terça-feira, 7 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2035: Alf Mil Guido Brazão, da CCAV 2748/BCAV 2922, morto em acidente com arma de fogo, Canquelifá, 22/10/70 (José M. Martins)

1. O camarada José Martins, nosso especialista em pesquisa militar, também se dedicou a recolher elementos que ajudassem a reconstituir o passado do camarada Guido Brazão, enquanto combatente na Guiné.

Assim, em 31 de Agosto enviou à nossa amiga Conceição Brazão, irmã de Guido Brazão, a seguinte mensagem.

Caros Camaradas,
Amiga Conceição

Começo por pedir desculpa pelo tratamento informal, mas sou da opinião que estamos em família. Se os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são... os familiares dos nossos camaradas, da nossa família são, e, para mais, aqueles familiares dos nossos camaradas que levaram ao extremo o seu juramento perante a Bandeira da Pátria - dar a sua própria vida!

Quanto ao apontado no mail de hoje, e como não consegui executar o scaner dos textos (burrice minha), fiz a cópia dos mesmos e remeto em anexo.

O tratamento para os camaradas bloguistas é o habitual: transmitir os textos produzidos para arquivo e/ou reprodução no blogue.

Para a nossa amiga Conceição, permito-me tecer as seguintes considerações:

Não sei se reside na região de Lisboa. Se sim, pode dirigir-se ao Arquivo Histórico Militar, que fica no edifício do Museu Militar, com entrada pelo lado da Estação de Santa Apolónia.

Aí poderá solicitar para leitura, e reprodução de alguma parte que queira, do documento que se encontra arquivado na Caixa n.º 19 - 2.ª divisão – 4.ª secção, que é a História da Unidade (BCAV 2922) de onde foi retirado o texto que se encontra no anexo. A sala de leitura funciona entre as 11,30 e as 17 horas, se a memória me não atraiçoa.

Se pretender um documento mais personalizado sobre o nosso camarada e seu irmão Guido, poderá solicitá-lo ao Director do Arquivo Geral do Exército, sito no Convento de Chelas, em Lisboa. Dando o maior número de elementos que identifiquem o processo pretendido (nome, número, posto, assim como a sua qualidade de irmã e referindo até a causa e data do óbito, é muito provavel que consiga obter outros elementos que, por serem de índole mais pessoal e familiar, são sempre objecto de um procedimento mais cuidadoso.

A título de exemplo, em tempos consegui cópias das fichas militares do meu avô materno e de um tio paterno, que foram combatentes em França durante a I Grande Guerra, que aliás, não só fazem a minha delícia, como me permitem ir encontrando o percurso militar de ambos, já que um era militar de carreira e o outro, como muitos naquela época, ficou e segiu a carreira militar.

Já vou longo na minha escrita. Não quero deixar de reiterar a minha disponibilidade para esclarecer/aclarar algum facto constante do anexo, inclusivamente traduzir as siglas/abreviaturas que constem no texto.

Com a minha amizade

José Martins
Fur Mil Trms Inf
CCaç 5 - Gatos Pretos
Guiné - Canjadude
1968/1970

2. Segue-se o resultado do trabalho do nosso investigador privativo José Martins.

Extractos de:

RESENHA HISTÓRICO-MILITAR DAS CAMPANHAS DE AFRICA (1961-1974)

Do
8º VOLUME – Mortos em Campanha
Tomo II
Guiné – Livro 1
1ª Edição (2001) Página 553 (2º registo)


Nome - Guido Ponte Brazão da Silva
Posto - Alferes Miliciano de Cavalaria – Operações Especiais
Numero - 19769668
Unidade - Companhia de Cavalaria n.º 2748
Unidade Mobilizadora - Regimento de Cavalaria n.º 3 – Estremoz
Estado Civil - Solteiro
Pai - Manuel Gonçalves Brazão da Silva
Mãe - Cesária Margarida Maria da Ponte
Freguesia - São Vicente
Concelho São Vicente – Madeira
Local de Operações - Camamelifé
Data do Falecimento - 22 de Outubro de 1970, em Canquelifá
Causas da morte - Acidente, com arma de fogo
Local da sepultura - Cemitério da Ajuda – Lisboa
Observações: Accionamento de granada – armadilha IN


Do
7º VOLUME – Fichas das Unidades
Tomo II
Guiné
1.ª Edição (2002) Páginas 284 e 285


Batalhão de Cavalaria n.º 2922
Identificação - BCAV 2922
Unidade Mobilizadora - Regimento de Cavalaria n.º 3 – Estremoz
Comandantes - Ten Cor Cav António Manuel Guerreiro Chaves Guimarães
Ten Cor Cav Raúl Augusto Paixão Ribeiro
2.º Comandante - Maj Cav António José Pereira Calisto
Oficial Operações - Maj Cav João Luís Laia Nogueira Mendes Paulo
Maj Cav Augusto das Neves Oliveira
Comandantes de Companhia
CCS - Cap Cav João Manuel Duarte Moniz Barreto
Cap Mil Cav Rodrigo José Afreixo Ferreira
Cap. SGE Hermann Mendes Schultz Guimarães
CCAV 2747 - Cap Mil Cav José Joaquim Leal de Faria d’Aguiar
CCAV 2748 - Cap Cav José Eduardo Castro Neves
CCAV 2749 - Cap Cav José Luís Pereira Pissarra
Cap Mil Cav Rodrigo José Afreixo Ferreira
Divisa “À Carga!”
Partida - Embarque em 18 de Julho de 1970; desembarque em 23 de Julho 1970
Regresso - Embarque em 18 (CCAV 2747), 19 (CCAV 2748 e 2749) e 20 de Junho de 1972 (CMD e CCS).

Síntese da Actividade Operacional

Em 12 de Agosto de 1970, rendendo o BART 2857, assumiu a responsabilidade do Sector L4, com sede em Piche e abrangendo os subsectores de Canquelifá, Buruntuma e Piche; as suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do Batalhão.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamentos, reconhecimento, emboscadas e de controle e segurança de itinerários, além da protecção aos trabalhos de construção e asfaltamento da estrada de Piche-Nova Lamego, tendo ainda executado acções de reacção a numerosos e violentos ataques aos aquartelamentos e aldeamentos da sua zona de acção.

Da sua actividade ressalta a captura de 1 espingarda, 2 lança-granadas-foguete, 15 cunhetes e 26 granadas de armas pesadas e a detecção e levantamento de 22 minas.

Em 22 de Maio de 1972, foi rendido no sector pelo BCAÇ 3883 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

X X X X X

A Companhia de Cavalaria n.º 2747 seguiu em 19 de Julho de 1970 para Piche, a fim de efectuar a sobreposição e render a CCAÇ 2679, tendo assumido a função de intervenção e reserva do sector a partir de 20 de Agosto de 1970, realizando diversos patrulhamentos, batidas e escoltas.

De 30 de Setembro de 1970 a 19 de Janeiro de 1971, cedeu dois pelotões para reforço da actuação da guarnição de Bajocunda.

Em 24 de Maio de 1972, foi rendida pela CCAÇ 3544 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar embarque.

X X X X X

A Companhia de Cavalaria n.º 2748 seguiu em 01 de Agosto de 1970 para Canquelifá, a fim de executar a sobreposição e rendição da CART 2439, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector, com um destacamento em Dunane, em 10 de Agosto de 1970.

Em 24 de Maio de 1972, foi rendida pela CCAÇ 3544 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

X X X X X

A Companhia de Cavalaria n.º 2749 seguiu em 31 de Julho de 1970 para Piche, a fim de efectuar a sobreposição e rendição da CART 2440, tendo assumido a responsabilidade do referido subsector de Piche, em 12 de Agosto de 1970, com destacamentos em Cambor e Ponte do rio Caium.

Depois de, em 04 de Novembro de 1971, ter cedido dois pelotões para reforço da guarnição de Bentém, foi colocada nessa base se apoio à construção da estrada Piche-Buruntuma a partir de 29 de Novembro de 1971, mantendo, no entanto, os anteriores destacamentos referidos.

Em 01 de Abril de 1972, voltou a Piche, onde se manteve até ser rendida pela CCAÇ 3546, em 24 de Maio de 1972, após o que recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.


José Martins
Fur Mil Trms Inf
CCaç 5 - Gatos Pretos
Guiné - Canjadude
1968/1970
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Nota do co-editor CV

Vd. post de 30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2012: Em busca de... (7): Meu irmão, Guido de Ponte Brazão da Silva, alferes, morto em Canquelifá, em 1970 (Conceição Brazão)

Guiné 63/74 - P2034: Bibliografia de uma guerra (22): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás, Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)


Vamos mais uma vez falar do escritor Mário Vicente, ou melhor, do nosso camarada Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66), a propósito da apresentação do seu primeiro livro, Putos, Gandulos e Guerra, em 22 de Abril de 2000 (1).

A cerimónia de apresentação teve lugar no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Vila Fernando, sua aldeia natal, pertencente ao concelho de Elvas.

O livro foi apresentado pelo seu amigo e companheiro de sempre Dr José Luís Miguel de Carvalho, também ele ex-combatente da guerra do Ultramar, desta feita como Alf Mil em Angola.

Feita a apresentação pelo Dr Miguel de Carvalho, tomou uso da palavra o nosso camarada. Reconhecendo a Mulher como um pilar essencial no seio de cada família, nas diversas vertentes, principalmente como Mãe e, sentindo-se irremediavelmente preso à sua Terra-Mãe, dedicou, em preito de homenagem, ao seu Alentejo e às mulheres alentejanas o seu livro Putos, Gandulos e Guerra.

Introduziu no seu pequeno discurso poemas dedicados ao Alentejo e às suas gentes, de autoria de dois grandes vultos da literatura portuguesa: Florbela Espanca, poetisa alentejana, e Eugénio de Andrade, beirão, mas grande amigo do povo alentejano.



Capa do livro de Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra (2000).
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
A capa do livro também é uma homenagem. Mário Vicente quis homenagear os seus homens colocando na capa do seu livro, uma fotografia tirada no dia 22 de Dezembro de 1965, durante a Operação Tesoura, na região de Cadique.

Atentemos agora ao seu discurso:

-"Porque a vida não se troca, nem se vende por nada! Só não sente, quem não tem capacidade para recordar!

!A influente conspiração contínua, do adquirido sobre o inato, vai metamorfoseando o (barro) Homem, inoculando-lhe na inocência, - o saber de experiência feito - a escola da vida. Assim se vai nesta complementaridade, construindo o Ego de cada um de nós".

"Escrito sobre homens. Subrepticiamente vai revelando a influência da mulher, na sua desmultiplicação de: Mulher mãe, irmã, amante, companheira e amiga. Eis pois, como gato sobre brasas, Putos, Gandulos e Guerra transcreve a observação – vivida - de alguém sobre o que o rodeia".

"Não é este livro,pretensão literária! Mas tão somente o tentar transpor para a escrita, o sentir da vida – sofrida - do povo da Planície. E porque não também, essa força-mulher, que foi Florbela Espanca?"

Dela, o poema:

Pobre de Cristo

Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viste o mar,
Onde tenho o meu pão e a minha casa.
Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folhas... a dormitar...
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra moirisca a arder em brasa!

Minha terra onde meu irmão nasceu
Aonde a mãe que eu tive e que morreu
Foi moça e loira, amou e foi amada!
Truz... Truz... Truz... Eu não tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, é quase noite,
Terra, quero dormir, dá-me pousada!...

(...) "Sou um sofredor!... O cordão umbilical ainda não me foi cortado. Confio que não o seja!...
Sinto-me bem ligado à Terra-Mãe. Por esse motivo, aqui trago estas folhas, as quais espero sejam o símbolo de uma aldeia una, nesta linda planície".

"Assim sendo: Este livro não é meu! É dos que do nascer ao pôr do sol, - por magra jorna - trabalharam a terra que não era sua".

"É de quem vergado sob o sol escaldante de meio do dia esgotava as forças - dádiva da magra açorda com azeitonas, puxando pela torta, ceifando o-pão-trigo do mítico celeiro de Portugal".

"Este livro é também dos e das que encharcados, sob o agreste frio e chuva do Inverno enterrando as mãos na gélida terra, apanhavam: a fonte que daria força às sopas e luz à humilde candeia".

"Este livro é das mulheres escravas que após um dia de trabalho, em vez do merecido descanso, tinham ainda marido e filhos para tratar e a casa que, limpa e branquinha, lhes dava merecido orgulho!

"Este livro é daqueles e daquelas que sofreram a saudade da partida e a ansiedade da chegada, dos seus mais queridos, que viram partir para a guerra!

"Este livro é dos que aqui nasceram, e dos que aqui chegando criaram raízes!
Também vale a pena recordar" (...):

De Eugénio de Andrade:

Eu sou devedor à terra,
E a terra me está devendo.
Que a terra me pague em vida,
Que eu pago à terra em morrendo.

Finalizou dizendo: "Este livro é vosso, homens e mulheres da minha terra! "

Mário Vicente

2. Comentário de CV.

Ficamos assim a conhecer um pouco melhor a outra faceta do ex-combatente e nosso camarada Mário Fitas. Se o Mário quiser desvendar um pouco do seu livro, para aguçar o apetite a quem o pretender ler, teremos em breve algumas estórias no nosso blogue.
__________

Nota de CV.


(1) Sobre o seu último livro, Pami Na Dondo, v. posts de:

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2033: In Memoriam (2): O saudoso Amaral da horta e dos presuntos de Missirá (Jorge Cabral / António Branquinho)

Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 63 > 1971 > O António Branquinho, de pé, e o Amaral, vestidos à civil. Eram dois dos furriéis milicianos do Pel Caç Nat 63.

Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho, uma bajuda e o Amaral (sentado).

Fotos: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem que nos acaba de chegar, à caixa do correio, enviada pelo Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 :


Caro Luís: Hoje é tristeza que envio. A morte do Amaral causou-me imensa dor. Abraço Grande
Jorge

MORREU O AMARAL!

Andei um ano à procura do número de telefone do Amaral. Na semana passada consegui. Liguei logo, disposto a brincar. Perguntei por ele e ouvi:
- Morreu há dias, sentiu-se mal no casamento do filho, autópsia inconclusiva.

Abafei um soluço, e viu-o, à minha frente, simpático, risonho, bonacheirão... Informei o Branquinho, que me remeteu duas fotografias, e três apontamentos. Fala dos presuntos e da horta, episódios que já referi, romanceando (1), mas prometeu mais.

Passaram já trinta e seis anos. Porquê, então, esta tão grande mágoa? É que ele era, é da Família.

Camarada, Amigo, Irmão, tal como o Branquinho, que sei, sentiu igual desgosto. Amaral! Vamos continuar a contar as estórias da tua estadia em Missirá. Dessa forma, estou certo, continuarás vivo e entre nós.


Jorge Cabral


2. Texto do António Branquinho (ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63)

Jorge: Conforme pediste, em anexo envio-te 2 fotografias com o saudoso Amaral em Missirá no ano de 1971, eu e ele trajados a civil para esquecer que nos encontrávamos no teatro de guerra na Guiné.

Lembrar o amigo e camarada:

(i) Quando íamos buscar géneros alimentícios a Bambadinca, incluindo nestes o bidão de vinho, logo que o mesmo era descarregado no nosso depósito de géneros em Missirá, dizia:
- Branquinho, vamos meter o espicho no pipo (bidão) para o provar afim de vermos se é de boa colheita.

Após isto, disse ser uma maravilha, comentando ser da colheita de 1969!...

(ii) Outra história, não estória:

Em Missirá conseguiu fazer uma horta, por força de sementes que trouxe da sua zona em Portugal, nomeadamente pepinos, tomates, nabiças, melancias, etc. Quando os produtos estavam quase prontos para consumir houve uma tremenda seca, pelo que a horta sucumbiu.

Perante esta situação fez um grande pranto à horta chorando copiosamente. Em Missirá os milícias caçavam muitos javalis. Perante este excesso de animais o Amaral lembrou-se de fazer presuntos dos mesmos. Dito e feito. Passado algum tempo, junto ao depósito de géneros sentira-se um cheiro nauseabundo. O que seria? Depois de muito cogitar chegámos à conclusão que se tratava dos presuntos do Amaral (javalis) (1). Aquilo eram bichos mais bichos e a carne putrefacta devido ao intenso calor e à falta de gordura dos animais.

Entre estas, muitas mais histórias te poderia contar acerca do nosso amigo e camarada Amaral.

Um abraço

António Branquinho

3. Comentário de L.G.:

Amigos e camaradas:

O In Memoriam foi estreado com o Zé Neto, o primeiro tertuliano a morrer (2)... Hoje recebi a triste notícia de que mais um dos nossos que deixou a Tabanca Grande mais pobre e mais triste... O Amaral, ex-furriel mil do Pel Caç Nat 63, em Missirá, sendo comandante o alf mil Cabral, já não está connosco. Ele não pertencia, formalmente, à nossa tertúlia, mas o Jorge (e agora o Branquinho) já nos tinha evocado aqui a figura desse camarada, que alguns de nós conheceram (a malta de Bambadinca, 1969/71)...

Um abraço de solidariedade para o Cabral e para o Branquinho, seus camaradas e amigos. Se mais alguém o conheceu, ao Amaral, que nos mande fotos ou notas sobre este camarada, cuja memória perdurará através do nosso blogue. Luís Graça, em semi-férias.

________

Notas dos editores:

(1) Vd. post de 14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)


(...) Chamavam-lhe, os africanos, o furriel Barril, não sei se pela sua compleição física, se por via da fama e do proveito que ganhara como bebedor quotidiano e calmo. Estou a vê-lo ao serão, bebendo à colher, com paciência e estilo, enquanto o alferes declamava, e o maqueiro Alpiarça escrevia a uma das dezenas das madrinhas de guerra.

Junto à fonte o Amaral havia construído uma viçosa horta, na qual os tomateiros, as alfaces e as couves medravam fortes, e dera-lhe na cabeça fabricar presuntos utilizando quartos traseiros de onças. Desta actividade lembro o cheiro nauseabundo, que até os mosquitos afastava.

Um dia aconteceu. Três vacas do mato, bichos que pareciam burros, invadiram a horta, banqueteando-se, com as saborosas verduras, o que o deixou, em fúria. Ciente que o criminoso volta sempre ao local do crime, eis na manhã seguinte o Amaral, emboscado, pronto a vingar-se. Pum, pum, pum, três tiros certeiros, e logo, eufórico, pedindo-me para ir a Bamdadinca transaccionar a carne.

Desmanchados os bichos e face à avaria da única viatura, contratou carregadores, aos quais pagou. Fazendo de cabeça as contas, anteviu um lucro fácil que lhe atenuasse a dor da horta destruída. Chegados ao Batalhão, porém, o vaguemestre olhou, cheirou e concluiu. Carne estragada, imprópria para consumo. Catorze quilómetros ao tórrido calor ...tinham sido fatais.

Gastou dinheiro, perdeu a horta e nunca o vi tão triste. Para o animar, aventurei-me a provar dos seus presuntos. Intragáveis, quase vomitei...

Ai, Amaral, Amaral, porque não te dedicaste à pesca!...

Jorge Cabral


Vd também post de 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

(...) Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral, sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!). Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
-Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
-Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló. Contou-me o Branquinho que, quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
- Ainda bem!

(2) Vd. post de 31 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1805: In memoriam (1): Adeus, Zé Neto (1929-2007) (José Martins, Humberto Reis, Luís Graça, Virgínio Briote e outros)

Guiné 63/74 - P2032: História de vida (4): Ainda sobre o meu irmão, o Srgt Mil Sérgio Neves, que foi amigo em Moçambique de Daniel Roxo (Tino Neves)

Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves

Foto: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem enviada, em 26 de Julho, pelo Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71:



Camarada Luís:

Serve este para responder às tuas dúvidas sobre o meu irmão, 2º. Sargento Mil Sérgio Neves (1). Mas primeiro que tudo, o meu agradecimento, pelo facto de editares o material que te mandei sobre o meu irmão.

Já tinham sido publicadas várias estórias sobre ele no sítio Moçambique – Guerra Colonial , enviadas por mim.

Sobre a relação que o meu irmão tinha com o Cmdt Daniel Roxo, quero fazer primeiro uma pequena introdução. O Sargento Neves era uma pessoa muito dada, e amigo do seu amigo, e por onde passava arranjava sempre grandes e bons amigos, pois era um grande falador, um extrovertido, e também um bom copo ou garrafa, conforme a situação. Quero com isto dizer que por norma é neste embiente que se convive, e se fica a conhecer os outros e se fica amigo do amigo, pois pode-se apresentar uma pessoa a outra, trocar-se algumas palavras, e depois fica por ali, se não houver algo como Vamos beber um copo (escusado será dizer que nessa altura era o que se fazia mais).

Portanto, quando o meu irmão se encontrava com o Cmdt Daniel Roxo, que não era todos os dias, porque o Cmdt DR, muitas vezes, passava semanas a fio no mato, havia copos com toda a certeza, e nessas alturas era então que o Cmdt DR o convidava para ir com ele para o mato (desconheço se para fazer alguma operação em especial, ou simplesmente para fazer alguma patrulha à zona).

Mas que eram grandes amigos, eram, porque quando ele me falou do Daniel Roxo pela primeira vez, ele descreveu-o assim: UM GRANDE AMIGO!... E alguns anos depois do 25 de Abril 1974 veio cá a Portugal um irmão do Cmdt Daniel Roxo que visitou o meu irmão.

Como operacional, só me contou que uma vez houve uma grande operação com Forças especiais (Páras, Fuzos, etc) e também FAP. Estando todas as tropas posicionadas a cercar o objectivo, começaram a fazer fogo com tudo ao seu alcance, mas numa determinada altura o meu irmão, que estava junto do Comandante da operação, reparou que não havia resposta do IN, sugeriu que acabassem o fogo e, se depois não houvesse resposta do IN, ele com a sua Secção iria lá entrar e sair pelo outro lado.

O Comandante aceitou a sua sugestão e avisou o resto das tropas de que se iria fazer aquilo.O resultado foi que o meu irmão fez precisamente o que prometeu, havia lá só meia dúzia de elementos IN (não me recordo se foram abatidos ou capturados) e várias armas e munições. Quando o meu irmão e a respectiva Secção apareceu no outro lado, nem queriam acreditar no que ele tinha feito.

Uma ressalva em relação ao editado no Blogue: Quando se diz Era bom, julgava eu, porque ele dizia-me que só se lembrava que era militar quando fazia de Sargento de Dia, porque na Secção dele era o único militar, e ele era o Chefe, e falava da esposa do Major Tal, da filha do Capitão tal, etc. etc.... Deve ler-se: (...) "porque na Secção dele era o único militar e o Chefe do restante pessoal que era civil, como por exemplo 'esposa do Major, a filha do Capitão, etc.', em suma os familiares dos oficiais de maior patente".

Quanto à fama e alcunha de Mercenário, talvez tenham exagerado muito. Foi ele que me disse que tinha ficado conhecido pelos amigos como o Mercenário.

Quanto ao escrito Em Mueda os cordeiros que chegam são os lobos que saem - Adeus Checas, ele disse-me, quando me mostrou a foto, que tinha sido ele que o tinha feito, daí estar junto da frase, como senda a sua assinatura, ele mesmo.

Aí vai mais uma foto do Mercenário.

Sem mais de momento

Um abraço

Tino Neves

Almada

___________

Nota dos editores:

(1) Vd. posts de:

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)



7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)

"Depois da flagelação de 19 de Março de 1969, em que perdi todos os meus livros (e discos),escrevi a muitos amigos que prontamente vieram em meu auxílio.

"O Mário Braga foi um deles. Tinha-o como uma referência da litertura neo-realista, sempre me dei bem com os seus contos,admirava-lhe a postura cívica. Ele veio até Missirá com livros de norte-americanos. Foi grande tradutor,e a sua mulher é nome obrigatório da tradução em Portugal. Falei já da tradução do Mário Braga, O silêncio e o Mar, de Vercors, que me deu uma grande companhia. Fui há dias ao seu aniversário, qualquer dia fará 90 anos"...



"Um dia fui visitar o Ruy Cinatti e ele disse-me: Estou a posar três vezes por semana para a minha vizinha. Vou ter quadro de artista, ela melhorou-me bastante.

"A Maluda estava na época no pico da notoriedade, já com as suas janelas e telhados. Vivia na Travessa da Palmeira nº12, 3º Esq., era portanto vizinha do Cinatti. Habituei-me a este belo quadro que estava pendurado na sala, não muito longe de um óleo do António Dacosta, obra que o Cinatti muito estimava. Um dia ofereceu-me esta fotografia que meti numa moldura e estava na minha secretária. Por testamento, este quadro faz hoje parte do património da Obra do Gaiato. É pena que não seja exposto num museu, nem que fosse a título temporário ou numa exposição dedicada ao Cinatti. Vamos esperar".

Fotos e legendas : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.




Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 17 de Julho último. Correspondente ao episódio nº 57 (e último) da I Série da OperaçãoMacaréu à Vista, ou ao primeiro volume das suas memórias do Cuor, correpondendo cronologicamente ao seu 1º ano de comissão (1).

Caro Luís, aqui vai o texto revisto. Agora, começa a penitência da revisão geral, da ordenação da papelada toda. Estive a pensar, vou ordenar tudo por mesas: melhora os textos, dá uma melhor sequência ao leitor. Recebe um grande abraço do Mário.

Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)
por Beja Santos (2)

Para o Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father:

Agradeço-lhe do coração a sua carta. Tem razão, sou palavroso, manipulador, forço as palavras como forço as pessoas. E o resultado vê - se nos meus pseudo-poemas e nas relações humanas. Sensibilizou-me o seu poema "De um postal seu":

Donde sei
pra onde
não se sabe
sou
retirante.

O resto
irá por carta
ou
pelo telefone
- . -
Que outros relatem
o meu cansaço.

Eu anuncio
o poder da morte
lembrando tudo o que me prende à vida.

Viver a pedir,
receber, porquanto
quem recebe deve
- estranha condição.

Eu nunca pedi.
Devo solidão.

As minhas notícias, hoje não são famosas. Continuo punido, não posso ir a férias, vou repensar a minha vida e as decisões que vou tomar com a Cristina. Por aqui, com o contigente de Missirá reduzido, com a obrigação diária de irmos a Mato de Cão e fazermos uma emboscada, com a tropa doente em plena época das chuvas, ainda com obras em acabamento, estou atado de pés e mãos. Há quem pretenda consolar-me em Bambadinca dizendo que não há mais exigências operacionais para Missirá e Finete... como se eu pudesse desdobrar-me ou fazer uma vida operacional deixando dois aquartelamentos às moscas, entregues à população civil.

Dentro do que é possível fazer, há um pouco mais de conforto neste quartel, não tem falhado a abastecimeto de arroz para a população civil, os salários são pagos a tempo e horas, não há neste tempo sinais das destruições de Março, conseguimos pagar a um professor para dar aulas às crianças, acabou-se um paiol de munições e combustíveis, os cozinheiros podem fazer esparguete com chouriço, feijão com carne enlatada, galinha com legumes em conserva, a padaria funciona, temos no frigorífico águas Perrier e Vichy, os inimigos de Missirá e Finete sabem que andamos constantemente na mata.

Procuramos ajudar as famílias nos seus cultivos, não é fácil mantermos aqui centenas de pessoas na época das sementeiras mas é muito bonito ver as hortas cheias de tomate e beringela, as papaias são deliciosas, a população civil leva sempre um reforço militar quando vai cultivar para as antigas tabancas, há uma, chamada Canturé, entre Missirá e Finete, cheia de cajueiros, laranjeiras e limoeiros, com imensos morros de baga-baga, que é uma beleza. Tenho as consciência tranquila de que há empenho, uma boa relação entre civis e militares, o inimigo em respeito. Mas não podemos fazer mais nada, não posso levar civis para os patrulhamentos, não os posso pôr nas emboscadas nem nos reforços.

Os guerrilheiros estão relativamente perto de Missirá, no Gambiel, onde trabalhou o Prof. Armando Cortesão, colega do Teixeira da Mota. A propósito, estive com ele no início de Julho, jantámos, ofereceu-me livros e revistas (daí na sua carta escrever: "O Teixeira da Mota diz-me que V. está metido num buraco, vivendo como uma toupeira", o que não é verdade pois não me escondo debaixo da terra). Estou doente e não sei como resistir a algumas dores. Há dias, numa emboscada, um dos meus colaboradores mais capazes perdeu a cabeça e chamou-me branco assassino, sei muito bem que são frases demenciais, gritadas no instante, mas deixam marcas profundas, laceram o tecido afectivo, destroem a confiança. Enfim, o primeiro ano de guerra está feito, não sei por quanto mais tempo estarei em Missirá, adoro as gentes, a floresta, pergunto-me às vezes como é que esta experiência enformará o jovem adulto que sou. Receba a saudade e a profunda estima.

Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo,

Desculpe ser breve. A Missirá civil e militar quer notícias suas. A sua recordação está muito vincada nesta gente que cultiva o heroísmo. Posso compreender que V. pretende esquecer o que aqui viveu, mas asseguro-lhe que deixou memórias e amigos. Tornou-se uma lenda em Missirá. Todos falam de si como aquele que não tinha medo, que se dava ao respeito, que se interessava pelos problemas de todos. Estamos a viver um período difícil, subtraíram-nos mais soldados milícias, quase que não posso dar passo sem contar quem vai e quem fica, quem está doente ou vai de férias.

Despeço-me com uma novidade: regressou o bom senso, Enxalé voltou ao sector de Bambadinca. Eu vou comemorar, farei como V. fazia tantas vezes, meto-me ao caminho e vou almoçar com os camaradas de lá, na primeira oportunidade (espero que não se tenha esquecido que são cinquenta quilómetros ida e volta). A gente de Madina está muito activa, acabo de ter a notícia que foram descobertas nos Nhabijões várias canoas enterradas no lodo, com que eles fazem a cambança a partir da bolanha de Gambana. Ali perto, há dias, encontrei uma coluna de noite, escusa de me perguntar se havia mais militares ou população civil, morreu uma mulher, os outros fugiram porque um dos meus cabos perdeu a cabeça e desatou aos gritos. Escreva, por favor. Bem gostava de lhe mandar toda a estima que vejo no olhar de toda a gente quando se fala em Luís Zagalo.






Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção Postales Escudo de Oro > Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) > Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe:

S. Pedro do Sul, 27/8/1969:

Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Carta para Ângela Carlota Gonçalves Beja


Querida Mãezinha,

Fiquei muito contente em saber que as suas férias nas termas de S. Pedro do Sul lhe trouxeram mais saúde. Cá recebi os seus livros, adorei o do Ruben A. Como se recorda, dediquei-lhe um programa que fiz nos serviços mecanográficos, onde trabalhei, fou uma exposição em 1966, depois disso ele recebeu-me na sua casa perto do Estremoz quando lá fui com o Ventura Porfirio fazer a reportagem sobre uma colecção de Cristos para o jornal Encontro. A sua autobiografia (O mundo à minha procura) é uma obra-prima.

Venho informá-la de que a redacção da minha punição foi alterada mas os dois dias de punição mantêm-se, pelo que só a poderei ver no próximo ano, se Deus quiser. Peço-lhe que não se mortifique, a vida continua, eu vou resistir como me ensinou. Ainda chove muito por aqui, mas estou cheio de saúde, o trabalho prossegue. Pergunta-me se vou ficar aqui mais tempo. Nada sabemos, até há uns meses atrás as comissões estavam divididas em doze meses em locais de alto risco e doze meses em locais com mais tranquilidade (em Bolama, por exemplo, a dar instrução). Agora é diferente, permanecemos praticamente nos mesmos locais e sempre ligados à mesma tropa. Fico contente quanto a este aspecto, a minha relação com os soldados guineenses é fraternal, gosto muitíssimo deles.

Estou a preparar a documentação para me casar, indeciso quanto à deslocação da Cristina, dadas as novas circunstâncias. Rezo todos os dias pela sua saúde, sinto-me cada vez mais feliz pela formação que me deu, sem ela eu não teria sabido resistir a todas as dificuldades com que me defrontei e defronto. Aceite a muita saudade e receba muitos beijinhos.


Carta para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Começo por te dar notícias de um livro arrebatador que trouxe de Bissau, A sangue frio, do Truman Capote. A tradução é preciosa, da mulher do Mário Braga, a Maria Isabel. Ao princípio, eu não sabia se estava a ler uma reportagem, um documentário ou um romance. Capote anuncia que o livro se baseia em relatos oficiais e em entrevistas. Começa-se a ler e fica-se confuso: ficção ou realidade? Fala-se de uma aldeia onde houve o assassínio de uma familía de quatro pessoas. O autor descreve com tanta agudeza o pai austero, o dia-a-dia de uma mãe convencional e dois jovens perfeitamente triviais, que se vacila entre a reportagem e o romance. Os diálogos, as descrições, as entrevistas são impressionantes. Depois a polícia descobre os dois homicídas. Regressa a confusão: é o autor que conversa com os homicidas? O detective é mesmo aquele homem que se chama Dewey? Os dois homicidas mataram por ódio ou por dinheiro? São centenas de páginas que se lêem com grande comoção, tal o gigantismo da palavra.

Enquanto lia este romance-documentário (existirá este género literário?) eu interrogava-me, roído de inveja, se não era um livro como este que gostaria de escrever sobre esta guerra da Guiné. Felizmente que tenho consciência da falta de méritos literários, mas gostava de dignificar um dia a epopeia nestas terras dos Soncós.

Obrigado por tudo quanto me tens escrito, os sopros de coragem e de ternura que aqui fazes chegar. Para ser sincero contigo, como tu gostas, ainda não me refiz da acusação de "branco assassino". Sei que vai sarar, mas sei também que me vou olhar de maneira diferente. Mantendo-se a punição, e sabendo-se agora em definitivo que só voltarei em 1970 aí, e não antes de Agosto, vamos ter de tomar os dois decisões importantes. Do meu lado, vou reagir à ofensa desta punição injusta, vou procurar de novo recorrer. Já me disseram que não é fácil recorrer de uma punição de um oficial general, mas estou por tudo.

Prometo-te que volto a Bafatá, para refazer os nossos documentos, já que havia declarações mal preenchidas, não estava lá o teu nome completo, faltava até a morada do meu pai ( a que propósito é que tenho que pôr a morada do meu pai, sendo eu maior e vacinado?). Não sei se estou a ser praxado, mas também me informaram que tenho de pedir ao comandante de Bambadinca autorização para o enlace. E lá vou ouvir de novo o secretário do Sr. Administrador, com o seu bigodinho à Clark Gable, a explicar-me o que é um casamento com separação de bens e uma convenção antenupcial. Nós não vamos desmoralizar. Sê prudente, não sofras com tudo aquilo que não se deve sofrer só porque não se compreende. Vivemos os dois esta agrura, não deixemos que as lágrimas se percam na terra.

Assim se passou um ano desde que a chorar me acenaste para o "Uíge". Graças a ti, ao ânimo que me trazes todos os dias, aconteceu este milagre de eu ter aprendido a resistir, a saber ultrupassar as dificuldades. Aprendi a fazer contas, a saber o que era a gestão de um quartel, aprendi a meter-me na mata profunda, a encarar como uma obrigação o defender e o combater. Não sabia o que era matar, aconteceu e não sei se voltará a acontecer. Sinto-me muitas vezes entorpecido, tenho saudades do cinema, do teatro, da música, do bailado, das conferências, das exposições, dos meus queridos amigos. Mas a vida ensina-nos as prioridades de um momento, colamo-nos a elas, e, a uma dada altura, descobrimos que valeu a pena e aceitamos a mudança como uma dádiva do Senhor.

Dói muito não poder fazer planos para o futuro. Missirá, a sua defesa e o seu combate, é o que tenho ao alcance da mão. Promete-me que me continuas a ajudar. Um belo dia, descobriremos os dois que mais um ano se passou. E que estamos preparados para viver um grande amor. Muito cansado, e para te dizer a verdade doente, beijo-te daqui até Lisboa.

_______

Notas dos editores:

(1) Vd. último post desta série: 20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!

(2) nVd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)

domingo, 5 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1ºCabo Enfermeiro Teixeira, em Empada, em 1969, com a sua namorada, a G3ertrudes, com quem irá manter um conflituosa relação que acabará mal. Quem lhe manda, entretanto, um grande Alfa Bravo (abraço) é um dos antigos Maiorais, o ex-Fur Mil Armas Pesadas Samouco, José Manuel Samouco.

Como o mundo é o pequeno e o nosso blogue já é grande, conheci-o pessoalmente, na Praia da Areia da Areia, a caminho da Praia de Vale de Frades, no nosso passeio matinal. Ele reconheceu-me, do blogue... Demos um grande abraço e ficámos um bom bocado à conversa. Ex-bancário, ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Bancários do Sul e Ilhas (durante 10 anos), acaba de reformar-se, prometendo mandar algum material documental para o blogue. Tem casa aqui na Praia da Areia Branca. Falámos, inevitavelmente, dos Maiorais, do Alf Belo e do enfermeiro Teixeira, do blogue, de uma próxima ida à Guiné... Ao fim da tarde, ligo o computador e temos o Zé Teixeira em cena... Nem de propósito! Telepatia ? Boa continuação de férias para o pessoal da Tabanca Grande que se pode dar a esse luxo! Desculpa, Carlos, de meter o bedelho no teu serviço... (LG).

Foto: © Zé Teixeira (2006). Direitos reservados.


A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas

por Zé Teixeira

O Encontro

Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

1º. Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

2º. Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

3º. Sempre travadinha, para não fazer asneiras.

4º. Nunca a abandonasse, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.


O início do fim de uma relação impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3ertrudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa , terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu baptismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado, apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o rádiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.
- Já não vejo ! - gritava.
- Ajudem-me a levantar - balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto Safei-me! Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita.

Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.


O meu baptismo de fogo na mata

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
- Ah! G3ertrudes de um raio! Anda cá.

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho.

À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o impecilho que me salvou a vida. Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes (*), natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.


O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegamos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão (2).


Zé Teixeira
__________

Nota do autor:

(*) Vd. a descrição que o José Belo faz do Soldado Salvaterra [no post anterior]:

Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!
______________________________

Notas do editor:

(1) Vd. último post desta série > 18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1853: Estórias do Zé Teixeira (17): Quando não se acautela a vida, a morte pode espreitar

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Guiné 63/74 - P2029: Da Suécia com saudade (3) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (3): O Soldado Salvaterra ou mais uma peça de carne para canhão

Mais um trabalho do camarada ex-Alf José Belo (que vive na Suécia desde 1976), como sempre encaminhado até nós pelo nosso companheiro Zé Teixeira.
Ambos pertenceram ao 2.º GComb da CCAÇ 2381, Os Maiorais (Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Tudo servia para carne para canhão
por José Belo (1)

Era cedo. Uma daquelas manhãs geladas, húmidas, cinzentas, dos invernos de Abrantes.
O Pelotão ia formando na parada para mais um dia de instrução enquanto se aguardava o embarque para a Guiné.

Um dos Furriéis dirigiu-se para mim, acompanhado por um Soldado.
-Meu Aspirante, este é o Salvaterra! Apresentou-se ontem. Faz parte da Companhia e foi colocado no 2.º Pelotão!

Olhei-o pasmado. À minha frente estava o que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Tentei, com a ajuda do Furriel, melhorar, dentro do possível, todo o caos que era o fardamento do Soldado. Foi o nosso primeiro contacto!

A partir daí, o Soldado Salvaterra tornou-se no involuntário palhaço do Pelotão. Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços e, muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!

OS ANOS SESSENTA! O período em que nas escolas, jornais, televisão e rádio, nos
bombardeavam com o Portugal do Minho a Timor. Dos terroristas fanáticos, que pretendiam destruir a civilização Cristã - Ocidental em Africa, subvertendo os bons nativos resultantes de séculos de Portugalidade - missionária!

O período em que Camões foi apropriado para ser usado, e abusado, como bandeira da... Lusitaneidade! Não o Luís Vaz, exilado, empobrecido - vivendo de amigos - nos extremos do Império. O que nem dinheiro tinha para a viagem de regresso! Mas antes o Luís de Camões! Sacro! Divinizado de espada em punho...e Lusíadas debaixo do braço!

Era o período em que Os Descobrimentos e os descobridores quase se tornavam conversa de pequeno-almoço em família. Tanto se falava, a nível educacional e governamental, no Infante D. Henrique que não sobrava tempo para lembrar que o mesmo tinha introduzido a lucrativa escravatura negra na Europa de então, tornando-se um dos mais ricos do Reino.

Gravura do Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958, por onde todos estudámos e aprendemos a amar a Pátria. Era, no entanto, um manual profundamente ideológico... servindo o propósito de um Estado, sem legitimidade democrática, de educar o povo, do berço à tumba.... (LG)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

No Portugal dos anos sessenta quem seriam os Excelentíssimos Membros da Junta Médica que apurou o Soldado Salvaterra para todo o serviço Militar? Quem seriam os Excelentíssimos responsáveis militares que, depois de O VEREM, acabaram por o mobilizar como Atirador de Infantaria para a Guiné? Com essas Excelências, de certo modo, as contas ficaram provisoriamente assentes aquando dos primeiros tempos de Abril-74.

Mas comigo próprio? O Aspirante comandante do pelotão em que o Soldado Português - Salvaterra era o MÁRTIR, o palhaço, o momento constante de irritação? O jovem conduzido, ou melhor, imbuído, a repetir...gestas de antanho? Não era a nossa geração que se apropriava da História; era a História que se apropriava de nós!

Mais do que o remorso e a vergonha, é a pergunta: - Como foi possível que o Aspirante, militarão, ingénuo e estúpido, não tenha então reagido? Não tenha sequer exigido da parte dos superiores a atenção para o caso do pobre doente que era o Soldado Salvaterra?

Hoje, olhando-me ao espelho da memória, o que mais me assusta, é que ENTÃO ... nem sequer me dei ao trabalho de nisso pensar!

SOLDADO DE PORTUGAL - SALVATERRA BERNARDES - PRESENTE!

(O Maioral do 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 – Salvaterra Bernardes - já faleceu.)

José Belo
_________

Nota de CV:

(1) Vd. postas anteriores desta série:

6 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1818: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (1): Hino à Guiné que nós conhecemos

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 – P1883: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70 (2): Periquitos, no Rio Cacheu, sem munições

sábado, 4 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2028: A História da CART 3492: Afinal, não regressaram todos (Álvaro Basto)

No Niassa foram todos

1. A propósito do encontro da CART 3492, escrevi ao Álvaro Basto:

Álvaro, caro Camarada,

Os meus agradecimentos pela tua saudação à minha entrada como co-editor. Estive a ver as imagens do vosso encontro e não deixo de te dizer como compreendo bem a alegria que tiveste em ver os teus camaradas, tantos anos já passados. E para vos felicitar por terem regressado todos. Será que li bem? Regressaram mesmo todos?
Era bom demais naqueles tempos.

2 . Em resposta, o Álvaro Basto, emendou:

Meu caro amigo e camarada,

Quando dizia termos voltado todos, referia-me a todos os elementos que constituiam a CART 3492. Efectivamente não tivemos qualquer baixa em combate.

Tivemos uma única baixa. O soldado Eduardo Ribeiro Oliveira que morreu de hemorragia interna num estúpido acidente com a arma, e a quem na altura prestei todo o auxílio possível e para quem a evacuação "Y" tardou mais de uma hora.

Foi uma morte trágica e patética pela estupidez do acidente em si.

Em cima da ponte sobre o rio Pulon onde tínhamos um destacamento, o Eduardo tentou acertar num enorme "peixe-fula" e a bala fez ricochete num dos enormes parafusos que prendiam as tábuas da ponte vindo-o a atingir no abdómen. Ainda o consegui manter vivo até à chegada do helicópetro mas faleceu a caminho de Bissau.

O peixe não era este mas era um semelhante.


Um grande abraço,

Alvaro Basto
_____________________

Nota do co-editor vb:

A morte do Eduardo Oliveira é um retrato das mortes estúpidas que ocorreram à margem da guerra. Claro, a guerra, em si mesmo, é estúpida, sobre ela as palavras já foram todas ditas. Mas as mortes fora da metralha não doeram menos.
E, quantas destas aconteceram?

Afinal, não éramos nós mesmos que dizíamos uns para os outros, aqui na Guiné já não há nada para espantar.

Guiné 63/74 - P2027: Alf Mil Guido Brazão, da CCAV 2748/BCAV 2922, morto em acidente com arma de fogo, Canquelifá, 22/10/70 (Fernando Barata)




1.Mensagem, de 31 de Julho, do Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72):

Caro Luís Graça: Por attachment estou a enviar-te elementos sobre o Guido Brazão (1) , obtidos na Resenha Histórico-Militar.

Ele pertenceu à CCAV 2748 do BCAV 2922.

Abraço F. Barata
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Nota dos editores:

(1) Vd. post de 30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2012: Em busca de... (7): Meu irmão, Guido de Ponte Brazão da Silva, alferes, morto em Canquelifá, em 1970 (Conceição Brazão)

Guiné 63/74 - P2026: Antologia (61): Rumo a Fulacunda: uma estória que ficou por contar ou a tragédia das CCAÇ 1420 e 1423 (Rui A. Ferreira)


Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda. 2ª ed. (1)
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2003. [1ª ed., 2000].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.




1. Excerto do livro de memórias Rumo a Fulacunda, do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40. (Subtítulos e comentário de L.G. Fixação do texto: co-editor vb). 

É uma singela homenagem do nosso blogue ao Rui, que hoje faz 64 anos. Longa vida, Rui (ou Ruizinho, para os amigos mais íntimos)!



(...) Na madrugada do dia sete de Outubro, lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tomando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!...Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistola metralhadoras PPSH) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo Capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o Alferes Vasco Cardoso, directamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.
- Tomar posições de defesa! - gritou o Alferes.
- Reagrupar à retaguarda! - comandava bem lá de trás o maior da 23, Capitão de Artilharia Pita Alves, estratega e Comandante-em-Chefe da operação.

Seis homens isolados e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes o Alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali, conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das Companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. Nado e criado em África, Vasco Cardoso, era dos elementos mais válidos da Companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das Companhias.
Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro, único sobrevivente daquele grupo que se pode aquilatar a vastidão do desastre.

Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade. Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

As duas primeiras baixas do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.

Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia, um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!... Ao terceiro dia caiu o segundo. Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.

O desespero leva a dois suicídios

No último dia em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.

No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu...para nunca mais ser visto. Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.

A morte do Alferes Vaco Vardoso e a rendição do Soldado José Vieira Lauro

O Alferes foi o último a ser abatido e o Soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. Da fronteira para Conackri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial Francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conackri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler Maison de Force de Kindia foi encontrar o 1.° Sargento Piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa.

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as Companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

- Seis! Faltavam seis homens! Dois da 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista n.o 1020/64 Armando Leite Marinho)e quatro da 1423(o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...)

2. Comentário do editor L.G.:

Rumo a Fulacunda era o grito de guerra, muito pouco guerreiro, da Companhia de Caçadores 1420, em cujas fileiras ingressou o Alf Mil Rui Ferreira, substituindo um camarada desaparecido em combate, o Vasco Cardoso, nado e criado em Angola, como o Rui.

Neste episódio o Rui reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado Lauro, rendeu-se e foi feito prisioneiro. Foi o único do grupo que restou , para nos contar esta, que é uma das mais trágicas estórias da guerra da Guiné.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2025: O cruzeiro das nossas vidas (7): Viagem até Bolama com direito a escalas em Leixões, Mindelo e Praia (Henrique Matos)


O Rita Maria (1952-1978) era um navio misto de 1 hélice da frota da Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes (SG), construído pela CUF nos Estaleiros da AGPL. Tinha um comprimento de 103 metros e estava preparado para acomodar 70 passageiros.

Fonte: © Navios Mercantes Portugueses , página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...) . O autor foi oficial da marinha mercante.

Uma viagem diferente,
por Henrique Matos

Penso que, tal como tantos outros que partiam com a “alma a sangrar” mas em navios cheios de militares, tive sorte com a viagem para a Guiné.
Em pleno verão, 10 de Agosto de 1966, com mar chão, saiu de Lisboa o “Rita Maria”, navio misto de carga e passageiros, que nesta viagem levava poucos militares sendo a maioria dos passageiros civis, nomeadamente estudantes, com destino a Cabo Verde. Ainda foi a Leixões só para meter carga, depois Mindelo e Praia com paragens curtas e finalmente Bissau.


A bordo do “Rita Maria” com mais 2 Alf. Mil. companheiros de viagem em rendição individual, cujos nomes não me lembro. Só sei que o do meio era do Porto com especialidade em Adminsitração Militar o que nos fazia inveja porque se sabia que não ia sair de Bissau. O da direita era de Santarém e também tinha como destino uma zona de intervenção. Tanto eu como o do Porto não tínhamos no cais qualquer pessoa a quem dizer adeus, mas impressionou-me bastante a despedida do “Santarém” como lhe chamávamos, dos familiares e namorada. Penso que a cara dele nesta foto ainda reflecte um pouco o que lhe ia na alma.

Curiosidades de Bolama

Numa rua de Bolama com o cais ao fundo, eu com o Alf. Mil. Baptista que estava colocado em São João, um destacamento de Tite, que ficava mesmo frente a Bolama do outro lado do canal. Ao fundo desta rua, à esquerda, havia um monumento curioso ( por estar naquele sítio) que fotografei.


Este monumento que representa destroços de avião, tinha a seguinte legenda: “Mussolini ai caduti di Bolama”, seu autor Quirino Rugger e inaugurado no mês de Dezembro de 1931

Para quem gosta de esclarecer as coisas impunha-se perguntar: quando? porquê?

E as respostas são: em 17 de Dezembro de 1930 sairam de Orbetello(Itália) 14 hidroaviões para estabelecer uma ligação com Brasil, sob o comando de Italo Balbo.

Bolama, onde chegaram no dia 25 de Dezembro, seria o último ponto de paragem em África por ser o mais próximo de Porto Natal no Brasil.

Permaneceram vários dias em Bolama para reparações e à espera de condições atmosférias favoráveis.
Quando decidiram levantar a 5 de Janeiro, de noite, cairam 2 aparelhos causando 5 mortos.
Chegaram ao Rio de Janeiro no dia 15.

O Post CLXXIII do Blogue-fora-nada de 16/8/2005 faz referências a este monumento.



Cartaz que circulou para comemorar o evento



Eu que sou um “curioso ajuntador de selos” encontrei em tempos na internet um postal à venda enviado de Bolama a 27-12-1930 por um daqueles aviadores, com selos tipo “CERES”, que então se usavam em Portugal e Colónias.
Fotos ©: Henrique Matos (2007). Direitos reservados
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Nota do co-editor CV


Monumento que o Duce, Benito Mussolini, mandou erguer na antiga capital da Guiné aos "caduti di Bolama".

Dele escreveu Dons Rachelle Mussolini ao Autor desta reportagem:

'Ammiro veramente i portighesi che non l' hanno distrutto comme ésuscesso cuá in Itália' [Admiro verdadeiramente os portugueses que o não destruiram como aconteceu cá em Itália"(...)
Finalmente: Bolama que tem em si um dos raros monumentos ao esforço fascista de paz, quando Mussolini e Ítalo Balbo tentaram o cruzeiro aéreo para unir Roma ao Brasil. Com efeito, dois dos aparelhos despenharam-se em Bolama e a missão esteve em riscos de se malograr. Tal não aconteceu porque a tenacidade de Ítalo Balbo a isso se opôs.
Resta desse desastre o belo monumento aos «Caduti di Bolama» no qual se reproduz um aspecto dos destroços dos aviões — duas asas, uma das quais ainda erguida aos céus e a outra quebrada e caída em terra.
O monumento foi feito por italianos e com pedra italiana, vinda de Itália, para esse fim.
Mandou-o erguer Mussolini e na sua base lá se encontra a coroa de bronze por ele oferecida, com estes dizeres — Mussolini ai cadutti di Bolama.
Ao lado, a águia da fábrica de hidro-aviões Savoia, uma coroa com fáscios da Isotta-Fraschini e a coroa de louros da Fiat.
É curioso notar que este será um dos raros monumentos do fascismo, no mundo, que no fim de 1945 não foi apeado. Virado para diante e no alto, o distintivo dos fáscios olha ainda com alienaria o futuro, no seu feixe de varas e no seu machado, a lembrar a grandeza da Roma do passado.
Foto e excerto de texto retirado de: Guiné 63/74 – CLXXIII: Informação e Propaganda: os 'grandes repórteres' de guerra em
http://www.blogueforanada.blogspot.com/2005_08_14_archive.html
Selecção e notas de A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P2024: A discoteca de Missirá ou alguns dos discos da minha vida (Beja Santos) (1): De Verdi a Beethoven






1. Texto do Beja Santos enviado a 26 de Julho.


Alguns dos discos da minha vida (Parte I):

Comentários: Graças à solicitude do sempre discreto e formiga/ abelha Humberto Reis, posso mostrar-vos algumas das preciosidades que adquiri em Bafatá, depois de ter perdido todos os meus discos na flagelação de 19 de Março de 1969.É praticamente o que me resta depois de termos passado para os CD, tudo o mais ofereci para vendas de organizações não lucrativas.

A «Tosca» é sublime: do 2º Acto que se filmou no Covent Garden vê-se claramente o pânico da assistência quando Maria Callas «apunhala» Tito Gobbi, tal a expressividade da interpretação.

Comoveu-me sempre «La Bohème» pelo refinado do fraseado moderno misturado com o sopro romântico em cima da navalha, a roçar o lamechas.

Beethoven é sempre o camarada que me aponta o caminho, nem que eu vá de rastos.Nos momentos de profunda decepção e solidão em que vivíamos tantas vezes, foi junto do mestre de Bona que fui pedir a coragem que fugia debaixo dos pés.

E Joan Sutherland era o lirismo puro, a disciplina total. Comoveu-me em 22 de Abril de 1974. em S.Carlos, em La Traviata, ao lado de Alfredo Kraus e Matteo Manuguerra (a Cristina foi vê-la a 24, fiquei a tomar conta da Joana, então com pouco mais de 2 anos).

Depois da oração, a música foi a minha âncora,a par da escrita e das leituras.Para que conte.E mais um abração, querido Humberto.