Foto do autor, à esquerda, em Contuboel, Junho de 1969 (LG).
Foto (e texto): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados
1. Chez Toi
Conheci-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheci-o, de Tavira, do CISMI. Pertenceremos, ambos, à Companhia de Instrução, comandada por essa figura impagável que era o tenente Esteves (**).
Em Bissau, eu estava hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. Tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi… Para mais em francês, comme il faut… Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa…
Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de carne de fêmea, branca, o Chez Toi devia ter um especial encanto que eu nunca consegui descortinar… Devia trazer-lhes algumas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa, Porto e Coimbra, que o resto era paisagem no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato…
Não sei como lá fui parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Mas para o caso não interessa. Andava desenfiado em Bissau, antecipando o gozo do início das férias na Metrópole. Aguardava o avião da TAP para Lisboa. Eram as primeiras férias pagas da minha vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Devo dizer que não tive problemas de consciência nem devolvi, à Pátria, o dinheiro, sujo, de mercenário, saudação a que tive direito à chegada, num dos primeiros grafitos que me lembro de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa…).
Estávamos em plena época das chuvas, em Junho ou Julho de 1970, já não me recordo bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E eu deixava para trás um ano de intensa actividade operacional. Nessa noite fui dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, falava francês, ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris). Mas o bas fond em Bissau era, para a malta da tropa o Pilão.
Por azar, logo na primeira noite, alguém arrombou a porta do meu quarto, forçou o cadeado da mala de cartão e fanou-me uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, era toda a riqueza que eu levaria a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionava comprar no Taufik Saad.
Nessa mesma noite, tive uma conversa (desagradável) com o gordo do gerente do Chez Toi, sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa.
As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, papel do Biombo, se não me engano, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a nós, a mim e mais o meu parceiro do Pilão. E aí, às tantas, o clima começou a ficar propício à pancadaria e ao linchamento. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.
Eu e o sabujo do gerente já tínhamos chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum buraco no chão para se enfiar. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de asneiras:
- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...
O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que eu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado, out of control.
Tive então a infeliz ideia de responder à sua provocação:
- O camarada vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com…
O tipo não me deixou sequer completar a frase, saltou como um leopardo de garras afiadas, direitinhas à minha carótide… Foi a primeira (e única) cena de porrada em que eu me vi envolvido no teatro de operações da Guiné, com luta corpo a corpo… De facto, nunca tinha sentido o inimigo tão perto, olhos nos olhos…
Providencialmente foi nessa altura que ele apareceu, fardado... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-me daquela situação de embaraço e apuro.
Escusado será dizer que o meu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar até ao Geba apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando me dei conta eram três da madrugada…
Ele, o meu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que o meu conhecido de Tavira, com quem de resto eu ainda tinha umas velhas contas por saldar…
Resumidamente, aqui a vai a minha versão dessa história que me estava atravessada e que remontava a 1968, em Tavira:
Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da nossa instrução, levei dele uns socos valentes nos queixos. Eu tinha adoptado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperava que o meu parceiro, com mais cabedal do que eu, 12 cm mais alto do que eu, entrasse no jogo do faz de conta… Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar…
Devo confessar que fiquei-lhe com um pó dos diabos!... Não tinha grandes razões para me lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabei por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as nossas duas companhias para a Guiné (ou ele ia em rendição individual, já não me recordo).
2. (In)confidências
Voltei a reencontrá-lo quarenta anos depois, num encontro fortuito de antigos combatentes… Fui eu que o reconheci, mas ele já sabia da minha existência, por portas e travessas. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado:
Não acreditas, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não consegui, não consigo…
Sem surpresa, vejo agora que afinal toda a malta tinha o seu… diário secreto. Do cabo ao alferes, um tipo com o qual, de resto, nunca fui à bola… Porquê ? Ia-me matando com uma granada de dilagrama… Talvez um dia te conte essa história triste, miserável, que acabou com mortos e feridos graves, mas que foi branqueada pelo capitão no relatório da operação e na história da unidade…
Mas, voltando aos diários secretos, soube da sua existência o ano passado, por ocasião do almoço anual da malta. Achei piada, havia vários camaradas que trouxeram os seus, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… E ainda diziam (dizem!) que éramos uma geração de iletrados.
No meu caso, são simples notas, apontamentos, esboços, rabiscos, até recortes e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida das tabancas por onde andei… Uma forma de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo.
Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las ? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...
Retomar a escrita é qualquer coisa de desafiante, sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa)…Mas também é muito penoso.
Tento voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Faço até gala nisso. Nunca poderia fazer parte do teu blogue, sobre o qual, de resto, já ouvi críticas (algumas) e elogios (muitos). Não acreditas, mas não tenho email. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros…
Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no front office. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…
É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Pública Camarária. Vivo numa cidadezinha idiota do meu distrito natal, Bragança. Bom filho à casa torna. A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade. Lisboa, por exemplo, deprime-me.
Pois é, voltei à folha de papel A4, ao caderno de linhas, como na 4ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de basquete, tal como um não menos candidato frustrado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.
Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei com um conhecido advogado de província, um sacana que depois haveria de chegar a deputado por um dos partidos do poder. Eu fazia a biscatagem de solicitador. Bati centenas e centenas de requerimentos em papel selado…
Ainda te lembras do papel selado ?!... Quando o Chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um “Vou-te embrulhar em papel selado!”…
Pois eu, como ajudante de solicitador, recebia um santo antoninho, vinte paus, por cada requerimento batido à máquina… Ainda te lembras da notinha, esverdeada ?!
Mas agora acabou. A minha velha máquina de dactilografia está arrumada a um canto. Como eu. Foi das primeiras máquinas, portuguesas, a aparecer no mercado. Não me perguntes a marca. De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.
Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro sobre a Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.
Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invectiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.
Nasci em 1947 - como tu, suponho, somos da mesma colheita – num país à beira mar plantado, mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.
Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa ? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher do régulo, que tinha muitas)… Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais. Tive uma educação cristã, como tu, como toda a gente. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí).
Matei, não matei ?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, mas apenas por razões humanitárias....Matei para abreviar o sofrimento de um homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.
Medo ?, perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, muitas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Como sabes, fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo à Foz do Corubal… Ainda era periquito e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanhas da companhia, meias- lecas, como o valentaço do meu alferes.
Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lado de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta, da minha estatura, estava por um fio… Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava visivelmente nervoso e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o turra ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu.
Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. Ainda periquitos, com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.
Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos abutres e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV (era assim que se dizia ? ) nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar de sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...
Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica:
- Depressa, tuga... E que o teu deus te pague!
Fui tocado por aquele olhar de humanidade. Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda há dois meses atrás, numa caçada nocturna. Era um homem que estava a morrer, igual a mim, excepto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, gemendo, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão... E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu...
Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não se saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica e injusta, de Furriel Car...rasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...
É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. C'était une guerre pas comme les autres. Só vias a cara dos prisioneiros ou dos guerrilheiros abatidos junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate, arredondando sempre para cima.
Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma outra vezes. Mas nessa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro, beafada, do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da politica do Spínola. E isso dei-me uma algum consolo.
Não, eu nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Preferi o tiro na nuca. Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo uppercut que te ia pondo KO... (Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defenderes...). Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti.
Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos. Um deles até é magistrado, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de os perder... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Hoje tratam-me pelo meu apelido (Carvalho, sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o Furriel Car...rasco. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.
Deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, meu conterrâneo, O Alma Grande, da colectânea Novos Contos da Montanha, se não me engano... De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do abafador, a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos... E em que só se chamava o médico... para passar o atestado de óbito!
Despedimo-nos com um Alfa Bravo apertado... E eu, confesso, fiquei por um por de horas com um nó na garganta, não menos apertado...
Luís Graça
_______________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes da série:
21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4849: A galeria dos meus heróis (6): O Renoir de Montemuro, nascido no ano zero da idade atómica (Luís Graça)
(...) Tinha nascido no ano zero. 1945. Lembro-me de teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI (Lembras-te, em 1966 ?!... Ainda pensámos em dar o salto até Paris, éramos vagamente existencialistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmarte, enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!... Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta a financiar o nosso inconsistente projecto de aventura). (...)
Tinha nascido no ano zero. 1945. Lembro-me de teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI (Lembras-te, em 1966 ?!... Ainda pensámos em dar o salto até Paris, éramos vagamente existencialistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmarte, enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!... Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta a financiar o nosso inconsistente projecto de aventura).
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)
(...) 'Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo!'' terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante, de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca (…)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané
(...) Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias (...).
12 Janeiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
(...) Como um cão apanhado na rede – repetia eu, nessa manhã de 2 de Junho de 1969, no fundo da LDG Bombarda, entre fardos de colchões de espuma, cunhetes de munições, Unimogs novinhos em folha e velhas malas de viagem atadas com cordões, enquanto os fuzileiros, hercúleos, heróicos, em tronco nu, de garrafa de cerveja na mão, assustavam bichos e homens com tiros de morteirete próximo da temível Ponta Varela, exorcizando os diabos negros que infestavam o tarrafe e os cerrados palmeirais que circundavam as margens do Geba, ao mesmo tempo que um solitário T-6, protector como um anjo da guarda, sobrevoava a foz do Corubal, ronceiro, sob um céu de chumbo (ou de bronze incandescente ?), em círculos concêntricos como o voo do sinistro jagudi - que fareja a morte, dizem os guinéus, a quilómetros de distância -, acabando por alijar a sua carga mortífera lá para longe, talvez a norte, em Madina/Belel, talvez a sul, no Fiofioli – após a nossa chegada a bom porto (...).
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)
(...) Aguerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)
(...) - E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…
- Mas, ó Campanhã, era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes Pimentel, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.
- E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhei eu, tentando sem jeito deitar água na fervura.
- E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o Campanhã.
- Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa! - opinou o Pimentel.
- Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão! – vocês até eram uns fidalgos: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, brancas ou verdianas de vez em quando, em Bissau; vinham de férias, na TAP, à Metrópole (...).
(**) Vd. comentário de L.G. ao poste de 30 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6496: Controvérsias (79): Os nossos instrutores militares não tinham experiência de contra-guerrilha (Manuel Joaquim)
(...) De quem me lembro, [em Tavira,] foi do Tenente Esteves, que era o comandante da minha companhia (estava a tirar a especialidade de Armas Pesadas de Infantaria), e do parvo de um alferes miliciano, lateiro, que nos dava instrução, no campo da feira (adorava, o sádico, pôr-nos a rebolar em cima da bosta de boi, enquanto ele passava o tempo a "namorar" à janela, uma das meninas ou coironas lá da terra....). Era algarvio, com sotaque, nunca pusera os pés em África... Deve ter apodrecido nos CISMI...
O que é que eu aprendi com um homem, boçal, como este, que me tenha sido útil na Guiné ? Nada...
Do Esteves recordo-me apenas a sua lengalenga patrioteira e já gasta, lembrando-nos, a propósito e a despropósito, que "nós éramos a fina flor da nação"... Nós: emendávamos, entre dentes: "a fina flor do entulho"...
E, claro, não posso esquecer o inefável comandante do CISMI que me proibiu, a mim e mais um camarada, a inauguração de um exposição documental sobre a II Guerra Mundial (que estamos a organizar, na caserna, e estava praticamente pronta...) com o argumento, mesquinho, safado, de que "para guerras já bastava a nossa"...
Mário Pinto e Manuel Joaquim, ora aqui está um tema, divertidíssimo, para a gente filosofar até aos 100 anos...
Admito que houve gente expcionalmente bem preparada para fazer a guerra... Não foi o meu caso. (...)