terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)

1. Segundo capítulo de "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65):


CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 

A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.

2.º Episódio

Vamos a uma coisa de cada vez.

A gente de Algures, enquanto a chuva tamborilava nas chapas de zinco, essa deixou escoar-se de vivas emoções, cercando-me e tocando-me as mãos, os ombros, os sentimentos, a pele da alma, como se eu fosse estranho irã, mas amado de algum modo.

O chefe Gibril serviu-me, de mãos trémulas, um belo chá e as mulheres bolos de farinha de arroz, fatias de manga, enquanto eu e os homens íamos relembrando nomes e histórias. Além do prato de bolos de arroz, em forma arredondada, iguaria muito usada nos casamentos, metáfora da fecundidade da terra e da mulher, havia ainda um prato de nozes de cola. Não toquei neste fruto, um elixir afrodisíaco. Aliás, nunca me fora à boca. Não era necessário, embora servisse de prova de amizade. Também me ofereceu vinho de caju. Eu escusei-me, dizendo, delicadamente, que, àquela hora, não ia mesmo nada, andava sofrendo do estômago por causa de uma hérnia. Juro-lhe que não mentia.

Na casa de adobe, além de uma mesa de mogno mal aparelhada, e de esteiras de bambu, havia um balouço de rede para corpo cansado e tambores de diversos tamanhos. Julgo ter contado cinco. E também um rádio portátil, o tom um pouco alto, que Gibril fez questão de desligar. Todavia, por minha sugestão, que só o desligasse quando Cesária Évora, a rainha das mornas, com brutos calos nos pés, que a impedem de saltar nos palcos, acabasse de cantar, como só ela sabe, mornas de Cabo Verde. Uma reporta-se, com grande nostalgia e acesa dor, à emigração para S. Tomé, para o duro trabalho das roças e do suor mal pago e, tantas vezes, vergastado. Julgo que se intitula Sôdade. Corrija-me, se estiver errado, quando nos encontrarmos aí pelo Porto, no Café Ancoradouro ou no Café Progresso. Pode ser neste último, que é mais para a nossa idade. Está a ver. Fica próximo da Praça dos Leões.

– Há trinta chuvas… nosso alfero! – Começou por dizer o chefe. – Então, era um rapaz.
– Chuvas que muito sangue e lágrimas, ódio e preconceitos lavaram… Não acredita? – Repliquei. – Ao contrário, puseram-nos cabelos brancos na cabeça e alguma ferrugem nos ossos.
– Eu acredita.

A conversa abriu caminho. Eu estava pronto a ouvi-lo, mais do que a falar. Todavia, confesso que me havia prometido não levar para o verde capim as lembranças da velha que andara por S. Tomé e fumava longo cachimbo de cana e se perdia por um bom café. Às vezes, também enrolava folha de tabaco, cortada em diagonal, para depois fazer o seu charuto. Era quando mais falava palavras mansas, talvez desconexas, mas era assim que desentaramelava a língua, a alma, embrulhando ao mesmo tempo os restos do sol e do sonho, quando se aproximavam os irãs que andavam pela floresta, sua natural morada, e vinham falar com as pessoas, apoderando-se do seu coração. Os poilões eram as árvores preferidas para se guardarem dos vivos.

Passado algum tempo, talvez uma hora, não mais, o chefe carregou e ofereceu-me um cachimbo, de madeira, com boquilha, trabalhado, bem bonito. Fez o mesmo ritual relativamente a um mais pequeno e ambos fumámos melancolias, lembranças, alguma breve cumplicidade de outros tempos, mas, como é óbvio, também longa serenidade e bem-estar. Era a paz. Mulheres e homens já não partem e chegam das bolanhas e das lalas, tristes, metidos entre dois fogos, mas, à guisa do salmista, chegam das colheitas com alegria e a paz pintadas no rosto (“os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria… À volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas”).

O mesmo sucede com os que vão à caça ou à pesca e com os pastores que regressam de crias aos ombros, cantando, ao cair da tarde em fogo, na sua língua nativa, seguros em seus passos e seu destino curto.

Em vez do progresso, uma grande calmaria passa por aqui. Calma pobreza que, no entanto, não lhes ceifa o sorriso. De quando em vez, inquietante. Algures, efectivamente, mudou-se, mas não mudou. A pobreza contra que se batera Amílcar Cabral continua a ser um estigma. Aliás, fora uma das justificações para a luta que, cumprida, depressa deu lugar ao ócio e à fome, ao medo e às vinganças. Os comandantes e os dirigentes aburguesaram-se. Têm automóveis e concubinas. Alguns enriqueceram, não se sabem, claramente, os motivos. O povo, que passa fome, não sabe como, mas desconfia. Fala-se em rotas de drogas…

O chefe da tabanca de Algures ia-me revelando muitas coisas que se haviam passado, após a independência, que ele festejara com algumas reservas. Só evitava, a todo o transe, trazer para a conversa o João, que fora do meu pelotão. Por mim, entendi não insistir. Talvez no outro dia. Foi neste momento que o avô Abdul me fez um inesperado pedido: que fizesse para os netos, o Cherno e companhia, e também para as outras crianças, um papagaio como o Papagaio Verde. Disse-lhe, escusando-me, que ainda não era Natal. Não importava, respondeu, de pronto e com um sorriso miúdo de pássaro. Alá e o seu Profeta não deixam de rir sempre lá em cima, nas brisas, por cima das nuvens. Frisou mesmo que tinha, à minha espera, há trinta anos ou mais, já nem sabia bem, algumas folhas de jornais, cana, cola e cordão e folhas de papel, da cor da sua bandeira nacional… Sempre pensara, disse com um brilho muito especial nos olhos, que, um dia, eu havia de voltar, como tantos, confessou… E insistia:
– Ensina-os a fazer o papagaio, nosso alfero Casanova?
– Ensino, Abdul! Por que não havia eu de ensiná-los? Mas, olha, já não vai ter a cor do Papagaio Verde, mas as cores de um país novo…Acabaram-se os aerogramas, há muito, onde nós escrevíamos, às vezes com lágrimas, a nossa guerra e falávamos, com admiração e temor, dos riscos que vocês corriam por nossa causa.
– Não importa. Pode chamar-se ”Estrela do Norte” e cada ponta representará um desejo: a paz, o pão, a fraternidade…
– Está assente. Vejo que tens belas ideias e lindos sonhos. Não te posso negar, por mais esta razão.
– Vai fazer mesmo?
– Sim, por que não? Vamos, então, à obra! – Fiz uma pausa. – Chama lá os netos… – levem tudo para o bentabá.

As nuvens corriam mais calmas no céu. Os garotos correram do terreiro. Daí a pouco, eram já mais de dez. Upa, upa!

Nesse instante, aproximaram-se com seus guinchos e gritos estridentes e impertinências, bem nossas conhecidas, alguns macacos fulas, que desarticularam o sossego natural. Se calhar, também sonhavam com estrelas, disse, em tom de brincadeira, às crianças a quem os pais andam ensinando ritmos e bandeiras de um país novo, que tarda a chegar, a cada passo.

Os miúdos giravam à minha volta, movendo muito os olhos e as cabecitas de uma infinita alegria, que ia voando à medida que a estrela ia ficando em condições de conquistar o céu. Os maiores eram quem ia trabalhando, às minhas ordens. Era a história da cana de pesca de Mao, revolucionário, de que alguns haviam ouvido falar. Alguns homens abanaram, afirmativamente, a cabeça. Para almofadar o estrado, utilizámos algumas edições de Nô Pintcham, que também serviram na perfeição para armar o papagaio. Bem como amarelecida propaganda de outros tempos do PAIGC. Onde procurei ler, em vão, alguma coisa de interesse. O que mais vi foram rostos de Che Guevara, Fidel, Marx, Mao, Nino e Amílcar Cabral, sobraçando frases, pensamentos, desenhando futuros.

A última coisa que as crianças fizeram foi pegar num marcador verde e escrever aquelas três palavras mágicas – ou melhor, pedi que três deles as escrevessem: paz, pão, fraternidade. Aos mais velhitos indiquei-lhes que, ao centro, deveriam desenhar a palavra Guiné, o que fizeram, radiantes. Como se fossem voar também. Depois, um deles, fixando-me os olhos, um nadinha papudos, cercou as palavras com um coração vermelho e abriu um sorriso do tamanho de uma flor de caju. Ou foi da largura do terreiro e da tarde? Talvez da altura do poilão, que, sagrado, também dava sombra ao bentabá. Enorme, secular, gigantesco, raízes fundas furando séculos. Como na antiga aldeia de Algures, onde era necessária mais de meia dúzia de soldados para dar-lhe um simples abraço. Fizemos esse jogo, pouco tempo depois de arribarmos àquele buraco, um dos muitos de um inferno extenso, com línguas de fogo, turbilhões de medos e calvários de dor e morte por toda parte.

“Estrela do Norte” voando sobre a aldeia de Algures foi o delírio da miudagem, naquele fim de tarde, tal como há trinta e mais anos. Isso fez também voar um sorriso nostálgico dos lábios dos que, um dia, brincaram com o Papagaio Verde.

Quanto a esta terra, de gente simpática e boa, começa a ser tempo de lhe dizer que, um dia, havia de mudar de nome, mais ou menos após o acantonamento da minha companhia de cavalaria (a pé) e do primeiro Natal, aqui passado. Pelo menos, na gíria militar, mas também entre a população, sobretudo a miudagem, que achava graça ao caso. Por uma coisa tão simples como um papagaio, imagine, um Papagaio Verde…
– Então, como vai Papagaio Verde? – Perguntava, meio a brincar, meio a sério, o comandante do batalhão, que bem conhece. Estava acantonado em Farim. Às vezes, em tom de gozo, mesmo zombeteiro de quem vivia no ar condicionado. Exagero meu. Para dizer a verdade, sempre em tom de chacota. Sabe como era.
– Ainda tem as asas muito presas ao chão – respondia, à letra, o capitão Varela, soltando um sorriso sardónico…
– Como assim?
– É a guerra…
– Vamos, então, ao que importa – cortava o comandante do batalhão. Mas, meu tenente-coronel, a verdade é que havia uma razão para a troca de nome. É espantoso como um gesto, às vezes insignificante, pode mudar a vida das pessoas e das coisas.

Espere, eu conto.

Era uma vez uma rapariga, de perfil quase perfeito e de uma notória beleza sensual, pontuada por seios redondos e generosos, direitos e inocentemente provocatórios do olhar… logo guloso, logo faminto, dos soldados. Redondos como os da Usita, nos dezoito anos, altivos. Faço comparações, ainda com a foto da Usita nas mãos, que desfolham lembranças, rumores da floresta vitoriosa, liturgias, quase em tom de conversa, de mil pássaros. E era também, uma vez, um garoto, de olhos rasgados e líquidos de sonho manso, e um burrico, que se nomeia por também ser filho de Alá, nosso Senhor.

Adiantando um pouco, quando a rapariga arreou do burro para a tropa deitar a maca no dorso, felizmente vazia, e aliviá-lo ainda do peso ingrato e bruto do Beja, que se havia acavalitado, rindo um dente malandro, ela exibiu um corpo flexível que só visto, uma boca modulada em música breve, naturalmente açucarada de caju maduro, talvez mais manga, e a sofisticação da raça fula. Por sua vez, o garoto, medroso como pássaro, de tenra idade - todos disseram que teria três chuvas e pico e a rapariga, mama firme, que para aí quinze, dezasseis… - tinha os olhos líquidos de sonho manso. Como a rapariga, só mesmo a menina que tinha olhos de pássaro azul.

Encontrei-os no mato sem fim, de mil perigos e feitiços, no mês de Dezembro, ia no segundo ano de comissão, que estava prestes a acabar, e já não era sem tempo. A alma já cheirava a sangue ou bolor, o corpo a cicatrizes, que doíam por terra alheia. Era uma mata de aromas carnosos que saltavam das árvores em desalinho por entre a redonda e infindável seara de capim que acoitava bicharia sem conta. E, como também sabe, muita gente disposta a correr com a tropa. E também por vezes, gente a fazer jogo duplo, os gajos dos informadores.

Era um verdadeiro quadro saído das mãos de um qualquer Goya africano aquela rapariga, escarranchada no dorso magro do burrico e o garoto ao seu colo. O animal parece que trotava sem destino e sem pressa. Tinham-se perdido, fugindo aos guerrilheiros? Não cheguei a saber claramente nessa ocasião. Nunca se sabia de que lado estava aquela gente. Açoitada pelos ventos do nada, nos carreiros da miséria.

A toda e qualquer pergunta, a resposta era inevitável, como bem sabe o meu tenente-coronel: mim cá sibi, mim cá sibi!

Com a rapariga em cima, mais o garoto, aquele quadro lembrou-me, ainda que impropriamente, a fuga de Nossa Senhora com S. José e o Menino para o Egipto, temendo as espadas de Herodes. E nós ali também não temíamos as armas de Nino e outros comandantes como Osvaldo Máximo Vieira, que comandava nas fechadas matas do Oio, impenetrável “império dos Oincas”? [As matas hoje estão a ser devastadas para a extracção de madeiras exóticas]. Como se me tivesse de convencer que vinha aí a noite de Natal. O calendário litúrgico pelo menos assim rezava. Só faltava S. José. Mas esse papel poderia fazê-lo, se necessário, o Meia Lavada da Silva, que tinha barbas, por acaso, mal aparadas num queixo pensativo. Por sinal, até era carpinteiro de profissão. Deus me perdoe, mas creia, meu tenente-coronel, que foi isso que parvamente me ocorreu. Maliciosamente, direi, porque, sempre que podia, deitava o olhar cobiçoso nas mangas especiais, que eram os seios redondos da rapariga. Gaita! Era toda boa. Vá lá, não se ria. Era realmente uma ideia tosca, abocanhada de saliva lasciva, quase pecaminosa, mas confesso que foi aquela que me surgiu com mais força. E quem confessa a verdade… Olhe, lembro-me bem que também me inundou uma onda de azul ternura pela rapariga e pelo menino, por todos os meninos da tabanca do mundo, que passavam fome ou já pegavam em armas.

Quanto ao burro… Quando, nessa manhã, verde e esbraseante de Dezembro, lhe roubei a rapariga e o garoto, sacudiu as orelhas num arremesso de raiva e desferiu dois relinchos, agudos e doridos, que espantaram, como violento coice, alguns bicos-de-lacre e tarambolas, que saltaram, de repente, do capim, que estava a ser penteado por uma brisa agradável. Quase me cuspiu em jeito de quem odeia. Mas ele, garanto, não era como nós, brancos e negros em armas. Não odiava.

Palmilhadas as aldeias de Sare Tenem e Bricama, onde nos levara uma noite de lua duvidosa, aquele Platero ronceiro era o primeiro da fila, seguindo a rapariga, Fatumata de nome. Aqui está um belo ícone de África. Vim a saber que assim se chamava, depois de meia hora de caminho. O garoto dava pelo nome de Abdul. Pelo menos, foi isso que entendi. E foi assim que sempre o tratei, errado ou certo. Certo, disse-me um mês depois. O animal ia agora armado de cartucheiras e cantis batendo-lhe na barriga. Imprevidências de soldados em fim de comissão! E, espiando-o por debaixo do capacete, via que ele me olhava de viés, descontente, talvez assustado da minha cor, mas continuava a vencer o caminho, estreito e enovelado, como serpente. Perigoso quanto bastava. Por vezes, soldado havia, que, abusando, nele se escarranchava, à vez, para cá da ponte. Onde, um dia, o meu pelotão foi emboscado. Foi uma refrega dos diabos com feridos e um morto, o transmontano Rui Montalvão, do morteiro, que me apertou a mão e me olhou, espantado na despedida. Morreu nos meus braços. Com o enfermeiro, tentando estancar-lhe o rio de sangue. Em vão. O rio era demasiado profundo e definitivo. Adiante, que ainda dói.

Uns adoçavam-lhe a dentuça com mãos-cheias de erva. Outros, brincando à toa, zangavam-no com mordiscadelas nas orelhas ou no rabo. Até se esqueciam que estavam em guerra.

Parecia que íamos todos a caminho de romaria das Almas ou de Belém. Mais de Belém, sim, que, na noite desse dia, seria Natal. E, em minhas cogitações clandestinas, prometi ao garoto um papagaio para ele atirar às estrelas, ao céu, como uma ânsia de asa aberta. Seria a minha boa acção de escuteiro, que já havia sido em Chão de Mouros.
Jubi, vou fazer-te um papagaio. Amanhã, Abdul, é dia de Natal – disse assim, embora sabendo que não entendia nada, mesmo nada, e muito menos sabia o que era isso de Natal. Noite de Natal... Não vinha no Alcorão. – Mim cá sibi – Isto é, descodificando, o garoto não entendia nada do que eu ia para ali a tagarelar. Se o idioma nos separava, muito mais o chão, o sangue.

À rapariga, de tez fortemente acobreada, que iria ser, sem dúvida, o encanto, a flor maior, a mais cobiçada de muitos dias no quartel de Algures, onde os soldados, uma vez ou outra, batucavam com as bajudas, coração a galope, não lhe prometi nada, mas talvez o soldado João, o negro e bom João, igualmente de raça fula, que, à viva força, queria vir connosco para Lisboa, se pudesse enamorar dos seus seios redondos, macieza de pêssego, do seu corpo flexível e grácil, da sua coxa bem torneada. Do rosto, nem se fala. Era plasmado de beleza exultante e simpática. Como a Usita. Não sabendo bem a relação entre ela e o garoto, se filho, irmão ou familiar, ou até entre ela e o negro João, se irmão ou namorado, perguntei-lhe sorrateiramente:
Jubi, bó tem catota? – Não entendeu, ou fez que não entendeu, o mais provável, e perguntei de outra forma: – Bó tem cabaço? – Não descerrou os lábios. Já conhecia certamente a mania do branco querer ser sempre o primeiro a provar aquilo, entre mil promessas. Resumindo, e descodificando também aqui, o que eu queria saber era se ainda era virgem ou não. Aquelas tontarias que os soldados procuravam saber, quase sempre junto das negras mais jovens. Sabe como era. E, afinal, que me interessava isso, se a tropa havia combinado não tocar em ventre de mulher? Já no apalpar…

A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo, espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro. No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em sua busca?

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)

Guiné 63/74 - P10816: Do Ninho D'Águia até África (36): O Life Boy (Tony Borié)

1. Novo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


Do Ninho D'Águia até África (36)

O Life Boy...

...Namorava, e não namorava uma das filhas do Libanês!

Podia dizer-se, que namorava semana sim, semana não, pois quando estava de bem com ela, era só sorrisos, abraços e talvez alguns beijinhos, dizendo que era a rapariga mais bonita e jeitosa que havia no mundo, e quando estava zangado com ela, dizia que ela era muito feia, que era só perfumes e pinturas, que era “um paninho de armar” e que se fosse sorrir, lá para os da terra dela, pois ele era europeu, como se isso tivesse alguma influência em ser europeu. Mas dizia sempre que era europeu, pois a sua cara tinha feições “achinezadas”, pelo menos nos olhos, e alguns diziam:
- O Life Boy, deve ser filho de algum chinês.

O Curvas, alto e refilão, ao ouvi-lo, dizer todas estas coisas, cheio de experiência, pois passou a sua juventude, em algumas ruas escuras de Lisboa, respondia-lhe, na linguagem que todos lhe conheciam, mais ou menos nestas palavras:
- Caral... ta fo.., não percebes mesmo nada de “garinas”, tu não vez que apesar do teu focinho ser achinesado, és branco e europeu, e estás aqui de passagem, essa rapariga, que por sinal até é bastante bonita, e não digo que não daria uma boa esposa, é do tipo que, primeiro uma aliança no dedo, depois sim, vem o namoro, e se der para o torto, manda-te dar uma volta ao bilhar grande, que tu, apesar dessa cara achinesada, és um “patêgo”, não tens sensibilidade para acariciar uma mulher daquelas, nem sabes o que isso é - e logo de seguida - pois não está para aturar um palerma como tu, arranja outro, que goste mesmo dela, que saiba acariciá-la, e que a faça feliz!. Nem tu nem ela sabem se gostam um do outro, na cama. Sabes o que tu és em questões de amor? És um atrasadinho mental!


Chamavam-lhe o “Life Boy”, talvez por vender entre outras coisas, barras de sabão “Lifebuoy”, e era um soldado condutor, de uma companhia de artilharia, que estava estacionada no aquartelamento, também talvez tivesse uma costela de “Libanês”, pois tinha no aquartelamento, um pequeno negócio, onde vendia braceletes para relógios, pasta e escovas dos dentes, que só os furriéis, sargentos e oficiais lhe compravam, lenços tabaqueiros que era o melhor negócio, pois quase todos os soldados usavam, ou ao pescoço, ou no bolso dos calções, com um bocado de fora para se ver, ou pendurado no cinto das cartucheiras, quando saíam em patrulha, e diziam que era para lhes dar sorte, sabonetes “lifebuoy”, carrinhos de linhas, e agulhas, alguns botões, baterias para o rádio portátil e outros produtos que se usavam no dia a dia, também conseguia relógios de pulso de contrabando, com cronómetro da marca “Cauny”, mas só por encomenda, e também outros produtos, que não interessa agora mencionar.

Tinha conhecimento com dois tripulantes do navio “Ana Mafalda” que visitava a Guiné periodicamente, descarregando militares e equipamento bélico, seguindo depois a caminho da América do Norte, onde normalmente ia carregar tabaco ao porto de Philadélfia. Na altura em que este navio atracava na capital da província, o Life Boy ia ver o Pastilhas, dava parte de doente, indo no carro dos doentes à capital abastecer-se de todo o seu material.


Era um pequenino negociante dentro do aquartelamento, estava tudo bem para ele, pedia desculpa, trocava os produtos, se pudesse cobrava duas vezes, em caso de dúvida, ele era o culpado, emprestava um lanço de linha, com uma agulha na ponta para pregar um botão, depois tornava a vender o carrinho de linhas e a agulha, como se fosse novo, ia vendendo, e no fim do mês metia mais uns “pesos” na conta, se dessem por ela, pedia desculpa, se não dessem, era lucro para o negócio. Talvez não acreditem, mas certa manhã, o Cifra foi ao estabelecimento do Libanês, comprar alguns rebuçados, pois ia visitar algumas bajudas e crianças à tal aldeia com casas cobertas de colmo que existe próximo do aquartelamento, foto do Cifra em cima, e sem querer ser “coscuvilheiro”, nem coisa que se pareça, pois eles estavam à vista de toda a gente, só não via quem não quisesse, mas o Cifra encarou-os, e deu assim um sorriso um pouco malicioso, tal como aquelas velhas “coscuvilheiras” da aldeia, quando viam um casal de namorados, que os fez baixar os rostos, talvez com um pouco de vergonha, e então aí o Cifra, que repito, não era nada “coscuvilheiro”, viu-os com os seus próprios olhos que a terra há-de comer, sim, eram eles, os dois juntos, o Life Boy com a filha do Libanês.

Estavam em frente um ao outro, ela dentro, e ele fora do balcão, mas olhando-se de frente, nos olhos, pois tinham reparado no Cifra, mas agora não reparavam em mais ninguém, estavam concentrados um no outro, com as mãos juntas, passando os dedos um no outro, tal como se via nos filmes em cenas de amor, o Cifra não sabe se o Life Boy já a sabia acariciar, e estavam acariciando-se e trocando promessas de amor eterno, e fazendo juras de que seriam um do outro para o resto das suas vidas, pois o Cifra estava um pouco retirado e não conseguiu ouvir, e também não era “coscuvilheiro” a esse ponto, ou se nesse momento, o achinesado Life Boy, estava tentando roubar um anel muito lindo, com uma pedra azul turquesa, que ela usava no dedo, mas o Cifra, sempre ficou convencido que ele estava pedir-lhe para convencer o pai a lhe dispensar uma caixa de sabonetes, gravura ao lado, para ele vender no aquartelamento, pois pela manhã tinha-lhe pedido uma barra de sabão, e ele já não tinha produto para as encomendas no aquartelamento, já que o navio “Ana Mafalda”, só tornava a passar pela Guiné, talvez para no mês seguinte. Mas duma coisa estava o Cifra certo, nessa semana sim, namoravam e pelas feições das suas caras, o futuro parecia risonho.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10805: Do Ninho D'Águia até África (35): Boas Festas, camaradas amigos (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10815: Álbum fotográfico de Fernando Súcio (3): Bula, 1972/74





1. Terceira e última série de fotos do álbum do nosso camarada Fernando Súcio (ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275, Bula, 1972/74), referentes à sua estadia na Guiné.

 Bula, 1972/74 > João Landim > Fernando Súcio reboca um obus para a jangada

 Bula, 1972/74 > Fortim dos Fulas > Fernando Súcio e Celso Carvalho

Bula, 1972/74 > BCAV 8320 > Fernando Súcio com a mini-Honda do Fur Mil Leonel Olhero

Fernando Súcio durante uma travessia do Rio Mansoa

Armamento capturado ao PAIGC

Bula, 1972/74 > Fernando Súcio à sombra de um embondeiro

Fernando Súcio durante uma estadia no HM 241 de Bissau

Bula, 1972/74 >  Esq Rec Panhard 3432 > Noite de S. João de 1973 > Fernando Súcio canta o fado

Bula, Agosto de 1974 > Pel Mort 4275 > Jantar de fim de comissão

Bula, 1972/74 > Fim de comissão > Pessoal do Pel Mor 4275 

Bula, 1972/74 > Em fim de comissão, os condutores do Pel Mort 4275 com o Alf Mil P. de Almeida F. Teixeira.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10810: Álbum fotográfico de Fernando Súcio (2): Bula, 1972/74

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10814: Convívios (486): Almoço/Convívio de Natal da Tabanca dos Melros, ou o Último Voo de 2012 (Jorge Teixeira - Portojo)

1. Qual cuco que se aproveita do ninho alheio, aproveitamos a reportagem feita pelo nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo) no almoço de Natal da Tabanca dos Melros, levado a efeito no passado sábado, dia 15 de Dezembro de 2012, e publicado na página daquela Tabanca.

Assim, com a devida vénia ao Jorge Teixeira (Portojo) e à Tabanca dos Melros, aqui fica o trabalho.

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Tabanca dos Melros

ECU's - Encontro de Ex-Combatentes do Ultramar Português

O Último Voo do Ano 2012

Nem frio nem chuva, que felizmente não se apresentaram, mas com muitos Melros e outras passaradas, finalizou-se o ano no nosso Ninho do Choupal.

Pássaros houve, assim se pode dizer, que se levantaram do seu ninho caseiro onde penavam haviam dias sob olhares atentos, para não faltarem aos Copos que se prometeram muitos e bons. 
  
Depois da passagem pelo Museu, há que acomodar a barriguinha a umas Entradas pouco violentas. Salgadinhos, charcutarias, patés e outras viandas, desapareceram com a rapidez do relâmpago, não o das bolanhas.
  
Sumos e Águas bem tratadas. Cerveja, Branco, Tinto, Rosé, colheita da Casa. Vocês sabem a que me refiro.

Expectativa para o tradicional discurso do Presidente, que como todos os discursos, ninguém ouviu. Mas foi salvado com palmas que se devem ter ouvido na sede do Município.

Depois da espectacular Sopa de Nabos que só os de Gondomar sabem preparar, uma terrina de Tripas para Melros especiais. Quem não chora não mama... mas foram tantos os que choraram que só deu uma colherzinha e apenas para alguns.

Com um visual destes, ninguém resiste. Nem os doentinhos...

Uma das mesas que exposeram remédio para o colesterol. 
  
No vai e vem da mesa para a mesa, tempo para umas galhofas do Neca.

O Vinhal deveria estar a lembrar-se de alguém que também adôôôraaa Bolo-Rei.

A coisa dura e dura e dura, mas o Carmelita já saciado treina as aéreas.

Cantares, Música e Bailarico para semi-acabar a festa.

Constou-se que andam uns desaparecidos na noite. Mas ós pois logo se vê...

Coisa mais esquisita. O fotógrafo estava lá, mas estaria de gatas ????

Para Memória Futura a foto de Família.

Adeus, até ao Ano, isso é em 12 de Janeiro.

Boas Festas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10767: Convívios (485): Almoço/Convívio de Natal da Tabanca dos Melros, dia 15 de Dezembro de 2012 no Restaurante Choupal dos Melros - Quinta dos Choupos - Fânzeres - Gondomar

Guiné 63/74 - P10813: Mi querido blog, por qué no te callas?! 1): A notícia da morte do blogue foi manifestamente exagerada... No final do ano, atingiremos a cifra de 1 milhão e 250 mil visitas (Luís Graça)

 [Foto à direita: Uma  das imagens  ícones do nosso blogue: o  2º Gr Comb  da CCAÇ 12, 1969/71, no subsetor do Xitole do setor L1, Bambadinca;    

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados]

1. Há dias deixei, expresso em letra de forma, no poste P10786,  o meu obrigado a um leitor anónimo (que se fazia passar por J. Antunes, que eu não sei quem seja), pelos votos de "mau agoiro" em relação ao futuro do blogue.

Qual arguto médico de medicina interna, o nosso leitor anónimo (a quem eu estou a dar demasiada importância, já se que refugia por detrás de uma máscara), ele olhou para o corpo envelhecido - quiçá, cadáver adiado ! - do nosso blogue e fez  um prognóstico sério, reservado, doutoral:  as "deserções dos pioneiros" (sic) não auguravam nada de bom, enquanto os comentários, ao que parece, se iam  rarefazendo, a produção bloguística baixando, a malta definhando, desaparecendo, desertando, morrendo...

Eu procurei ler nas entrelinhas, juntando outros comentários, lidos ou ouvidos aqui e acolá... E, confesso,  aproveiteu a ocasião para dramatizar, sugerindo que o Facebook é mais divertido, mais interativo, mais espontâneo, mais descontraído, mais descomprometido... E depois, nestes últimos anos,  mil blogues e páginas no Facebook floresceram, sobre a guerra dita colonial, à sombra ou à pala  do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (também conhecido carinhosamente, para uns, depreciativamente, para outros,  como o blogue fora nada)...

Em suma, ó malta, enterrem o blogue, que eu vou já ao facultativo pedir a devida certidão de óbito!...

Comentário meu: Ao que parece, a notícia da morte do blogue foi manifestamente exagerada...

Não me dirijo mais ao J. Antunes (porque,  se ele fosse um verdadeiro camarada da Guiné,  nunca se esconderia por detrás do bagabaga do anonimato,), mas sim a todos os nossos leitores, homens e mulheres de boa vontade. Vejamos:

(i) nove anos é muito na Net (nem eu sei se lá chegaremos, ao dia 23 de abril de 2013, para soprar as velas!);

(ii)  a lei da vida é um dia o blogue morrer, como tudo o que é vivo e que mexe;

(iii) só não sei quando nem como;

(iv) espero,ao menos, que seja com a devida dignidade: de pé, como o  poilão da Tabanca Grande;

e (v) quanto às eventuais honras fúnebres, fica claro, desde já, que de acordo com o seu testamento vital o blogue as dispensa, as honras ditas fúnebres, sejam civis, religiosas ou militares...

Obrigado aos nossos críticos, anónimos ou não. Obrigado, sem ironia. Obrigado, mesmo. Vejo os seus comentários como um repto, um desafio, não apenas aos editores e colaboradores mais próximos, mas a todos aqueles camaradas da Guiné que acreditaram (e ainda acreditam...) neste projeto de restituição da voz de um geração sofrida e silenciada ou, no mínimo, esquecida...

O blogue faz sentido enquanto não esgotarmos o baú das nossas memórias, enquanto não exaurirmos a mina das nossas vivências e emoções, enquanto houver matéria-prima para publicar fotos, documentos, histórias, poemas, diários, recensões bibliográficas, etc., e por fim , mas não menos importante, enquanto os nossos editores e colaboradores tiverem unhas e dedos para  continuar a tocar guitarra (neste caso, a teclar no computador, a editar o poste nosso de cada dia)...

Consideramo-nos portugueses de lei e guineenses de coração. Não escondemos também essa nossa  dupla condição. Estamos aqui , antigos combatentes, por que fizemos uma boa química com aquela terra, com aquela gente, e só queremos no futuro que aquele bom povo encontre os verdadeiros caminhos da independência, que são os da paz, do desenvolvimento sustentado, da democracia, da liberdade, da justiça.

Em 2004 abrimos uma espaço na Net para a partilha de memórias e de afetos à volta da Guiné que conhecemos, nos nossos verdes anos, quando por lá andámos trilhando os caminhos da guerra e da paz. Como eu disse esta manhã ao nosso camarada e escritor Armor Pires Mota (em comentário ao poste P10812), sentamo-nos à mesa redonda da Tabanca Grande, a imensa mesa onde comemos o mesmo pão, uma mistura que eu diria - sem querer ofender nenhum crente, trata-se de uma metáfora - que foi amassada por Deus e pelo Diabo.

Fomos camaradas de armas, no passado, somos companheiros hoje pelo desejo comum de partilha de informação, conhecimento, experiências e vivências no TO da Guiné, entre 1961 e 1974. Sem qualquer agenda político-ideológica, nem muito menos alinhamento político-partidário. Somos um espaço de liberdade e de pluralismo de que todos  beneficiam, autores de postes,  leitores, comentadores, investigadores...

Procuramos fazer pontes entre o passado, o presente e o futuro. Somos também um blogue lusófono, e solidário:  esta geração de antigos combatentes pode e deve ajudar também a fortalecer as pontes que ligam Portugal e a Guiné: a história, a língua, a cultura,  os afetos, os caminhos que trilhámos na guerra e na paz, e enfim, a economia, por que não ?!...

Fica aqui o convite, a todos os nossos leitores,  para se fazer uma análise SWAT ao nosso "querido blogue": vamos identificar e apontar (i) pontos fortes, (ii) pontos fracos, (iii) ameaças e (iv) oportunidades, pensando sobretudo em 2013, mais um "annus horribilis" que nos espera a todos... O Miguel Pessoa já fez o "cartanito" de parabéns pelo próximo 9º aniversário (, a 23 de abril de 2013). Mas comemorar, com antecedência, os anos de homens e bichos dá azar, dizem. Vamos, pois, continuando a fazer o blogue todos os dias, não obstante as dificuldades (financeiras, logísticas, técnicas, psicomotoros, etc.) com que os editores também se deparam, mas das quais não costumam, por pudor,  falar em público...

Em suma, lá vamos blogando, rindo, às vezes gemendo e até chorando, pelo menos até ao dia 23 de abril de 2013 (se o mundo não acabar antes, como nos ameaçam!). Com o apoio de todos os amigos e camaradas da Guiné que nos honram com a sua presença, a sua amizade, a sua camaradagem.

Esta tomada de posição do editor Luís Graça, a título pessoal, e à revelia da democracia que é esperado praticar-se à volta e à sombra do nosso poilão, suscitou já  alguns comentários, uns inseridos na caixa de comentários do referido poste P10786, outros enviados pelo correio interno da Tabanca Grande. Vamos começar a publicar uma seleção de alguns desses comentários. Para os devidos (e desejados) efeitos!...

Um desses efeitos  é seguramente a colheita de sangue novo, a entrada de novos grã-tabanqueiros, a par do apelo ao regresso de muitos dos tabanqueiros "seniores" que, por um razão ou outra, se terão eventualmente afastado  (passando a venerar, por exemplo, outros irãs que se levantaram mais alto em poilões bem mais altos e bem mais fortes!), ou que  andam por aí perdidos pelas matas da descrença, da desmotivação, da lassidão... (Sim, por que  isto de blogar também cansa, e mexer no passado dói!).

A quadra natalícia não é a mais propícia para este exercício de blogoterapia...Mas já que a vida continua, arranjemos um bocadinho (de tempo e pachorra) para fazer os comentários, críticas e sugestões (incluindo as de melhoria)....

O editor Luis Graça

PS - Vejam o título desta série não como uma chantagem (emocional ou outra) mas apenas como uma prov(oc)ação...Teremos que ter argumentos se alguém nos interpelar, nomeadamente em língua castelhana: "Mi querido blog,  ¿por qué no te callas?"... 

Não, não é que haja alguém - que eu saiba! - que queira calar o blogue... Mas às vezes já tenho ouvido comentários, entre dentes,  do género: "Já cheira mal, a guerra colonial"; "Porra, que ainda não lamberam as feridas todos!"; "Passam a vida a desenterrar os mortos"... 

Por muito injustos e cruéis  que estes comentário possam ser e parecer ser - e são-no facto, na nossa opinião -, temos de estar preparados para responder àqueles que nos acusam de estar, por vezes, a "discutir o sexo dos anjos"...

De qualquer modo, há números que de tempos a tempos é bom lembrar e que mostram que o blogue ainda está vivo, e mais: de boa saúde e até há quem o recomende...

(i) Vamos atingir no final do ano de 2012 a simpática cifra dos 4,4 milhões de visitas (ou visualizações), cerca de 1,25 milhões mais do que no final do ano anterior;

(ii) Começámos a "blogar" em abril de 2004 (início da I Série) e o primeiro milhão de visitas só foi atingido em fevereiro de 2009;

(iii) Estaremos, em 31 de dezembro de 2012,  próximo dos 600 grã-tabanqueiros, formalmente registados;  quando começamos a II Série do blogue, em junho de 2006, éramos apenas 110 "tertulianos";

(iv) É verdade que não vamos chegar ao final do ano com tantos postes publicados como em anos anteriores: 1756, em 2011; 1956, em 2010; 1887, em 2009...Quando muito,  ficaremos em 2012  pelos 1560, mesmo assim muito mais do que em 2008 (1285), 2007 (1000) e 2006 (508):

(v) Devemos ultrapassar no final do ano um total de 38 mil comentários (desde maio de 2010, início dos registos estatísticos), correspondendo o ano de 2012 a um total prevísível  de 9700 (26,6 comentários por dia);

(vii) Um em cada 7 dos nossos visitantes vem de Portugal, os outros 3 do resto do mundo, por esta ordem (decrescente): Brasil, EUA, França, Alemanha, Canadá, Rússia, Reino Unido, Espanha e Cabo Verde Verde;

(viii) Temos além disso uma página no Facebook, chamada Tabanca Grande, com 971 amigos (muitos dos quais combatentes da guerra colonial, mas nem todos membros do blogue, longe disso).  

Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)

1. Apresentamos hoje o primeiro capítulo, de quatro, do Conto de Natal, "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65), oferecido pelo próprio, ao nosso Blogue, para ser publicado nesta quadra.


CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 

A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

(Ou melhor, de Algures, por razões óbvias, que o meu tenente-coronel irá certamente descortinar) foi terra de África onde amei e sofri que nem um capado. Pois, que nem um capado! Agora, Algures mudou de sítio, mas não de nome. Nem de chefe de tabanca, o Gibril, o mais alto e o mais velho de todos. Tão pouco medrou. Fica na saída para Samã, onde me encontro neste preciso momento, de visita. Entre pesadas lágrimas e comoções fortes.

Apesar de tudo e dos anos, não esqueci o lugar amargo, onde volto, não para combater fantasmas, medos, mas para rever a boa gente. Logo, ao nosso anúncio, no barulho de um jipão ou na sua travagem brusca, me havia de aparecer Abdul, homem feito, já avô, à frente de um colorido cortejo a perguntar: corpo di bó? Corpo di bó… nosso alfero Casanova? Reconhecemo-nos os dois, depois de alguma natural hesitação, num abraço irmão, gritando os nomes. Foi assim neste preparo que Abdul começou a falar no Papagaio Verde… Outros olhavam-me desconfiados. Tiveram dificuldade em lembrar-se, obviamente, de meus traços. Muito normal. Perdi o cabelo, ganhei rugas com os trabalhos, mas, sobretudo, com os desgostos da vida; o azul dos olhos é menos limpo e preciso. Amarrotado, será o termo exacto. É certo que queria lembrar-me de todos os nomes. Só consegui recordar-me de alguns, que saltaram lá do fundo das areias movediças da memória. Antes de partir, revi papéis, até aerogramas em busca de nomes de gente e de terras. De peripécias também.

Para desfazer as dúvidas, fui forçado a mostrar-lhes fotografias do velho aquartelamento e da velha tabanca. Fotos que, pelo sim pelo não, levava comigo. Foram quase o meu cartão de apresentação. Mostrando-lhas, ia perguntando por cada um, este e aquele e aqueloutro, lembrando, também eles, nomes, capitães, alferes, furriéis, soldados, contando casos. E o reverso também foi verdade e eloquente. Daí a pouco, estávamos sintonizados, sem qualquer espécie de receios. Apesar da guerra e do tempo transcorrido sobre enxames de cicatrizes, não nos havíamos expulsado da vida uns dos outros. Por isso, não tardou a despertar a empatia de outros tempos. Agora, era só dar corda, fazer conversa. Desmontar o tempo e prolongá-lo. Desfivelar lembranças e dar-lhes guita.

Entre lágrimas e abraços largos ou contidos, estou entre gente negra e boa do meu tempo e de outras crianças, como então, igualmente de olhos mansos e muito húmidos e ainda de umbigos intumescidos. Crianças que os pais e os professores ensinam a aprender, devagar, um país novo, a soletrar outros sonhos, a adivinhar outros horizontes, a fazer contas de crescer. Mas confesso que logo senti o vazio de tanta gente que faltava, mas, sabia também, tinha uma certeza, que estava do meu lado de dentro, no vértice da alma. É certo que envelhecem as nossas mãos ao mesmo tempo, mas, às vezes, não envelhecem as memórias, apesar das sombras que carregamos de um tempo e de um lugar.

O terreiro ainda cheira às chuvas que tombaram de um céu de chumbo, anunciadas por relâmpagos tracejantes, ontem, e já esta manhã. As rajadas das chuvas e dos ventos queriam, à viva força, levar as cangras das moranças. O costume. As nuvens, volumosas e apressadas, correm para o sul. Como há trinta anos, Nas nuvens correm a minha alma e o meu corpo esfarrapado pelas memórias, restos de vidas de outros camaradas, enquanto o vento escreve ásperas melodias nos ramos de todas as árvores que no fundo incomodam. É isso que eu pressinto.

Com todos, o alquebrado chefe Gibril, que enxotava dois ou três cães magros, aturdidos pelas moscas, rilhando o dente, e com os mais velhos, parto mantenhas. Com as crianças reparto afectos na oferta de livros e lápis, lápis de todas as cores que África tem: branco-sumaúma, manga-laranja, banana-papaia, noitibó-colibri, azul eléctrico, azul-marinho, verde-tarrafo, pomba-verde, amarelo-dendém, negro-Papel-Balanta, chocolate-Fula-Futa, Fula, vermelho-acácia-buganvília, cadernos, muitos cadernos, para que pintem sua casa e sua terra, seus rios e suas canoas, um rebanho de volta, uma manada de vacas na cerca, um bando de pássaros conversando coisas de sempre sobre palmeiras e rios, gazelas e galinholas, sobre tanta coisa que sabem, pousados nos dorsos ou nos cornos de algumas vacas; livros, brinquedos, plasticina e, por acaso, meia dúzia de iô-iôs. Mas também bolachas e bombons, muitas bolachas e rebuçados. Esvaziei duas malas. Mais que fossem.

Foi uma festa. As crianças, descalças como no princípio do mundo, essas andavam num sino: batiam palmas, saltavam à minha volta, quase entravam em batuque, que é onde melhor se respiram os ritmos da alma africana e, em dias de ronco, onde explodem todas as paixões eróticas. Por mim, senti-me quase triste: tudo aquilo não era nada. Gesto de quase nada perante aqueles olhos infinitamente abertos, numa expressão de grande ansiedade, mãos desertas de pão macio e novo.

Nada, se comparado com as muitas caixas, cheias de livros escolares, novos e velhos, roupas e calçado, mais material hospitalar, mais mãos abertas, mais afectos, que, mais do que uma vez por ano, lhes deixa, com largas mantenhas e coração a derreter-se de ternuras e comoções, vicentinamente, o branco de coraçon, o rei-mago de prendas e afectos, que também viveu e sofreu na tabanca de Algures, o Carlos Silva. Trabalho cansado, dizem os mais velhos, mas muito gratificante e significativo, acrescento eu.

Os miúdos, esses arregalavam os olhos e voltavam a saltar, cantando; os homens e mulheres, com as mesmas chinelas plásticas de enfiar o dedo de há mais de trinta anos, interrogavam: quando volta home de coraçon, nosso alfero? Por certo, não iria demorar, adiantava-lhes como um crédito de esperança, o único banco para quem é pobre. Como eles.

As mulheres e as raparigas, mama firme, regressavam das lalas, que agora cultivavam sem medos e sem obrigação de dividir o arroz ou a mancarra por terceiros, com a resignação de quem aceita uma lei, de quem não tem meios para escapar à exploração, fossem administradores ou simples chefes de posto, que guardavam uma parte do fruto do seu suor e trabalho. Depois, ainda havia, antes da guerra, alguns lojeiros sem escrúpulos, onde as contas nunca diminuíam, pelo contrário, avolumavam-se como nuvem no céu em tempo de tornado.

Algumas mulheres chegavam, de balaios à cabeça, cheios de quase nada. As mais novas traziam as crianças atadas às costas com amplo lenço. As raparigas alegres como pássaros, com panos vistosos presos à cintura, mostravam a pele luzidia, a mama firme, sempre atraente, ardendo sonhos e desejos. Um ou outro homem vinha das bolanhas ou campadas com a velha catana debaixo do braço.

Todos queriam estar no centro do acontecimento. Era um homem branco. Olhos perscrutadores. Os homens mais velhos, de rostos enxutos (rapazotes ao tempo), mas, agora anavalhados de rugas, ali estavam ainda: Gibril Sosso, Mamadu Sissé. Esses contavam, no bentabá, histórias passadas, ou faziam tempo à sombra. O costume. Vida mansa, corriqueira, sem grandes horizontes. Entre as mulheres, que se iam juntando, receosas, reconheci pelos traços a Fili, a Sano, a Fatu, as belas raparigas do meu tempo, mas faltavam outras. Outras, mais novas, eram totalmente desconhecidas. Mesmo assim, sorriam a alma, mansamente, à minha presença. Pressentiam amizades antigas com seus avós.

Na contra luz, Algures desola-me. Mudou-se e não mudou. Não sei porquê, dói-me. Pouco ou nada sobra de nós. Uns pedaços de vida, mais de dor e morte, que a guerra não desaparece nunca. À primeira vista, só um marco ficou: a amizade.

A nova tabanca está mais pequena, julgo que com menos moranças, mas também posso estar enganado. E falta-lhe a serração do cabo-verdiano que, quando sentiu a ameaça do PAIGC, se escapuliu. O campo de aviação é uma seara de capim, onde só os pássaros pousam e levantam. Mais as nuvens das rolas. As populações reocuparam as antigas aldeias, como Fambantã, e os terrenos que haviam abandonado. Não há sinais da nossa passagem e de outros. Paisagem quase desabitada de nós. Ao contrário dos antigos aquartelamentos do sector (como Nema, Cuntima, Candjambare), tudo foi demolido e arrasados todos os abrigos das metralhadoras e do pessoal. Também, afinal, para que prestavam? Tudo, não direi bem. Salvaram-se a messe e a casa onde dormiam o capitão e os furriéis. E a bela Mónica, pois, num Natal, por sinal, sem dedos no gatilho. De qualquer modo, tudo me faz regressar mais de trinta anos atrás, quando a aldeia estava deserta e já não barulhava sob o estridular das máquinas de uma serração. Quando a tropa lá chegou, estava abandonada.

Rodeado de tantas mulheres, a quem custava falar, me pareceu, por via de todos os trastes que carregavam à cabeça e nas mãos (e não era por via disso, só entendi mais tarde) ou por outra razão que só elas sabiam, logo perguntei, como para confirmar o que, infelizmente já sabia, via Net, pela que fora a menina bonita da tabanca, do quartel, a mais querida, a inesquecível Usse ou melhor, na nossa terna linguagem, Usita, de corpo franzino e de uns olhos cintilantes, um sorriso profundo e tranquilo, e que, por vezes, à noitinha, muito terna, se ia sentar, ora nas pernas do Dr. H. S. Franco, solteiro, mas muito paternal, ora nas do furriel Lima, que Deus também já lá tem, muito solícito e menineiro, amparada de mimos nos seus braços. O resto do sol, alaranjado como cacho de palmeira, dourava-lhe a pele macia, o cabelo em trança. Nos pulsos usava malilas. Era sempre a primeira a esperar-nos junto do cavalo-de-frisa, feito de cibe, quando regressávamos do mato. Às vezes, chorava a nossa tristeza ou esconjurava o nosso desânimo com o seu sorriso enorme, pegando na nossa mão. Também outras a imitavam na sua inocência. Cenas ontem comoventes e lembradas agora dolorosamente no local com lágrimas que tentei apagar com palavras desconexas e puxando o boné para os olhos.

Mostrei-lhes uma foto, a cores, de Usita. Tinha uns belíssimos 18 anos. Trajava um vestido florido, onde sobressaía a cor rosa, e um lenço, apertado no coruto da cabeça, escondia-lhe o cabelo, todo em bandós, tombando sobre o pescoço, alto e elegante, adornado com um colar de várias e belas missangas. O vestido, nada decotado e sem mangas, era curto, bem por cima do joelho, e justo o suficiente para desenhar-lhe um grácil busto, onde marcavam pontos os seios rijos e as ancas cheias. Os olhos eram redondos e festivos. Dos lábios carnudos desprendia-se o lume de um sorriso fino e redondo, largo e infinito, arregaçado até à quase luxúria, bem desenhado por entre a fieira dos dentes, impecavelmente brancos. A pele luzidia. Macia e boa. Nas orelhas reluzentes brincos; no braço direito uma pulseira fina. Os dedos pingando uma malinha branca. Calçava sandálias de couro. Estava feliz. A tropa e o pessoal da tabanca continuaram a respeitar-se, depois de nós, era quase uma família. Por outro lado, Usita tinha ali, todos os dias, sob os seus olhos, às vezes sob os seus lábios, o grande amor da sua vida, o seu alfero. (Omite-se, obviamente, o nome, para salvaguardar relações actuais). A rapariga só tinha olhos para ele. Suponho, não tenho a certeza, que foi o próprio oficial miliciano que quis guardá-la, como num filme, aquele momento, no esplendor da sua beleza.

Por mim, confesso que, quando vi a sua foto no écran do computador, graças ao e-mail do Carlos Silva, fiquei radiante, a admirá-la. Encantadora, de verdade! Porém, este embevecimento foi efémero. Essa alegria logo entrou em ruína, quando, em nota de rodapé, soube que casara com um combatente da liberdade, que gostava tanto de usar as camisas cubanas, as goiabeiras, como as palavras e barbas de Fidel. Não sei por quantas vacas foi ajustada aos pais (também não será de bom tom perguntar-lhes, nem isso interessa para o caso) ou por quantos pesos. Duas vacas valiam mais ou menos quinhentos pesos. Mas sei que ela valia muito mais: respeito, amor, carinho, um chão livre.

Casada, fora então viver para “o chão papel” de Bissau, onde sofreu violência doméstica de toda a ordem, pois, desconsiderações, maus-tratos, vindo a morrer. Havia-se enamorado, bem antes deste casamento, esclareça-se, de um alferes com quem continuara, ainda por algum tempo, a corresponder-se em português escorreito. Ardendo paixão antiga, fogo ardente. As cartas eram verdadeiros hinos ao amor. Disse-mo o meu amigo e eu acredito. Estava ali, salvo as devidas distâncias, uma pequena sóror Mariana Alcoforado de África, que dizia do seu sofrimento pela ausência do alferes e das vezes que lhe passara pela cabeça pôr termo à vida.

“ (…) Não posso viver mais sem ti. A minha vida é um calvário, todos os dias. Escolhi o marido errado, que pensa mais na revolução do que em mim. Na revolução e nas mulheres combatentes. Vem buscar-me. Leva-me contigo. Combinaremos quando e como. Estou desesperada. Sozinha, não sei o que realmente fazer. Já pensei várias vezes em matar-me. Se calhar, é o que irei fazer, não sei quando, mas não tenho outra saída. A única é o teu amor por mim. Amo-te imenso, não me sais do coração, ora em fogo por ti, ora em revolta surda contra o Mamadu Candé (…)

Creia, meu tenente-coronel, que, ao confirmar, mais uma vez, a sua morte, levei um segundo murro no estômago. Ainda mais forte. Como se a terna rapariga fosse da minha família. Parece impossível, mas foi isso que aconteceu, passado todo este tempo.

Eu, como todos, gostava dela e do seu sorriso quente, orvalhado de azul. Duas lágrimas fenderam-me os olhos, doeram fundo, e lembrei ali o que já havia escrito, mais ou menos isto, numa pausa de tristeza e silêncio. Coisa pindérica, dirá, nunca foi com a poesia, mas, olhe, são palavras muito sofridas:

Choro, Usita, a tua ausência, nos teus eternos olhos transparentes e buliçosos de colibri. Durante quase dois anos, eu ia a escrever desde sempre, conheci os teus olhos e mãos, dedos longos, escrevendo em cadernos letra redonda, de mão firme e sábia, e doçuras na tardinha, quando vinhas trazer-me a roupa lavada. Lembras-te ainda? A tua mãe era a minha lavadeira. Dava-te sempre mais alguns pesos. As tuas mãos e os olhos inocentes traziam-me assim a força e o desejo da paz e sei que da tua boca se soltava um sorriso fresco como se fosse um pássaro azul. Hoje, trazes-me a tua lembrança branca de eternidade, dás-me de tão longe a tua mão branca. Talvez, um dia, ainda possa vir a escrever um livro ou um poema de África, que comece e acabe, exactamente, com o teu nome. O título até já o desenhei: “A menina que tinha sorriso de pássaro azul”. Ou já estou escrevendo. Hoje, trazes-me a África que passa constantemente por debaixo das janelas dos meus dias, da varanda da minha casa. Trazes-me a luz limpa das madrugadas amanhecendo o perfume e a cor das acácias vermelhas e o rumor dos rios. Não é o tempo que me faz falta. É o teu sorriso azul, o resto da tua história, da tua acesa paixão pelo alferes, bela como um conto de fadas… Com um fim que não merecia, eu sei.
Alá esteja contigo onde quer que estejas, querida Usita!
Alah uquibaro!


Quem também não enxerguei foi a bela Fatumata.
Fiz algumas perguntas: Casou com o João? Teve filhos? O que lhe aconteceu, que não a vejo? Que papel desempenhara na luta? Em que tabanca morou?

Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.

(Continua)

Guiné 63/74 - P10811: Notas de leitura (440): "Prece de um Combatente Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial", por Manuel Luís Rodrigues Sousa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
O livro do soldado Manuel Luís Rodrigues Sousa “Prece de um Combatente”, é credor da nossa atenção. São memórias, reconstituições por vezes muito afetuosas, é uma escrita muito singela, é o seu modesto contributo para a história da guerra colonial (palavras suas).
Tudo começa no orgulho pelas suas raízes, a candura e a ingenuidade com que enfrentou os contratempos e os infortúnios tocam obrigatoriamente o leitor.
Pediu ajudas para ilustrar o seu relato. É uma sinceridade que nos prende do princípio ao fim. Ele fala em nomes das praças, fala e toca-nos no coração.

Um abraço do
Mário


"Prece de um Combatente": memórias de um soldado em Jumbembém

Beja Santos

Sabe bem juntar as memórias do soldado Manuel Luís Rodrigues Sousa perto dos diários dos soldados Calvário e Góis. É sabido que a literatura assente em memórias tem sido campo da eleição predominantemente de oficiais e de alguns sargentos, ora o estudo das mentalidades carece de apreciações pessoais das praças, saber como viveram a guerra, de onde vieram, em que se transformaram. O soldado Sousa satisfaz todos estes requisitos. Antes de partir para a Guiné, fala-nos da sua linhagem, provém de pais naturais de Carrazeda de Ansiães e de Vila Flor, Manuel Sousa veio à luz em Folgares, nasceu em 1951. Até ir para a tropa, viveu nesta ruralidade, visitar familiares entre os Folgares e Carrazeda de Ansiães eram cerca de dez quilómetros percorridos a pé ou de burrico, estrada não havia na época. Fala-nos desses vínculos: “Periodicamente a família encontrava-se em visitas mútuas, ora nos Folgares, onde viviam os meus pais, eu e todos os meus irmãos, ora na Carrapatosa, onde vivia a minha avó, o tio Armindo e esposa, a tia Aninhas, além dos meus primos, filhos deste casal que vivia com a minha avó, a Natália, o Alexandre, o Fernando e o Ricardo. Fazia ainda parte deste núcleo de familiares o meu primo Chico”. Conta-nos histórias familiares, e depois temo-lo a assentar praça, em finais de Julho de 1972. A saída de casa não foi fácil, estavam ali todos os seus tesouros: “Ali cresci e trabalhei no trabalho duro do campo, de sol a sol, melhor dizendo, de noite a noite, sem conhecer férias, fins de semana ou coisas parecidas”. Os pais, desgostosos, viram partir o “seu Manuel”.

Recruta em Vila Real, adaptou-se bem, como tinha pouco dinheiro, ali passou praticamente todos os fins de semana. Seguiu para Abrantes, a sua especialidade era de atirador. E é aqui que recebe convite para ingressar na polícia, decidiu recusar. Em finais de Novembro parte para Tomar, vai formar batalhão destinado à Guiné, o BCAÇ 4512. A despedida é emocionante, é recordação inesquecível, esta partida com destino a Tomar: “Desta vez não foi via Carrazeda de Ansiães, nem tive o apoio da velha mula no transporte da mala. Porque que guia de transporte só me permitia utilizar o comboio e como o dinheiro não abundava para pagar a camionete desde Carrazeda de Ansiães até ao Tua, desta vez tinha de descer ao vale do Tua, com destino à estação de Codeçais, através de um caminho íngreme e tortuoso, num percurso de cerca de oito quilómetros, passando pelas aldeias de Pereiros e Codeçais. Transportava eu a mala e um meu irmão mais novo, o Zé, que me acompanhou até a estação, transportava um saco que continha o fardamento camuflado que tinha trazido para a minha mãe ajustar no tamanho. O meu pai fez questão de me acompanhar até à saída da aldeia, até ao Barreiro, já com a aldeia de Pereiros à vista. Chegada a hora da separação, irrompeu destroçado em alto choro, envolvendo-me num longo e apertado abraço. As emoções e as lágrimas misturaram-se por alguns instantes, após o que nos desenlaçámos e, de lágrima no canto do olho, juntamente com o meu irmão, lá segui rumo à estação”.

Em 6 de Dezembro, o BCAÇ 4512 ruma para a Rocha do Conde de Óbidos, o Uíge vai levá-los para Bissau. Desembarcam e vão para o Cumeré, instalam-se em tendas no campo de futebol, fazem o IAO, é na limpeza das casernas do Cumeré, a varrer o chão, que ele apanha uma pequena medalha de ouro com inscrição “Deus de guarde”. Chegara a hora de abarcar para Jumbembém via Farim. Segue-se a descrição do local: “Situava-se numa ligeira elevação do terreno, pouco significativa na planura característica da Guiné, junto a uma linha de água designada por Rio de Jumbembém. No lado sul, salteada por algumas instalações de utilização militar, uma delas era uma antiga serração, com telhas em chapa a esvoaçarem ao vento, a que se chamava quartel. Na parte norte estava concentrada a tabanca, formada por casas quadradas, construídas em alinhamento, em várias filas, de blocos de terra, cobertas a chapas de zinco”. Detém-se sobre as comunicações, os costumes das populações, a relação com as crianças e as primeiras operações a Bricama, em meados de Janeiro, ainda com a CART 3359. Descobrem uma casa de mato, há para ali fogo intenso e ele escreve: “Vi um ancião negro no meio do terreiro, entre as palhotas, de pé, trémulo, com um dos braços cortados por uma rajada ou estilhaço, sensivelmente pelo cotovelo, apenas ligado por uma pele que ele sustentava com a outra mão”. Na segunda ida a Bricama, um guerrilheiro do PAIGC foi varado com uma rajada, um camarada teve ferimentos e foi evacuado.

Manuel Sousa esteve atento aos pormenores: ao que se disse sobre o assassinato de Amílcar Cabral, às estratégias de aliciamento das populações, a uma noite de cinema em Jumbembém em que foi exibido o filme “Os Três Mosqueteiros”, à chegada dos mísseis Strella. E em Maio de 1973, ele vai participar no inferno de Guidage. Primeiro, em 10 de Maio, parte para Guidage o 2º pelotão da sua companhia, o livro de Manuel Sousa inclui o relato do furriel Fernando Costa Gomes de Araújo sobre esta deslocação a Guidage. Em 23 de Maio, chegou a vez do pelotão de Manuel Sousa, ele vai descrever com muita singeleza e contenção a morte do seu camarada Domingues Martins da Silva Lopes. Manuel Sousa vai a picar, vão de Binta para Guidage. Vai trocando algumas palavras com Domingos Lopes e, imprevistamente, o drama aconteceu, já Manuel Sousa tinha picado cerca de 50 metros de uma árvore de grande porte, ocorreu atrás um enorme explosão, quando ele chegou à referida árvore viu o Domingos Lopes morto, enquanto um furriel dos Comandos, com o rosto esfacelado gritava “ai minha mãezinha”. E confidencia que a morte deste seu camarada o marcou, estivera com ele até ao último instante, depois do regresso de Guidage ajudou a reunir todos os seus parcos haveres para os devolver à família. E escreve: “A mala e um pequeno espólio de objetos que incluía um gravador de bobines que, dias antes, à cabeceira da sua cama e da minha, ao lado uma da outra, reproduzia frequentemente em alto volume o folclore minhoto, região da sua naturalidade que, a partir dali, se calou para sempre. Tenho bem presente aquela imagem da mala apertada com um cordel em volta e a sensação que me assaltou ao pensar no drama da chegada daquela encomenda aos seus destinatários”. Fez mais amizades, recorda Orlando Augusto Pires, que estava em Binta, criou-se uma forte amizade, em 1975 reencontraram-se, estavam ambos incorporados na Guarda Nacional Republicana. Com os desencontros da vida, passaram-se muitos anos e depois veio a saber que o Pires falecera, acometido de doença súbita no dia do casamento da filha mais nova. E exalta a simplicidade, a generosidade, a nobreza de carácter daquele seu amigo.

Sempre bom observador, colige notas sobre os macacos, as minas, os trabalhos do pelotão de serviço (ir buscar lenha, dar apoio aos cozinheiros, descascar batatas, confessa que desviava algumas, o jantar era sempre de fome, cozia aquelas batatas com algumas couves, supria as suas necessidades). É nisto que ocorre a morte do alferes Nuno Gonçalves da Costa.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10798: Notas de leitura (439): "Dona Berta de Bissau", de José Ceitil (Mário Beja Santos)

domingo, 16 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10810: Álbum fotográfico de Fernando Súcio (2): Bula, 1972/74





1. Segunda série de fotos do álbum do nosso camarada Fernando Súcio (ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275,Bula, 1972/74), estas já referentes à sua estadia na Guiné.





Bula, 1972/74 > BCAV 8320 > Viatura de piquete

Bula, 1972/74 > Francisco, de Lamego, e Súcio

Bula, 1972/74 > O Batatinha da dança do Nhirren e o seu protector Súcio

 Bula, 1972/74 > Fortim dos Fulas > Brincadeira parva

Bula, 1972/74 > Fortim dos Fulas > Fátima e Súcio

Bula, 1972/74 > Súcio e Honório > Caçada de um burro do mato

Ao "bandido" do Fernando com um um pio dos amigos Olhero e Herculano

Bula, 1972/74 > Carregamento de granadas para o 11,4

Bula, 1972/74 > Armamento do PAIGC

Bula, 1972/74 > Tabanca dos Fulas > Estrada de Binar

Bula, 1972/74 > Súcio e Grou
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10800: Álbum fotográfico de Fernando Súcio (1): Elvas, Figueira da Foz e Bula