sexta-feira, 14 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25638: Manuscrito(s) (Luís Graça) (251): Pequenas histórias da História com H grande (I): Thomaz de Mello Breyner (1866-1933): diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07), que de manhã via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica no seu consultório privado da rua do Ouro



O atentado de 1 de fevereiro de 1908, na página 0169 da Ilustração Portuguesa, de 10 de fevereiro de 1908

https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/1908/N103/N103_item1/P3.html


Ilustração Portuguesa, edição semanal do jornal "O Século", 2ª série, nº 103, Lisboa, 10 de fevereiro de 1908.  

Diretor: Carlos Malheiro Dias. Propriedade: J.J. da Silva Graça. Diretor artístico: Francisco Teixeira. Assinatura anual (Portugal, colónias e Espanha): 4$800.

Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa | Câmara Municipal de Lisbia


 


Lisboa > Hospitais Civis de Lisboa > Hospital do Desterro > 1922 > Tomás de Melo Breyner, diretor de serviço, com assistentes  e estudantes.  Durante anos, organizou cursos de venereologia para os alunos do 4.º e 5.º anos de medicina.  Em 19121, tinha sido aprovado em concurso para professor da cadeira de Sifologia, da Faculdade de Meficina da Universidade de Lisboas. Na foto, é o segundo a contar da direita.   Imagem do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 

Fonte: In  "Saúde", volume nº 29, da autoria de Luís Graça, coleção "Memória de Portugal: 2 séculos de fotografia"  (Lisboa, Atlântico Press, 2020, p.15) (*)



Diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07),  que de manhã  via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica  no seu consultório privado da rua do Ouro 


1. Thomaz de Mello Breyner 
(1866-1933) 

Thomaz de Mello Breyner
Cortesia do portal
Geneall,net



Era uma figura conhecida (e estimada) nos meios da política, da sociedade e da medicina do princípio do Séc. XX.  Neto e filho de militares, nasceu no castelo de S. Jorge, quartel do Batalhão de Caçadores 5, de que o pai, coronel, o 2º conde de Mafra, era o comandante (sendo comandantes honorários os reis de Portugal, desde D. Pedro IV).

Foi sempre católico e monárquica mas liberal, o que não impedirá de, na vigência da República, de ser um antirrepublicano, de alma e coração, numa época em que muitos dos serus colegas médicos eram republicanos. 

Conviveu desde cedo com a  família real, a começar pelos príncipes Carlos e Afonso, de quem foi colega de brincadeiras.  Por razões de saúde, e por ser um menino muito protegido pelos pais, começou a estudar tardiamente, primeiro no  Colégio Académico Lisbonense e depois  na Escola Politécnica.  Fez o curso de medicina na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, no Campo de Santana. Foi interno dos hospitais nos últimos anos do curso, acabando por fazer a sua carreira no Hospital de São e no Hospital do Desterro. É um dos pioneiros da dermatologia e da venerologia em Portugal, e um dos rostos da luta contra a sífilis.

Especializou-se em França, tendo concorrido em 1893 a médico do hospital de S. José.  Em 1897, ano do início do seu diário, vemo-lo diretor da consulta das “moléstias vergonhosas” (doenças sexualmente transmissíveis). Em 1906, passa para o Hospital do Desterro, ficando a dirigir  da Enfermaria de Santa Maria Madalena, onde iam parar as  "toleradas",  nome eufemístico para as prostitutas da cidade (que tinham de estar "cadastradas" na polícia e que eram sujeitas a inspeção sanitária periódica).

Nesse mesmo ano de 1897 é nomeado médico da real câmara por D. Carlos I e nessas funções acompanhou a rainha D. Amélia a Paris (em 1894), e a rainha viúva D. Maria Pia a Itália (em 1901). Vai-se ,manter no cargo até ao fim da monarquia.

Ainda em 1897 foi ao c
ongresso sobre peste bubónica que se realizou em Veneza, acompanhando  o seu mestre, o dr. Sousa Martins ( 1843-1897).  

Em 1903 irá representar Portugal no Congresso Internacional de Medicina de Madrid.  Em 1906, é  eleito secretário da comissão executiva desse mesmo  congresso , que se irá realizar em Lisboa, e que foi um sucessso, do ponto de vista organizativo, social e científico, devido muito ao mérito do Miguel Bombarda (1851-1910).

Na legislatura de 1906-1907, vamos encontrá-lo como deputado e  director de serviço clínico no Hospital do Desterro (enfermaria de Santa Maria Madalena). Em 1894 tinha casado com Sofia Burnay, filha mais nova dos 1ºs condes de Burnay,  tendo tido nove filhos.

 É, todavia, mais conhecido hoje  pelas suas “Memórias” (2 volumes), publicadas na década de 1930, bem como pelo seu monumental diário, excecional na nossa literatura memorialística: abarca um período de 36 anos, de 1 de janeiro de 1897 a 21 de outubro de 1933 (!). 

Na sua grossa agenda, anotava, compulsiva, disciplinada, metodicamente,  dia a dia, em estilo telegráfico, os "fait-divers" da sua vida pessoal, familiar, social, política e profissional,  tornando-se assim uma fonte riquíssima para estudar o quotidiano da sociedade portuguesa (e em particular lisboeta) de um largo período de tempo, que vai do final da monarquia até ao início do Estado Novo, passando pela República (1910-1926) e a Ditadura Militar (1926-1933).

Parte desse diário, manuscrito, foi  transcrito, anotado e publicado pelo seu neto, Gustavo de Mello Breyner Andresen (1923-2006),  em edição de autor, sob o título “Diário de um Monárquico” (abarcando os anos de 1902 a 1913). A Fundação Eng. António de Almeida fez uma edição em 3 volumes  (Porto, 2003). Um dos volumes que li com curiosidade e agrado abarca os anos de 1905-1907 (**), ou sejam, os últimos três anos da  Belle Époque portuguesa.  O reinado de Dom Carlos I acaba tragicamente, em 1 de fevereiro de 1908, com o regicidio.

De facto, nesse dia, de regresso da família real, vinda de Vila Viços, a monarquia portuguesa é ferida de morte: O rei D. Carlos (1863-1908) e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe  (1887-1908) são assassinados à esquina da Praça do Comércio com a Rua do Arsenal.

Thomaz de Mello Breyner, futuro 4º conde de Mafra (título outorgado por D. Manuel, já no exílio), médico da corte e amigo íntimo da família real , já por diversas vezes tinha manifestado a sua preocupação sobre o futuro da Pátria e da dinastia de Bragança:

  • "Onde está o meu Rei estou eu, sobretudo agora em tempo quase de guerra", escrevia ele a 8 de Dezembro de 1907 (Breyner, 2003. 344).
No final desse ano, anotava no seu diário:
  • "Acaba-se hoje um ano que não me deixa as menores saudades. Praza a Deus que o próximo seja melhor. Saúde para os meus, para o rei e para a Pátria é que se deseja e também para o João Franco" (31 de Dezembro de 1907).

Estava longe de imaginar que, dentro de um mês, estaria a chorar a perda dos seus queridos Rei e Príncipe Real e a embalsamar os seus corpos. Do seu Rei dirá:

  • "Que bom amigo e que bom homem! Era digno de melhor sorte. E de melhor Pátria!..." (30 de Dezembro de 1907).

É, de resto, um cidadão e português também minimamente atento ao (e preocupado com o) que se passa na cena internacional, e treme pelas coroas europeias:

  • "Há terríveis notícias de uma revolução na Rússia" (23 de Janeiro de 1905);
  • "Quando estava no quarto de El-Rei antes do jantar recebeu ele um telegrama dizendo que em Madrid foi esta manhã lançada uma bomba sobre o coche onde o rei Afonso XIII e a Rainha Vitória vinham, tendo acabado de casar. Os Reis ficaram ilesos, mas morreu muita gente à roda. São os anarquistas em acção. Ao nosso Príncipe Real nada aconteceu" (31 de Maio de 1906).

Relutante em meter-se na política, Mello Breyner não hesita, todavia, em apoiar o João Franco, indigitado por El-rei para formar governo (19 de Maio de 1906). Dias depois vai a casa de João Franco (1855-1929), líder do partido Regenerador Liberal (também conhecido como  "partido franquista"), entregar a sua "influência em Mafra" (sic), onde está garantido o apoio da "saloiada" (sic). Fica assim "ligado ao homem em que tenho confiança". A justificação é simples:

  • "Sou português e sou pai de filhos, por isso quero que a Pátria se endireite" (29 de Maio de 1906).

Mas um ano antes rejeitava a ideia dos seus apoiantes de Mafra para se envolver na política, citando o seu mestre Sousa Martins:

  • "A política é uma marafona com quem nunca tive nem desejo ter relações" (10 de Fevereiro de 1905).

A sua carreira política será, todavia, modesta e discreta: o João Franco resolveu fazer dele deputado e encarregá-lo da "reorganização do serviço de meretrizes" (sic) (19 de Junho de 1906). E de facto caber-lhe-á a criação do serviço de dermatologia e doenças venéreas no Hospital do Desterro.


Vai desportivamente, uma vez por outra, à Câmara dos Deputados, da parte da tarde. Em Vernet-les-Bains, nos Pirinéus franceses, onde o sogro tem interesses imobiliários, e onde a família faz férias de Outono-Inverno, escreve o nosso deputado absentista:

  • "Pelos jornais vejo que houve no dia 20 sessão tumultuosa na Câmara dos Deputados, sendo postos fora pela força armada os deputados republicanos Afonso Costa e Alexandre Braga. Parece-me que o João Franco precisa começar a dar porrada rija" (23 de Novembro de 1906).

A "porrada rija" de João Franco acabou mal, acabou numa curta ditadura (a partir de maio de 1907) e na tragédia do regicídio.

 É contudo um patriota e um leal monárquico. Estando em Madrid, no dia 1 de Dezembro de 1906, tem este pensamento:

  • "Amanheceu o dia puro e alegre como em Lisboa em 1640" (Madrid, 1 de Dezembro de 1906).

Curiosamente, esta frase faz-nos lembrar o poema da sua neta Sophia sobre o 25 de Abril de 1974, quase sete décadas depois:

  • "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo" (In: Sophia de Mello Breyner Andresen, ‘O Nome das Coisas’, 1977).

Mas o avô materno da grande poeta que foi a Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), era também um reputado e popular médico que fez carreira nos hospitais civis de Lisboa  (designação de 1914, eram até então Hospital de São José e Anexos)  e que privou com os maiores vultos da medicina de então, tendo inclusive sido docente da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, a mesma que depois, anos mais tarde, em 1911, será transformada em Faculdade de Medicina, integrada na Universidade de Lisboa.

Tomaz de Mello Breyner era casado com uma das filhas do homem mais rico de Portugal, o banqueiro Henrique de Burnay, Conde de Burnay (1838-1909), o homem forte da Companhia dos Tabacos. 

Era um extremoso pai de nove crianças e um homem afável, além de amigo do seu amigo. com amigos em todas as classes socais.

São algumas das notas do seu diário, incluindo os seus interessantes obituários, que nos permitem conhecer hoje, um pouco melhor, a prática da medicina, quer hospitalar quer privada, daquela época, tendo como pano de fundo a conturbada vida política da época, bem como a morbimortalidade que atingia as pessoas do seu círculo de relações (família, criados, amigos, colegas).

Thomaz de Mello Breyner mostrava ser um homem de hábitos, disciplinado, obsessivo com as horas. E com o tempo (e as suas variações) (***): 

Levantava-se cedo e, quando não dormia no Paço das Necessidades (então residência oficial da família real), saía da sua casa, na Junqueira, em Lisboa (sendo portanto vizinho dos seus sogros, que moravam no Palácio Burnay, sito no nº 86 da Rua da Junqueira, edifício hoje classificado como imóvel de interesse público, juntamente com os seus anexos e jardim), e ia directamente para o Hospital do Desterro, por volta das 7 horas, conduzindo ele próprio, muitas vezes, o seu automóvel, o que para os médicos da época era ainda um verdadeiro luxo!

No Hospital do Desterro, o dr. Thomaz Mello Breyner não deveria trabalhar mais do que duas a três horas (o que não o impedia de lá ir aos fins de semana). Para os médicos, em geral, o hospital ainda era um local de passagem, mas fundamental para a sua formação clínica.  Vemo-lo a sair por volta das 10h. Almoçava em casa ou nalgum hotel da Baixa. Da 13 às 15h (ou das 14 às 16h) estava, habitualmente, no seu consultório, na Rua do Ouro, 292-1º, que partilhava com o seu colega e sócio Agostinho Tavares (20 de Maio de 1906).

Noutras vezes sai directamente, de casa ou do Paço, para "ver os meus doentes" (22 de Janeiro de 1905). À noite, também sai, quando é chamado, para ver doentes:

  •  "À noite ainda fui ver um doente ao Hotel Porto" ( 10 de Fevereiro de 1905).

Não há uma única referência aos honorários que deveria receber da sua actividade privada. Mas sabemos que trabalhava muitas vezes "pro bono".

Embora pertencesse ao high life e ao mundo snob que era retratado pelo Diário Ilustrado, "o mais lido dos jornais do Partido Regenerador-Liberal, (...) o órgão da boa sociedade, preenchido por notícias da corte, de partidas e chegadas, de aniversários, soirées, recepções, nascimentos e casamentos" (Ramos, 1994. 274), Tomaz de Mello Breyner revela-se sobretudo um atento e sensível pai de família que procura ter tempo para os seus, sempre que as suas obrigações principais (médico da corte, juntamente com o seu colega de hospital, o cirurgião Artur Ravara, por exemplo) o permite:

  • "Fui de manhã no automóvel levar os pequenos ao colégio" [ em Campolide ] (3 de Julho de 1905);
  • "De tarde tive ao pé as minhas queridas filhas Maria e Teresa que continuam muito sarampadas" (21 de Fevereiro de 1905).
Vai a festas e outras reuniões sociais mas parece não morrer de amores por São Carlos:

  • "Hoje há récita de gala em S. Carlos, onde não fui por falta de pachorra" (23 de Março de 1905).
Em contrapartida, parece ser um admirador (acrítico) do talento do seu sogro para fazer negócios e lidar com os políticos:

  • "Hoje foi assinado o contrato entre o Governo Português e um grupo de banqueiros ligado à Companhia de Tabacos. É para a conversão e para exclusivo do fabrico de tabacos. É mais um triunfo para o meu sogro que deu nesta questão um golpe de mestre" (4 de Abril de 1905).

Recorde-se que o sogro, Conde de Burnay, era o todo-poderoso presidente do Conselho de Administração da Companhia de Tabacos, não admirando por isso que o genro fizesse parte do respectivo Conselho Fiscal (desde 1903 a 1933) (Mónica, 1992. 119-122).



Exemplo do diário que Thomaz de Mello Breyner manteve entre 1 de janeiro de 1897 e 21 de outubro de 1933. Esta cópia corresponde ao domingo, 2, e à segunda feira, 3, de outubro de 1910, na véspera do 5 de outubro (!)... 

Estava com a família no Paço de Mafra (onde ia com alguma frequência, com ou sem o rei e a família real)... Note-se que ele costumava fazer recortes de jornal que colava na agenda, como esta do Prof  Fulgence Raymond (1844-1910), professor dneurologia, sucessor da cátedra do famoso Charcot no Hospital da Salpêtrière, no período de 1894 a 1910. 

 Escreve ele:

" Morreu no passado dia 29 em Poitiers o professor de medicina Ful
gence Raymond que substituiu Charcot e que sempre foi muito amável comigo. R. I. P.  Vi-o em Paris em junho de 1909. Convidou-me a jantar" (Paço de Mafra, domingo, 2 de outubro de 1910).

E a segunda feira, dia 3, anotou: 

"Paço de Mafra: levantei-me cedíssimo, às 4 1/2 estava de pé. Os rapazes foram logo para a tapada até às 10. (...) De tarde fui aos terraços altos com a  Carol, Mary, Luz e o Evaristo. Tarde de ventania, mas bonita. Cansei-me deveras no passeio. Não ando bom; ando sobretudo preocupado com a política do país. Estamos com a certeza clara de vésperas (?)  de graves acontecimentos. No sábado em Lisboa tive más notícias pela minha gente do Hospital".

Fonte: Arquivo Nacional da Torre Do Tombo. Cortesia de Expresso > Sociedade > "um cronista invulgar: O diário escrito por Thomaz de Mello Breyner, nascido há 150 anos, faz um relato vivo e colorido dos últimos dias da monarquia, da I República e dos começos do Estado Novo". Artigo de Margarida de Magalhães Ramalho. Expresso, 11 de setembro de  2016 20:00 (****)

Algumas das últimas fotos do rei Dom Carlos e do príncipe herdeiro Luís Felipe, na sua herdade de Vila Viçosa, em traje de caça. A família real (incluindo D. Manuel) passou quase todo o mês de janeiro em Vila Viçosa, "realizando-se diversas caças na Tapada real. A pitoresca vila alenteja, antuga corte da sereníssim, casa e estado de Bragnça tem apresentado, por esse motivo, uma desausada animação"  (...). 

Uma estadia demorada que a "Ilustração Portuguesa" teve o privilégio de documentar "com alguns clichés de El-Rei e do Príncipe herdeiro", também eles bons fotógrafos (pág. 160), além do grande fotojornalista Joshua Benoliel que os acompanhava por toda a parte.

Ao que parece, o Thomaz de Mello Breyner, contrariamente aos gostos aristocráticos da época, não apreciava a caça nem os touros de morte...

Fonte: Ilustração Portuguesa, 2ª série, nº  102, Lisboa, 3 de fevereiro de 1908,  pp. 155-160



2. Uma medicina privada para os ricos e uma medicina hospitalar para os pobres


Médico hospitalar, especializado em França em doenças sexualmente transmissíveis, fazia medicina privada, como todos os médicos do seu tempo, para uma clientela rica (ou com posses). 

Mas o o seu consultório, situado na Baixa Lisboeta, então uma zona chique, também é usado na sua vida social. E provavelmente também como "tertúlia".  Tomás de Mello Breyner é fluente em inglês, além do francês, e amigo de escritores como John dos Passos (que está de passagem em Lisboa a 24 de Maio de 1905). Frequentemente é solicitado para servir de intérprete e até de fazer de relações públicas da corte.

Eis alguns excertos do seu diário, que apoiam a tese segundo a qual se podia falar na época, e até tarde, de uma medicina privada para as classes possidentes e uma medicina hospitalar para os pobres:

  • "Recebi [no consultório] a visita de Mr. Drexel, o milionário americano que há dias aqui chegou no seu iate" (23 de Maio de 1905);
  • Tive a visita do grande Guerra Junqueiro que foi mostrar-me um herpes loster que este tem há muito tempo" (26 de Junho de 1905);
  • "Fui depois a Cacilhas ver a mulher de um inglês chamado Symington" [presumivelmente ligado à indústria corticeira] (17 de Março de 1906);
  • "De manhã Hospital e às 11h. fui operar uma 'cocotte' espanhola à Rua do Grémio Lusitano" (23 de Março de 1906);
  • "De 1 às 3h. Consultório. Antes de vir para aqui [ Paço da Pena, Sintra] fui à avenida [ da Liberdade ] ver a minha doente D. Milagro Angulo que me deu um anel com 3 brilhantes para a minha filha Maria Amélia " (18 de Setembro de 1906);
  • "Fui depois com o [querido mestre Édouard ] Brissaud [ que estava em Lisboa por ocasião do XV Congresso Internacional de Medicina] ver o sr. Maia na avenida [da Liberdade], um brasileiro onde estava a Marbel Ellerton" (25 de Abril de 1906).

A partir de 30 de Junho de 1906, deixava o seu consultório na Rua do Ouro em virtude de o senhorio ter aumentado em 100 mil réis a renda anual. (A assinatura anual da "Ilustração Portuguesa" custava, nesse tempo, 4$800.) 

Mudou-se então para a Rua do Corpo Santo, 13-2º, "mas por enquanto dou a minha consulta aqui em casa [ na Junqueira ], das 2 às 4h. p.m." (30 de Junho de 1906).


3. A morbimortalidade do princípio do Séc. XX


Também há notas sobre a saúde pessoal do autor, dos seus familiares e das demais pessoas das suas relações:

  • Por exemplo, em 14 de Janeiro de 1905, o autor está muito "grippado" (sic) pelo que não saiu de casa;
  • No dia seguinte já estava "um pouco melhor (...) da constipação";
  • Típica frase de um médico, que é hipocondríaco e que lida mal com a doença que o atinge, a si e aos seus:"Não tenho tempo para estar doente";
  • A 17 é uma sobrinha que está convalescente do sarampo;
  • A 11 de Fevereiro os dois príncipes estão também com sarampo.
  • Quando chega a casa, de tarde, vai ver os pequenos, "mas de longe", com "medo de lhes levar o sarampo" (15 de Fevereiro de 1905);
  • A 4 de Fevereiro, vai de manhã a casa do criado Fernandinho (do Paço) que adoecera com um "bronchopneumonia" (sic).

As pessoas (mesmo as da classe alta) morrem cedo, e sobretudo de tuberculose e de outras doenças (a escarlatina, a difteria ou a febre tifóide) que hoje deixaram de ter grande peso na morbimortalidade da população portuguesa. (O próprio autor provem de uma família que já tinha perdido duas fillhas, por difteria,  antes de ele nascer.)

São frequentes, no seu diário, as notícias da morte de parentes,  amigos e conhecidos :

  • Henrique Stegner, professor de alemão, com 66 anos, de "lesão cardíaca" (8 de Fevereiro de 1905);
  • "Morreu esta manhã com 3 1/2 anos a filha mais velha dos Condes de S. Lourenço, neta dos Condes de Sabugosa. Era uma encantadora criança que uma escarlatina matou em 3 dias" (18 de Junho de 1905);
  • " Morreu ontem o Alfredo Casais com quem brinquei na minha infância (...). Era filho de uma criada inglesa (...). Tinha a minha idade. Era bom rapaz. (...) Foi uma vítima do vinho barato" (21 de Outubro de 1905);
  • "Morreu esta madrugada (...), vítima da tuberculose pulmonar, o meu primo e amigo Conde de Óbidos, (...) meirinho-mor do Reino, oficial-mor da Casa Real, Par do Reino e 2º tenente da Armada Real. Tinha (...) 31 anos (...) Pobre Pedro!, foi uma vítima do muito que subiu na alta roda. Em 2 anos morreram a mãe dele, Condessa do Sabugal, e na Suiça os dois irmãos Manuel e Luís, todos tuberculosos" (12 de Dezembro de 1905)";
  • (...) Morreu tísico em casa de seu pai na Rua de S. Domingos à Lapa o Conde de Arnoso (João), 2º tenente da Armada Real. Era um oficial distinto, um bom rapaz e um bom amigo" (6 de Junho de 1906);
  • "Morreu ontem com uma febre tifóide o meu colega e amigo Dr. Sebastião Ramos Chaves, filho do meu mestre de inglês Manuel Ramos Chaves. Tinha 34 anos" (21 de Dezembro de 1906);
  • "Morreu esta manhã quase repentinamente com um ataque de angina de peito, na sua casa (...) o Conselheiro João Ferraz de Macedo, lente de clínica médica na Escola Médica e Director Geral da Saúde Pública" (3 de Janeiro de 1907);
  • "[Fui] ao enterro do meu colega e amigo Dr. Virgílio Baptista, que morreu ontem ao meio dia, vitimado aos 33 anos por uma febre tifóide. Era rico, feliz, amável e trabalhador" (21 de Novembro de 1907);
  • "À tarde fui com o Jorge Cid ao Lumiar ver o Conde de Óbidos que está cada vez pior: último grau da tísica pulmonar" (16 de Agosto de 1905);
  • "Fui de manhã a Lisboa ver uma filha do meu amigo A.B.F. (Anselmo Braamcamp Freire) que tem uma moléstia terrível. Que dó, que aflição!" (21 de Outubro de 1905);
  • "Fui à vila de Santo António ver uma irmã da Caridade espanhola, que está tísica e moribunda" (13 de Outubro de 1906);
  • "Morreu esta manhã no convento das Dominicanas de Benfica onde era freira minha prima do Maria do Carmo Braamcamp de Mello Breyner (...). Morreu tísica" (1 de Abril de 1907).
O mal de viver, o suicídio e outras formas de morte violente como o homicídio também estão presentes nas página do diário:

  • "De tarde estive com o Prof. M. Bombarda e com o colega Arsénio Cordeiro uma conferência ao Afonso de Portugal que está alienado. Pobre rapaz! 30 anos, tenente de cavalaria e perdido. É o marido da filha mais nova do General Queiroz" (14 de Junho de 1905); no dia seguinte, o doente dá entrada no Rilhafolhes (actual Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda);
  • "Morreu hoje ao meio dia em Coimbra o Professor Sousa Refoyos em resultado de um tiro que lhe disparou ontem um médico chamado Rodrigo de Barros Teixeira. Dizem que era um louco, mas mais louco desde que o pobre Refoyos (...) resolveu persegui-lo sem cessar (...). O Refoyos era um bom cirurgião, o melhor ou antes o único de Coimbra" (4 de Dezembro de 1905);
  • "De tarde fui a Queluz no automóvel Mercedes (40 cavalos) do americano Henry Church. Este Church é um milionário neurasténico que tem 'le mal de l'argent' [itálico no original, o mal do dinheiro]. Tem apenas 25 anos e anda pelo mundo numa ânsia de divertimento sem saber o que há-de fazer ao dinheiro e à cabeça" (27 de Dezembro de 1905).


4. Um geração brilhante de médicos


Nessa época já estava a funcionar o Hospital Colonial. A 11 de Janeiro de 1905, o autor acompanhou um colega inglês do cruzador Essex numa visita aos hospitais de Lisboa, "acabando pelo Hospital Colonial na Junqueira onde estava o António de Lancastre que mostrou a doença do sono em seis pretos" (sic) (Breyner, 2003.19).

Este António de Lencastre, médico e aristocrata, é citado por Mira (1947. 475) como tendo sido enviado, pelo Governo, em 1899, "em comissão ao estrangeiro (...) para ali estudar os processos empregados no isolamento e hospitalização dos tísicos", iniciativa da qual iria nascer, nesse mesmo ano, a Assistência Nacional aos Tuberculosos

Há, por outro lado, várias referências, entusiásticas, ao Instituto Bacteriológico Câmara Pestana e aos progressos das ciências biomédicas:

  • "Quando esta manhã estava no Hospital do Desterro, disseram-me do Instituto Bacteriológico que a análise das membranas tiradas da garganta do meu filho Chico dava a existência de bacilos de difteria. Fiquei apenas apoquentado, mas se fosse há 10 anos quando hão havia ainda o soro Bering-Roux teria ficado louco. Fui logo buscar o colega Carlos França que veio e injectou dois frascos no ventre do pequeno. A montagem do Instituto para este serviço é perfeita e deve-se à Rainha D. Amélia (...). Às 6 h. da tarde já o Chico tinha melhorado, tendo a injecção sido feita ao meio dia! Viva o Roux! Viva o Bering! Viva a Rainha!" (15 de Março de 1905).
O Instituto Bacteriológico é, de resto, visita obrigatória dos médicos estrangeiros que passavam por Lisboa, sendo o dr. Tomaz de Mello Bryner o cicerone:

  • " (...) Fui de manhã com o automóvel de minha sogra ao Arsenal buscar o Dr. Bankart, médico do iate real Victoria & Albert, e o Dr. Hunt, médico do cruzador Cornwall e dali fomos todos ao Instituto Bacteriológico e à 1h. trouxe-os a almoçar a casa do meu sogro" (24 de Março de 1905).

Câmara Pestana é um dos fundadores da bacteriologia em Portugal, criando as condições para o desenvolvimento da medicina laboratorial. Em 1892, o Governo tinha criado o Instituto Bacteriológico de Lisboa e nomeado Câmara Pestana seu director.

Por falta de edifício próprio, o Instituto é provisoriamente instalado no Hospital de S. José. Em 1895, passou a designar-se Real Instituto Bacteriológico de Lisboa. Em 1899 é inaugurado o novo edifício. Passa a ter então a designação (IBCP) que tem hoje. Em 1911, é incorporado na recém-criada Universidade de Lisboa, anexo à Faculdade de Medicina de Lisboa até à publicação dos Estatutos da Universidade de Lisboa, em 1989.

Aníbal Bettencourt sucede, na direcção, ao malogrado Câmara Pestana, cujo futuro prometia ser brilhante, ao analisar-se a sua curta vida de médico (10 anos, dos quais um passado em estágio no Instituto Pasteur, de Paris) (Pina, 1947.454-456) (A sua brilhante dissertação inaugural sobre "O micróbio do carcinoma", apresentada e defendida, em Julho de 1889, perante a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, está disponível em formato pdf no sítio do IBCP)

Durante a primeira década do Séc. XX, o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana vai reunir um grupo de gente (médicos e veterinários) que irá produzir um conjunto notável de estudos científicos. O IBCP cria inclusive uma revista, os Arquivos do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, "escrita em francês para ser distribuída internacionalmente" (Mira, 1947. 457).

Deste grupo inicial, que representa o melhor que se faz em Portugal em termos de investigação biomédica, é de de citar Gomes de Resende, Carlos França, Reis Martins, Morais Sarmento, Marck Athias, Aires Kopke, Nicolau Bettencourt e Ildefonso Borges, entre outros (Mira, 1947.456). Carlos França e Marck Ahias são dois dos maiores vultos desta geração. É uma época de "notável distinção para a medicina portuguesa, e particularmente para a Escola de Lisboa" (Mira, 1947. 462), a qual ofuscava por completo a Faculdade de Medicina de Coimbra.

O nosso autor acompanha também o Rei ou a Rainha em visita a estabelecimentos e saúde:

  • "Fomos ao Hospital do Rego [actual Hospital Curry Cabral ] que está pronto e lindo. É pena que não haja mais aquecimento dentro das enfermarias (...). El-Rei foi recebido pelo ministro do Reino (S. D. José Caelho), Ferraz de Macedo [ Director-Geral de Saúde Pública ], Curry Cabral [ Enfermeiro-mor do Hospital de S. José e anexos entre 1901 e 1910 ] (...)"
  • "Da 1 às 2 1/2 Consultório e dali ao Hospital onde a rainha D. Amélia fez uma demorada visita ao Instituto Finden (...) (20 de Fevereiro de 1905).

Também há referências ao "saudoso mestre" Sousa Martins, nascido em Alhandra em 1843 e falecido em 1897, de tuberculose (na realidade cometeria suicídio):

  • "Fui (...) com o Alfredo [da ] Costa e mais uns amigos de Sousa Martins levar ao Casimiro José de Lima um presente em sinal de gratidão por tudo o que fez à memória do saudoso mestre. Custou-me o brinde à minha parte 30 mil réis mais do que eu dei para a estátua de Sousa Martins! Coisas da nossa terra, entusiasmos disparatados" (7 de Dezembro de 1905).

O Dr. Tomás de Mello Breyner usa e abusa dos favores dos seus colegas do hospital, grandes clínicos, como o Jorge Cid, o Carlos França, o Artur Ravara, o Alfredo da Costa, o Custódio Cabeça ou José Gentil, quando alguém da sua família ou das suas relações está doente:
  • "Fui de manhã ao Hospital e levei comigo o Chiquinho para ser visto pelo [ José ] Gentil. Tem com efeito tumores adenóides na faringe e precisa de ser operado. Valha-me Deus e Nossa Senhora" (20 de Maio de 1905);
  • "Quando cheguei [a casa, na Junqueira] encontrei a minha querida filha Maria Amélia com difteria, tendo já vindo o Carlos França fazer uma injecção de soro. Valha-me Deus" (27 de Março de 1906);
  • "A querida Mariazinha dormiu melhor e de manhã fui no automóvel buscar o Carlos França (...)" (29 de Março de 1906);
  • "Não fui ao Hospital porque o sogro [ Conde de Burnay ] passou mal a noite; organizei uma conferência com Ferraz de Macedo, Moreira José e Silva Carvalho e, muito de propósito, não assisti para os obrigar a deixar as instruções e opiniões por escrito. Assim se fez" (30 de Maio de 1905);
  • "Vim de Mafra e trouxe comigo a Mademoiselle Lebigot [ "a mestra francesa das pequenas"] para consultar o médico Nuno Porto" ( 16 de Agosto de 1905);

Nesta época ainda são os médicos (ou os estudantes de medicina) a fazerem os curativos ou ministrarem injecções, havendo escassas referências a pessoal de enfermagem :

  • "À noite sai para fazer o curativo do meu cunhado Roberto que vai melhorando um pouco" (25 de Abril de 1905);
  • "Às 4h. 40 vim para aqui fazer duas injecções de digitalmia a meu sogro que está um pouco assistólico e cá durmo para vigiar os efeitos" (18 de Maio de 1905);
  • "Voltei [ao Paço de Cascais] às 1h. 40 com o estudante do 4º ano que veio ajudar-me a extirpar um quisto ao Príncipe Real" (3 de Novembro de 1905);
  • "De manhã fiz o curativo ao Príncipe e uma massagem à Rainha [que na véspera fizera uma contusão na perna e no braço, devido a queda de cavalo]" (5 de Novembro de 1905);
  • "Fui depois [do Consultório] ver o João Pindella que continua moribundo e vacinar toda a família do Fernando Serpa" (2 de Junho de 1906);
  • "Às 7 h. a.m. fui ao Hospital. Às 10 h. (...) fui a Belém a casa do Pedro Franco cloroformizar [ anestesiar com clorofórmio] o meu amigo Feliz Saraiva para ser operado de apêndice pelo Dr. Cabeça. Correu bem a operação" (12 de Junho de 1906);
  • "Fui ao Hospital e às 10 1/2 vim aqui [a casa, na Junqueira] para ajudar o Dr. Valadares a cortar uma amígdala a minha filha Maria da Luz"
Como já se disse, há muitas poucas referências a novos profissionais de saúde, não médicos, como os técnicos de diagnóstico, os fisioterapeutas ou os enfermeiros:

  • "Vi no Século no dia 10 que morrera na véspera na sua casa em Lisboa (...) o meu amigo Alfredo Dias, massagista dos Hospitais e muito boa pessoa (...) Foi muito protegido pelo Sousa Martins".

Diz o nosso autor que lhe chamavam-lhe o Dias Mexano porque nos cartões de visita dizia ser " mechano-therapeutha" (sic) e houve uma enfermeira que lhe chamou "mexano".

  • "Pobre Dias! Éramos amigos de tu" (Pedras Salgadas, 11 e 12 de Julho de 1905)."Morreu ontem e enterrou-se hoje o Afonso, enfermeiro da Companhia Real em Santa Apolónia. Era inteligente, sabedor dos eu ofício e muito meu amigo (...). Foi enfermeiro no Hospital de São José e há 20 anos que estava em Santa Apolónia. Este Afonso era muito corado e o Júlio Mardel chamava-lhe ginja d' aguardente " (4 de Outubro de 1907).

Uma das coroas de glória do nosso médico é a organização e a realização, em Lisboa, em 1906, do .
XV Congresso Internacional de Medicina Tomaz de Mello Breyner era o secretário da Comissão Executiva, presidida por Miguel Bombarda:

  • "(...) Conferência com o Bombarda e o Lavrador José Palha Blanco sobre a festa ribatejana a dar aos congressistas" (7 de Fevereiro de 1906);
  • " (...) Fui com a Sofia [a esposa] para a nova Escola Médica [em Santa Marta]. A Sofia foi à reunião do Comité de Senhoras do Congresso de Medicina" (15 de Abril de 1906).
Este encontro foi um "sucesso", do ponto científico e social, tendo trazido a Portugal a elite médica da época:

  • "(...) Fui por ordem de El-Rei numa carruagem real levar aos Prof. Costa Alemão [do Porto, presidente do Congresso] e Miguel Bombarda as cartas régias e as insígnias de grã-cruz de Santiago (...). Ambos encantados e eu muito ancho de ter sido o portador" (26 de Abril de 1906);
  • " (...) Encerramento solene do Congresso. O próximo Congresso (XVI) será em Budapeste" (26 de Abril de 1906);


Lisboa > Sociedade de Geografia > Pavilhão de Portugal > 19 de abril de 1906 > Abertura do XV Congresso Internacional de Medicina. "El-Rei pronunciando o seu notável discurso de saudação aos médicos estrangeiros".

Fonte:  Ilustração Portuguesa, II Série, nº 10, Lisboa, 30 de abril de 1906, pp- 0304-0305 (Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa)

 

De facto, em plena "Belle Époque", Portugal também estava na moda, ou pelo menos a capital, Lisboa,  e a medicina portuguesa gozava de prestígio aquém e além fronteiras: em 1906, é um extraordinário sucesso, do ponto de vista organizativo, social e científico, devido muito ao mérito do Miguel Bombarda (1851-1910), a realização do XV Congresso  Internacional de Medicina (Lisboa, 19–26 de abril de 1906),  que juntou a elite médica, nacional e internacional, incluindo diversas celebridades,  num total de  1762 participantes de 35 países (145 de países de língua alemã, 221 fracófonos, 124 de língua inglesa, etc.) . A língua oficial era o francês. E até o rei D. Carlos fez o discurso de boas vindas… em francês, a língua científica da época!... (A Belle Époque foi também a idade de ouro da França.)

A sessão inaugural tinha sido na Sociedade de Geografia, no magnífico Pavilhão de Portugal (o maior salão de Lisboa) e as sessões científicas decorreram no novo edifício da Escola Médico-Cirúrgica, no campo de Santana, acabado de inaugurar. 

Se a parte científica, foi um rotundo êxito, o programa social não ficou atrás, com diversas receções oficiais e privadas, muito ao gosto da Belle Époque:  (i)“garden-party” oferecido pela Casa Real na tapada das Necessidades; (ii) uma tourada em Vila Franca; (iii) um passeio a Monserrate, em Sintra; (iv) exibição de grupos folclóricos, etc.

 




Lisboa > Campo de Santana > Escola Médico-Cirúrgica > c. 1906/1910 > Foi inaugurada em 1906 por ocasião do  
XV Congresso Internacional de Medicina, que se realizou em Lisboa. Imagem do Arquivo Municipal de Lisboa. Cortesia de Wikimedia Commons.



É também nesta altura que Tomaz de Mello Breyner é nomeado director do futuro serviço de dermatologia e dermatovenerologia do Hospital do Desterro (de que foi "patrão" entre 1906 e 1933):

  • "Tomei posse do meu novo serviço como assistente na enfermaria de meretrizes no Hospital do Desterro. Como é director um ilustre mandrião, chamado Evaristo de Almeida, segue-se que eu terei todo o trabalho" (15 de Janeiro de 1906). Dois dias depois, é colocado numa "situação duvidosa de Comissão".

Decide então usar as suas influências:

  • "Fui declarar ao enfermeiro-mor Curry Cabral que exijo a colocação a que tenho direito e resolvi não voltar ao hospital enquanto não ma derem" (18 de Janeiro de 1906).
  • Passados uns dias, é "assinado por El-Rei o decreto para a minha nomeação de director de enfermaria de Santa Maria Madalena (sic) no Hospital do Desterro" (1 de Fevereiro de 1906). 
  • E acrescenta: "Estou satisfeito porque sempre desejei trabalhar num serviço da minha especialidade".
No dia 6 de Fevereiro de 1906 pode ler-se:

  • "No Diário do Governo de hoje vem o meu despacho para director de enfermaria. Foi assinado por El-Rei em 31 do mês passado e despacho ontem pelo Director Geral [da Saúde Pública] João Ferraz de Macedo. Fui substituto 12 anos e 4 meses por isso que fiz concurso em Agosto de 1893".
Entretanto, são raras as referências ao que se passa por detrás dos muros do Hospital e, em particular, no seu serviço. Uma ou outra excepção:

  • "Fui com a [prima] Maria Ficalho distribuir amêndoas às doentes da minha enfermaria" (14 de Abril de 1906);"De manhã, hospital. Assistiram muitos médicos estrangeiros ao meu serviço" (18 de Abril de 1906);
  • "De manhã fui ao Hospital apresentar-me depois da licença" (11 de Setembro de 1906);
  • "Faz hoje um ano que tomei conta do meu serviço como director da enfermaria de Santa Maria Madalena no Desterro" (9 de Fevereiro de 1907);
Tomás de Mello Breyner tinha feito a sua especialidade, em Paris, nos primeiros anos da década de 1890. Tinha em França excelentes relações, no seu meio social e profissional. E ia lá com frequência. Em 27 de Setembro de 1905, por exemplo, vemo-lo partir no Sud-Express, com vários colegas (António de Lencastre, António de Pádua, Guerreiro Novo, Sousa Machado, Carlos Ferreira...), para Paris, para participar o Congresso Internacional da Tuberculose (2-7 de Outubro de 1905). Na época a viagem levava cerca de 36 horas.

Em 1906 foi proposto Membro da Sociedade Francesa de Dermatologia e Sifiligrafia (16 de Janeiro de 1906).

Refira-se, por fim, que nesta época ainda se usava a purga, as ventosas e a sangria:

  • "À noite fui ver o Conde da Ribeira que no fim de todo o sofrimento tem agora uma pneumonia (...). Toda a vida o conheci e sempre foi muito meu amigo. Estive ao pé dele até por volta da meia noite. Pus-lhe muitas ventosas que o aliviaram" (9 de Dezembro de 1907);
  • "Seis depois depois, o Conde da Ribeira Grande (D. José), irmão do escritor João da Câmara, expirava nos braço do seu primo e amigo. Tinha 64 anos (15 de Dezembro de 1907);
  • "Às 3 1/2 fui chamado à pressa para assistir [o cunhado João da Câmara, vítima de ] um ataque de eclampsia formal e terrível. Começou então a luta. veio o Porto, o Cid., o Pocariça. À noite sangramos o doente e passámo-lo para a sala. A noite foi medonha. Que grande desgraça. O terreno é mau ainda que é valente o arcabouço do doente e coração não está em muito mau estado" (28 de Dezembro de 1907);
  • "El-Rei está com febre e amadornado. Suponho que será do estômago. Mandei-o para a cama e vou dar-lhe uma purga" (2 de Outubro de 1907).
No dia seguinte, logo ás 6 da manhã, o médico do Rei foi visitá-lo. E escreveu o seguinte no seu diário:
  • "Noite agitada. Deus queira que não venha por ali alguma macacoa grande, tanto mais que não se pode contar muito com aquele real coração que deve estar flácido" (3 de Outubro de 1907).
A saúde do Rei era um problema de Estado. Sabe-se que D. Carlos estava longe de ter uma vida regrada e que sofria de diabetes... Essa dura notícia foi dada pessoalmente pelo nosso autor à Rainha D. Amélia em 25 de Janeiro de 1906:

  • "(...) El-Rei é um diabético. Com 22 g. 560 de açúcar por litro. É uma má notícia para todos, mas entendi que devia dá-la à Rainha em primeiro lugar. Foi o Virgílio Machado que fez a análise. Bem desconfiava eu quando em menos de um mês lhe caíram uns dentes molares. Vamos ver se conseguimos, pelo menos, um regime".
Thomaz de Mrello Breyner continuou a exercer medicina, ao longo da I República, numa época onde se começa a afirmar o poder médico e a diversifiocar a especialização médica
, sobretudo a partir dos anos de 1920.  É é lembrando como um pioneiro na área da dermatologia e venerologia.

Berço da clínica, o serviço hospitalar gozava de grande autonomia nessas décadas, tendo por base o poder discricionário dos grandes clínicos da época. Escolhidos entre os mais reputados e prestigiados, eram os verdadeiros donos da organização científica, técnica e material dos serviços hospitalares.

A relação dos chefes de serviço com os restantes médicos, colaboradores internos e externos, era a de mestre e aprendiz, segundo a lógica das corporações de ofícios medievais.

Na ausência dos sofisticados meios complementares de diagnóstico e terapêutica, a competência clínica assentava ainda muito na acuidade dos sentidos e na perspicácia, adquiridas pelo treino clínico na observação repetida de casos e por uma prática de muitos anos, pessoal e intransmissível, que lhes valeu o epíteto de "barões da medicina" (******).

A Belle Époque (grosso modo, 1871-1914) foi também  a do triunfo do positivismo, da crença no progresso ilimitado, trazido pela ciência e pela técnica. Na sociedade ocidental, e no campo da medicina, uma grande euforia perpassa então à medida que se começa a aplicar com relativa eficácia (e segurança) o princípio da vacinação preventiva e da seroterapia curativa a todas as doenças causadas por micróbios. A sociedade torna-se generosa para com os investigadores biomédicos. 

Em escassas dezenas de anos, os progressos da bacteriologia tornam-se espectaculares, ao ponto de permitir a identificação dos agentes patogénicos de praticamente todas as doenças transmissíveis que até então tinham sido responsáveis por milhões e milhões de mortos, ao longo da história do homem, como a varíola, a peste, a lepra, o tifo, a cólera, a sífilis, o paludismo, a tuberculose, etc. Abriam-se,  assim, a curto, médio e longo prazo,  caminhos para o diagnóstico precoce, a prevenção, a profilaxia, o tratamento e a cura de muitas destas doenças "infectocontagiosas" ou "transmissíveis" (Quadro 1).

Mas é preciso esperar pelo fim da II Guerra Mundial para que os países europeus passem a ter verdadeiros sistemas de saúde, e os hospitais se modernizem... De acordo com uma reportagem do jornal “O Século” sobre os Hospitais Civis de Lisboa, 
 2 de outubro de 1921 (citada no artigo Margarida de Magalhães Ramalho, "Expresso, 11 de setembro de  2016", eram degradantes, se não memso miseráveis, as condições de internamento e de trabalho  dos hospitais lisboetas: 

“Enfermarias sem condições nenhumas num abandono imperdoável, sujas, com um ambiente doentio, telhados em reparação há anos sem que as obras terminem e dando assim ocasião a que chova lá dentro. (...)”

(...) "Para Mello Breyner, que era entrevistado durante a visita do repórter ao Hospital do Desterro, essa situação era inadmissível. Por essa razão lutara para melhorar as condições da enfermaria que dirigia e que acolhia as mais “desventuradas das criaturas”. A diferença é referida pelo articulista. “Vê-se ali a melhor e boa ordem. Até é notável a correcção do pessoal de enfermagem, solicito em acudir à chamada de qualquer doente; os próprios doentes sorriem à chegada do médico que lhes fala carinhosamente, como um amigo. Mostramo-nos admirados com o contraste entre esta enfermaria e as outras.” (...)

O serviço de Mello Breyner vivia muita da beneficiência privada, o nome burguês oara a caridade cristã medieval:  por  exemplo, um farmacêutico,  Teixeira Lopes, oferecia centenas de ampolas 914 de neo–salvarsan, então o único medicamento eficaz que se  conhecia   para tratamento da sífilis. As doentes, que eram pobres, não tinham dinheiro para pagar o mediciamento e o hospital não o fornecia.  

Ficas-se a saber que, "além das precárias condições de higiene, não tinha cirurgião à noite, nem farmácia, nem mesmo eletricidade"... Estamos a falar de há um século atrás...Nenhuma "pessoa de bem" aceitava, a não ser in extremis, ir para um "hospital público": em 1911, tínhamos "uma geração de ouro" (grandes médicos e cirurgiões"), mas a saúde era um privilégio de classe. Daí fazer sentido dizer-se que havia uma medicina hospitalar para os pobres e uma medicina privada para os ricos.

(Referências bibliográficas: a completar oportunamente)

Nota do autor - Este artigo é uma versão, revista e aumentada, para a série "Manuscrito(s)",  de uma outra, de 2005, "A vida de um médico na Belle Époque", publicada na antiga página do autor, "Saúde e Trabalho", disponível em:

 
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Notas do editor:


(**) Breyner, T. M. - Diário de um monárquico 1905-1907: transc. Gustavo de Melo Breyner Andresen. [Porto] : Fundação Eng. António de Almeida, 2003, 359 pp.  

(***) Vd. poste de 14 de outubro de 2015 >  63/74 - P15248: Manuscrito(s) (Luís Graça) (65): O Tempo Parece Querer Mudar... (Coleção de citações do diário de Tomás de Mello Breyner, c. 1902-1904)

(****) Vd. também Thomaz de Mello Breyner - Relatos de uma Época Do final da Monarquia ao Estado Novo, de Margarida de Magalhães Ramalho. (Lisboa, INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda,  2018, 690 pp.

(*****) Vd. Graça, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).


 

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25637: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (47): Coincidências I - Presençã do Furriel Justino em todos os ataques aos aquartelamentos



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


COINCIDÊNCIAS I

PRESENÇA DO FURRIEL JUSTINO


Ao reler a História da CCAV 2721 encontrei algumas curiosidades.

Nos 6 ataques que sofremos no quartel do Olossato, o furriel Justino estava no quartel em todos eles.

Mesmo nos ataques em que o nosso grupo de combate estava no destacamento o furriel Justino estava no Olossato, porque o destacamento só tinha espaço para 2 graduados.

As coincidências são tantas que no último ataque, no dia 30 de Dezembro de 1970, foi feito no dia que ele chegou ao Olossato, vindo de férias da Metrópole.

E no ataque que sofremos em Nhacra, estiveram à espera que chegasse o resto da Companhia para o furriel Justino não faltar a nenhum evento do PAIGC à CCAV 2721.

Valeu-lhe a "sorte", porque nunca sofreu nenhuma mazela nestes ataques.
Fur Mil Justino, o primeiro a partir da esquerda
Fur Mil Justino ao meio
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Nota do editor

Último post da série de 6 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25611: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (46): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: População recuperada ao PAIGC

Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

 1. O Alberto Branquinho, que não nasceu por acaso em Vila Nova de  Foz Coa (hoje cidade),  e que recebeu no seu ADN cultural o melhor do Alto Douro e da Beira Alta,    não me levará a mal que eu lhe vá "roubar" mais um dos seus cerca de 60 microcontos para, com ele,  engrossar e enriquecer a nossa série "Humor de Caserna" (*).

A sua excecional capacidade de "observação participante" e a sua fina ironia não escapam à atenção do leitor, que vai ler e saborear estas sete linhas deliciosas. 

Nunca,  em tão poucas palavras,  deparei com  uma tão magistral diatribe  contra a linguagem brejeira e sobretudo grosseira, para não dizer, alarve, utilizada por alguns de nós contra os mais fracos (bajudas, djubis, mulheres). 

Outros chamarão  racismo subliminar, não explícito,  a estes piropos  sexistas, que todos ou quase todos ouvíamos (e tolerávamos) no quartel ou na tabanca,  da parte de alguma tropa metropolitana, culturalmente mal preparada para lidar com pessoas de outros usos e costumes,  etnias e religiões (mesmo que nossas "amigas",   como era o caso dos fulas).

Quem ler a correr este microconto pode não dar-se conta do sentido da "boca" do sargento: "bó tem sanchu na barriga"... Mesmo a "brincar", em "tom brejeiro", em linguagem de caserna, é coisa que não se diz em parte alguma a uma mulher grávida..."Sanchu", como explica o autor, na lista de vocábulos e expressões crioulas, que vem no final do livro, quer dizer "macaco" (do francês. "singe").  É ofensivo e  tem, obviamente,  uma conotação racista.

Enfim, este microconto é também uma homenagem a mulher guineense do nosso tempo,  que não tinha papas na língua e era capaz de dar respostas de superior inteligência a uma "tuga" tonto, inconveniente,  desbocado e abusando da sua aparente situação de "superioridade" como militar... 

O título também é uma delícia, "Paternidade instantânea"...




Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".


Paternidade instantânea

por Alberto Branquinho

Aproximava-se uma mulher em estado adiantado de gravidez. Caminhava com dificuldades, amparada a um muro.

O sargento, que estava a observá-la:

− Ó meu alferes, escute lá esta.

O sargento dirigiu-se, então, à mulher grávida:

− Eh, mulher! Bô tem sanchu  [macaco] na barriga!

É, noss' sargenti. Fidju  [filho]  di bó.

 

Fonte: Adapt. de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 131.

(Título, revisão / fixação de texto, parênteses retos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25631: Humor de caserna (65): Afinal, Deus não gosta dos mais velhos, diz o nosso Cherno Baldé...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25631-humor-de-caserna-65.html

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25635: Historiografia da presença portuguesa em África (427): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Interrogo-me amiudadas vezes quais as razões de fundo que levam a que a investigação histórica não tenha produzido, nas últimas décadas, uma História da Guiné, suscetível de suprir as lacunas do trabalho de João Barreto, face a revelações decorrentes de investigações em arquivos nacionais, pelo menos. Sente-se à vista desarmada que a Guiné Portuguesa requer uma investigação multinacional, logo o contexto da Senegâmbia e os impérios e reinos que se depararam ao comércio exercido pelos portugueses entre o Cabo Verde e a Serra Leoa, têm sido sobretudo os historiadores senegaleses quem têm produzido mais investigação, com a qual não convivemos; há, por outro lado, uma história comum entre as ilhas de Cabo Verde e estes pontos da Costa Ocidental Africana não só por causa do tráfico humano mas também pela presença comercial cabo-verdiana e as suas migrações para o que é hoje o Senegal e a sua inserção na administração pública portuguesa, do século XIX até à independência. Continuamos confinados à documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino e em bibliotecas de prestígio, como a da Sociedade de Geografia de Lisboa. Parece-me que chegou o tempo de os lugares universitários que se dedicam a estudos africanos encontrarem um entendimento e a formação de equipas a nível nacional e que daí saiam propostas para investigar em articulação com, pelo menos, Cabo Verde, Senegal e Guiné-Conacri. É neste amplo espaço que ganhará, estou seguro, uma maior clarificação sobre a presença portuguesa na região desde meados do século XV até à independência da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Caminha-se para o final do século XIX, depois do desastre de Bolor determinou-se a criação do Governo autónomo da Guiné, naturalmente acompanhada de autonomia administrativa própria de uma província independente, com efetivos militares autónomos e com uma orgânica de serviços públicos. O primeiro governador, Agostinho Coelho, assina tratados relativos à região do Forreá, mas o clima de lutas interétnicas é de enorme gravidade. O aspeto curioso é que as relações entre os portugueses e os Biafadas, até à segunda metade do século XIX, se tinham pautado por tranquilidade e havia bom acolhimento feito a comerciantes portugueses e estrangeiros. A chegada em força dos Fulas trouxe permanentes confrontos, cresce o número de chefes revoltados. As pontas e os lugares de comércio ao longo do Rio Grande de Buba, que eram em grande número, foram desaparecendo, a presença da Força Armada portuguesa era um mero paliativo. Em 1880, iniciou-se a revolta dos Fulas-Pretos contra os senhores do Forreá, estes Fulas-Pretos pediram auxílio a senhores que viviam na Guiné Francesa e também nas margens do rio Geba. Só em 1882, dadas as hostilidades entre os indígenas e Buba é que foi organizada uma coluna que veio a intimidar o régulo Bacar Guidali, este pediu para fazer as pazes, paz de pouca dura; entretanto, começavam as desavenças entre os chefes locais, como escreve Barreto:
“Mamadu Paté, de Bolola, querendo ser régulo do Forreá, declarou guerra a Guidali, com auxílio do chefe Iaiá, de Kadé. Bacar Guidali fugiu para a praça de Buba, diz-se que faleceu envenenado. A defesa do território do falecido régulo foi confiada a seu irmão, Mamadu Paté Coiada. Não podendo, porém, resistir à superioridade numérica dos seus inimigos, Coiada fugiu para o Cantanhez e dali para Bolama, irá estabelecer-se no Gabu. Com a derrota da família Guidali, o régulo Iaiá reforçou a sua soberania no Forreá. No final do ano de 1886, foi assinado em Buba um tratado entre Iaiá, rei do Forreá, Labé, Gabu e Kadé e o nosso governo. Paz temporária.”

O segundo governador foi Pedro Inácio de Gouveia, é um período de sucessivas operações militares: em Jabadá, Nhacra, tabancas da zona de Ziguinchor, entre outras. Criou-se uma alfândega de direção única em Bolama, com delegações em Bissau e Cacheu. O Boletim Oficial passara a ser uma publicação regular a partir de 1880. O terceiro governador, Francisco de Paula Barbosa, foi confrontado com sublevações na região de Geba, com a revolta dos Fulas-Pretos, houve que proceder a campanhas em Geba e Bissau, a hostilidade dos Papéis só terminou em 1892, também tranquilidade de pouca dura.

Barreto descreve a nova organização administrativa da colónia, a nova revolta dos Papéis, em 1894, as primeiras tentativas para a cobrança do imposto de palhota, o regresso da agitação no Forreá, as guerras de Oio e Caió, a chegada de um governador que deixou marca, Júdice Biker, em 1900. E o autor lembra como não foi fácil a delimitação da fronteira luso-francesa, que se prolongou até 1905, e que ficou definitivamente regularizada já nos anos 1930. Outro nome que deixará marca na governação é Oliveira Muzanty, chegado a Bolama em 1906, tempo em que a província foi dividida em um concelho e seis residências: o concelho de Bolama compreendia, além desta ilha, todo o arquipélago de Bijagós e os territórios de Quínara e Cubisseque; as residências eram Cacheu, Farim, Geba, Cacine, Buba e Bissau. Muzanty é confrontado com a sublevação do régulo Biafada do Cuor, com apoio de outros régulos, procurava-se impedir a navegação do Geba e cortar as relações comerciais com Bissau. Esta sublevação levará à constituição de uma força militar como nunca se vira na Guiné, vieram tropas da metrópole e de Moçambique, depois de uma série de combates o régulo Infali Soncó fugiu e o regulado foi oferecido a um colaborador, Abdul Indjai.

Mas houve mais operações militares, Barreto elenca os locais e as forças que repuseram a ordem. Ainda no tempo da monarquia, em 1909, chega novo governador, o Capitão Francelino Pimentel, o seu governo foi pouco acidentado, passou maior parte do tempo em Lisboa, entretanto Portugal mudou de regime. Curiosamente, Francelino Pimentel, nomeado durante a monarquia, logo que teve conhecimento da implantação do regime republicano em Portugal mandou publicar no Boletim Oficial a seguinte proclamação: “Cidadãos! Está proclamada a República em Portugal e seus domínios e vai ser arvorada neste momento solene a Bandeira Nacional, símbolo da Pátria e da conquista das Liberdades Públicas. Saudemos com entusiasmo tão feliz acontecimento e unamo-nos todos pela sua prosperidade. Viva a Pátria! Viva a República! Viva a Liberdade!” Não obstante a estes protestos de fidelidade, o Governo provisório da República nomeou novo governador, Carlos de Almeida Pereira. Será notória a atividade desenvolvida por este, a legislação colonial iria sofrer profundas alterações, isto a despeito de um acontecimento imprevisto ter flagelado a colónia em maio de 1911, uma epidemia de febre amarela. A maior parte dos funcionários públicos abandonou Bolama, só ficaram alguns corajosos e o governador da colónia. A doença foi considerada extinta no mês de julho.

Dá-se a reorganização dos serviços, que Barreto enuncia meticulosamente: nas Obras Públicas, na Agrimensura, nos Correios e Telégrafos, na Instrução Pública, na Agricultura e Pecuária. Época em que se publicou o Regulamente de Circunscrições Civis. A província foi dividida em dois concelhos (Bolama e Bissau) e sete circunscrições administrativas com sedes em Bafatá, Cacheu, Farim, Buba, Cacine e também em Bolama e Bissau.

Mas outros acontecimentos também foram dignos de nota: a demolição da muralha que cercava a vila de Bissau; o contrato com uma empresa britânica para a construção da ponte-cais de Bissau em cimento armado, como escreve Barreto no seu livro editado em 1938, “ainda hoje representa na Guiné a mais importante obra de engenharia e apetrechamento económico”. É nesta governação que o Capitão João Teixeira Pinto iniciou o seu plano de pacificação da colónia, o governador e chefe de Estado-Maior divergiam sobre a escolha de processos para alcançar o objetivo que ambos procuravam.

E chegamos ao derradeiro capítulo desta obra, em finais de dezembro de 1913 era nomeado governador Andrade Sequeira e seguidamente substituído pelo coronel de artilharia Josué de Oliveira Duque, é tempo de conflitos, a Primeira Guerra Mundial teve os seus impactos na Guiné, dão-se as campanhas de Teixeira Pinto, Barreto desenvolve um amplo capítulo sobre as missões religiosas e os serviços públicos, assim chegaremos a 1918, termo da publicação, será esta a matéria do último texto que dedicaremos à primeira e única História da Guiné que foi há poucos anos alvo de uma edição fac-similada, por vontade de um neto de João Barreto, Aires Barreto, com o apoio do historiador Valentino Viegas.

Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 5 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25606: Historiografia da presença portuguesa em África (426): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25634: Para Bom Observdor, Meia Palavra Basta (3): O morteirete 60 mm, m/968, da Fábrica de Braço de Prata (FBP), e outras curiosidades...

Morteirete 60mm m/968 (FBP)

1.A Fábrica de Braço de Prata (FBP) foi um dos  estabelecimento fabris militares,  que deram um importante contributo, ao longo do séc. XX e sobretudo nos anos 50 e 60,  para a reestruturação e modernização da nossa indústria militar, e em particular para o esforço de guerra em África.(*)


A sua origem remonta a  1908, quando começou a funcionar como Fábrica de Projecteis de Artilharia. Estava dependente  do Arsenal do Exército e, após a extinção deste, passou para a tutela  do Ministério da Guerra, mas com gestão própria.

O seu nome,  Fábrica de Braço de Prata (FBP),   tinha a ver com a sua  localização no bairro de Braço de Prata, na zona oriental Lisboa, em Marvila, à beira Tejo, a sul Parque das Nações. 

Foi integrada, em 1980,  na INDEP - Indústrias Nacionais de Defesa, E.P.", e  em 1996, inserida no grupo EMPORDEP - Empresas Portuguesas de Defesa. Mais tarde, o seu equipamento será transferido para Moscavide.

Atualmente, nas antigas instalações administrativas da FBP, propridade da Câmara Municipal de Lisboa,   funciona "ad hoc" um centro cultural privado  (que inclui livrarias, salas de exposições, salas de cinema e teatro e sala de espectáculos musicais, e que usa a mesma designação - Fábrica de Braço de Prata).

Fachada principal da FMBP

 
Mas voltando à sua história fabril: além de munições para artilharia, a FBP   alargou  a sua produção para outros tipos de armamento. Passou a chamar-se  "Fábrica Militar de Munições, Armas e Veículos".  E de novo "Fábrica Militar de Braço de Prata" (FMBP) ou, simplesmente "Fábrica de Braço de Prata" (FBP).

Este e outros estabelecimentos fabris militares, beneficiaram da entrada de Portugal da NATO, assim como do Plano Marshal (1949-1950), e mais tarde da cooperação com a Alemanha, conseguindo meios fnanceiros para a montagem de  maquinaria e requalificação e formação do seu pessoal.

2. Com a guerra do ultramar / guerra colonial, a FBP irá produzir algumas centenas de milhares de espingardas automáticas (e nomeadamente a G3), morteiros, metralhadoras,  outros equipamentos militares, além de milhões de 
munições (para armas ligeiras e pesadas).  O principal cliente eram as nossas Forças Armadas, mas também exportava (e nomeadamente,  para a Alemanha).

De entre o equipamento FBP mais conhecido destaque-se:

(i) a pistola-metralhadora de 9 mm FBP ( projetada e fabricada pela FBP);
(ii) a espingarda automática de 7,62 mm G3 (fabricada sob licença);
(iii) a metralhadora de 7,62 m HK21 (fabricada também sob licença);
(iv)  o morteirete de 60 mm FBP  (projetado e fabricado pela FBP).

Alguns dados sobre pessoal e produção nacional (1973) (estimativa) (Origem: FMBP - Fábrica Militar Braço de Prata;  FNMAL - Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras)

  • Em 1969 o  pessoal da FMBP (dirigente, técnico, administrativo, auxiliar e fabril) atingia cerca de 2400;
  • Cartuchos 7.62mm (FNMAL) > 90 milhões:
  • Granadas de mão ofensivas m/62  (FMBP> 600 mil;
  • Granadas de mão defensivas m/63 (FMBP) > 300 mil;
  • Granadas para morteiro 60mm (FMBP) > 100 mil / 140 mil;
  • Granadas para morteiro 81mm (FMBP) >60 mil;
  • Granada deobus 10,6 cm (FMBP) > 30 mil.
Nº total de armas fornecidas pela FMBP às Forças Armadas (1962-1973):

  • Espingarda automática G3 > c. 300 mil (a partir de 1962);
  • Metralhadora HK 21 > c. 7300 (a partir de 1968);
  • Pistola metralhadora FBP m/963 >7230 (a partir de 1963);
  • Morteirete 60 mm > 810 (data de início, desconhecida);
  • Morteiro 60 mm > 732 (data de início, desconhecida);
  • Morteiro 81 mm >  210 (data de início, desconhecida).
Fonte: Tavares (2005), pp.  206/207 e 219 

Já agora ficamos a saber que para as granadas de LGFOG 8,9 cm, Portugal estava dependente da Bélgica > 20 mil em 1973 (. Portugal preparava-se para  dar início ao seu fabrico, em 1973, na FMBP). A produção nacional de granadas de morteio 60 e 81, por sua vez,  estava dependente da importação da espoleta... As granadas de morteiro 120 vinham de França... As granadas de obus 14 e da peça de artilharia 11,4 também eram importadas... (E em 1973 parece haver falta deste tipo de granadas, no CTIG, a avaliar por alguns testemunhos de camaradas nossos...)
 
Enfim, para saber mais sobre a nossa indústria de guerra, em geral, e os estababelecimentos fabris militares, em particular, vd. João Moreira Tavares, Indústria Militar Portuguesa no Tempo da Guerra (1961-1974), Casal de Cambra,  Caleidoscópio, 2006, 238 pp. 

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Nota do editor:

(*) Vd. postes da série > 


6 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25610: Para Bom Observador, Meia Palavra Basta (2): o que há em comum na estátua de Nicolau Lobato, herói nacional timorense, inaugurada em 2014, e a estátua aos combatentes do ultramar da freguesia de Atalaia, inaugurada um ano antes ?

Guiné 61/74 - P25633: Elementos para a história do Pel Caç Nat 51 - Parte V: a tragédia de Jumbembem, em 16 de julho de 1973


Francisco Silva (1948-2023), médico, cirurgião 0rtopedista, nosso amigo e camarada.  Terá sido o penúltimo comandante do Pel Caç Nat 51 (Jumbem, jul 1973 / mar 1974).

Foto de Manuel Resende (s/d) com a devida vénia. 




1. Mais alguns elementos para a história do Pel Caç Nat 51 (*):

Em finais de março/princípios de abril de 1973, Jumbembém foi reforçado com o Pel Caç Nat 51. Vinha suprir a fala do 1.º pelotão  da 2ª C/BCAÇ 4512 (Jumbembem e Farim, 1972/73), transferido para  Canjambari, guarnição  a sul de Jumbembém, a cerca de doze quilómetros, juntamente com outro pelotão de Cuntima, em substituição de uma companhia que dali foi retirada (CCAÇ 4143/72). Jumbembem, Canjambari e Cuntima pertenciam ao Sector O2 (Farim), junto à fronteira com o Senegal.

Dos graduados, apenas o alferes, Nuno Gonçalves da Costa,  e um furriel, eram de origem metropolitana.

O cmdt do Pel Caç Nat 51, Nuno Gonçalves da Costa, será morto por um dos seus homens, cerca de 3 meses e meio depois. E
is aqui o relato do Manuel Luís R. Sousa (na altura soldado at inf, na 2ª C/BCAÇ 4512, hoje Saj Ref, GNR) (**):

"Num dia em que se realizava a habitual coluna de reabastecimentos a Jumbembém, Cuntima e Canjambari, a 16 de julho de 1973", um dos elementos do Pelotão   pediu ao seu comandante, alferes Costa,   para o deixar seguir na coluna de Jumbembém para Cuntima para "visitar familiares".

Por se tratar de "um militar rebelde e indisciplinado, como forma de o castigar, o alferes não autorizou a sua deslocação a Cuntima".

"Perante esta recusa, o referido militar deslocou-se ao quarto do alferes, em fim de comissão e quase formado em medicina, com um futuro promissor pela frente, disparando contra ele dois ou três tiros de G3, atingindo-o na região do abdómen".

Prestada a assistência possível na enfermaria, e pedida uma  evacuação urgente por meios aéreos,  acabou por falecer, "p
assado pouco mais de uma hora". Recorde-se que havia na altura restrições ao uso de meios aéreos, na sequência do aparecimento dos mísseis Strela. 


2. Há uma outra versão das circunstâncias da morte do comandante do Pel Caç Nat 51. Vejamos um excerto do relato do Fernando Araújo (ex-fur mil op esp / ranger, 2ª C/BCAÇ 4512, Jumbembem e Farim, 1972/74) (**), que complementa a versão anterior do seu camarada Manuel Luís R. Sousa:

(...) "Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

"Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e, voltou a ser pedido insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

"E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

"O nativo foi preso com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia queriam fazer justiça pelas próprias mãos (linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou: 'Não lhe toquem!'

"Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água. Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

"Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (...), com o corpo do defunto numa viatura “Berliet” e uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do BCAÇ 4512).

"A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

"Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais, ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

"A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé. Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante, ten cor Vaz Antunes, ou o 2º comandante,  major Menezes, já não me lembro bem).

(...) "Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora,  na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o 'tratamento especial', tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado. Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a Ilha das Cobras". (...) (***)

Guiné-Bissau >Região
de Bafatá > Xitole > 2013 > 
Dois inimigos de ontem:
o Fancisco Silva e um antigo
guerrilheiro (****)

3. O infortunado Nuno Gonçalves da Costa era natural de Campos de Sá, freguesia de São Jorge, Arcos de Valdevez.   Infelizmente não temos qualquer foto dele.

A sua morte foi atribuída a "acidente com arma de fogo" (sic), forma eufemística das Forças Armadas classificarem na época não só os casos de acidente devidos a arma de fogo, como os de homicídio, suicídio, automutilação, etc.  no TO da Guiné (há diversos casos, já aqui relatados no blogue).

Após a sua morte, foi substituído pelo alf mil  at inf op esp / ranger Francisco Silva, oriundo da CART 3492 / BART 3873 (Xitole, 1971/74).

O Francisco Silva foi  cmdt do Pel Caç Nat 51, Jumbembem, desde meados de 1973 até possivelmente ao fim do 1º trimestre de 1973, altura em que a sua subunidade de origem terminou a comissão no Xitole, sector L1 (Bambadinca). Tudo indica, pois, que o Pel Caç Nat 51 esteve em Cufar, desde o início de 1970 até março de 1973. 

Já identificámos, pois,  quatro comandantes deste Pelotão: 

  • João Perneco (Guileje, 1966/68); 
  • Armindo Batata (Guileje e Cufar, 1968/70'); 
  • Nuno Gonçalves da Costa (Cufar e Jumbembem, 1972/73);
  • Francisco Silva (Jumbembem, 1973/74).




























Lisboa > Belém > Monumento aos Combatentes do Ultramar > XXV Encontro Nacional dos Antigos Combatentes > 10 de junho de 2019 > Sob o olhar atento do Carlos Silva, régulo da Tabanca dos Melros, o Francisco Justino Silva, hoje ortopedista (à esquerda, na foto), membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de abril de 2010, relembra os tempos em que foi substituir, em Jumbembem, em circunstâncias trágicas, o comandante do Pel Caç Nat 51: o seu interlocutor, um antigo milícia do seu tempo (à direita, na imagem), estava lá, nesse fatídico dia 16 de julho de 1973, em que foi cobardemente morto a tiro de G3 o alf mil op esp / ranger Nuno Gonçalves Costa.

Dois camaradas, pelo menos, da nossa Tabanca Grande conheceram e conviveram com o Nuno Gonçalves da Costa: (i) o Luís Mourato Oliveira conviveu com ele, na 1ª metade do ano de 1973, e com o seu Pel Caç Nat 51, em Cufar, ao tempo da CCAÇ 4740 (1972/74); e (ii) Fernando Costa Gomes de Araújo (ex-fur mil op esp / ranger, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74).


Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Poceirão > Palmela > 2017 > Mais um encontro dos Pelotões de Caçadores Nativos, formados pelo nosso camarada Jorge Rosales, do 51 ao 56 [no CIM de Bolama], e que serviram na Guiné entre 66 e 68. É já muito dificil encontrar estes nossos camaradas, mas ainda assim juntámos o 51, 52 e 54. Na casa do ex-fur mil João Vaz (ex-prisioneiro em Conacri, libertado em 22 de novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde; pertenceu ao Pel Caç Nat 52).

Acima, elementos do Pel Caç Nat 51 > Da esquerda para a direita: Furriel Castro, Furriel Azevedo, Alferes João Perneco, Furriel Carvalho e 1º Cabo Raul.
 
Foto (e legenda): © José Manuel Viegas (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor

(*) Último poste da série >  11 de junho de 2024 >  Guiné 61/74 - P25630: Elementos para a história do Pel Caç Nat 51 - Parte IV: um 1º cabo trms, José Maria Martins da Costa (Guileje e Cufar, 1968/70), que sabia latim e grego

(**)  Vd. poste de 1 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24027: (In)citações (228): Na morte do Francisco Silva (1948-2023), relembrando o cmdt do Pel Caç Nat 51, Nuno Gonçalves da Costa, assassinado por um dos seus homens, em Jumbembem, em 16/7/1973 (Manuel Luís R. Sousa, srgt ref, GNR)

(*****) Vd. poste de 20 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17493: Convívios (814): os Pel Caç Nat 51, 52 e 54, em Poceirão, na casa do ex-fur mil João Vaz (ex-prisioneiro de guerra em Conacri) (José Manuel Viegas)