1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2011:
Queridos Amigos,
Muito obrigado pela boa companhia que me deram nesta viagem.
Acabaram-se as imagens, começou o vago rumor, mal localizado, que precede a nova viagem.
Agora, anuncia-se a batalha verbal, os jogos de cintura a construir um livro, aparentemente enorme. Fosse eu disciplinado e teríamos livro até ao Outono.
Vamos ver, tenho muita Guiné pela frente.
Um abraço e até ao meu regresso,
Mário
OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (9)
Foi a última imagem que captei na Guiné, anoitecia em 1 de Dezembro de 2010. Estava na Pensão Central, a bagagem arrumada, eu muito feliz com as compras, sobretudo o Ninte Kamatchol e a escultura bijagó usada na dança do tubarão martelo. Lá em baixo, é aquele espectáculo fantástico dos veículos a fugirem das covas e do alcatrão carcomido. Ao longe, à esquerda, ainda uma nesga do ilhéu do Rei, ao fundo, à direita, vestígios do Pidjiquiti e ao fundo o canal do Geba e a extensão de Bissau. O dia apaga-se, é impossível fugir da atracção daquela bola de fogo que desce meteoricamente sobre o mar vegetal e o mar salgado. É a recordação obsidiante, a imagem fixa, acompanha-me em todas as recordações que me puxam até à Guiné. A partir daqui, só as recordações da cabeça, que nalguns casos possuem uma impressão muito próximo da fotografia. Consigo ver-me no restaurante Jordani, a comer bifinhos de sereia, enquanto via imagens da neve em Portugal; parece que estou a tomar um táxi que me leva para Bissalanca onde os seguranças me remexem desavergonhadamente toda a roupa, sempre sussurrando “dá qualquer coisa para o mata bicho!”; as horas em que me entretenho a ler, o voo só parte às três da manhã; o roncar do Airbus, uns saem outros sobem numa atmosfera de estufa; o último abraço do embaixador de Portugal e depois uma viagem com um jovem bijagó ao lado que vai aterrado, é o seu primeiro voo, procuro desanuviar a tensão pedindo-lhe informações sobre a dança do tubarão martelo; e o raiar do dia quando chegamos a Lisboa, trago a Guiné em todos os poros, em todos os átomos da emoção, venho desvanecido pelos reencontros, pelas descobertas.
Foi o cabo dos trabalhos despedir-me da Maria Fausta, a mulher do Abudu. Visitara-a mal chegara a Bissau, no dia 18 de Novembro à tarde, na companhia do Sr. Sabino, o motorista da embaixada. Estes bairros populares nada tem a ver com o que me lembrava de há 40 anos: Santa Luzia cresceu desmesuradamente, o Bairro Militar, Quelele, o Bairro Missirá, transformaram-se em autênticas favelas, impressionam pelo lixo, as irregularidades do solo, a guerra perdida em prol do saneamento básico. Esta fotografia foi tirada depois do nosso encontro. É muito duro conhecer alguém a quem se vai dizer, sem ambiguidades, que o marido não tem condições físicas para viver na Guiné, precisa de acompanhamento constante e medicamentos, há a esperança da naturalização, é o menos que Portugal pode fazer para este homem que se atirou ao trabalho mais humilde durante 15 anos, que foi explorado por falsos empresários que não entregaram o que ele descontou na Segurança Social. E mais não se diz, toda a pessoa tem direito à privacidade. Esta mulher olha-me com firmeza, já tínhamos conversado sobre a saúde do Abudu, um ser humano não é de ferro, expressa o sofrimento, lacrimeja. Pois a fotografia que me estás a tirar, branco, irmão do meu marido, pode espelhar mágoa e tristeza, mas só o quanto basta. O resto é dignidade africana. Para que conste.
A Ponta do Inglês provoca ao visitante (por sinal, antigo combatente) sentimentos contraditórios. Ele sabe que esta estrada enorme está regada de sangue e sofrimento. Ele sabe que quem aqui viveu, na segunda metade dos anos 60, viveu em extrema inquietação. E, no entanto, há sempre este cenário idílico, por aqui passa o Corubal estuante, é uma foz ampla, com a Península de Quinara ao fundo e em frente. À esquerda, era o Corubal de todos os perigos, os barcos da Armada penavam e eram frequentemente flagelados, ali o PAIGC tinha o domínio do solo, em ambas as margens. O viajante teve sorte com a altura do sol e os reflexos de prata. Naquela lama, na berma, disseram-lhe, houve uma instalação portuária, tudo desapareceu, pode-se percorrer a Ponta do Inglês e até supor que nunca ali houve metralha, sentinelas angustiados, soldados expectantes naquele ermo, injustificável em termos militares. Para que se saiba, quem vê paisagens não vê emoções. Aqui o passado morreu, ele só existe na memória de quem não o esqueceu.
Foi a primeira fotografia que se tirou, na concelebração de 28 de Novembro. Não gostei, há aqui muita tristeza estampada, imprópria para o evento. Tínhamos estado todos ruidosos, de línguas soltas, à volta do passado. Há aqui poses formais, de quem receia ficar descomposto para a posteridade. Nas fotografias subsequentes, deu-se o degelo, transparece a alegria africana. O único dissidente dos formalismos é o Príncipe Samba, exibe o livro que lhe foi oferecido, terá as suas razões, pode mesmo estar a pensar: “Quando voltares a ver esta fotografia lembra-te que este livro é meu, por direito próprio, durante a manhã falámos da mina anticarro em que fiquei sinistrado, contei-te as provações por que passei nos últimos anos da guerra, ao menos que nestas páginas alguém me tire do anonimato e me exalte pelo meu bem servir”. Estes, parte dos meus bravos que vieram de candonga, a pé e de bicicleta, aqui se confraternizou, neste local alguém se despediu dizendo: “Não acredito que seja a última viagem, nós merecemos mais amizade, volta”.
Parece bailado contemporâneo mas é um acto religioso. Não podendo participar, orei à distância, jaculatórias para todos aqueles que se finaram ou não puderam vir. Enquanto decorre a oração, lembrei fidelidades, comportamentos exemplares, actos de heroísmo, primores de carácter. Nada me custou olhar para um acto religioso indecifrável. Esta postura curvada, parece-me, é de fácil compreensão: Deus misericordioso, prostro-me e peço-te perdão, dá-me alento para continuar e cumprir os teus ensinamentos. Estes homens purificaram-se antes da oração. E mesmo antes da purificação pela água tinham-se purificado pela estima que me devotam. É a minha de me prostrar diante de Deus.
Vim à procura deste amigo, não encontrei, ele vive em Farim, não é fácil chegar a Bambadinca. Felizmente, goza de saúde. Aqui muito perto, onde concelebramos, Quebá Sissé, conhecido pelo Doutor, meteu o dedo ao gatilho quando subia para o Unimog, desfechou uma curta rajada, mortal, sobre Uam Sambu, que me caiu nos braços. Foi testemunha de Quebá Sissé no seu julgamento, a punição foi mínima, para bem de todos nós. Esta imagem tem pelo menos 42 anos. O Doutor tinha uma verticalidade estranha, parece que o tronco lhe pesava, ajoujava a carga para diante e para trás, balançava os braços e as pernas, no seu jeito peculiar. Temo-lo aqui à porta da cozinha, cercado dos seus ajudantes, os meninos que cobiçavam as sobras do rancho. Ao fundo, o indescritível balneário de Missirá, meses depois substituído por uma estrutura mais apropriada. Honra seja feita ao Doutor, e nesta memória dirijo um olhar terno para todos os ausentes da nossa concelebração.
Afinal, eles são o futuro. A imagem vem do Bairro Joli, Mio e os seus dois filhos. Mio procura pôr de pé a granja que esteve muito tempo abandonada, mudou profissionalmente de rumo para se dedicar a esta empreitada. Os meninos, é a minha esperança, colherão o fruto, dilatarão os sonhos do Bairro Joli. Porque o que parece impossível em muitos casos torna-se viável, praticável. O que está em ruinas levanta-se, o que desfalece anima-se. Haja confiança neste futuro. Com gente determinada no presente.
Estamos prestes a terminar por onde se começou. Quando desembarquei em 29 de Julho de 1968, na noite escura, fui conduzido para o QG, o tal quartel general de onde parti, do cais do Pidjiquiti, para Missirá. Quando aqui regressei, mais de 42 anos depois, pretendi captar a imagem desse QG, hoje fantasmagoria. É um edifício que explodiu à bomba, nele morreu um chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Impedido de fotografar o escombro, coisa surrealista, vinguei-me fotografando um vestígio do passado, hoje completamente inócuo, sem qualquer préstimo, a não ser proteger pessoas em dia de temporal: uma guarita. Mas do que gosto verdadeiramente é da terra afogueada, parece que passou por aqui um cometa incandescente e esquentou o solo, para todo o sempre. O contraste é o verde, só falta um rio da Guiné, o resto é o que chancela esta paisagem: o verde ambiente e a laterite que pisamos.
De todas as imagens em arquivo que possuo, é desta a que mais gosto, foi-me oferecida pelo João Crisóstomo, da Companhia 1439, do Enxalé, foi tirada quando iam a caminho do Xime, quase em frente. É o símbolo de todas as viagens, está ali o Geba, soldados como nós, viaja-se de uma berma para outra. É a metáfora da Operação Tangomau. Provisoriamente, interrompe-se aqui a viagem. Muito obrigado pela vossa atenção.
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Notas de CV:
Vd. postes da série de:
5 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7384: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (1): Dias 18 e 19 de Novembro de 2010
9 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010
12 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010
16 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7445: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (4): Dia 22 de Novembro de 2010
20 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010
28 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010
1 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010
e
4 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7552: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (8): Dia 26 de Novembro de 2010