1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 19ª história, com data de 25 de Outubro de 2009:
UM DIA CALHA A TODOS: - O PARVO DE SERVIÇO FOI O ENFERMEIRO!
BINTA, 13 de Setembro de 1964
«No dia 13, domingo, içar da bandeira e uma manhã calma para escrever à família. À tarde, um desafio de futebol para “desenferrujar”os músculos – a semana tinha sido de trabalho duro, mas para dar uns pontapés na bola arranjam-se sempre 22 “artistas” –.
Depois da bola mais umas horas para uma sesta merecida. À noite, quase todo o pessoal se foi deitar cedo pois havia “trabalho” para as primeiras horas da manhã.
Mas houve “alguém” que quis proporcionar um final mais “animado” a esse domingo especial – fazia 4 meses que tínhamos chegado a terras da Guiné – e organizou uma “soirée”, embora um pouco tardia, que nos fez levantar a todos da cama.
Seriam umas 23:00 horas, quando, de várias direcções, o Estacionamento começou a ser flagelado com rajadas de pistola-metralhadora e espingarda.
A reacção das sentinelas foi rápida, principalmente do terceiro e quarto postos, e momentos depois todo o dispositivo de defesa estava organizado, embora houvesse, como é natural, à mistura com a surpresa, alguns momentos de precipitação principalmente dos elementos que se encontravam ainda a pé, escrevendo ou conversando.
Minutos depois”todo o mundo” desfrutava com muito mais à vontade a “sessão extraordinária” que o inimigo nos tinha vindo “dedicar”, possivelmente como represália à nossa acção em Santancoto e ninguém se dignava responder ao fogo inimigo que, passado o rompante inicial, nos ia flagelando com tiros de pistola isolados.
O ”espectáculo” durou até cerca da 1h30, terminando com o incêndio de algumas moranças abandonadas a cerca de 1 km de Binta, que o inimigo houve por bem destruir para assinalar a sua retirada.
Algumas morteiradas bem dirigidas apressaram-lhes o passo e tiraram-lhes a vontade de fazer mais «fogueiras».Reforçam-se os postos de sentinela.
Depois de alguns minutos de conversa e de umas piadas àqueles que, no início do ataque, tinham vistos rajadas “levantar”o pó do chão e inimigos, em cima de árvores, já dentro do estacionamento, toda a gente se foi deitar e recomeçar o sono interrompido.
“Alguém” iria pagar estas horas de sono que tínhamos perdido...
…
Hoje, dia 14, dois grupos de combate bateram as imediações do quartel encontrando diferentes tipos de invólucros, e localizando as duas principais posições de fogo do inimigo, que se situavam de 300 a 500 metros do estacionamento .
Pelos rastos encontrados avaliou-se o grupo atacante entre 40 a 50 indivíduos, convergindo todos os vestígios de retirada em direcção da estrada de Bigene, que confirma a ideia inicial de que a flagelação de Binta foi como represália à nossa acção na região de Santancoto.
Não se esperava que os “Santancotenses»fossem tão susceptíveis nos seus brios e chega-se à conclusão que eles afinal não sabem bem com quem estão metidos...
É possível que em breve o saibam!!!
…
Durante o dia souberam-se mais umas histórias pitorescas que se registaram, a quando do início do ataque, salientando-se uma cena movimentada na Sala dos Sargentos.
Naquela sala, onde ainda havia luz e se conversava amenamente, houve uma certa atrapalhação a quando dos primeiros tiros de que resultaram um “petromax” partido, uma passagem apressada por baixo de uma mesa e uma porta arrombada a caminho de uma saída mais segura pela sala dos telegrafistas.
Houve ainda alguém que disse que “eles estão a atacar em massa e já estão cá dentro”, mas parece que tudo isto não chegou a passar de boato...».
Enfim... o velho problema de quem tem um buraco ao fundo das costas...!
Quarenta e tal anos depois!
À distância no tempo confesso ter tido um grande cagaço... na longínqua noite de 13 de Setembro de 1964.
Mastigando as recordações dessa noite diferente da minha vida tento encontrar explicações para a dimensão do dito (o cagaço) pois já não éramos propriamente «maçaricos» na Guiné... quando aconteceu o ataque a Binta.
A surpresa de um ataque «a nossa casa» é no entanto um pouco diferente de uma emboscada no mato onde se sabe que, de um momento para o outro, podem (podiam) acontecer tiros e confusões.
O ataque ao quartel surpreendeu-nos...
A hora era tardia e ninguém estava a pensar em «guerras».
Jogava-se o «King» na Sala dos Sargentos e eu até tinha uma «boa mão»...
De repente rajadas de pistola-metralhadora e tiros de espingarda.
Tá, tá, tá, tá, tá,boum, boum...
Pum,pum, pum...
Tá, tá, tá, tá...
É (foi) uma sensação do caraças!
Mas que porra é esta!!!
Os tiros pareciam que nos estavam a passar a centímetros da cabeça.
Lembro-me que nos levantámos que nem um tiro – passe a expressão – e ala lá pra fora mas... pela porta dos telegrafistas.
Para perceber melhor o que aconteceu há que explicar que, de facto, o medo dá asas mas não nos transforma em passarinhos...
Estávamos numa sala que tinha duas saídas.Uma para o lado donde vinham os tiros e outro pró outro lado.
O lado bom.
Está claro que foi esta saída que escolhemos.
Havia bidões de protecção (bidões cheios de terra) do lado donde vinham os tiros mas ninguém teve a «lembrança» – ia dizer a «coragem» - de sair por esse lado.
O efeito chicotada –o tiro a passar na vertical da cabeça de um indivíduo – é de facto uma sensação... do caraças.
Isto... para não usar o português «vernáculo» que nessa altura usámos e abusámos amiudadas vezes...
Parece (parecia) que dizer asneiras espantava –um pouco – o medo!
A «boa mão» do «King» não deu para apagar o petromax...
Atrasei-me um pouco na saída para «o lado bom» e só consegui apagar a luz quando parti o petromax contra o chão.
Não foi um acto heróico mas... foi o que se pôde arranjar na altura.
Os meus camaradas do «King» já tinham entretanto arrombado a porta para saída do lado bom – a sala dos telegrafistas – que, além dos tiros, gramaram com uma cavalgada pelas suas instalações de uns quatro(ou cinco) furriéis que lhes devem ter parecido – salvo as devidas proporções - uma manada de búfalos a fugir de leões.
3Leva mais tempo a contar do que o tempo que levou a saída... para o lado bom.
Depois agarra-se uma arma, dá-se uns tiros do nosso lado para o lado dos «maus» e logo tudo muda de figura...
O nó no estômago atenua-se.Lembro-me ainda de no dia seguinte – eu e os meus companheiros do «King»» – termos descoberto telhas partidas por cima da sala de «Sargentos».
Foram estragos causados pelos tais tiros que nos tinham parecido ter passado a rasar as nossas cabeças...
Afinal tinham passado dois metros acima!
Mas o tal efeito da «chicotada» é de facto... do caraças.
Tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum...
Pum, pum, pum...
Tá, tá, tá, tá...
Ainda hoje me lembro. Dos sons e... da minha «boa mão» do «King» que... tremia comó caraças.
Oh Oliveira apaga o «petromax»!
Tá bem, pá. É já a seguir.
Toma... contra o chão.
E... apagou-se a luz!!!
Da-se!!!
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
14 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5105: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (18): Mina antipessoal