Foto: © António Graça de Abreu (2008). Direitos reservados.
Envio mais um pequeno contributo para a polémica da "guerra militarmente perdida." Apenas com um objectivo, o de nos conhecermos todos melhor.
"Um fraco rei faz fraca a forte gente"
por António Graça de Abreu
"Nós, Portugueses (…) oscilamos entre o 'eu sou o maior' e o 'eu não sou ninguém'. Em suma, não sabemos quem somos. Não temos um mapa real. E seria fundamental tê-lo. Para a nossa vida social, política e afectiva. Porque Portugal precisa urgentemente de saber a sua exacta medida. E não oscilar entre a tendência para o pequenino e a megalomania."
Júlio Gil, Jornal de Letras, nº. 752, 19 de Janeiro de 2005, pag. 14.
Comecei a escrever um Diário com quinze anos de idade e nunca mais parei de o fazer. Fui agora buscar mais uma página do que chamo o "meu diário secreto" onde registei uma citação de Jorge Luís Borges, o argentino excelente:
Leio no Expresso, em texto do director José António Saraiva:
"Há muitos anos que as formas clássicas de fazer a guerra vêm a ser postas em causa. (…) Veja-se o que aconteceu na Guiné onde o exército português foi irremediavelmente batido. (a 22 Set. 2001).
Há a ideia construída e generalizada em muitas boas mentes de que a guerra da Guiné estava perdida pelos portugueses e ganha no terreno pelo PAIGC. Trata-se de um juízo refinadamente mentiroso. Não é verdade, mas de tão repetido, começa a sê-lo. Hei-de fazer algo para repor a verdade da História. Tenho os documentos e as vivências plenas desses dois últimos anos 1972-74. É só dar testemunho. E é preciso.
Há setenta anos atrás, explicava o nosso António Aleixo, poeta popular de Loulé, que:
P’ra mentira ser segura
E atingir profundidade
Tem de trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.
Hoje, Junho de 2008, o problema da derrota militar, a questão do "exército português irremediavelmente batido" na Guiné, não é nova, existem umas dezenas de textos em livro com abordagens ao tema. O problema tem enformado (ou deformado) as mentes de incontáveis pessoas que, do poleiro do seu azedume, pelo inchaço da nostalgia do colonialismo e da sagrada defesa da Pátria, pelo gosto muito português da auto-flagelação, pela ausência de um mínimo de auto-estima, por falta de respeito pela História, por razões políticas e ideológicas, tentam, por magia, transformar as tropas portuguesas na Guiné, nos anos de 1973/74, ora num imenso bando de heróis, ora numa chusma de cobardes, de calças na mão, incapazes de responder militarmente aos ataques do PAIGC, com armamento inferior, em colapso militar, enfim uma guerra militarmente perdida.
Isto não é verdade.
Há muita gente que confunde o que de facto aconteceu, há quem acredite ainda no sonho irrealizável de um obsoleto império colonial (estas pessoas, felizmente poucas, não costumam aparecer no nosso blogue), e há uns tantos que pugnam por uma derrota militar em toda a linha. Trinta e quatro anos depois, estas afirmações continuam a ser um desprazer para muitos de nós, dezenas de milhares de homens que participámos na fase final de uma guerra injusta, numa pátria que não era a nossa, no tempo errado da História. Sei também que temos todas as razões para assumirmos que saímos da Guiné de cabeça levantada, com traumas, naturalmente, mas sem remorsos nem retardados actos de contrição.
Vamos à questão da derrota militar.
Volto a repetir, não estamos a falar de política. No caso do colapso das tropas portuguesas, estamos a falar de uma derrota no campo militar, repito militar, ou seja, um dos contendores (PAIGC) era militarmente mais forte do que o outro, nós, e consequentemente derrotou-nos, obteve vitória após vitória no terreno de luta, nós recuámos, eles avançaram, houve um "exército português (já agora, também uma marinha e uma força aérea) irremediavelmente batido", como escreve José António Saraiva no Expresso.
Em 2006, fui recuperar o meu Diário da Guiné, 1972/1974, e publiquei-o. Desculpem-me a vaidade, ajustei contas com a História, a nossa, a minha história. Está lá quase tudo sobre esse período das nossas vidas, singularmente num enquadramento ideológico de uma certa esquerda radical que na época prevalecia nas nossas mentes e universidades, ideologia que chegou à Guiné e que assumi então, facto de que não me arrependo, nem um bocadinho.
De regresso ainda às teses "do colapso militar, da superioridade em armamento do PAIGC, do exército português irremediavelmente batido", porque as confusões subsistem, volto a inserir o seguinte texto já utilizado por mim aqui no blogue mas que, creio, merece uma segunda leitura.
Leopoldo Amado em entrevista a Aristides Pereira, pergunta-lhe: "Por altura do 25 de Abril de 1974, o PAIGC tinha uma capacidade militar maior que as tropas coloniais?"
Aristides Pereira: "Maior, não diria, na medida em que estavam bem apetrechadas, tinham uma logística mais bem montada que a nossa, para além de um número superior de efectivos do que nós. A verdade é que no fim o soldado português já estava mal; estava farto daquilo."
Vamos ler outra vez.
Aristides Pereira, um dos dirigentes máximos do PAIGC, recorda que, por altura do 25 de Abril, a capacidade militar do PAIGC era inferior à das tropas portuguesas, diz-nos que a logística das tropas portuguesas estava mais bem montada do que a do PAIGC, confirma ainda que o número de efectivos das tropas portuguesas era superior ao dos seus guerrilheiros.
É espantoso que depois de um dirigente do nosso "inimigo" reconhecer honestamente que a capacidade militar, a logística e número de efectivos das tropas portuguesas era superior ao dos seus combatentes, tenhamos ainda de ouvir umas tantas almas portuguesas iluminadas que nos vêm explicar que os guerrilheiros possuíam maior capacidade militar, que o armamento do PAIGC era superior, e que "o exército português" havia sido "irremediavelmente batido".
Por vias travessas, a questão é mesmo esta, os militares portugueses não estiveram associados ao colapso porque não houve nenhum colapso militar. Há pessoas que gostam de entrar no reino do surreal, da confusão, da inversão do entendimento e dos valores.
Vamos ler Mário Beja Santos, no nosso blogue, post 2959, a 18 de Junho de 2008:
"Primeiro foi a dupla Nixon/Kissinger que decidiu a perda da supremacia militar. Circunstâncias? Tudo aquilo que se passou depois de 6 de Outubro foi decisivo para o colapso militar da Guiné."
6 de Outubro de 1973? Uma dupla de senhores importantes em Washington a decidir a supremacia militar do PAIGC sobre as tropas portuguesas?
Meus caros tertulianos, meus queridos amigos, para esta fase final da guerra da Guiné, penso que não será de dar muita importância às congeminações, às previsões, às hipóteses, às insinuações, às possibilidades, ao que eventualmente podia, ou poderia, acontecer, ao conhecimento livresco das situações adquirido no sofá de Lisboa, a 4.000 quilómetros da Guiné, dos lugares onde a guerra acontecia.
Interessa-me o que realmente aconteceu, os factos, a leitura do quotidiano, o rigor, a análise das sensibilidades e do poder das forças em presença.
De resto, para aquilo que modernamente se chama conceptualizar, para as sínteses conjunturais, (Fernand Braudel, os homens da Nova História explicaram isto há já muitos anos), para a abordagem global de um dado momento histórico, necessitamos de conhecer bem os pormenores, a história dos quotidianos, das mentalidades, etc. É por isso que este blogue do Luís Graça é importante.
Eis um exemplo de como, partindo do particular, podemos chegar ao entendimento da globalidade.
Nos posts 2940 e 2941 de 15 de Junho de 2008, o nosso amigo e tertuliano ex-furriel miliciano Eduardo Magalhães Ribeiro, o homem que arriou a última bandeira portuguesa a flutuar na Guiné, na cerimónia de entrega de poderes ao PAIGC, em Mansoa, a 09.07.1974, pois o Eduardo contribui com quatro achegas importantes para a compreensão do tema da guerra militarmente perdida pelos portugueses, do colapso militar, da vitória militar do PAIGC.
"Em Junho de 1974, quando da entrada dos primeiros elementos do PAIGC estes se apresentavam na sua maioria esfarrapados e com péssimo aspecto. Aliás, ao conversar na altura na povoação de Cacine com o comandante da sua Marinha (Pedro Gomes) este confessou-me que dificilmente o seu partido aguentaria mais um ano de luta. Esta confissão é sem dúvida corroborada pelo insistente pedido feito às nossas autoridades para que se procedesse ao imediato desarmamento das forças africanas."
Estará Rebordão de Brito a mentir? Isto são posições da extrema-direita?
"Outro facto de que me recordo perfeitamente, pelo espanto que me provocou foi que, ao contactar com vários guerrilheiros do PAIGC, que faziam parte da guarda de honra nesse dia, verifiquei que um grande número deles não entendiam nada de português, e nada ou quase nada de crioulo.
Só entendiam e falavam francês.
De onde são vocês? - perguntei eu.
- Somos da Guiné-Conacry!"
O Eduardo afirma que se recorda perfeitamente desta conversa e eu acredito nele, embora reconheça que alguns dos ex-combatentes na Guiné sofrem hoje de alucinações e são capazes de inventar factos e situações apenas possíveis em mentes doentias.
O Amílcar Cabral defendia a chamada tese do dominó, ou seja, os aquartelamentos de fronteira na Guiné Portuguesa iriam ser conquistados um a um, (corrijam-me se estou enganado) obrigando-se a tropa portuguesa a refugiar-se no interior do território. Para isso contava com o apoio das bases do PAIGC no Senegal e na Guiné-Conakry (tudo fora da actual Guiné-Bissau) e com a ajuda de, pelo menos, o exército da Guiné-Conakry.
Tivemos recentemente aqui no blogue a descrição cruenta do doloroso inferno de Gadamael feita por um sargento ex-pára-quedista deficiente das forças armadas, chamado Carmo Vicente.
Mas a batalha por Gadamael, tal como a de Guidage e até a de Guileje, tão faladas e descritas no nosso blogue, – talvez para provar que a força militar do PAIGC era enorme e que a guerra estava militarmente perdida – provam exactamente que a força militar do PAIGC, a atacar, a bombardear de fora do território da Guiné, auxiliado pelo exército da Guiné-Conacry, assustou, destruiu, matou mas afinal não venceu.
Podemo-nos questionar, porquê e para quê tanta luta, tantos mortos, tanto sofrimento? A resposta a estas questões é de natureza política e não militar, tem a ver com a essência do conflito em termos políticos e ideológicos. Portugal teve a pouca sorte de ser governado por Salazar e por Marcello Caetano.
É verdade que em Julho de 1973 o governador António de Spínola falou na "contingência de um colapso militar", dado o grande poder de fogo IN sobre os aquartelamentos de fronteira, e pediu mais armas a Marcello Caetano. Falou na "contingência de", não de um "colapso militar".
De resto, ainda uma palavrinha sobre António de Spínola. Foi um homem de confiança do regime, pelo menos até 1972, altura em que a chamada ala liberal se lembrou dele para Presidente da República, para substituir o Américo Tomás. Marcello Caetano não concordou (parece que o inefável Costa Gomes meteu a sua colherada neste processo denunciando antecipadamente a Marcello as intenções de Spínola), e o nosso general do monóculo começou a entrar em contradições com Caetano. Depois, e neste contexto, vem a saída de Spínola da Guiné, a nomeação para Vice-Chefe das Forças Armadas, a demissão, o livro Portugal e o Futuro, o 25 de Abril.
Falei há dias aqui no blogue na "minha" Companhia de Caçadores 4740, os "Leões de Cufar", sedeada durante dois anos (72/74) no coração do Tombali/Cantanhez, numa situação extrema de uma dura guerra de guerrilha, cento e oitenta homens que tinham à sua guarda um importante aeroporto militar, populações guineenses nas aldeias de Cufar, Impungueda e no grande reordenamento de Mato Farroba, cento e oitenta homens que participaram sozinhos e com outras companhias em operações militares, sofreram emboscadas, defenderam o aquartelamento e a povoação durante as muitas flagelações a que fomos sujeitos.
"Um fraco rei faz fraca a forte gente"... São palavras de Luís de Camões, em Os Lusíadas, canto III, estrofe 138. Temos tido muitos fracos reis, às vezes não passam de um baronetes da bravata e da maledicência, megalómanos imperadores do nada.
E uma coisa eu sei, na Guiné, com fracos reis, fomos ainda forte gente.
António Graça de Abreu
S. Miguel de Alcainça, 17 de Junho de 2008
Ano do Rato
Notas:
1. Edição da responsabilidade de vb
2. Artigos relacionados em
14 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2941: A guerra estava militarmente perdida? (17): E. Magalhães Ribeiro.
13 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2937: A guerra estava militarmente perdida? (16): António Santos,Torcato Mendonça,Mexia Alves,Paulo Santiago.
12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2932: A guerra estava militarmente perdida? (15): Uma polémica que, por mim, se aproxima do fim (Beja Santos)
12 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral nã era muito elevada. A. Graça de Abreu.
3 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2913: A guerra estava militarmente perdida? (13): Henrique Cerqueira.
31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.
29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.
28 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)
27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)
[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]
22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu
15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)
13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)