porrada.” (...)

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Nota do editor

Último poste da série > 29 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9287: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (2): As duas passagens de ano: Canchungo, 1972/73, e Cufar, 1973/74

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9307: Tabanca Grande (316): Vasco da Gama foi operado ao coração, mas está já em casa em convalescença

Provavelmente será do conhecimento de boa parte da tertúlia que o nosso camarada Vasco da Gama foi operado ao coração no passado dia 28 de Dezembro. Ao que sei, os cirurgiões tiveram que efectuar uns quantos by-pass coronários. C. Martins, podes explicar?

Como não tinha autorização expressa do Vasco,  não dei conhecimento público do sucedido.

Fui tendo notícias da evolução do estado de saúde do nosso doente através do nosso camarada Miguel Pessoa, o que desde já agradeço publicamente.

Como havia prometido ao Vasco antes da sua operação, só hoje telefonei à sua esposa para saber notícias, e para minha surpresa fiquei a saber que ele havia regressado ontem mesmo a casa.

Da parte da tarde recebi um telefonema, estando do outro lado da linha o próprio Vasco. Notei na sua voz que ainda está muito longe da forma desejável, mas não tarda voltará ao nosso convívio a cem por cento.

Trago hoje a notícia a público porque ele quer que os camaradas e amigos saibam que o pior já lá vai, sendo que o pós operatório é difícil pelos estragos que os cirurgiões fazem para chegar ao coração, por um lado, e para arranjar material nas pernas (veias) para fazer os by-pass coronários.

Num dos próximos dias, quando o Vasco ler este poste, poderá ler as mensagens que lhe vamos deixar prestando a nossa solidariedade.

Força Vasco, a tertúlia está contigo. Carlos Vinhal.

Vasco da Gama e José Brás aquando do Encontro de 2009 da Tertúlia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9293: Tabanca Grande (315): Margarida Peixoto, Professora do Ensino Básico Aposentada, esposa do nosso camarada Joaquim Carlos Peixoto

Guiné 63/74 - P9306: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Bolos de bacalhau à moda de Catió

1. Em mensagem do dia 30 de Dezembro de 2011 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua boa memória da guerra:

Caro Vinhal
Junto esta história passada com o Portojo. Não foi bem assim mas penso que ele não vai ficar chateado.

Uma boa passagem e, acima de tudo,
UM BOM ANO

Um abraço do
Silva


Memórias boas da minha guerra (27)

Bolos de bacalhau à moda de… Catió

Penso que foi em Maio/Junho de 1968. Em Catió, sul da Guiné, estava instalada a sede do BART 1913. Uma das suas Companhias estava para os lados de Buba e outra ocupava o aquartelamento de Cufar. Em Catió, além da CCS e dos Pelotões de Armas Pesadas e de Auto-metralhadoras, estava a CART 1689, Companhia de Intervenção, que viera do norte, por onde andara em operações, ao serviço do ComChefe.

As instalações e serviços estavam sob a alçada da CCS, incluindo a gestão da Messe de Sargentos. Esta responsabilidade rodava entre os seus furriéis ou sargentos, o que era compreensível, mas não muito acatado pela malta da CART 1689. É que estes, fartos de guerra, sofriam ainda a exploração do seu sacrifício através da fraca alimentação fornecida.
O prato com mais saída no menu era, sem dúvida, o de “Arroz com arroz e arroz e umas rodelas de salsicha”. A “Sopa 365” já era famosa há anos.
Foi nessa altura que foi designado para essa gestão, o Furriel Teixeira, que havia chegado há pouco, por uma rendição individual.

Catió > Jorge Teixeira (Portojo), na foto, o segundo a partir da esquerda

Catió > Em primeiro plano, de pé e à civil, Fur Mil Silva. Jorge Teixeira é o terceiro, de pé e de camuflado, a partir da direita.

O Teixeira, que era do Porto, ao contrário dos seus conterrâneos, parecia muito introvertido. Todavia, cedo se salientou pela simpatia e pela sua forte sensibilidade. Pois o Teixeira, talvez com pena da malta da CART 1689, que ele admirava, decidiu mandar fazer um prato diferente: “Bolinhos de bacalhau com arroz malandrinho”.

Como o Cozinheiro Laurentino estava doente, ficaram os dois básicos (Guisande e Engelha) para resolver os assuntos da culinária. O Guisande já estava mais habituado à cozinha, especialmente nas lides da lenha para o fogão e no abrir das latas de salsichas. Mas o Engelha era muito limitado. Havia sido seleccionado pelo Capitão Ternicotim-Ternicotão, aproveitando a sua experiência de servente de limpeza na Pocilga de Sandim.
Agora, em Catió, ocupava o seu tempo a passar alguma água pelas panelas e a perseguir os ratos, de toco de vassoura na mão.

O Guisande, entusiasmado a confeccionar um prato daqueles, estava a colocar em perigo o prestígio do cozinheiro Laurentino que já se especializara também no prato “Esparguete com esparguete e rodelas de salsicha (ou chouriço!)”. Não esquecer também que foi ele que conseguiu o “Frango assado”, festivamente servido no dia da entrega da Flâmula de Honra do CTIG (ouro) à nossa CART 1689!

A massa já estava pronta quando o Furriel Teixeira lá foi espreitar. O Guisande aproveitou para dizer:
- Isto está uma maravilha, mas falta-lhe a salsa. Já corri tudo e não encontrei.
- Isso também não vai ser grande problema. – respondeu o Teixeira.
- Ó Furriel, preciso de ir à Secretaria, que o sargento Viscoso me mandou chamar e eu não quero problemas com esse filho da mãe. – disse o Guisande.
- Não há problema, veja se vem depressa porque o Engelha já tem o fogão bastante adiantado. – respondeu o Teixeira que, logo de seguida diz:
- Ó Engelha vá lá fora, junto ao esgoto das águas da cozinha e veja se tem lá salsa. Se não encontrar, traga mesmo umas ervitas mais verdes, para enfeitarmos isto.

O Teixeira saiu confiante e o Engelha acabou por brilhar na resolução rápida do problema.

- Ó Berguinhas, acode-me aqui que devo ter engolido alguma espinha dos bolos de bacalhau.- pedia o Simões ao Enfermeiro, que não parava de se queixar.
- Ó pá, olha que eu também já tive que beber dois bagaços para queimar a garganta, porque também sinto a garganta arranhada. – respondeu o Berguinhas

Já na Enfermaria, o Berguinhas aproveitava a boca aberta do Simões para espreitar e meter o bisturi, enroscado em algodão, até ao fundo da garganta. E dizia:
- Não estou a ver nada. Deixa lá, anda mas é ao Valadares (“barman”) queimar isso, que eu faço-te companhia.

De bagaço em bagaço, com uns whiskies, licores e triplices pelo meio, não levou muito tempo para que as dores de garganta passassem. Agora, já meios tocados, debruçados sobre o balcão, repetiam os parabéns ao Teixeira e, embalados pelo tema do bacalhau, desenvolveram uma discussão quase interminável.

- Já ouvi, da boca de um militar que não acredita que o bacalhau vem do estrangeiro. – dizia o Berguinhas, que continuou:
- E já lhe meteram na cabeça que se pode plantar como o ananás – com os rabos metidos na terra.
- E eu tenho um soldado que já me disse que ele nasce como o capim – argumentou o Simões.
- Olha, (voltava o Berguinhas):
- Se for junto da bolanha, até já pode vir salgado.
- E, se a catana estiver bem afiada, já se pode apanhar às postas – argumentava o Simões.
- Ó Teixeira, Teixeira. - chamava o Berguinhas, já com a voz arrastada: – Olha que amanhã, logo de manhã, quero os rabos do bacalhau, para plantar ao pé da Enfermaria.

Há dias soube que os irmãos Carvalho, o Manuel de Mampatá, perto de Aldeia Formosa, e o António, também conhecido por Veterinário de Jolmete, devido à sua fama no tratamento (com piri-piri…) de frangos, cabritos e outros animais, organizaram mais um patuscada junto ao Rio Douro na pequena Medas City, onde o António Carvalho é Mayor. Convidaram o Simões mas ele não pôde porque estava para o Alto Douro.

Estiveram lá os do costume: Zé Manel da Régua, Silva de Baião, Eduardo Paraquedista, o Carmelita, o Cancela e a Parelha dos Compadres de Penafiel. E, claro, também lá estava o acima referido Furriel Teixeira (agora conhecido no meio artístico por Portojo) que não perdoou a ausência do Simões, que, até, vive ali perto.

O tempo foi passando e de história em história, lá foram recordando e saboreando o melhor daquela experiência guerreira inesquecível. Porém, o Teixeira, por vezes, ia intervalando:
- Ora f....-se! Aquele c.....o do Simões, não veio!

Por volta das 19 horas (grande almoço!), o Teixeira, já bastante pesado, ao ouvir falar de ervas medicinais, aromáticas e outras, contou a história dos bolos de bacalhau capinado, servido em Catió, e revelou o segredo da salsa. E confessou:
- Tinha pena daqueles desgraçados da CART 1689 e com mais pena fiquei quando vi o Simões f....o da garganta por causa do capim que o Engelha meteu nos bolos. Ainda tentámos tirar muita coisa mas acabaram por passar alguns pedaços de capim seco.

O Carvalho, já farto de rir, ligou o telemóvel para o Simões e contou-lhe:
- Está aqui o Teixeira a contar a história dos bolinhos de bacalhau que te f.....m em Catió. Diz ele que aquilo foi do capim que meteram em vez de salsa e que não teve coragem de vos dizer.
- Ai o filho da... mãe! - Respondeu o Simões exaltado, que continuou:
- Por favor, passa-me o telelé a esse c......o, que não larga o biberão.

O Carvalho aproximou-se do Teixeira, que gritou:
- Ouve lá, oh morcom, nunca ouviste dizer que todo o burro come palha, a questão é saber lha dar?

De pé, Manuel Carvalho de Jolmete

António Carvalho, "Veterinário de Mampatá", actualmente o "Mayor" de Medas

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9155: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Ao domingo não há guerra e Estragos no bananal