1. Mensagem de José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 10 de Janeiro de 2011:
Meu amigo
Se entenderes que cabe, podes editar porque foi para o publicar que escrevi
Um abraço
José Brás
Lugares de Passagem
Carta aberta a um amigo
Às vezes
as palavras falam
do que não sabem*
Às vezes as palavras são apenas sons que soltamos, espontâneas e sem sentido, inexplicáveis senão na reacção a um primeiro olhar sobre as coisas;
às vezes as palavras contam apenas do sentimento construído antecipadamente sobre a realidade que prevemos se confirme;
às vezes as palavras, mesmo que ditas num sentido circunscrito e na melhor das intenções, espelham apenas a pressa, a falta de tempo ou de ferramentas para uma análise mais aprofundada dessa realidade;
às vezes as palavras são também balas concretas, carregadas de justiça e de lógica, impiedosas apenas enquanto expressão obrigatória de uma exemplar honestidade intelectual e moral que não pode abrigar amizades nem abraços.
Sei, tenho a mais absoluta certeza, que foi sob este último guarda-chuva que falaste no dia da apresentação do
Lugares de Passagem, em Loures.
Contudo, creio também, que ao dizê-lo não te livraste dessas tais circunstâncias e condições de que falo mais acima, fechando a tua análise apenas num aspecto que, como repito, conta apenas um sentimento prévio que se confirma como esperável.
Sem deitar fora esse sentimento nobre da honestidade e da franqueza, coisas que quase só podemos ter mesmo com amigos, terei de dizer-te que, nessa fala, acabaste por encurtar a tua capacidade de analisar, quase como esse médico que, de tanto conhecer um doente, diagnostica de rotina e, um dia, erradamente.
Mudando de ritmo e de emoção...
Sobre este meu livro
Lugares de Passagem, alguns amigos me perguntaram já, e outros afirmaram mesmo sem perguntas nem leitura, se (que) é mais uma narrativa da ou sobre a guerra colonial.
Alguma razão terão, pelo menos as perguntas, recordando o livro anterior,
Vindimas no Capim.
Perguntando, ou em voo rasante, afirmando, confesso que me deixaste apreensivo porque eu não havia querido escrever um livro sobre a guerra colonial, aliás, mesmo sobre qualquer outro motivo circunscrito, mas sim um livro sobre gente, sobre sentimentos, sobre ânsias e sonhos dessa gente que se espalha pelo globo e que julgo ter conhecido nas minhas andanças por esses lugares de passagem, que, sendo-o, lugares de passagem, nunca o foram só, mas antes lugares de osmose, de troca desses sonhos e da comum ânsia de felicidade que nos dá formas a todos, indiferentemente de peles, de geografias, de religiões, de ideologias ou de estágio civilizacional, nesse conceito em que crescemos e somos.
Tendo presente que o homem põe e deus dispõe, quando começamos uma coisa destas, nunca sabemos se será isso mesmo que construiremos porque a gente que lhe pomos dentro ganha estatura psicológica, moral, cultural e até física, fica com vontades próprias, de si passa a dispor, acabando por desconstruir o desejo e a meta iniciais de quem começou tudo, se alguém pode verdadeiramente começar alguma coisa.
Colocada a palavra fim na última página, e repetido o que se diz sobre o início, se é que alguém pode acabar alguma coisa, o chamado criador volta ao início, junta as peças e tenta descobrir se era aquilo mesmo que queria dizer, ou, se não é, se ao menos lhe acha valor suficiente para o impingir a outros.
E o que me disseste tu pelo telefone, após o fim da sessão de apresentação do livro, em Loures, nessa forma que, de tão franca, às vezes parece até naife, foi "que o livro era aquilo que já havias dito, mais um livro de narrativas sobre a guerra colonial e que tudo o resto, os aviões, as mulheres no Brasil ou no Canadá, ou na Guiné, apenas gajas a quem dávamos umas quecas. A lavadeira Mominato era uma lavadeira igual a todas as lavadeiras a quem pagávamos para lavar roupa e que aviavam uma dúzia de soldados, que tudo isso eram apenas faits divers, de uma trama que, principalmente, era mais um título sobre a guerra colónial".
Palavras injustas sobre a mulher, ainda que apenas sobre a ideia de mulher, com ligeireza ditas, pensei eu, ditas no geral e em abstracto.
Deixando isso para outras passagens, contenhamo-nos sobre a questão que se desatou ali, preocupado que estava com o filho que acabava de dar à luz e medroso de ter falhado na sua criação e do seu futuro.
Passei a noite velando o berço, relendo, voltando ao início, discutindo com aquela gente toda, nas matas e nos campos, nas selvas urbanas, nas esperanças, nas desilusões, nas raivas e nos afectos, tentando pôr-me na pele do receptor, exercício muito difícil para o emissor, senão mesmo impossível.
Seja como for, madrugada alta, adormeci em paz e quando acordei, pensando sobre o assunto, conclui que há uma questão com a qual terei de conviver, equívoco quase inevitável, a ser verdade que não há amor como o primeiro, e que o primeiro se chama
Vindimas no Capim, narrativa que sobreviveu à discussão sobre a dúvida se há ou não uma literatura da guerra colonial.
E penso que se sobreviveu, foi mesmo porque, sendo da guerra colonial, da primeira à última página respirando na busca das relações de poder nesta nossa sociedade de então, tentava entender como e porquê os meninos do meu tempo largavam as vindimas da aldeia, se faziam soldados e partiam para longínquas partes do mundo para matar e para morrer, pouco preocupado eu se para isso tinha de falar de casernas e de batalhas.
O equívoco de que aqui te falo tem pelo menos dois ramos, ambos filhos da mesma raiz mas evoluindo em sentidos diferentes e quase opostos.
Aceitemos que há guerra no livro e que nos futuros leitores existem, entre outros, duas classes, uma, que querendo ler de guerra, achará guerra a menos do que esperava, e outra, que, mesmo antes de ler, achava já que seria um livro de guerra, e que, lendo desatento ou desarmado, concluirá da sua certeza prévia, não sendo senão salada verde para disfarçar a escassez do prato, as alegadas gajas.
E que posso eu fazer para evitar isso?
Quase nada, a não ser defender a dama, demonstrar o erro, chamar a atenção para outras picadas que passam por dentro de tanta gente, atravessam mares e continentes e juntam no sentir e nos sonhos homens e mulheres, sejam negros ou brancos, cristãos ou muçulmanos, brancos ou negros, que se acham com direito à dignidade humana, ao respeito, aos bens de sobrevivência, ao amor.
Poderia dizer aqui que
Lugares de Passagem é um livro repleto de eus, sem correr o risco de acusações de exagerado umbiguismo, antes ao contrário, porque são eus que não somo em mim, mas em que me divido, criando outros com outros nomes, outros homens, mulheres, gentes de guerra e gentes de paz, cada qual a seu modo preocupado com o seu mundo.
Eus no sentido que Gustave Flaubert deu quando, a perguntas sobre quem era Madame Bovary, respondia simplesmente "c'est moi!".
Não falo de Filipe Bento, nem de Arnaldo de Matos, personagens demasiado evidentes no parentesco. Falo de... Maura, por exemplo, e direi que Maura sou eu também, sem complexos nem preconceitos e na certeza de que não deitei fora essa importante parte que trouxe da barriga da minha mãe. Maura não é senão uma possível Maria ou Mónica ou Sara, ou outro nome de mulher que ajudará turistas a verem melhor a cultura e a história de seu povo, sem que se perca ela própria no colectivo, não apenas personagem, mas pessoa inteira em espírito, cultura e interpretação do mundo que a rodeia e a enforma, e plena também de sonho e de aspirações.
Por exemplo, Rose. Rose em Toronto ou em Montreal ou em Boston, fazendo de sua voz meio de partilhar os mesmos anseios e sonhos de Maura, ou outros que no fundo não são tão diferentes como se possa julgar, apenas desenhadas pelos meios sóciais em que cada uma se fez gente.
Por exemplo, Mominato, lavadeira de roupas de soldados no ambiente de uma situação violenta de combate nas matas da Guiné, erradamente construída se nos ativéssemos apenas à superfície da realidade que lhe conhecêssemos e desprezando-lhe a fundura humana particular, capaz das mesmas alegrias e tristezas, de aspirações e de sonhos que têm Maura e Rose, Filipe ou Arnaldo.
Por exemplo o Xico, que não poderia ser apenas o Xico das conversas, das maluquices, dos trambolhões. Que teria de ser um Xico para além disso, com data de nascimento, com respiração própria, ambiente envolvente e um pensamento que explique a morte, no entendimento da vida e do mundo na sua multiplicidade infinita.
E que gente é essa, todos a quem ponho nome e os outros que aparentemente não passam pelas páginas nem pelas palavras do livro, mas que na verdade quero que aí se encontrem em colóquio amplo?
Quem são eles senão partes de mim próprio?
De um eu uno e múltiplo, tal com tu, e que tal como tu, querem apenas abraçar os outros, iguais e diferentes.
E os soldados que colocamos em plena mata da Guiné, lutando, dormindo em catres pobres, comendo em prato escasso, bebendo dos vinhos adulterados pela ganância de intermediários militares de ocasião, com os medos e as coragens próprias de cada qual e das circunstâncias?
Nasceram soldados e já corajosos ou medrosos?
Não eram gente antes da instrução militar? Gente que sonhava futuros tal qual Helena em Copacabana ou o Filipe nas vinhas de Alenquer?
E quando matavam, tornavam-se apenas assassinos, ou quando eram mortos apenas mártires?
E os que os viam morrer não morriam também de algum modo, em partes de si que ainda hoje se reconhecem nas suas vidas?
E eu que vi morrer alguns e que aparentemente regressei vivo e inteiro, que partes de mim morreram neles e que outras partes nasceram com a sua morte?
Faits divers disseste que eram toda essa gente, cenário apenas para justificar os tiros que damos no livro.
E eu julgo que te enganas e que deves reler tudo de novo, demorando-te a pensar em cada uma dessas gajas e gajos, observando-os um pouco mais fundo do que nessa literatura que tanto aparece por aí, legitimamente aparecendo porque todos nós, no fundo, ambicionamos escrever um livro, ou, pior, naquela que se vende aos milhares porque não obriga a pensar e nos dá um mundo já entendido em tons de rosa.
*Sterea
amiga e magnífica poetisa
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7564: Agenda cultural (99): Lugares de Passagem, de José Brás: Apresentação hoje, 6ª feira, 7, às 18h30, no Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, Av Gago Coutinho, 90, Lisboa