por Mário Vicente
A sideral abóbada negra com milhões de estrelas florescentes encantaram-no quando pisou a calçada. Com a forte excitação do momento, nem do medo da noite se recordou, o que seria normal a qualquer criança. Uma alegria interior dava-lhe um alento e uma curiosidade extrema para o seu temperamento calmo e introvertido. Seriam por volta das quatro da manhã!
Calças de Palanco nunca se tinha levantado tão cedo.
No Rossio, em frente e por debaixo dos cedros, o rebanho ruminava deitado, esperando o romper da aurora que, naquele dia, apareceria já com uma hora e pouco de caminho em direcção a terras do lado Norte.
Francisca, encostada na ombreira da porta, os olhos húmidos, deixando cair uma tímida lágrima, desejou boa sorte e que tudo corresse bem.
António, com um nó na garganta, respondeu um até logo quase inaudível, e com seu filho e o companheiro Jolim dirigiram-se para o rebanho. Acossados por Jolim, o cão, os ovinos foram-se levantando e tomando rumo tocados por António e seu filho, enquanto Francisca, agora com os olhos rasos de água, se recolhia ao lar, rodando a chave a avançar na lingueta de segurança da fechadura.
A aurora rompeu a meia légua passada, não era longo o caminho. António embrenhado nos seus pensamentos e o miúdo sonhando com a Feira e como seriam as terras para o lado do Norte. Foram tocando o gado, incapaz de entender porque é que o seu dono os obrigara àquela caminhada a desoras.
Mas era assim!... António ia mudar de vida. Mais certo e seguro sempre seria ter um emprego do Estado do que a errante e incerta dúvida do amanhã da vida que até ali levara. Teria ainda a vantagem de estar junto da mulher, filhas e filho, que agora saltitava radiante campo fora, rodeando os olivais que davam acesso ao recinto da Feira de Gado nas terras do lado do Norte.
Já no recinto da Feira, enquanto brincava com um pauzinho, fazendo Jolim saltar na esperança de o abocanhar,
Calças de Palanco foi ouvindo atento a conversa de seu pai, com aquele sujeito de casaco de bombazina e boné aos quadrados, até que o dito homem pronunciou:
– Pronto! Está certo, são minhas!
Apercebeu-se então o puto que voltaria a sua casa apenas com o pai e o companheiro Jolim porque as “lanudas” e os cordeiros já eram propriedade de outrem. António ficou duplamente satisfeito. Tinha feito bom negócio, o seu gado ficava em boas mãos e continuaria a ser bem tratado. Últimos acertos quanto a contas e forma de pagamento.
O homem de boné aos quadrados chamou o seu pastor, que começou a encaminhar o gado para o seu novo destino, o qual não seria muito longe, conforme a conversa trocada.
António chamou o filho e com o fiel Jolim seguindo-os, dirigiram-se para a rua onde de um lado e outro se encontravam barracas de quinquilharia, e de comes e bebes. Parou na barraca das farturas e pediu dois pedaços com açúcar e canela, e dois copos de café de cevada. Encostados ao balcão, pai e filho saborearam o pitéu, tendo António de esperar pelo miúdo porque a cevada se encontrava muito quente.
Enquanto tomava o café, quase a queimar a língua,
Calças de Palanco ia deitando o olho para as pessoas que iam e vinham, naquele característico movimento de terra em festa, contemplando o céu, onde, de quando em vez estalavam os foguetes anunciando o dia de festa em honra de Nossa Senhora do Paço e da respectiva Feira de Gado, este ano bastante concorrida.
Após ter terminado o improvisado pequeno-almoço, o pai tirou um lenço do bolso e, carinhosamente, limpou a boca suja de melaço gordo açucarado e os bigodes de café do seu filho. Levou-o à frente de uma barraca de brinquedos, e perguntou-lhe:
– Então, que brinquedo queres?
Calças de Palanco ficou maravilhado e corou pela introvertida admiração e indecisão de tantos brinquedos lindos. Uns de madeira, outros de lata!... Ficou um pouco confuso, mas um ficou gravado no seu olhar encantado, enquanto atento percorria aquele mundo maravilhoso. Era aquele carrinho de lata pintada puxado por um cavalo, com cocheiro e tudo. Seria que o pai lho compraria? Mais uma segunda, e uma terceira volta de olhar mirando tudo ao pormenor, até que o pai o interrompeu no seu maravilhoso vaguear:
– Como é, filho, não dizes nada? Querias tudo, não era? Pois!... Mas tudo não pode ser! Escolhe lá o que mais gostas!
O indicador do miúdo disparou ágil como seta, e pronunciou:
– Aquele!
Era o carrinho do cavalo. António pagou e a mulher gorda, de lenço castanho com flores amarelas amarrado à cabeça, agradeceu o pagamento e entregou o brinquedo ao contemplado.
Caminho de retorno, saltitante de alegria, o miúdo ia brincando com Jolim. Ficaram, pela primeira vez, visitadas as terras para o lado do Norte, por onde mais tarde várias vezes passaria com sua mãe, quando iam visitar os primos de Fonte Clara.
Setembro passado, o Outono veio com muita água. Era Natal e ninguém podia entrar nos campos, que se encontravam completamente alagados. Quando a mãe Natureza se distrai, são sempre os mesmos a sofrerem as consequências. Os lavradores mandaram os seus ganhões de férias sem vencimento. Claro! Que aguardassem pelo fim da invernia…
Zé do Barrocal, o filho mais velho do ti Manel, viu acabar-se-lhe o último naco de toucinho, pois já eram quatro bocas a comer e de trabalho não havia esperanças. Uma noite, resolveu fazer uma asneira e perder a honra com que era considerado em todas as abegoarias. Escondeu um saco de serapilheira debaixo do coçado casaco, e dirigiu-se sozinho ao mato, pois a vergonha não lhe permitia arranjar companhia, como outros que o mesmo faziam. Mãos geladas, por entre a erva molhada, foi apanhando bolota ou lande, azinho ou sobro, não importava, pois o importante era juntar o suficiente que as costas aguentassem para carrego no regresso.
Madrugada, completamente molhado, escondeu o saco por entre as medas de lenha, dirigindo-se para casa. Tirou as botas de chumbo, com três dedos de barro vermelho pegado, deixou a roupa enlameada no canto da chaminé e, vestindo umas ceroulas de baetilha enxutas, assim se deitou junto da mulher, que consigo tinha o filho mais pequenino para, com seu corpo, lhe transmitir o calor e sossegado dormir. Sentindo o corpo gelado do marido, ajeitou as costas, até ficarem coladas com as dele, transmitindo-lhe assim um pouco de conforto e, baixinho, segredou-lhe:
– Tu dás cabo de ti, homem! E o pior é se te apanham! Já viste? Ai que vida esta!
Ajeitando-se melhor, colou o fraco corpo aos dois companheiros de cama tentando numa doação total a sua última réstia de calor. Mas, não havia sossego naquela cama. O filho do ti Manel dava voltas e revoltas! A cabeça, num fervilhar insano, não lhe deixava pegar no sono. Quem lhe compraria aquilo? Só quem tivesse um porco para engordar. A mulher, não dormindo e adivinhando o atormentado pensamento do inquieto marido, como só as mulheres sabem adivinhar, voltou a segredar-lhe:
– Oh, homem, agora descansa. Amanhã vais falar com a prima Chica, e vais ver que ela é capaz de querer a bolota!
Aí o homem esperançado acalmou e o sono tomou posse daquela mente escaldante e corpo amassado.
De manhã, na sua casa,
Calças de Palanco, junto à lareira crepitante, comia uma torrada barrada de banha e polvilhada de açúcar, tomava uma caneca de café com leite, quando alguém, abrindo a porta, entrou dizendo:
– Prima Chica, posso entrar?
Francisca, dando uma olhadela pela porta do meio, verificou quem era e respondeu:
– És tu, Zé?! Entra, assenta-te aqui ao lume, que está muito frio.
– Prima Chica, eu não me assento, queria era... nem sei como hei-de dizer! ...
Francisca olhou para o Zé do Barrocal e achou-o triste e um pouco nervoso.
– Diz lá Zé, há algum problema? Está algum miúdo mal?
– Não!... Não é isso! É que eu não tenho tido trabalho e esta noite tive de ir arranjar um saco de bolota!
Os olhos do homem estavam húmidos e uma vergonhosa lágrima rolou naquele magro rosto. O puto, no seu cantinho, gravava na mente aqueles dolorosos momentos e raciocinava:
– O primo Zé a roubar bolota para dar de comer aos filhos?! Ele tão considerado e respeitado por todos quantos consigo trabalham!...
Havia qualquer coisa que não entendia. O primo Zé está a chorar de vergonha, não por os filhos não terem de comer, mas por ter apanhado a bolota no mato, não sendo dele!
Instantes confusos. Mais tarde, retendo esta cena na mente e já com entendimento completo, compreendeu não só o problema do primo Zé mas todo o drama do povo da Planície. É que tudo isto acontecia em plena Europa, após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo artigo 25° diz: "Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade."
A proclamação foi assinada a 10 de Dezembro de 1948.
As coincidências do destino! Calças de Palanco comia a torrada a 17 de Dezembro do ano seguinte. Francisca acalmou o filho do ti Manel e disse:
– Não te preocupes, diz lá quanto é? Levas já, pois de certeza que te faz falta. Logo, quando vires que podes trazer o saco, trá-lo. Se tiveres de fazer o mesmo, tem cuidado, não sejas apanhado, e escusas de andar à procura de quem fique com a bolota, pois eu só mato o porco lá “p´rós” fins de Janeiro.
– Obrigado, prima Chica! Nem sabe o bem que me está a fazer.
Tinha que saber! Não era favor nenhum, era obrigação, era um dever de solidariedade. Seria um acto de revolta contra todos os que exploravam e amarfanhavam os mais honestos e melhores filhos da Planície. Infelizmente nem sempre assim foi.
Calças de Palanco analisou isto tudo mais tarde e também os olhos lhe ficaram húmidos. Talvez por vergonha, quem sabe?
Ambos se foram cedo desta vida e com grande sofrimento, apesar da grande ajuda da improvisada enfermeira, a samaritana Xandra que muita dor aliviou. Tanto o Zé, filho do ti Manel, como sua mulher partiram, mas com H e M bem grandes.
O fim de Janeiro chegou, e a matança do porco teve de ser adiada para o primeiro domingo de Fevereiro, por causa do pessoal da cidade, pois era só nessa data que o trem do quartel estava disponível. Mas uma semana passava rápido, menos para Calças de Palanco que estava desejoso de rever os primos da cidade.
Chegou a véspera da matança. António avisou Francisca para nesse dia não dar comida ao porco. À noite, Calças de Palanco não dormiu e manhã cedo, dia da matança, enquanto seu pai ia afiando facas e preparando a banca e todos os apetrechos, mais era satisfeita a sua curiosidade. Saltitava no quintal para ver os preparativos e assistir à chegada dos primos, enquanto seu avô, velhote, ia atazanando a cabeça do paciente António. Até que o trem puxado por mulas e não cavalos, coisas esquisitas as dos militares, apontou ao portão da Colónia e, contornando o Rossio, veio parar, em frente da casa de fachada azul e porta castanha. Grande alegria entre miúdos e graúdos!
Comeram-se as fatias paridas ao pequeno-almoço e matou-se o porco. Não era tão fácil assim, pois havia tarefas complicadas, era necessária força e saber. Teria de se colocar o animal deitado sobre a banca – uma mesa forte – e posteriormente amarrar-lhe a boca com arame ou corda para não utilizar os fortes dentes e ferrar em alguém. Depois seria a mão certeira e experiente para aplicar o golpe seguro de forma que o animal tivesse boa sangria para feitura dos enchidos, e não sofresse muito.
Após o porco morto, era chamuscada a pele para empolar e retirar. Interessante para a miudagem era a abertura do porco, pois era satisfeita a curiosidade de verificar os órgãos internos do animal, confirmando o ditado popular “se queres conhecer o teu corpo, mata um porco”.
A lavagem das tripas, que seriam utilizadas nos enchidos, foi feita no tanque de três bicos no eucaliptal, um pouco abaixo da nora. Toda a miudagem foi assistir, apesar do frio intenso. Fez-se uma fogueira e, enquanto Francisca e Rosária lavavam, a malandragem brincava e corria a mata de eucaliptos, desde a nora até à ribeira.
Almoçadas as sopas de cachola, a tarde correu tão rápida que não se deu por ela. Eram horas de voltar para a cidade! António e o compadre Zé Joaquim, já com um grãozinho na asa, iam-se num despedimento que não tinha fim, enquanto o pessoal. todo acomodado no carroça, sonhava já com a nova vinda à aldeia. Os compadres fizeram a última despedida, e o trem arrancou com o sol já posto e as velas das lanternas acesas.
Veloz é o tempo quando se brinca e não há obrigações para cumprir! A miudagem, sem dar pela passagem dos anos, viu-se envolvida na vida escolar. Foram assim reduzidas as horas de brincadeira no casão do Baixa com Nanicha, e à noite as tentativas de apanhar mamíferos voadores com Faty e Kinkas levantando as canas e gritando:
– “Morcego, morcego vem à cana que tem sebo!”
Sacola às costas, caderno e lousa dentro, ei-los, no novo ciclo de existência, percorrendo a fase ainda muito incompleta de putos, para tentar alcançar a graduação de gandulos.
Com a cabeça quase rapada, pelo mestre Algêncio que era exímio, um verdadeiro perito na arte de tosquiar os pequenos crânios, e primava quando se lhe pedia um corte como devia, assim circulavam. Metia o pente mais grosso na máquina, e rapava a malta que era uma beleza. Vantagens? Livrava-se a malta dos "selos" ou "caldos" da gandulagem, "cuspinhadela" na mão e uma valente cachaçada.
Assim, geralmente, se apresentava Carrulho. Naquele dia, apressou-se ele a levantar o arame farpado mesmo juntinho à acácia enraizada no valado que dava acesso à eira da Colónia Correccional.
Imediatamente a canalha passou de gatas, não havia tempo a perder, para quê dar a volta pelo portão? Depois do Pato Marreco passar o último, como era costume, o batalhão formou. A malta da Aldeia tinha ganho aos do Rossio de Cima. Braços sobre os ombros uns dos outros, todos enganchados, fazendo dos braços cangalhas, começou a lenga lenga do festim:
"Na quero trabalhar!
Porquê na quero!
A malta d´Aldeia ganhô ò Rossio!
Por três a zero!"
Eram comandados por Alacrau, incontestado capitão e chefe de muitas aleluias, a “tradição Pascal”. Não era brincadeira! Doze voltas à Igreja correndo, finalizando com a entrada na mesma, subida até ao altar, ostentando e badalando uma manga ou outra espécie de chocalho ao pescoço, geralmente cedidos pelo Zé da Defesa para o evento.
Desceram direito ao Joaquim dos Vinagres que, como diria meu avô, era seu vizinho. Cada voz com seu timbre, todos queriam berrar mais alto que o companheiro, numa desafinação total, tornando o "chinfrim" maior. Por cima da algazarra, sobressaia trombeteira a voz de Alacrau, pregoeiro-mor da aldeia, também incontestado, fosse qual fosse o produto.
Torreca seguia ladeado por Carrulho e Calças de Palanco, Alacrau por Malhado e Binito. Na segunda linha seguia uma confusão de Ramada Curta, Narciso, Pegado, Laroso, Cabeçudo, Nanicha, Papo-seco, e outros de idades diferentes. Por último Pato Marreco, como habitualmente.
Não se compreendia bem! Havia coisas que não eram entendíveis. Calças de Palanco e Torreca, sendo do Rossio (de baixo), alinhavam pelos da aldeia. O Narciso do Rossio (de cima) gritava também pelos da aldeia.
Confuso não era!... Calças de Palanco, mais tarde no sul Guiné, já vagabundo mas não ainda maltês, compreenderia então perfeitamente, enterrado na lama, bolanhas e tarrafo dos rios Cumbijã, Manterunga e Quaiquebam. Enrolado e cheirando a morte no emaranhado das matas de Camaiupa, Afiá, Cabolol, Cadique e Cantanhez aprenderia como os homens se tramam uns aos outros, transformando o "amai-vos uns aos outros" em "mamai-vos e matai-vos”.
Era mesmo assim! Ricos, pobres ou remediados, os homens delimitavam as suas próprias fronteiras, as relações e a vida. Eram as castas exactamente: fulas, futa-fulas, fulas-pretos, fula-forros, mandingas, balantas, papéis, manjacos, bijagós, felupes, beafadas, nalus e mais a puta que os pariu com estas divisões todas.
Todos um dia morrerão e voltarão a ser terra. Regressemos então, aos gloriosos que aplicaram três "secos" aos do Rossio.
A meio da rua do Monte – assim se chamava nos tempos que a Duquesa de Bragança, dona e senhora daquelas terras, por ali passava no seu coche a caminho do Monte de Vila Fernando quando a aldeia ainda era conhecida por Conceição –, Kinkas, por entre o postigo semiaberto, viu o pessoal passar e não resistiu a um olhar mais prolongado a Calças de Palanco. Tão embevecida estava, que nem reparou que também ele ia descalço e não só, a cabeça do dedo grande do pé direito deitada abaixo. Que importava? Os do Rossio tinham levado três "secos"!...
“Na quero trabalhar!
Porquê na quero!”
A ladainha continuou até todos se abraçarem nos degraus do adro em frente ao Cruzeiro de granito, comemorativo e recordante de Guerras, é claro, da Independência e Restauração, ali colocado em 1940.
Sentaram-se e descansaram um pouco as cordas vocais. Fez-se por momentos, silêncio apenas perturbado pelo ralhar da ti Marilopes contra aquela canalha toda.
Joaquim acabou de dar a ração às mulas. Saindo pelo portal grande do cabanão, ao passar pelo chafariz, deu uma lavadela nas mãos e tirando o lenço das calças de bombazina castanha, as foi limpando, dirigindo-se para a vereda que dava acesso ao caminho mais curto para casa. Bamboleante na sua maneira pesada de andar, olhou em frente e parou. Firmou bem a vista e confirmou:
– Uns sapatos! Malandragem!
Andaram aqui toda a tarde e nem se lembraram dos sapatos. Pegou neles, chegou a casa e gritou à entrada:
– Marizabel!
– Que queres, homem?
Respondeu-lhe a esposa.
–Toma lá!
Entregando os sapatos á mulher, sentou-se à chaminé, um sorriso malandro surgiu-lhe no rosto. Deve andar algum à rasca a saber deles, pensou consigo. Torreca tinha a quem sair!
Maria Isabel mirou os sapatos e reconheceu-os imediatamente. Desceu a rua cem metros e, ao chegar à casa de fachada azul e porta castanha, abriu o postigo e chamou:
– Chica! Ó prima Chica!
– Já vou! – respondeu Francisca do fundo do quintal, pedindo desculpa a Ti Catrina, pela interrupção da conversa.
Quando se aproximou da porta de entrada, Maria Isabel estendeu o braço pelo postigo mostrando os sapatos, e disse:
– Olha, toma lá que devem ser do teu, foi o meu Jaquim que os encontrou na "êra."
– Pois são, prima Marizabel! Deixa estar que ele vai levar uma sova!... Mas deixa-o andar , ele há-de aparecer descalço!
Abandonando os degraus do adro, Calças de Palanco correu até à fonte e molhou o dedo que agora lhe ardia com intensidade. Imediatamente lembrou-se dos sapatos e, numa corrida louca, voltou à eira. Os ditos cujos tinham ficado a servir de poste da baliza, mas… de sapatos nada, tinham-se evaporado!...
Já estava a ficar desorientado, quando de repente olhou para as eiras de baixo, e viu o acampamento de ciganos.
– Foram eles!
Tinha de ser! Tudo o que aparecia e acontecia de mau, era obra de ciganos, não era?!. .. A cabeça de Calças de Palanco entrou em confusão. Porquê? Mas há coisas que aparecem feitas e não são eles?,,,
Tão estranho!.... E voltou a aflição dos sapatos:
– Como posso entrar?
Os ciganos? Não era má ideia. Mas... e se não tivessem sido eles!? Com a cabeça ardendo em louca confusão voltou ao Rossio. Sorrateiro, foi até ao pinheiro mais próximo de casa, esperou uns momentos para se certificar que a porta estava aberta e que ninguém se encontraria na sala de fora. Mal calculado! Assim que pôs os pés descalços em casa, aparecendo milagrosamente, dona Francisca gritou:
– Descalço? Então os sapatos!?
A cabeça de Calças de Palanco ficou como se lhe tivesse caído em cima um calhau do tamanho do sino da igreja. Os ombros mirraram-se-lhe num encolher ignorante, mais parecendo frango acabado de depenar. Um "glu glu" saiu-lhe da garganta como engasgamento de migalha no goto.
– Ai meu Deus! Como tens o pé filho! – pronunciou Francisca, ao verificar o dedo do pé de seu filho.
Oh! divina topada na pedra em vez da bola! Oh bom Deus que fizeste o milagre de plantares pedras na eira!. .. Estava assim salvo! Os sapatos passaram à história. A grande prioridade era tratar daquele dedo. Que alívio, que sorte!
Calças de Palanco cantou de novo interiormente:
– Não quero trabalhar, porque eu não quero!
Dona Francisca pôs no chão os sapatos que mantinha escondidos no avental, e foi procurar mercurocromo para tratar do pé de seu filho, esquecendo a sova que tinha para lhe dar. O pensamento de
Calças de Palanco voou para as eiras de baixo e saiu-lhe:
– E os ciganos?
– Quais ciganos, filho?
Calou-se, viu que tinha sido injusto. Era verdade. Nem tudo era obra dos ciganos. Mais tarde compreenderia a perseguição que os seres humanos se movem uns aos outros como bárbaros. Compreenderia melhor quando seu pai lhe contou as atrocidades da guerra de Espanha por ele presenciadas. Ainda hoje, a visão do momento e palavras se mantêm intactas nos olhos, cérebro e ouvidos de
Calças de Palanco.
Subiam os dois a estrada que dava acesso ao Monte do Lago, lá bem em cima no alto onde funcionava a queijaria. Cá em baixo, encoberto pelos silvados, choupos e salgueiros, corria o fio de água da ribeira das Espadas. Os contornos do Forte da Graça bem definidos, com um céu azul aveludado como pano de fundo, forneciam uma tela de beleza extraordinária. Já quase no cimo junto ao Monte, António parou! Passou docemente a mão pela cabeça do miúdo e disse:
– Olha filho, a besta humana é capaz de tudo!
– Vi-os! Mãos amarradas com arames em torniquete!
– Desses dos fardos, pai?
– Sim, filho, desses com que vocês fazem carrinhos para brincar.
– Homens e mulheres, até crianças como tu, mãos amarradas atrás das costas,
direitos à praça de touros de Badajoz. (**)
António dizia isto e os olhos húmidos transmitiam a realidade do passado, agora bem presente. A metralha martelava-lhe a cabeça. A Ribeira das Espadas e os seus silvados, onde escondidos, lhe distribuía as “perrumas” (pão de farelo cozido para cães), pequena dádiva por vezes para tanta gente. Uma atrevida e sentida lágrima rolou por aquele rosto seco, tisnado pelo sol.
O pensamento de António regrediu no sofrimento e na dor. E Soledade!?... Seria viva?... E se estivesse grávida, como desconfiava!? Fizeram amor por gosto, em emaranhados de angústia.
Mais tarde, já homem,
Calças de Palanco sonhou uma noite que tinha um irmão, chamado António, do outro lado da fronteira.
Voltando aos sapatos! Foram os ciganos perdoados, mas não só, a partir dessa data a maneira de pensar do puto mudou radicalmente. Prometeu a si próprio que havia de falar com ciganos, tendeiros e malteses.
Malteses!... Gostava de ser maltês. Deveria ser bom, sem ter ninguém a mandar e andar por montes e vales!... Ser dono dos dias e das noites, de estradas e caminhos. Que bom!...
Não seria maltês! Mas na Guiné, o seu grupo de combate seriam "Os Vagabundos" e ele próprio "O vagabundo", como que fruto de se ter armado em herói e em maluco quando andou a aprender a matar nos “Rangers”, em Lamego. Saberemos mais tarde coisas tristes desta louca história.
O tempo voava, corcel alado, eternidade para os putos, cegos na ânsia de se tomarem gandulos. Seria tarde já, quando compreenderiam que aqueles eram os tempos mais puros e belos da sua existência.
Era vê-los nos invernos: pés descalços, mãos e, por vezes, até as orelhas sangrando cheias de frieiras, por causa daquele vento leste, frio, trespassante que varre a Planície. Sem desistirem, na terra barrenta em água gelada. Aí brincavam descobrindo as suas nascentes, dando asas à sua extraordinária engenharia, construindo barragens, albufeiras e rios.
Aos invernos seguiam-se os "pós de Maio" que os livrava das frieiras e lhes dava azo a iniciarem-se como predadores armando laços nos ninhos às "pardalas" e tentando meter em gaiola (prisão) quem nasceu com asas livre para sulcar os céus.
Seguindo o ciclo da mãe natureza, viria o Verão com a sua canícula. A Planície, transformada em braseiro, obrigava à procura de uma sombra amiga. Divergiam então os putos da engenharia civil para a mecânica agrícola e outras da sua universidade imaginativa. Tudo servia para construção das suas fabulosas máquinas. À sombra dos pinheiros do Rossio, o arame, matéria-prima mais utilizada e roubada aos fardos de palha ou de enfardadeiras existentes nas proximidades, era trabalhado por hábeis mãos, de onde saíam os mais maravilhosos brinquedos. Mulas, bois, arados e charruas, tractores e respectivos atrelados, fazia-se tudo. A criação inventiva levava a tudo aproveitar: latas de conserva para atrelados e comboios; as latas de graxa dos sapatos davam para rodas, telefones e outros engenhos; a cortiça para carroças, rodas e barcos. O Rossio transformava-se num Instituto Superior de Sabedoria. Brincava-se ruidosamente até se ter a certeza que toda gente dormia a sesta.
Esse seria o momento de lançar o golpe dos putos, uma escapadela até à Ribeira Velha para dar uns mergulhos no pego Salgueiro. Isto se o Sombra Negra não andasse por perto, pois, caso contrário, lá teria a malta de enrolar a trouxa debaixo do braço e todos nus, fugirem como setas pelo eucaliptal direito à nora ou ribeira acima até à ponte, conforme ele aparecesse e não fosse o gajo soltar o “Alsácia Andaluz”.
No Rossio a ciência tomava-se livre. Era a pura liberdade! Liberdade?!... Quem falou nisso? Risco azul imediato sobre essa palavra. A palavra liberdade nem lhes era comunicada, não fossem mais tarde fazerem uso dela e trazer perigo para a Ordem e Progresso do (velho) Estado Novo. Era uma causa gravíssima, esta da Liberdade, constando-se até que tal palavra não era conhecida pela própria Guarda Republicana, por não constar nos dicionários existentes nos respectivos Postos.
Puto, mas gostando de ouvir o que as pessoas mais velhas diziam,
Calças de Palanco ouviu um dia comentar ao tio Catorze aquele caso bastante falado de proibirem as mulheres de cantar quando, madrugada bem escura, seguiam para as ceifas. E foi triste este verdadeiro acontecimento!...
Madrugada fora, as manageiras de porta em porta, iam chamando o pessoal. Batida na porta e a normal pergunta e resposta:
– Quinita? Sim! Vá, rapariga, vamos lá!...
Alzira, Amélia, Catrina, Antónia, Felizbela, Chica Rosa, Elvirica, etc. etc etc. Assim, sucessivamente, Chica ou Cipriana ou outras, todas as madrugadas funcionavam como despertadores humanos, até se ter o rancho todo avisado, e que começava a juntar-se à esquina do Vinagre ou da Requêta ou outro local, conforme fosse o destino.
Como seria este sistema doloroso aliviado? Como?
– Olha, mulheres, vamos mas é cantar!
Rouxinóis da madrugada. Elvirica, voz certinha e bem timbrada, dava o tom e todo o rancho começava a subir a ladeira cantando as "Saias":
“Mesmo agora aqui cheguei,
Mais cedo não pude vir,
Ainda cheguei a horas
Da tua linda voz ouvir.
Oh, lua não dês luar
Na campa da minha amada,
Não vá ela acordar
Na sua triste morada.
Adeus, ó Vila Fernando,
Colónia Correccional,
Prenderam o meu amor
C'uma fita cardinal."
Nunca ficou definido o sentido deste último verso. Alguns diziam por ser da fita cardinal, que era de cor vermelha; outros opinavam ser por incomodar uma excelência que passava as manhãs na cama. O certo é que um dia, ainda madrugada, o cabo e uma praça da Guarda Republicana interromperam a alegria daquelas mulheres escravas, cujo crime era única e simplesmente cantar para suas tristezas afastar.
– Ficam avisadas que daqui p'rá frente acabou a cantoria, e não há mais avisos, senão for com multa, vai com prisão.
Palavras certas as do tio Catorze a bailarem na cabeça de
Calças de Palanco:
– É um crime! Até o canto tiram ao Povo!
– E o padre?
Nestes assuntos não se metia ele! Falaremos ainda do padre e dos problemas existentes, à sua volta, com os putos, gandulos e não só.
Quando Abril abriu, da terra prenhe deste Alentejo brotaram as mais lindas e belas cantigas. Mulheres e homens alentejanos voltaram a sentir a força da sua terra, cantando-a. Vitorino, Janita, Paco, "Oh, Elvas, Oh, Elvas". Quantas vezes me cruzei e falei desta bela cidade com meu irmão Picolo!
Havia agitação nos putos. D. Maria Alice aos rapazes e D. Maria Amélia às raparigas, já tinham avisado a data das provas de passagem e dos exames. Estes seriam na Direcção Escolar na sede do Concelho. Haveria explicações extras para as provas de admissão dos que continuassem a estudar. Grandes senhoras estas, que bem souberam fazer a esta terra!... Graças a elas muitos miúdos de então virão a ser homens e mulheres de muito saber. A outras, ou outros que, antes ou depois delas, tiveram o mesmo comportamento, o meu agradecimento pela sua obra e desculpa por os não nomear, apenas por desconhecimento.
Como ia dizendo, os putos da agitação passaram às dores de barriga dos exames. Estava prestes a primeira separação, tendo só o tempo suficiente para, sentados nas pedras à sombra da mimosa na esquina da Requêta, ouvir as histórias do ti Russo.
Pequeno, cabelo aloirado (daí a alcunha). olho azul, um já coberto de névoa catarata que não definia a cor, ar ladino, grande contador de histórias e “cascarrilhos”, lá ia desfiando o que a malta mais gostava.
Na sua voz calma começava então:
–Naquele dia o Arronches ia a atravessar a ribeira quando lhe apareceu o diabo.
– Pára lá!
Disse o diabo ao Arronches.
– Só passas se me deres um cigarro dos fortes!
O Arronches era homem sem medo! Ia dizendo, olhando e mirando com ar maroto, a reacção dos putos. Mas o diabo sempre era o diabo! Lembrou-se então o Arronches que levava a espingarda e gritou para o diabo:
– Ó diabo, abre lá a boca!
O diabo abriu a boca, o Arronches puxou da escopeta, dedo no gatilho, e pum! Uma chumbada em cheio na boca do diabo!
Com a sua calma habitual o ti Russo continuava:
– O diabo engoliu o chumbo, deu um arroto, deitou uma fumarada pelas ventas e disse: "Ó Arronches podes passar, este é do forte, é do bom!!"
Assim passava as horas o velhote, contando histórias, mudando o tema conforme a reacção provocada nos putos. Seguia-se a do Ti Cagaporras, no tempo em que os homens se procuravam como os bois para lutar. Depois lá vinha mais uma de bruxas e lobisomens, etc. etc. etc...
Passaram as férias, as últimas da instrução primária. Para alguns, o tempo de criança acabaria aqui, pois rumariam para os campos onde já buliam irmãos e pais. Outros, mais afortunados, bafejados pela sorte e sacrifício dos pais, continuariam tentando subir mais um degrau na vida.
Calças de Palanco rumou à cidade onde encetou nova etapa, agora na companhia de seus primos irmãos Auta, Picolo e Marquês. Aos fins-de-semana regressava à sua aldeia para a companhia de seus pais e irmãs Adelaide e Amália.
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 10 de janeiro de 2016 >
Guiné 63/74 - P15603: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - Parte I: capa, dedicatória, introdução e prefácio (, este com a assinatura de António Graça de Abreu)
(**) Vd. Fundação Mário Soares > Guerra Civil de Espanha >
Mário Neves e a guerra civil de Espanha > A chacina de Badajoz
(...) Quando Mário Neves [, 1912-1999], com apenas 24 anos, e ainda estudante de Direito, foi incumbido da sua primeira e derradeira prova como repórter do
Diário de Lisboa, nunca iria imaginar as repercussões internacionais que iria ter o seu testemunho da tomada violenta de Badajoz por parte das tropas nacionalistas. (...)
(...) A “Matança de Badajoz” foi presenciada em primeira mão por três jornalistas: Reynolds Packard, da
United Press, Jacques Berthet, do
Temps, acompanhados por Mário Neves. Estes jornalistas, e mais tarde Jay Allen, correspondente do
Chicago Tribune, foram os primeiros a denunciar a violência e a “inflexível justiça militar” realizada pelo Exército de África, comandado pelo tenente-coronel Yagüe. (...)