1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Graças à disponibilidade e solicitude do Dr. António Duarte Silva, ando a ler documentos de incontestável interesse referentes ao período pós-independência. É o caso deste longuíssimo discurso de Luís Cabral, proferido em 1978, e que é uma grande angular sobre os atos de governação e as promessas de um mundo melhor que se estava a preparar.
Está aqui praticamente tudo, entre a fantasia e a realidade, os acenos a tempos melhores e a reprovação por comportamentos negligentes, até a denúncia de corrupção.
Obra indispensável para perceber o desbaratamento da credibilidade que o PAIGC trazia da luta armada.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau, o estado da Nação segundo Luís Cabral
Beja Santos
Consta no início do livro que se trata da versão integral do discurso proferido por Luís Cabral, secretário-geral adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, em 9 de Maio de 1978, durante a abertura da primeira sessão ordinária da II Legislatura da Assembleia Nacional Popular. Tem-se sérias dúvidas que realmente tenha sido assim, não se vê facilmente um discurso de 200 páginas, embora haja precedentes históricos eloquentes como os de Fidel de Castro e Samora Machel.
O importante é que Luís Cabral abordou os principais pontos da sua política e enquadrou as atividades governamentais com amplos detalhes. Por isso mesmo há que reconhecer que não é aceitável encarar o consulado de Luís Cabral sem dar atenção a este seu discurso tão amplificado.
O dirigente iniciou a sua comunicação falando de planeamento e destacou várias urgências: fazer-se o recenseamento da população (na altura já existia o anuário estatístico de 1977); foi feita referência à criação de empresas estatais nomeadamente, no comércio e na indústria e logo se reconheceu tais empresas tinham gente com pouca experiência de trabalho, nomeadamente na área da gestão; anunciou que já havia um projeto de criação de uma empresa de seguros, mas reconhecia estar-se numa fase de empasse e comentou a situação: “Não podemos pensar que qualquer cidadão pode ter um carro e não ter seguro nenhum. Há pessoas que andam na rua, correm o perigo de serem atropeladas e não têm nenhuma garantia. Principalmente nas coisas que prejudicam os interesses de terceiros, temos que obrigar as pessoas a fazer seguro”.
E passou o registo para o orçamento nacional, alertando a assistência para o problema do controlo dos impostos onde tinham sido detetadas inúmeras irregularidades: “Temos de ser capazes de levar o nosso povo a pagar impostos e de exigir que cada cidadão cumpra o seu dever perante o Estado. Não podemos pensar que o Estado vai pedir dinheiro a outros países para o Governo pode viver. Vamos tomar todas as medidas necessárias para conseguir o fundamental para as finanças do nosso Estado. O nosso Estado não pode continuar a viver como nestes anos que passaram, com encargos de 1 milhão de contos e com receitas de metade. Para o nosso Estado ter crédito no mundo, para os organismos internacionais nos ajudarem a sério, temos que ter uma vida financeira sã, temos de ser capazes de ter na nossa terra dinheiro nosso para pagar as nossas despesas”.
Mais adiante, teceu considerações sobre o Banco Nacional: “Sabemos quantas dificuldades temos com dinheiro estrangeiro, porque ainda não exportámos quase nada, o nível das nossas exportações ainda não permite importar muitas coisas. Mas não podemos pensar em deixar de importar. O Banco Nacional não pode ficar na posição de informar se há ou não há dinheiro para comprar coisas no estrangeiro. O banco tem que participar ativamente na busca de soluções que nos permitam viver estes próximos anos, que vão ser difíceis. O banco tem que ser capaz de garantir matéria-prima para as nossas indústrias. Não podemos fazer uma fábrica que depende de matéria-prima importada, como é o caso da fábrica de espuma, por exemplo, ou da fábrica de plásticos, e depois deixá-las paradas por falta de matéria-prima”. E sugeriu que era necessário avançar com um projeto de criação de um banco de crédito e desenvolvimento. Falando da melhoria das condições dos camponeses, chamou a atenção para as culturas industriais indispensáveis para obter divisas e para o equilíbrio da balança comercial. Referiu que estava em conclusão a elaboração de uma carta de vocação dos solos, instrumento indispensável para o desenvolvimento agrícola. Lembrou que era propósito do PAIGC fazer distribuição de sementes, tanto de mancarra como de arroz e passou em revista um conjunto de projetos: algodão e arroz, milho e hortaliças, tabaco, recuperação de bolanhas, voltou a insistir na fábrica de açúcar, tinham já sido feitos novos estudos pois inicialmente pensara-se num projeto desmesurado. Também o repovoamento florestal era dado como iniciativa prioritária, havia que não circunscrever a indústria da madeira ao bissilão, pau sangue e mogno, havia que ser capaz de plantar madeira mais barata para cofragens e caixotes, era um desperdício fazer essas cofragens com madeira de bissilão.
E daqui passou para a alimentação das populações. Fora criada uma empresa nacional de criação de aves, a Emavi. E lançou críticas: “Há coisas que não conseguimos compreender como, por exemplo, o caso do centro de Ilondé que destinámos à criação agrícola, para reprodutoras. Já nos deram as aves, mas aquela obra não avança. Há quase dois anos que se está a proceder a uma transformação simples. A Emavi tem grandes problemas com a venda de galinhas e de ovos. Há dois anos que oiço falar neste problema! Isto só serve para que as pessoas que querem favores, mesmo responsáveis ou dirigentes, vão lá perturbar a ordem, porque cada um acha que tem mais responsabilidades e que direito a mais ovos e mais galinhas. A Emavi tem de acabar com o problema dos que vão pedir favores”. Seguiram-se referências à criação de porcos e lançou novas críticas: “Não podemos permitir que nestes empreendimentos dos quais dependem a vida de centenas de animais haja desleixos. Lembro-me de que da primeira vez que visitei a criação de porcos, quando se chegava à porta da Veterinária, as rodas dos carros entravam dentro da água desinfetada. Pouco tempo depois quando voltei lá, já não havia água nem na porta nem no local dos porcos!”.
E o registo transferiu-se para o comércio, abordou complementarmente o comércio interno e o externo. A sua apreciação sobre os Armazéns do Povo foi lisonjeira e também dura, falou dos desvios e desfalques e até concretizou com um jovem que tinha tirado 600 contos dos armazéns do povo para os entregar a um vigarista que lhe tinha prometido multiplicar este dinheiro por três! Nessa altura a Socomi era uma empresa que só existia no papel, resultara da transformação da antiga Sociedade Comercial Ultramarina e tinha cerca de 1000 trabalhadores. Luís Cabral, face à importância social da Ultramarina, disse que havia que resolver este problema. E fez desfilar um conjunto de iniciativas, uma garagem Volvo, uma fábrica de bandas em Bolama, a criação da cooperativa de motoristas, o projeto da fábrica de automóveis Citroen, uma fábrica de montagem de carros em Bissau que seria o orgulho de todos os guineenses, o projeto de cerâmica de Plubá.
Parecia que a Guiné-Bissau depois de tantas dificuldades via abrirem-se as portas do progresso: a fábrica do Cumeré para o descasque da mancarra, a recuperação da Cicer, a Socotram, fábrica de parquetes, que já tinha nova direção, a fábrica de cerâmica de Bandim, há alguns anos em dificuldade de arranque, a fábrica de leite de Blufo, a fábrica de oxigénio e de acetileno, em Brá, mas o projeto do Cumeré era inegavelmente o mais ambicioso, iria permitir transformar toda a mancarra em óleo bruto. Lêem-se estas coisas escritas e mais de 30 anos depois procura-se as concretizações. E não pode haver desapontamento maior por tanto dinheiro deitado à rua, por tanta cooperação desviada dos seus interesses mais nobres, por tanto desalento que ficou entre aqueles que suspiravam e suspiram pelo desenvolvimento e pela dignidade da pessoa humana.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10335: Notas de leitura (397): A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial Que Não Se Apagam, de Mário Beja Santos (1) (Carlos Vinhal)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
Guiné 63/74 - P10343: Blogpoesia (199): Os felizardos da guerra (Joaquim L. Mendes Gomes)
Os Felizardos da Guerra
Somos os afortunados
Das guerras de África.
Para onde, muito jovens,
Desafortunadamente,
Tivemos de ir…
Uns à força.
A maioria, não.
Regressámos todos,
Por boa sorte,
Num bojudo ventre,
Ao Cais da Rocha…
Lá muito atrás.
A maioria, não.
Regressámos todos,
Por boa sorte,
Num bojudo ventre,
Ao Cais da Rocha…
Lá muito atrás.
Dali partimos
Por esse mundo, fora,
Para a outra guerra,
Feita na paz:
Por esse mundo, fora,
Para a outra guerra,
Feita na paz:
Uma tarefa ingente,
De luta, sozinhos,
De luta, sozinhos,
Construir o futuro
Que havíamos de ser.
Sem mais regimentos,
Sem noites de escala,
Sem mais cornetins,
Mais paradas de ócio,
Sem mais portas de armas…
Estava tudo aberto…
À nossa mão,
Com braços de ferro
E muito suor.
Essa luta passou.Todos vencemos
Que havíamos de ser.
Sem mais regimentos,
Sem noites de escala,
Sem mais cornetins,
Mais paradas de ócio,
Sem mais portas de armas…
Estava tudo aberto…
À nossa mão,
Com braços de ferro
E muito suor.
Essa luta passou.Todos vencemos
A guerra da vida,
Muitas vezes, de sonho,
Tantas vezes, feroz.
E ao cabo de tudo,
Espalhados pelo mundo,
A mesma Glória nos une:
- A de estarmos bem vivos,
É sermos Avós…Imortais!
Muitas vezes, de sonho,
Tantas vezes, feroz.
E ao cabo de tudo,
Espalhados pelo mundo,
A mesma Glória nos une:
- A de estarmos bem vivos,
É sermos Avós…Imortais!
Ovar, 4 de Setembro de 2012
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Nota do editor:
Último poste da série > 5 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10332: Blogpoesia (198): Uma estranha maneira de dizer adeus (Luís Graça)
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"
1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim,
1964/66), enviou-nos mais três das suas histórias e memórias. Segue-se a primeira desta série:
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (25)
O “AGUARDENTE”
O soldado n.º 2377 do 2.º pelotão da CCaç 675, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor, recebeu aquela alcunha (aguardente) durante o 1.º ciclo de instrução que lhe foi ministrada noutra unidade por onde passou. Quando deu entrada no RI 16, integrou-se na gloriosa CCaç 675, já sobejamente conhecido por esta alcunha; ninguém o conhecia pelo seu nome legítimo. Mesmo hoje, qualquer elemento da nossa Companhia recorda com amizade e carinho o aguardente… mas pouquíssimos sabem quem é o Silvestre F. V. Flor.
Creio bem que é fácil depreender qual é a origem desta alcunha que se sobrepõe completamente ao nome de nascimento, abafando-o por completo. Isto ainda hoje acontece, muito frequentemente nas nossas aldeias; muitas vezes a alcunha passa até de pais para filhos, e casos existem em que passa a ser registada como nome. É natural de Figueira de Castelo Rodrigo onde actualmente tem residência fixa numa volumosa vivenda com um jardim ao longo de duas faces da casa.
Regressou da Guiné em 1966; passados uns meses junto da família, emigrou para a França; radicou-se em Paris, onde viveu com a família (esposa e dois filhos) até se reformar.
Todos os anos vinha com a cara metade e os rebentos passar um mês de férias na sua terra natal, onde recentemente voltou a fixar-se.
Ninguém terá pensado nisso, mas a Guerra do Ultramar serviu também para desenraizar os mancebos das suas aldeias de nascimento, retirando-lhes a protecção que lhes era proporcionada pelas saias da mãe. Antes de 1961 a maioria dos rapazes da província assentavam praça num dos quartéis do distrito. Quanto à minha região a maioria ia para Aveiro; um ou outro ia até à Figueira da Foz ou Coimbra; conheci um que foi parar ao Porto. No resto do interior do país aconteceria sensivelmente o mesmo.
Lembro-me apenas de um jovem que, contrariando todas as regras da época, nos idos 1940, foi cumprir serviço militar em Tancos. Diariamente, todas as mães da aldeia juntavam-se em casa dos pais daquele “azarado” magala, para… chorar dolorosamente e rezar com muita fé por aquele militar porque foi “ desterrado para o fim do mundo”. Era assim que, com tristeza e dó, manifestavam a sua dor e se associavam ao pesar da mãe.
Os jovens, por norma, cresciam, casavam e morriam nas aldeias onde nasceram ou nas povoações circundantes. Lá diz o ditado: “quem longe vai casar ou se engana ou vai enganar”.
O Silvestre Fernando era fisicamente bem constituído, robusto e duro; era um puro beirão (da alta); estatura pouco mais que média, sempre bem disposto, alegre e folgazão; era um desenrascado nato, sempre pronto a ajudar os outros a libertarem-se dos apertos em que, voluntariamente ou não, haviam caído. Tinha conversa fácil, atilada q.b., tinha um bom poder de argumentação – o pobre podia abandonar a porta sem esmola… mas não ia sem resposta. Naquela época, com 22 anos, já o cabelo rareava (talvez pelo efeito do capacete); hoje com o pouco “pelo” que lhe resta, usa um rabo-de-cavalo; faz-lhe falta um brinco… como lhe assentaria bem!
Durante o tempo que permanecemos em Bissau – cerca de mês e meio – os soldados andavam todos com os nervos em frangalhos, à flor da pele, emocionalmente descontrolados, porque, em vez de aferrar em Moçambique, como previsto, aportaram a Bissau! Autêntico descalabro!
Como consequência, os soldados desentendiam-se a todas as horas, por tudo e por nada e, com frequência, defendiam a sua dama… à bofetada.
O Flor – mas que flor! – e outro soldado desentenderam-se e agrediram-se mutuamente. Como estes casos eram bastante frequentes e não se via o fim da meada, o capitão Tomé Pinto procurou pôr água na fervura: ordenou, sem citação em O.S., que eu instaurasse um processo disciplinar. Ouvi os arguidos e testemunhas e elaborei cuidadosamente “a justa” sentença que se segue:
O Silvestre, porque provocou a contenda, é punido com cinco dias de detenção; o Frazão porque não soube evitá-la, cumpre três dias de privação de saída. Com estes castigos, as suas cadernetas continuaram “limpas”.
As admoestações foram afixadas em local bem à vista de todos para que se apercebessem que passava a haver castigos para quem usasse a força para decidir desentendimentos.
Todos acharam graça aos castigos aplicados! O certo, porém, é que a sentença resultou em pleno – todos passaram a entender-se bem e sem uso da força.
Numa bela tarde soalheira, em Binta, o Verges Flor foi protagonista dum acontecimento insólito, inimaginável.
Tínhamos surripiado umas dezenas de vacas aos “Turras” do Oio; no Domingo seguinte houve festa brava: ferrámos o “nosso” gado!
Uma das “nossas” vacas que marrava estupidamente, foi a última a ser ferrada; houve lugar a toureio (ameaça de) e o aguardente, sem saber como, fez uma pega… mirabolante. Ele distraiu-se, na “arena”… a vaca atacou furiosa e sorrateira; já sem tempo para fugir… curvou-se para a frente e… embarbelou-se – uma pega magistral. Este acto, a todos os títulos ousado, não saiu da memória nem do álbum de fotografias do Silvestre. Sempre que é oportuno, ele relembra a sua arte em tauromaquia, especialmente aquela pega prodigiosa e audaz. E ele nem era da região de touros, toureiros ou pegadores.
Enquanto esteve em Paris, o aguardente vinha a Portugal no mínimo uma vez por ano.
Durante umas férias da emigração, foi passar uns dias ao Algarve, com a família; no regresso visitou-me no Hotel Dom Carlos Park, onde pernoitou. Tivemos oportunidade para ali recordar as suas habilidades e façanhas, falámos da nossa passagem pelo norte da Guiné. Ninguém esquece aqueles anos! O sacrifício foi grande, mas… resta a amizade cimentada na guerra.
Nunca participou nas nossas reuniões, porque vinha a Portugal sempre no Verão. Mas tomou parte numa “mini” confraternização; - Contando com as esposas, éramos dez – num restaurante em Vilar Formoso, sito no rés-do-chão da vivenda do companheiro Espinha. Foi uma “mini” impagável, inesquecível. Os participantes eram divertidos e estavam inspirados. O Espinha (cara-rota) com os seus pés chatos foi o bombo da festa; todos malharam nele mas o aguardente também ouviu das boas!.
O Silvestre Flor veio algumas vezes de mota de Paris até Figueira de Castelo Rodrigo.
Um dia o Flor, talvez para fazer jus à sua alcunha, entendeu que devia entrar de mota no jardim da sua casa, sem passar pelo portão; não ousou saltar sobre o muro com a mota. Arranjou uma prancha de madeira larga q.b., suficientemente comprida e resistente. Apoiou-a, inclinada, sobre o muro e subiu por ela com a mota; a ponta superior da prancha ficou cerca de meio metro ou mais dentro da vedação; devido ao peso na extremidade superior, a prancha virou por cima do muro, abatendo-se pesadamente sobre a cabeça já descabelada do incauto Silvestre, que caiu inanimado. Recuperou em escassos segundos! Aprendeu logo como não devia passar por cima do muro… não repetiu a experiência.
É pai de dois filhos, um casal; ela é professora do ensino secundário e o filho vive em França.
O Silvestres sente-se orgulhoso porque casou com uma moça nascida em Ligares, aldeia contígua a Maçores, a Terra Natal do Gen Tomé Pinto. Até isto serve para se colocar nos píncaros!
Já me prometeu estar presente na nossa confraternização do próximo ano. Não costuma faltar à palavra dada. É um bom pagador de promessas! Costumava ser!
Lisboa Junho 2012
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (25)
O “AGUARDENTE”
O soldado n.º 2377 do 2.º pelotão da CCaç 675, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor, recebeu aquela alcunha (aguardente) durante o 1.º ciclo de instrução que lhe foi ministrada noutra unidade por onde passou. Quando deu entrada no RI 16, integrou-se na gloriosa CCaç 675, já sobejamente conhecido por esta alcunha; ninguém o conhecia pelo seu nome legítimo. Mesmo hoje, qualquer elemento da nossa Companhia recorda com amizade e carinho o aguardente… mas pouquíssimos sabem quem é o Silvestre F. V. Flor.
Creio bem que é fácil depreender qual é a origem desta alcunha que se sobrepõe completamente ao nome de nascimento, abafando-o por completo. Isto ainda hoje acontece, muito frequentemente nas nossas aldeias; muitas vezes a alcunha passa até de pais para filhos, e casos existem em que passa a ser registada como nome. É natural de Figueira de Castelo Rodrigo onde actualmente tem residência fixa numa volumosa vivenda com um jardim ao longo de duas faces da casa.
Regressou da Guiné em 1966; passados uns meses junto da família, emigrou para a França; radicou-se em Paris, onde viveu com a família (esposa e dois filhos) até se reformar.
Todos os anos vinha com a cara metade e os rebentos passar um mês de férias na sua terra natal, onde recentemente voltou a fixar-se.
Ninguém terá pensado nisso, mas a Guerra do Ultramar serviu também para desenraizar os mancebos das suas aldeias de nascimento, retirando-lhes a protecção que lhes era proporcionada pelas saias da mãe. Antes de 1961 a maioria dos rapazes da província assentavam praça num dos quartéis do distrito. Quanto à minha região a maioria ia para Aveiro; um ou outro ia até à Figueira da Foz ou Coimbra; conheci um que foi parar ao Porto. No resto do interior do país aconteceria sensivelmente o mesmo.
Lembro-me apenas de um jovem que, contrariando todas as regras da época, nos idos 1940, foi cumprir serviço militar em Tancos. Diariamente, todas as mães da aldeia juntavam-se em casa dos pais daquele “azarado” magala, para… chorar dolorosamente e rezar com muita fé por aquele militar porque foi “ desterrado para o fim do mundo”. Era assim que, com tristeza e dó, manifestavam a sua dor e se associavam ao pesar da mãe.
Os jovens, por norma, cresciam, casavam e morriam nas aldeias onde nasceram ou nas povoações circundantes. Lá diz o ditado: “quem longe vai casar ou se engana ou vai enganar”.
O Silvestre Fernando era fisicamente bem constituído, robusto e duro; era um puro beirão (da alta); estatura pouco mais que média, sempre bem disposto, alegre e folgazão; era um desenrascado nato, sempre pronto a ajudar os outros a libertarem-se dos apertos em que, voluntariamente ou não, haviam caído. Tinha conversa fácil, atilada q.b., tinha um bom poder de argumentação – o pobre podia abandonar a porta sem esmola… mas não ia sem resposta. Naquela época, com 22 anos, já o cabelo rareava (talvez pelo efeito do capacete); hoje com o pouco “pelo” que lhe resta, usa um rabo-de-cavalo; faz-lhe falta um brinco… como lhe assentaria bem!
Durante o tempo que permanecemos em Bissau – cerca de mês e meio – os soldados andavam todos com os nervos em frangalhos, à flor da pele, emocionalmente descontrolados, porque, em vez de aferrar em Moçambique, como previsto, aportaram a Bissau! Autêntico descalabro!
Como consequência, os soldados desentendiam-se a todas as horas, por tudo e por nada e, com frequência, defendiam a sua dama… à bofetada.
O Flor – mas que flor! – e outro soldado desentenderam-se e agrediram-se mutuamente. Como estes casos eram bastante frequentes e não se via o fim da meada, o capitão Tomé Pinto procurou pôr água na fervura: ordenou, sem citação em O.S., que eu instaurasse um processo disciplinar. Ouvi os arguidos e testemunhas e elaborei cuidadosamente “a justa” sentença que se segue:
O Silvestre, porque provocou a contenda, é punido com cinco dias de detenção; o Frazão porque não soube evitá-la, cumpre três dias de privação de saída. Com estes castigos, as suas cadernetas continuaram “limpas”.
As admoestações foram afixadas em local bem à vista de todos para que se apercebessem que passava a haver castigos para quem usasse a força para decidir desentendimentos.
Todos acharam graça aos castigos aplicados! O certo, porém, é que a sentença resultou em pleno – todos passaram a entender-se bem e sem uso da força.
Numa bela tarde soalheira, em Binta, o Verges Flor foi protagonista dum acontecimento insólito, inimaginável.
Tínhamos surripiado umas dezenas de vacas aos “Turras” do Oio; no Domingo seguinte houve festa brava: ferrámos o “nosso” gado!
Uma das “nossas” vacas que marrava estupidamente, foi a última a ser ferrada; houve lugar a toureio (ameaça de) e o aguardente, sem saber como, fez uma pega… mirabolante. Ele distraiu-se, na “arena”… a vaca atacou furiosa e sorrateira; já sem tempo para fugir… curvou-se para a frente e… embarbelou-se – uma pega magistral. Este acto, a todos os títulos ousado, não saiu da memória nem do álbum de fotografias do Silvestre. Sempre que é oportuno, ele relembra a sua arte em tauromaquia, especialmente aquela pega prodigiosa e audaz. E ele nem era da região de touros, toureiros ou pegadores.
Enquanto esteve em Paris, o aguardente vinha a Portugal no mínimo uma vez por ano.
Durante umas férias da emigração, foi passar uns dias ao Algarve, com a família; no regresso visitou-me no Hotel Dom Carlos Park, onde pernoitou. Tivemos oportunidade para ali recordar as suas habilidades e façanhas, falámos da nossa passagem pelo norte da Guiné. Ninguém esquece aqueles anos! O sacrifício foi grande, mas… resta a amizade cimentada na guerra.
Nunca participou nas nossas reuniões, porque vinha a Portugal sempre no Verão. Mas tomou parte numa “mini” confraternização; - Contando com as esposas, éramos dez – num restaurante em Vilar Formoso, sito no rés-do-chão da vivenda do companheiro Espinha. Foi uma “mini” impagável, inesquecível. Os participantes eram divertidos e estavam inspirados. O Espinha (cara-rota) com os seus pés chatos foi o bombo da festa; todos malharam nele mas o aguardente também ouviu das boas!.
O Silvestre Flor veio algumas vezes de mota de Paris até Figueira de Castelo Rodrigo.
Um dia o Flor, talvez para fazer jus à sua alcunha, entendeu que devia entrar de mota no jardim da sua casa, sem passar pelo portão; não ousou saltar sobre o muro com a mota. Arranjou uma prancha de madeira larga q.b., suficientemente comprida e resistente. Apoiou-a, inclinada, sobre o muro e subiu por ela com a mota; a ponta superior da prancha ficou cerca de meio metro ou mais dentro da vedação; devido ao peso na extremidade superior, a prancha virou por cima do muro, abatendo-se pesadamente sobre a cabeça já descabelada do incauto Silvestre, que caiu inanimado. Recuperou em escassos segundos! Aprendeu logo como não devia passar por cima do muro… não repetiu a experiência.
É pai de dois filhos, um casal; ela é professora do ensino secundário e o filho vive em França.
O Silvestres sente-se orgulhoso porque casou com uma moça nascida em Ligares, aldeia contígua a Maçores, a Terra Natal do Gen Tomé Pinto. Até isto serve para se colocar nos píncaros!
Já me prometeu estar presente na nossa confraternização do próximo ano. Não costuma faltar à palavra dada. É um bom pagador de promessas! Costumava ser!
Lisboa Junho 2012
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua
Guiné 63/74 - P10341: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (13): Abuso de poder
1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 2 de Setembro de 2012:
Caros amigos
Nesta época de alegada menor produção editorial e de atenção ao Blogue por parte daqueles que normalmente o seguem, envio-vos este texto que foi produzido por inspiração dum episódio retratado no "P10305" da autoria do Juvenal Amado e que podem, caso queiram e achem oportuno, fazer publicar.
Trata-se de uma situação de abuso de poder, de atitudes reprováveis mas afinal tão recorrentes. E também de solidariedade.
Embora não se passando em terras da Guiné trata-se de coisas que se passaram 'em tempo de guerra', que é o lema que escolhi para os relatos das minhas recordações, e com pessoas que estavam a ser preparadas para 'ir para a guerra', sendo que alguns dos que se referem no texto também pisaram terras da Guiné.
Abraços
Hélder Sousa
HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (13)
ABUSO DE PODER
Caros camaradas, amigos e outros…
A memória tem destas coisas. Certas cenas, certas situações, ficam arrumadas lá, nalgum cantinho do cérebro, por incomodarem, por não lhes darmos importância ou por outro motivo qualquer mas, às vezes, basta um pequeno ‘clic’, uma pequena referência, para voltarem a aparecer, mais ou menos claras, mais ou menos difusas. O que agora pretendo relatar é uma dessas situações. Passou-se fez agora 42 anos e foi o texto do Juvenal Amado no “P10305”, relatando a atitude prepotente de um Oficial, em claro abuso de autoridade, perfeitamente descabelado, no caso que ele ilustrou sobre o Silva, que me fez relembrar este outro episódio do qual fui uma testemunha privilegiada. Neste meu relato há lugar à revelação dessa atitude de abuso de poder mas também às manifestações de solidariedade subsequentes.
O local foi o então designado Regimento de Transmissões, no Porto, na Rua do Vale Formoso, ali perto do Jardim da Arca d’Água. A data foi o dia 1 de Setembro de 1970, os tais 42 anos que acima referi. O espaço em causa foi nas proximidades do Refeitório, aquando da formatura para o almoço.
As personagens principais foram o Sargento-de-dia, papel desempenhado pelo 1.º Cabo Miliciano de serviço na escala desse dia e um tal “Capitão C” vulgarmente conhecido na Unidade com a ‘cobra cuspideira’ pelo facto de ser usual falar espalhafatosamente lançando ‘perdigotos’ para cima dos seus interlocutores que deveriam guardar prudente distância. As personagens secundárias foram o Sr. Oficial-de-dia e o conjunto de soldados-instruendos em formatura e outros nas proximidades. O que se passou, e a que eu assisti, foi o seguinte:
Aquando da verificação das presenças e ausências autorizadas para a entrada no Refeitório, com os diversos pelotões formados, sob um sol a pino, abrasador, o Sargento-de-dia verificou que faltavam dois elementos que, por sinal eram do seu Pelotão de instrução. Procurou saber o que se passava e logo outros instruendos lhe disseram que os elementos em falta tinham sido ‘desviados’ pela ‘cobra cuspideira’ para ir até à pedreira, ali ao lado (cerca de 30, 40 metros), quando se dirigiam para o Refeitório, para participarem numa acção de rebentamento dessa pedreira e retirada rápida de algumas pedras. Esse trabalho demorou mais do que se previa e desse modo os homens ainda se encontravam sob as ordens forçadas do “Capitão C” estando agora em falta à formatura.
Para procurar resolver a situação o Sargento-de-dia dirigiu-se ao local onde estavam os elementos em falta para saber como se tinha processado a ‘requisição’ e como e quando os homens seriam ‘libertados’.
Nesse momento, o “Capitão C”, sentindo-se questionado na sua autoridade, dirigiu-se em passo apressado, gesticulando e vociferando, perguntando ao 1.º Cabo Miliciano o que é que ele tinha que interferir no trabalho. O 1.º Cabo Miliciano suportando estoicamente os ‘perdigotos’ da ‘cobra cuspideira’, colocou-se em sentido e respondeu-lhe que só estava a cumprir e a fazer cumprir as suas responsabilidades de Sargento-de-dia e pretendia os homens na formatura ou então um documento de requisição dos mesmos para justificar a ausência deles à formatura.
De cabeça perdida, por lhe contestarem a sua ‘autoridade’ normalmente impune, o “Capitão C” ensaia enfiar uma chapada com a sua mão direita na face esquerda do Sargento-de-dia que teve reflexos mais rápidos que o agressor, levantando o braço esquerdo e sustendo a chapada ao mesmo tempo que a mão direita agarrou fortemente o braço da ‘cobra cuspideira’ dizendo qualquer coisa que ficou apenas no conhecimento dos dois (e dos dois instruendos que se encontravam ali a dois metros), já que estavam face a face.
O Sr. Oficial-de-dia resolveu então entrar para ‘salvar’ a situação, assumindo a ‘justificação’ da não presença dos instruendos ‘requisitados’ pelo “Capitão C” e dissuadindo o “Capitão C” de voltar a interferir com as obrigações do Sargento-de-dia, mas como tudo se tinha passado à vista dos vários Pelotões e do próprio Oficial-de-dia os acontecimentos não iriam ficar por ali.
Até aqui falei do ‘abuso de poder’, mas é preciso também falar da solidariedade.
Acontece que naquela época decorriam obras no Quartel sendo que era voz corrente, no tal diz-que-diz, que a ‘dupla maravilha’ que por lá havia nessa época, constituída pelo referido “Capitão C” e pelo “Tenente VT”, manobrou a empreitada de modo a fazer com que algum trabalho necessário fosse executado pelos próprios soldados-instruendos, economizando as verbas correspondentes, sendo que o tal ‘diz-que-diz’ aventava hipóteses bem mais ‘cabeludas’.
O certo é que esse referido trabalho consistia essencialmente na recolha e transporte de pedras da pedreira para o local das obras, trabalho feito sem luvas (estávamos longe da intervenção da inspecção de trabalho…) o que originava frequentes cortes, esfoladelas e inchaço nas mãos. Os instruendos envolvidos, requisitados obrigatoriamente’, faziam-no rotativamente pelos vários Pelotões, mas andavam contrariados, revoltados mesmo, porque essas acções originavam frequentemente um menor desempenho nos testes de aproveitamento semanal, que permitiriam, ou não, a ida de fim-de-semana.
Deste modo, a cena ocorrida à sua frente, de desautorização do Sargento-de-dia pelo “Capitão C” e correspondente oposição só podia suscitar apoio e simpatia ao 1.º Cabo Miliciano.
O “Capitão C” no meio da sua fúria, para além de sentir desafiado na sua ‘autoridade’ dizia que tinha sido ofendido porque o 1.º Cabo Miliciano quando o impediu de bater e lhe agarrou o braço lhe teria dito:
- Se voltas a repetir isto, meu cabrão, mato-te! - e, em consequência ameaçou o 1.º Cabo Miliciano que lhe ia ‘fazer a folha’, ia fazer uma participação que o meteria na cadeia. Os instruendos juraram que o que ouviram foi:
- Se volta a repetir isto, meu capitão, bato-lhe!- e dispuseram-se para o testemunhar onde e como fosse preciso.
Várias pessoas, incluindo o Oficial-de-dia que presenciou a cena (mas não o ‘diálogo’) e por exemplo o então 1.º Sargento Guedes Barbosa (que mais tarde também esteve na Guiné) que é um exemplo vivo de como as pessoas do Quadro não são indiferentes às injustiças, aconselharam o Sargento-de-dia a ‘fazer queixa’ do “Capitão C” com base de desautorização de funções e de tentativa de agressão testemunhada.
Com estas premissas decorreu a refeição e logo a seguir ao almoço foram várias as ‘movimentações’ que se processaram em vários sentidos. Nos ´rádios´ recebidos por essa altura, depois de descodificados, tomou-se conhecimento de várias mobilizações, designadamente de sete 1.ºs Cabos Milicianos para o CTIG, entre os quais o que protagonizava o episódio do dia.
Uns quantos dissuadiram o “Capitão C” de apresentar a tal participação, porque as suas razões eram fracas, havia largas dezenas de testemunhas para falar da tentativa de agressão e, além disso, “o rapaz já tinha castigo suficiente, tinha acabado de ser mobilizado para a Guiné”.
Outros ‘mostraram’ ao 1.º Cabo Miliciano que não valia a pena ir para a frente com a queixa porque o processo iria demorar algum tempo e já não estaria lá para o acompanhar. O melhor era mesmo anularem-se as acções, a participação e a queixa. E assim se fez.
Mais difícil foi dissuadir alguns dos instruendos mais revoltados com a situação de exploração a que estavam submetidos, trabalhando como escravos e ‘metendo dinheiro ao bolso’ dos tais membros da ‘dupla maravilha’ e que aproveitaram a situação para tentarem algum desforço deles.
Recordo alguns, como o “Tony” que trabalhou no “Hotel Cibra” em Cascais (e que também foi mais tarde parar à Guiné) e o “Marinheiro” que trabalhou na “Lanalgo” em Lisboa, entre outros, que estavam apostados em ‘visitar’ a propriedade da ‘cobra cuspideira’ em Gaia e fazer lá alguns ‘trabalhos’ para se sentirem de algum modo vingados das afrontas.
Acho que consegui fazer-lhes ver que não valia a pena tais acções, nem por mim que iria seguir a minha mobilização e não queria mais perturbações, nem por eles pois podiam ter algum dissabor que lhes iria estragar a vida. Mas valeu a solidariedade!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto
Caros amigos
Nesta época de alegada menor produção editorial e de atenção ao Blogue por parte daqueles que normalmente o seguem, envio-vos este texto que foi produzido por inspiração dum episódio retratado no "P10305" da autoria do Juvenal Amado e que podem, caso queiram e achem oportuno, fazer publicar.
Trata-se de uma situação de abuso de poder, de atitudes reprováveis mas afinal tão recorrentes. E também de solidariedade.
Embora não se passando em terras da Guiné trata-se de coisas que se passaram 'em tempo de guerra', que é o lema que escolhi para os relatos das minhas recordações, e com pessoas que estavam a ser preparadas para 'ir para a guerra', sendo que alguns dos que se referem no texto também pisaram terras da Guiné.
Abraços
Hélder Sousa
HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (13)
ABUSO DE PODER
Caros camaradas, amigos e outros…
A memória tem destas coisas. Certas cenas, certas situações, ficam arrumadas lá, nalgum cantinho do cérebro, por incomodarem, por não lhes darmos importância ou por outro motivo qualquer mas, às vezes, basta um pequeno ‘clic’, uma pequena referência, para voltarem a aparecer, mais ou menos claras, mais ou menos difusas. O que agora pretendo relatar é uma dessas situações. Passou-se fez agora 42 anos e foi o texto do Juvenal Amado no “P10305”, relatando a atitude prepotente de um Oficial, em claro abuso de autoridade, perfeitamente descabelado, no caso que ele ilustrou sobre o Silva, que me fez relembrar este outro episódio do qual fui uma testemunha privilegiada. Neste meu relato há lugar à revelação dessa atitude de abuso de poder mas também às manifestações de solidariedade subsequentes.
Foto retirado da página http://zala.fotosblogue.com/129565/Codigo-de-Morse/, com a devida vénia
O local foi o então designado Regimento de Transmissões, no Porto, na Rua do Vale Formoso, ali perto do Jardim da Arca d’Água. A data foi o dia 1 de Setembro de 1970, os tais 42 anos que acima referi. O espaço em causa foi nas proximidades do Refeitório, aquando da formatura para o almoço.
As personagens principais foram o Sargento-de-dia, papel desempenhado pelo 1.º Cabo Miliciano de serviço na escala desse dia e um tal “Capitão C” vulgarmente conhecido na Unidade com a ‘cobra cuspideira’ pelo facto de ser usual falar espalhafatosamente lançando ‘perdigotos’ para cima dos seus interlocutores que deveriam guardar prudente distância. As personagens secundárias foram o Sr. Oficial-de-dia e o conjunto de soldados-instruendos em formatura e outros nas proximidades. O que se passou, e a que eu assisti, foi o seguinte:
Aquando da verificação das presenças e ausências autorizadas para a entrada no Refeitório, com os diversos pelotões formados, sob um sol a pino, abrasador, o Sargento-de-dia verificou que faltavam dois elementos que, por sinal eram do seu Pelotão de instrução. Procurou saber o que se passava e logo outros instruendos lhe disseram que os elementos em falta tinham sido ‘desviados’ pela ‘cobra cuspideira’ para ir até à pedreira, ali ao lado (cerca de 30, 40 metros), quando se dirigiam para o Refeitório, para participarem numa acção de rebentamento dessa pedreira e retirada rápida de algumas pedras. Esse trabalho demorou mais do que se previa e desse modo os homens ainda se encontravam sob as ordens forçadas do “Capitão C” estando agora em falta à formatura.
Para procurar resolver a situação o Sargento-de-dia dirigiu-se ao local onde estavam os elementos em falta para saber como se tinha processado a ‘requisição’ e como e quando os homens seriam ‘libertados’.
Nesse momento, o “Capitão C”, sentindo-se questionado na sua autoridade, dirigiu-se em passo apressado, gesticulando e vociferando, perguntando ao 1.º Cabo Miliciano o que é que ele tinha que interferir no trabalho. O 1.º Cabo Miliciano suportando estoicamente os ‘perdigotos’ da ‘cobra cuspideira’, colocou-se em sentido e respondeu-lhe que só estava a cumprir e a fazer cumprir as suas responsabilidades de Sargento-de-dia e pretendia os homens na formatura ou então um documento de requisição dos mesmos para justificar a ausência deles à formatura.
De cabeça perdida, por lhe contestarem a sua ‘autoridade’ normalmente impune, o “Capitão C” ensaia enfiar uma chapada com a sua mão direita na face esquerda do Sargento-de-dia que teve reflexos mais rápidos que o agressor, levantando o braço esquerdo e sustendo a chapada ao mesmo tempo que a mão direita agarrou fortemente o braço da ‘cobra cuspideira’ dizendo qualquer coisa que ficou apenas no conhecimento dos dois (e dos dois instruendos que se encontravam ali a dois metros), já que estavam face a face.
O Sr. Oficial-de-dia resolveu então entrar para ‘salvar’ a situação, assumindo a ‘justificação’ da não presença dos instruendos ‘requisitados’ pelo “Capitão C” e dissuadindo o “Capitão C” de voltar a interferir com as obrigações do Sargento-de-dia, mas como tudo se tinha passado à vista dos vários Pelotões e do próprio Oficial-de-dia os acontecimentos não iriam ficar por ali.
Até aqui falei do ‘abuso de poder’, mas é preciso também falar da solidariedade.
Acontece que naquela época decorriam obras no Quartel sendo que era voz corrente, no tal diz-que-diz, que a ‘dupla maravilha’ que por lá havia nessa época, constituída pelo referido “Capitão C” e pelo “Tenente VT”, manobrou a empreitada de modo a fazer com que algum trabalho necessário fosse executado pelos próprios soldados-instruendos, economizando as verbas correspondentes, sendo que o tal ‘diz-que-diz’ aventava hipóteses bem mais ‘cabeludas’.
O certo é que esse referido trabalho consistia essencialmente na recolha e transporte de pedras da pedreira para o local das obras, trabalho feito sem luvas (estávamos longe da intervenção da inspecção de trabalho…) o que originava frequentes cortes, esfoladelas e inchaço nas mãos. Os instruendos envolvidos, requisitados obrigatoriamente’, faziam-no rotativamente pelos vários Pelotões, mas andavam contrariados, revoltados mesmo, porque essas acções originavam frequentemente um menor desempenho nos testes de aproveitamento semanal, que permitiriam, ou não, a ida de fim-de-semana.
Deste modo, a cena ocorrida à sua frente, de desautorização do Sargento-de-dia pelo “Capitão C” e correspondente oposição só podia suscitar apoio e simpatia ao 1.º Cabo Miliciano.
O “Capitão C” no meio da sua fúria, para além de sentir desafiado na sua ‘autoridade’ dizia que tinha sido ofendido porque o 1.º Cabo Miliciano quando o impediu de bater e lhe agarrou o braço lhe teria dito:
- Se voltas a repetir isto, meu cabrão, mato-te! - e, em consequência ameaçou o 1.º Cabo Miliciano que lhe ia ‘fazer a folha’, ia fazer uma participação que o meteria na cadeia. Os instruendos juraram que o que ouviram foi:
- Se volta a repetir isto, meu capitão, bato-lhe!- e dispuseram-se para o testemunhar onde e como fosse preciso.
Várias pessoas, incluindo o Oficial-de-dia que presenciou a cena (mas não o ‘diálogo’) e por exemplo o então 1.º Sargento Guedes Barbosa (que mais tarde também esteve na Guiné) que é um exemplo vivo de como as pessoas do Quadro não são indiferentes às injustiças, aconselharam o Sargento-de-dia a ‘fazer queixa’ do “Capitão C” com base de desautorização de funções e de tentativa de agressão testemunhada.
Com estas premissas decorreu a refeição e logo a seguir ao almoço foram várias as ‘movimentações’ que se processaram em vários sentidos. Nos ´rádios´ recebidos por essa altura, depois de descodificados, tomou-se conhecimento de várias mobilizações, designadamente de sete 1.ºs Cabos Milicianos para o CTIG, entre os quais o que protagonizava o episódio do dia.
Uns quantos dissuadiram o “Capitão C” de apresentar a tal participação, porque as suas razões eram fracas, havia largas dezenas de testemunhas para falar da tentativa de agressão e, além disso, “o rapaz já tinha castigo suficiente, tinha acabado de ser mobilizado para a Guiné”.
Outros ‘mostraram’ ao 1.º Cabo Miliciano que não valia a pena ir para a frente com a queixa porque o processo iria demorar algum tempo e já não estaria lá para o acompanhar. O melhor era mesmo anularem-se as acções, a participação e a queixa. E assim se fez.
Mais difícil foi dissuadir alguns dos instruendos mais revoltados com a situação de exploração a que estavam submetidos, trabalhando como escravos e ‘metendo dinheiro ao bolso’ dos tais membros da ‘dupla maravilha’ e que aproveitaram a situação para tentarem algum desforço deles.
Recordo alguns, como o “Tony” que trabalhou no “Hotel Cibra” em Cascais (e que também foi mais tarde parar à Guiné) e o “Marinheiro” que trabalhou na “Lanalgo” em Lisboa, entre outros, que estavam apostados em ‘visitar’ a propriedade da ‘cobra cuspideira’ em Gaia e fazer lá alguns ‘trabalhos’ para se sentirem de algum modo vingados das afrontas.
Acho que consegui fazer-lhes ver que não valia a pena tais acções, nem por mim que iria seguir a minha mobilização e não queria mais perturbações, nem por eles pois podiam ter algum dissabor que lhes iria estragar a vida. Mas valeu a solidariedade!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto
Guiné 63/74 - P10340: Álbum fotográfico do ex-Alf Mil Art Humberto Nunes (3): Cuntima
1. Terceira série de fotos do álbum do nosso camarada Humberto Nunes (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael Porto e Cuntima, 1972/74), enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012:
Cuntima > Festa na tabanca
Cuntima > Festa na tabanca
Cuntima > Festa na tabanca
Cuntima > Festa na tabanca
Cuntima > Festa na tabanca
Cuntima > Juventude em pose
Cuntima > Juventude em pose
Cuntima > Picada para Farim
Cuntima > Tabanca no Senegal
Cuntima > Tabanca no Senegal
Cuntima > Tabanca no Senegal
____________Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10320: Álbum fotográfico do ex-Alf Mil Art Humberto Nunes (2): Cuntima
Guiné 63/74 - P10339: História da CCAÇ 2679 (52): Vietnam (José Manuel M. Dinis)
1. Em mensagem do dia 31 de Agosto de 2012 o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais um pouco da história da sua Unidade que é também a história da sua vivência enquanto combatente da Guiné:
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (52)
VIETNAM
Sentara-me sobre a mesa de ping-pong (ténis-de-mesa para os puristas) encostada à parede e à janela do meu quarto, sob o alpendre do edifício da messe, chinelinhos enfiados nos dedos dos pés, e tronco nu. Era ali que costumava aguardar pelo crepúsculo, pois tratava-se de um lugar privilegiado para ver o pôr-do-sol, numa direcção que a partir dali passava entre a saída para Pirada e o edifício do comando. Havia dias em que me regalava a ver riscos de luz amarela e rosa a salpicar o fundo azul do firmamento.
Tinha assistido à chegada da coluna,e ao habitual movimento de gente em torno das viaturas, que descarregavam civis e militares, aqueles atafulhados de sacos de pano ou alguidares coloridos, onde faziam transportar os seus bens adquiridos nos armazéns do Gabú, os militares que se sacudiam, e de armas a tiracolo, ou ao ombro, carregavam as cartucheiras e demandavam os abrigos para banhos merecidos. Afluíam outros militares à secretaria para a distribuição do correio, que, de tão desejado, se fazia antes que tudo. Do lado de fora do arame, sob as mangueiras, alguns civis faziam perguntas a quem chegava sobre amigos, familiares, condições de comércio, etc, e davam sonoras risadas que mostravam as cremalheiras de onde sobressaíam os dentes brancos, enquanto dobravam os corpos reflexamente, ou, perante algum regressado depois de longo tempo, ficavam de mãos dadas e conversavam afável e curiosamente.
Os meus camaradas, depois das saudações e aldrabices habituais, tinham ido para o interior, para o banho e preparação para a janta.
Sem me ter dado conta, aproximou-se um militar bem aprumado, da minha estatura, magro mas bem constituído e muito moreno, de nariz aquilino, algo rude, e olhar encovado, que perguntou por mim. Era eu, respondi. De imediato, o recém-chegado bateu o tacão, perfilou-se, levantou a perna direita esticada a noventa gaus, voltou a juntar os pés com novo batimento, e começou a apresentação, enquanto eu me colocara na posição de sentido em correspondência àquele cumprimento. Era o soldado Lapa, proveniente da 26.ª CComandos, que passava a integrar o segundo pelotão, o Foxtrot, inicial de muitos significados. Foi no dia 17JAN71.
Cumprimentei-o civilmente em seguida, perguntei-lhe se precisava de alguma coisa, pedi a um camarada para lhe providenciar uma cama num abrigo, e disse-lhe que de manhã iríamos à lenha, pelo que se não estivesse ocupado, poderia logo acompanhar-nos e começar a conhecer o pessoal. Ainda lhe acrescentei que o decorrer do tempo e o espírito do grupo, seria a melhor maneira de nos irmos conhecendo. De facto, quando nos calhava ir à lenha pelas redondezas, metade do pelotão folgava. Montava uma segurança próxima de uns quatro elementos, enquanto os restantes faziam a colecta. Normalmente, eu não ia. Naquela vez, porém, talvez e em correspondência a comentários sobre a rica vida, e com o sentido acrescentado de avaliar a integração do novo elemento, de manhã estava pronto a seguir. E abalámos. Chegados ao local, designei os quatro para a segurança, e iniciámos a recolha e acondicionamento da madeira na viatura. A certa altura o Lapa aproximou-se bem disposto e comentou sobre a minha actividade, a que respondi, que nem aquilo era um trabalho pesado, nem me caíam os parentes. No Foxtrot o principal era o espírito de equipa e a solidariedade.
Pelas vias normais tive conhecimento de que o Lapa viera transferido por motivos disciplinares, mas não tive interesse e até hoje não sei dos motivos em concreto. Pela malta fiquei a saber que tínhamos então entre nós um tipo valente e alcunhado de "Vietname". Mais tarde vim a considerar que o próprio teria contribuído para a alcunha com alguma auto-promoção. Nos intervalos em que conversávamos, ele manifestava uma certa admiração pelas lendas, nomeadamente pelo Ché Guevara, na época muito em voga. De uma das vezes, senti que ele gostaria de ter mais protagonismo na guerra, provavelmente, também, no sentido de conquistar créditos, quiçá abalançar-se a níveis de projecção entre a guerrilha, e que fosse temido pela bravura. Tentei explicar-lhe que entre nós e o Ché não era possível estabelecermos qualquer comparação. Em primeiro lugar, porque éramos portugueses, mobilizados pelo governo, para actuarmos na defesa dos territórios ultramarinos, e fazíamos a guerra enquadrados numa qualquer estratégia do ComChefe a que éramos completamente alheios, enquanto o Ché, de nacionalidade argentina, era um licenciado em medicina, que tinha uma visão universalista e participava na luta pelo lado dos pobres e explorados contra o poderio dos estados. Por isso combatera em Cuba, e na ocasião deambulava pela América do Sul, onde era comandante de um grupo de guerrilheiros (só muitos anos mais tarde tive conhecimento de actos da sua responsabilidade, abafados pela informação e pelas autoridades cubanas, que me causaram uma negativa perplexidade).
Outra ocasião alongou-se numa conversa sobre as minhas capacidades, e achei que tinha de lhe perguntar, se queria andar à porrada comigo. Que não! Estávamos só a falar. Estas circunstâncias levaram-me à conclusão de que aquele Foxtrot andava meio perdido, que seria capaz do melhor, como do pior, e que aconselharia a prudência andar de olho nele para me antecipar a qualquer acto mais exagerado ou inconveniente.
Depois vim a saber, que no abrigo onde dormia o Lapa, com frequência havia petiscos de galinha, e que ele costumava atravessar o arame para ir a Amedalai, a coberto da noite, para as "controlar". Preferi não tomar conhecimento disso, pois teria que o proibir dessas saídas. O risco era relativíssimo, e estou convencido que se o proibisse, ele desobedeceria e teria que passar ao papel. Mas o ambiente em redor dele era bom, e a integração não levantava dúvidas, até que um dia, seguia eu à frente de uma patrulha de combate com a finalidade de interceptar eventuais travessias da fronteira entre Bajocunda e Pirada, ouviu-se um tiro. Parei. Atrás de mim todos pararam. Mantinha-se o silêncio. Um tiro sem motivo, no ambiente do Foxtrot era pecado. Movimentei-me ao longo do pessoal, olhando-os, sem dizer palavras, apenas a avaliar. Quando me aproximei do Lapa não tive dúvidas, o seu ar zombeteiro, o corpo arqueado e o olhar de viés, denunciaram-no. Para onde atiraste? - perguntei-lhe. Respondeu que para um pássaro. Onde está o pássaro? - voltei a perguntar. Respondeu secamente que não lhe tinha acertado. O tiro, o diálogo, e alguma insolência manifestada, já me impulsionavam. Em fracções de segundo teria que resolver a situação. Levantei a arma que estava suspensa da mão direita, e apontei-a para a cabeça, enquanto lhe disse, olhos nos olhos: Se voltas a atirar sem autorização, rebento-te a caximónia.
Escuso de referir que, quando me chateava, apresentava um ar bastante persuasivo. Olhámo-nos uns segundos, baixei a canhota, virei-lhe as costas e retomei o caminho.
A verdade é que resultou. Daí para diante o Lapa era um Foxtrot alegre e companheiro, e uma mais-valia relevante em caso de sofrermos alguma surpresa da banda do IN. Nenhum de nós ficou com ressentimentos, nem na história, e hoje pertencemos à massa anónima de cidadãos, dos que labutam para viver, e faço votos, dos que movidos pela solidariedade estarão sempre prontos para ajudar quem precise, afinal, uma das lições que ingénua e romanticamente retemos do Ché.
Nota triste: Vítima do bicho-mau, faleceu recentemente o Cabral, outro elemento Foxtrot que nos deixa mais pobres. À sua família apresento sinceros pêsames.
Um grupo Foxtrot no regresso da lenha. Da esquerda para a direita: Gonçalves, Rodrigues (Mama Sono), Santos, Faria, Pauleiro (de G-3), Zip-Zip (condutor fantástico), Dinis e França
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (52)
VIETNAM
Sentara-me sobre a mesa de ping-pong (ténis-de-mesa para os puristas) encostada à parede e à janela do meu quarto, sob o alpendre do edifício da messe, chinelinhos enfiados nos dedos dos pés, e tronco nu. Era ali que costumava aguardar pelo crepúsculo, pois tratava-se de um lugar privilegiado para ver o pôr-do-sol, numa direcção que a partir dali passava entre a saída para Pirada e o edifício do comando. Havia dias em que me regalava a ver riscos de luz amarela e rosa a salpicar o fundo azul do firmamento.
Tinha assistido à chegada da coluna,e ao habitual movimento de gente em torno das viaturas, que descarregavam civis e militares, aqueles atafulhados de sacos de pano ou alguidares coloridos, onde faziam transportar os seus bens adquiridos nos armazéns do Gabú, os militares que se sacudiam, e de armas a tiracolo, ou ao ombro, carregavam as cartucheiras e demandavam os abrigos para banhos merecidos. Afluíam outros militares à secretaria para a distribuição do correio, que, de tão desejado, se fazia antes que tudo. Do lado de fora do arame, sob as mangueiras, alguns civis faziam perguntas a quem chegava sobre amigos, familiares, condições de comércio, etc, e davam sonoras risadas que mostravam as cremalheiras de onde sobressaíam os dentes brancos, enquanto dobravam os corpos reflexamente, ou, perante algum regressado depois de longo tempo, ficavam de mãos dadas e conversavam afável e curiosamente.
Os meus camaradas, depois das saudações e aldrabices habituais, tinham ido para o interior, para o banho e preparação para a janta.
Sem me ter dado conta, aproximou-se um militar bem aprumado, da minha estatura, magro mas bem constituído e muito moreno, de nariz aquilino, algo rude, e olhar encovado, que perguntou por mim. Era eu, respondi. De imediato, o recém-chegado bateu o tacão, perfilou-se, levantou a perna direita esticada a noventa gaus, voltou a juntar os pés com novo batimento, e começou a apresentação, enquanto eu me colocara na posição de sentido em correspondência àquele cumprimento. Era o soldado Lapa, proveniente da 26.ª CComandos, que passava a integrar o segundo pelotão, o Foxtrot, inicial de muitos significados. Foi no dia 17JAN71.
Cumprimentei-o civilmente em seguida, perguntei-lhe se precisava de alguma coisa, pedi a um camarada para lhe providenciar uma cama num abrigo, e disse-lhe que de manhã iríamos à lenha, pelo que se não estivesse ocupado, poderia logo acompanhar-nos e começar a conhecer o pessoal. Ainda lhe acrescentei que o decorrer do tempo e o espírito do grupo, seria a melhor maneira de nos irmos conhecendo. De facto, quando nos calhava ir à lenha pelas redondezas, metade do pelotão folgava. Montava uma segurança próxima de uns quatro elementos, enquanto os restantes faziam a colecta. Normalmente, eu não ia. Naquela vez, porém, talvez e em correspondência a comentários sobre a rica vida, e com o sentido acrescentado de avaliar a integração do novo elemento, de manhã estava pronto a seguir. E abalámos. Chegados ao local, designei os quatro para a segurança, e iniciámos a recolha e acondicionamento da madeira na viatura. A certa altura o Lapa aproximou-se bem disposto e comentou sobre a minha actividade, a que respondi, que nem aquilo era um trabalho pesado, nem me caíam os parentes. No Foxtrot o principal era o espírito de equipa e a solidariedade.
Pelas vias normais tive conhecimento de que o Lapa viera transferido por motivos disciplinares, mas não tive interesse e até hoje não sei dos motivos em concreto. Pela malta fiquei a saber que tínhamos então entre nós um tipo valente e alcunhado de "Vietname". Mais tarde vim a considerar que o próprio teria contribuído para a alcunha com alguma auto-promoção. Nos intervalos em que conversávamos, ele manifestava uma certa admiração pelas lendas, nomeadamente pelo Ché Guevara, na época muito em voga. De uma das vezes, senti que ele gostaria de ter mais protagonismo na guerra, provavelmente, também, no sentido de conquistar créditos, quiçá abalançar-se a níveis de projecção entre a guerrilha, e que fosse temido pela bravura. Tentei explicar-lhe que entre nós e o Ché não era possível estabelecermos qualquer comparação. Em primeiro lugar, porque éramos portugueses, mobilizados pelo governo, para actuarmos na defesa dos territórios ultramarinos, e fazíamos a guerra enquadrados numa qualquer estratégia do ComChefe a que éramos completamente alheios, enquanto o Ché, de nacionalidade argentina, era um licenciado em medicina, que tinha uma visão universalista e participava na luta pelo lado dos pobres e explorados contra o poderio dos estados. Por isso combatera em Cuba, e na ocasião deambulava pela América do Sul, onde era comandante de um grupo de guerrilheiros (só muitos anos mais tarde tive conhecimento de actos da sua responsabilidade, abafados pela informação e pelas autoridades cubanas, que me causaram uma negativa perplexidade).
Outra ocasião alongou-se numa conversa sobre as minhas capacidades, e achei que tinha de lhe perguntar, se queria andar à porrada comigo. Que não! Estávamos só a falar. Estas circunstâncias levaram-me à conclusão de que aquele Foxtrot andava meio perdido, que seria capaz do melhor, como do pior, e que aconselharia a prudência andar de olho nele para me antecipar a qualquer acto mais exagerado ou inconveniente.
Depois vim a saber, que no abrigo onde dormia o Lapa, com frequência havia petiscos de galinha, e que ele costumava atravessar o arame para ir a Amedalai, a coberto da noite, para as "controlar". Preferi não tomar conhecimento disso, pois teria que o proibir dessas saídas. O risco era relativíssimo, e estou convencido que se o proibisse, ele desobedeceria e teria que passar ao papel. Mas o ambiente em redor dele era bom, e a integração não levantava dúvidas, até que um dia, seguia eu à frente de uma patrulha de combate com a finalidade de interceptar eventuais travessias da fronteira entre Bajocunda e Pirada, ouviu-se um tiro. Parei. Atrás de mim todos pararam. Mantinha-se o silêncio. Um tiro sem motivo, no ambiente do Foxtrot era pecado. Movimentei-me ao longo do pessoal, olhando-os, sem dizer palavras, apenas a avaliar. Quando me aproximei do Lapa não tive dúvidas, o seu ar zombeteiro, o corpo arqueado e o olhar de viés, denunciaram-no. Para onde atiraste? - perguntei-lhe. Respondeu que para um pássaro. Onde está o pássaro? - voltei a perguntar. Respondeu secamente que não lhe tinha acertado. O tiro, o diálogo, e alguma insolência manifestada, já me impulsionavam. Em fracções de segundo teria que resolver a situação. Levantei a arma que estava suspensa da mão direita, e apontei-a para a cabeça, enquanto lhe disse, olhos nos olhos: Se voltas a atirar sem autorização, rebento-te a caximónia.
Escuso de referir que, quando me chateava, apresentava um ar bastante persuasivo. Olhámo-nos uns segundos, baixei a canhota, virei-lhe as costas e retomei o caminho.
A verdade é que resultou. Daí para diante o Lapa era um Foxtrot alegre e companheiro, e uma mais-valia relevante em caso de sofrermos alguma surpresa da banda do IN. Nenhum de nós ficou com ressentimentos, nem na história, e hoje pertencemos à massa anónima de cidadãos, dos que labutam para viver, e faço votos, dos que movidos pela solidariedade estarão sempre prontos para ajudar quem precise, afinal, uma das lições que ingénua e romanticamente retemos do Ché.
Nota triste: Vítima do bicho-mau, faleceu recentemente o Cabral, outro elemento Foxtrot que nos deixa mais pobres. À sua família apresento sinceros pêsames.
Um grupo Foxtrot no regresso da lenha. Da esquerda para a direita: Gonçalves, Rodrigues (Mama Sono), Santos, Faria, Pauleiro (de G-3), Zip-Zip (condutor fantástico), Dinis e França
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)
Guiné 63/74 - P10338: Blogoterapia (215): Obrigado por me terem na vossa lista de amigos e camaradas (José Martins)
1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), a propósito do seu aniversário festejado ontem dia 5 de Setembro de 2012:
O dia está a chegar ao fim.
Os convidados – FILHOS, FILHOTES E NETOS – já recolheram às suas casas, que amanhã é dia de trabalho ou de estudo.
Mas falemos de BLOGUEFORANADAEVAOTRES…
Quando começaram as mensagens de parabéns? Não sei, não fui ver e, claro, no momento não tem interesse. A mensagem inicial evoluiu para, além da “típica mensagem” dos administrador e editores, passou a conter outras mensagens de carácter mais pessoal.
Chegou-se à conclusão de que ERA DEMAIS, talvez fosse de acabar com essas mensagens, mesmo as “tradicionais”. Por bem essas não acabaram.
Os editores continuaram a inscrevê-las nas tarefas habituais e assim continuaram. Depois, na sã convivência, e por que não fraternidade, quem quer e quem pode, anota um “comment” expressando os seus votos ao membro festejado.
Li, também algures, que o facebook veio retirar “importância” ao blogue. Nada mais errado ou, pelo menos, não tão verdadeiro como pensamos. Foi com satisfação que vi, aos poucos “segundos” do dia, aparecer o post que me felicitava. Li com interesse, as muitas mensagens que me dirigiram, não só no blogue, mas por telefone, no mail e no facebook. Repetiam-se? Que importa? Não é o número de mensagens nem o número de vezes que cada um dedica ao “seu camarada de armas”. É a amizade, a camarigagem, que cada mensagem revela.
É bom fazer anos, porque relembramos, com mais acuidade, os nossos camaradas. E mais. Hoje festejei o 159.º aniversário de nascimento do meu avô paterno. Só no decurso deste ano tive acesso a essa informação.
Obrigado a todos, sem excepção, por me terem na vossa lista de amigos e camaradas.
José Martins
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10331: Parabéns a você (469): José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)
Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10292: Blogoterapia (214): A minha Praia (Henrique Cerqueira)
O dia está a chegar ao fim.
Os convidados – FILHOS, FILHOTES E NETOS – já recolheram às suas casas, que amanhã é dia de trabalho ou de estudo.
Mas falemos de BLOGUEFORANADAEVAOTRES…
Quando começaram as mensagens de parabéns? Não sei, não fui ver e, claro, no momento não tem interesse. A mensagem inicial evoluiu para, além da “típica mensagem” dos administrador e editores, passou a conter outras mensagens de carácter mais pessoal.
Chegou-se à conclusão de que ERA DEMAIS, talvez fosse de acabar com essas mensagens, mesmo as “tradicionais”. Por bem essas não acabaram.
Os editores continuaram a inscrevê-las nas tarefas habituais e assim continuaram. Depois, na sã convivência, e por que não fraternidade, quem quer e quem pode, anota um “comment” expressando os seus votos ao membro festejado.
Li, também algures, que o facebook veio retirar “importância” ao blogue. Nada mais errado ou, pelo menos, não tão verdadeiro como pensamos. Foi com satisfação que vi, aos poucos “segundos” do dia, aparecer o post que me felicitava. Li com interesse, as muitas mensagens que me dirigiram, não só no blogue, mas por telefone, no mail e no facebook. Repetiam-se? Que importa? Não é o número de mensagens nem o número de vezes que cada um dedica ao “seu camarada de armas”. É a amizade, a camarigagem, que cada mensagem revela.
É bom fazer anos, porque relembramos, com mais acuidade, os nossos camaradas. E mais. Hoje festejei o 159.º aniversário de nascimento do meu avô paterno. Só no decurso deste ano tive acesso a essa informação.
Por isso brindei à alegria e aos amigos.
Obrigado a todos, sem excepção, por me terem na vossa lista de amigos e camaradas.
José Martins
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10331: Parabéns a você (469): José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)
Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10292: Blogoterapia (214): A minha Praia (Henrique Cerqueira)
Guiné 63/74 - P10337: Convívios (470): 4ºEncontro de Gerações de Lanceiros Policia Militar/Policia do Exército, Portalegre – 20 de Outubro de 2012 (Nuno Esteves )
1. Recebemos do nosso Amigo e visitante, Nuno Esteves, ex-Soldado PE do 1º Turno 94, o pedido de divulgação do seguinte programa festivo.
4.º Encontro de Gerações de Lanceiros
Polícia Militar (PM) / Polícia do Exército (PE)
HORA DE INICIO: 10H30
LOCAL DO EVENTO: Portalegre, restaurante "O Cordas"
DISTRITO DO EVENTO: Portalegre
INSCRIÇÃO (TELEFONE, E-MAIL OU OUTRO CONTACTO): E-mail: kitlav@gmail.com
NOME DO RESPONSÁVEL PELO EVENTO: Jorge Marcelino
TEXTO DO EVENTO: Saudações Lanceiras caros camaradas PM e PE. Vai realizar-se no dia 20 de Outubro de 2012 em Portalegre, o 4.º Encontro Gerações de Lanceiros Policia Militar / Policia do Exército.
Programa do Evento
Ponto de Encontro: 10h30 junto à porta do Centro Instrução de Praças da GNR em Portalegre, com visita às instalações do ex-CIPE (Centro de Instrução de Policia do Exército). Após fim da visita, deslocação para o restaurante "O Cordas" que sita na Avenida da Liberdade, n.º 47, 7300-065 Portalegre (São Lourenço).
Ementa do almoço
Entradas: Enchidos da Região
Sopa: Sopa de Legumes ou Canja.
Peixe: Bacalhau á Brás.
Carne: Vitela Assada no Forno ou Carne de Porco á Alentejana.
Sobremesas: Doces e Fruta Variada
Bebidas, Café e Digestivos ~
Preço por pessoa: 18,00€ + 1€ para o bolo
Confirmação ou marcação de presença para o e-mail kitlav@gmail.com
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
Guiné 63/74 - P10336: Do Ninho D'Águia até África (7): O abastecimento ao aquartelamento (Tony Borié)
1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (7)
O abastecimento ao aquartelamento
Os militares que por essa altura viviam diariamente no aquartelamento, eram entre cento e vinte e cento e cinquenta, aproximadamente. Mais tarde, com o crescimento da guerra, chegou a suportar à volta de quatrocentos, com um movimento, bastante fora do normal, com chegadas e saídas de militares, e equipamento bélico.
A sua localização permitia-lhe ser uma espécie de posto avançado da fronteira. Daqui saíam para o verdadeiro interior da província, onde a guerra se intensificava cada vez mais. Aqui se organizavam operações de destruição de bases inimigas que normalmente duravam um só dia, com saída pela madrugada e chegada antes do anoitecer. Estava localizado num local estratégico.
Neste momento viviam diariamente entre cento e vinte e cento e cinquenta militares. O sistema de colheita de géneros para a alimentação de todos os militares era suportado, na sua maior parte, pelas aldeias à volta do aquartelamento.
Da capital da província chegava farinha, vinho, azeite, óleo, batatas, feijão, sal e outras especiarias, latas de conserva, cerveja e outros licores, e mais uns tantos produtos. Alguns vegetais, alguma fruta, peixe e carne eram comprados aos habitantes das aldeias, nas redondezas do aquartelamento.
Todos os contactos com os habitantes dessas aldeias era processado através de um africano, em quem os militares confiavam, e que vivia com a sua família na tal aldeia, com casas cobertas de colmo que ficava próximo do aquartelamento. Peixe não faltava. Pelo menos cinco a seis vezes por semana a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, que queria dizer, do pântano, algum ainda com casca! Havia o típico “rancho”, que era uma mistura de massa, batatas, chouriço, carne de vaca, legumes, feijão, grão de bico, às vezes cenouras, e que quando vinha o recipiente com a comida para a mesa, havia sempre um conflito, pois uns só queriam feijão, outros só chouriça, outros só carne de vaca e outros só massa e feijão.
Enfim, compreendia-se.
Uma, às vezes duas vezes por mês, também havia bifes e batatas fritas. Nessa altura havia voluntários para trabalhar na cozinha, entre os quais se encontrava o Cifra.
A carne de vaca que se consumia no aquartelamento era de animais comprados nas aldeias das redondezas, como já se explicou. Uma ou duas vezes por mês saía uma secção de combate com alguns voluntários, acompanhados por esse tal africano, em quem os militares confiavam. Iam a determinada área, onde havia algumas pastagens, falavam com o dono ou quem estivesse encarregue aos animais, acertava-se o preço e procedia-se ao abate dos animais, que mesmo ali, eram esquartejados e só traziam as partes que lhes interessava, já limpas.
A todo este processo chamava-se “Operação Vaca”!
Era uma operação a que o Cifra, sempre que estava de folga, ia como voluntário. Compravam e bebiam aguardente de palma, comiam fruta de caju, mangas, maduras e grandes. Alguns ficavam sobre influência, e os companheiros vendo isso, logo lhe tiravam a arma das mãos.
De uma certa vez, já depois de todo o serviço, quando se preparavam para carregar as partes limpas dos animais, os militares sofrem uma emboscada, com tiros de metralhadora, vindos de um dos lados, onde havia algumas árvores rasteiras com bastante capim. O tal africano em quem os militares confiavam, e que nesse momento se encontrava um pouco distante dos militares, levou vários tiros na região do peito e morreu instantaneamente. Mais dois militares ficaram feridos, um com uma bala alojada numa perna, um pouco acima do joelho, e outro deitava bastante sangue de um lado da anca, com uma bala que lhe passou a raspar essa área do corpo, mas de raspão, só o feriu. Foi um ataque de uma fracção de segundos, de alguém que estava à espreita, procurando a ocasião certa para atacar. O chefe da secção de combate, militar já com bastante experiência, flagela a área de onde vieram os tiros com diversas rajadas de G-3, no que é seguido por outros militares que disparam para o local.
Não havendo, tiros de resposta, e antes de inspecionar o local de onde vieram os tiros, houve um soldado que para lá queria mandar uma granada o que foi impedido de fazer pelo chefe da secção, militar muito experiente, que disse:
- Eu conheço este tipo de ataques, foi só uma ou duas armas que dispararam, creio que se não disparam mais é porque não têm munições, fugiram pois já fizeram o que quiseram, ou estão mortos, eu vou na frente e vamos inspecionar.
Aproxima-se, dispara mais uma rajada rente ao chão e em circulo, e quando tocaram no capim, tentando afastá-lo com a mão, viram dois guerrilheiros. Um já morto e o outro alvejado nas pernas, acima dos joelhos, pois era daí que vinha um grande rasto sangue, tentando mover-se em direcção oposta. Tinham duas metralhadoras com os carregadores já vazios. O que estava vivo barafustava numa linguagem que não se compreendia, mas pelos gestos não estaria a desejar as boas festas a ninguém.
Um dos voluntários, o Banana, talvez sobre influência, depois de ver o africano morto e os colegas lastimando-se com dores dos ferimentos que tinham, avança para o guerrilheiro, com uma faca em punho, gritando:
- Deixem-me matar este este filho da puta!
Tentando cortá-lo na região do estômago. O Cifra salta para cima dele, tentando impedi-lo, foi ferido na mão e alguns dedos, coisa sem importancia, pela faca do Banana.
Mas este gesto do Cifra não teve qualquer importância, pois o guerrilheiro acabou por morrer, tinha mais ferimentos de balas de um lado, nas costas.
O Banana, sem a faca, e vendo o Cifra a sangrar na mão, começa a chorar e a gritar:
- Perdoa-me, oh Cifra, mas estava fora de mim.
O Cifra era amigo do Banana.
Regressados ao aquartelamento, os feridos foram evacuados para o hospital da província. Mais tarde veio a saber-se que os guerrilheiros já andavam a tentar matar o africano, amigo dos militares há bastante tempo. O seu corpo creio que ficou enterrado no cemitério da vila. Os corpos dos guerrilheiros mortos ficaram a cargo do dono das pastagens, que disse num português que quase não se compreendia, com uma voz bastante firme que se encarregava deles.
Mais tarde esse homem, dono das pastagens, apresentou-se no aquartelamento dizendo que alguns guerrilheiros vieram buscar os corpos dos seus companheiros e que lhe levaram parte dos seus animais, que todos os seus animais pertenciam ao movimento de libertação e eram um contributo para a guerra de independência. Este homem pediu alguma protecção para si, para as suas três mulheres, duas filhas e um filho, dos quais mostrou documentos de identificação passados pelos serviços da tal repartição que funcionava como câmara municipal, que existia na vila, e que já aqui falámos, e que era melhor que não o procurassem mais, pois não podia vender mais animais, de contrário iriam matá-lo.
O comando incluiu a área das pastagens nos patrulhamentos de rotina, e passado uns dias, os militares passaram por essas pastagens que já não existiam. Não viram nem um animal, nem o dono nem a sua família, a casa de colmo estava abandonada e as cercas do gado destruídas.
Alguns reportes com informações passaram pelas mãos do Cifra, onde diziam que os guerrilheiros levaram os animais, o homem, as suas três mulheres, as duas filhas e o filho, abateram os animais e os consumiram nas suas diferentes bases, e tanto o homem como a sua família, agora eram guerrilheiros e desempenhavam diferentes tarefas em diferentes bases, o filho que pouco mais era do que uma criança, até estava a receber treino de guerrilha num país estrangeiro.
A partir dessa altura não houve mais bifes e batatas fritas, a carne era considerada um luxo, havia muita dificuldade em obtê-la e chegou a vir alguma da capital da província, mas pouca que normalmente era consumida na messe dos oficiais superiores, onde o Cifra ia roubar alguma comida, com o consentimento do sargento da messe, que era seu amigo e a quem o Cifra ajudava a fazer as contas no final de cada mês.
Para os restantes militares no aquartelamento a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, cinco ou seis dias por semana, intervalada com o típico rancho, onde alguns só queriam, chouriça, outros só feijão, outros só massa, outros só massa e feijão! Alguns tinham alguma sorte, pois calhava-lhe um bocadinho de carne de galinha.
Enfim, compreendia-se.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)
Do Ninho D'Águia até África (7)
O abastecimento ao aquartelamento
Os militares que por essa altura viviam diariamente no aquartelamento, eram entre cento e vinte e cento e cinquenta, aproximadamente. Mais tarde, com o crescimento da guerra, chegou a suportar à volta de quatrocentos, com um movimento, bastante fora do normal, com chegadas e saídas de militares, e equipamento bélico.
A sua localização permitia-lhe ser uma espécie de posto avançado da fronteira. Daqui saíam para o verdadeiro interior da província, onde a guerra se intensificava cada vez mais. Aqui se organizavam operações de destruição de bases inimigas que normalmente duravam um só dia, com saída pela madrugada e chegada antes do anoitecer. Estava localizado num local estratégico.
Neste momento viviam diariamente entre cento e vinte e cento e cinquenta militares. O sistema de colheita de géneros para a alimentação de todos os militares era suportado, na sua maior parte, pelas aldeias à volta do aquartelamento.
Da capital da província chegava farinha, vinho, azeite, óleo, batatas, feijão, sal e outras especiarias, latas de conserva, cerveja e outros licores, e mais uns tantos produtos. Alguns vegetais, alguma fruta, peixe e carne eram comprados aos habitantes das aldeias, nas redondezas do aquartelamento.
Todos os contactos com os habitantes dessas aldeias era processado através de um africano, em quem os militares confiavam, e que vivia com a sua família na tal aldeia, com casas cobertas de colmo que ficava próximo do aquartelamento. Peixe não faltava. Pelo menos cinco a seis vezes por semana a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, que queria dizer, do pântano, algum ainda com casca! Havia o típico “rancho”, que era uma mistura de massa, batatas, chouriço, carne de vaca, legumes, feijão, grão de bico, às vezes cenouras, e que quando vinha o recipiente com a comida para a mesa, havia sempre um conflito, pois uns só queriam feijão, outros só chouriça, outros só carne de vaca e outros só massa e feijão.
Enfim, compreendia-se.
Uma, às vezes duas vezes por mês, também havia bifes e batatas fritas. Nessa altura havia voluntários para trabalhar na cozinha, entre os quais se encontrava o Cifra.
A carne de vaca que se consumia no aquartelamento era de animais comprados nas aldeias das redondezas, como já se explicou. Uma ou duas vezes por mês saía uma secção de combate com alguns voluntários, acompanhados por esse tal africano, em quem os militares confiavam. Iam a determinada área, onde havia algumas pastagens, falavam com o dono ou quem estivesse encarregue aos animais, acertava-se o preço e procedia-se ao abate dos animais, que mesmo ali, eram esquartejados e só traziam as partes que lhes interessava, já limpas.
A todo este processo chamava-se “Operação Vaca”!
Era uma operação a que o Cifra, sempre que estava de folga, ia como voluntário. Compravam e bebiam aguardente de palma, comiam fruta de caju, mangas, maduras e grandes. Alguns ficavam sobre influência, e os companheiros vendo isso, logo lhe tiravam a arma das mãos.
De uma certa vez, já depois de todo o serviço, quando se preparavam para carregar as partes limpas dos animais, os militares sofrem uma emboscada, com tiros de metralhadora, vindos de um dos lados, onde havia algumas árvores rasteiras com bastante capim. O tal africano em quem os militares confiavam, e que nesse momento se encontrava um pouco distante dos militares, levou vários tiros na região do peito e morreu instantaneamente. Mais dois militares ficaram feridos, um com uma bala alojada numa perna, um pouco acima do joelho, e outro deitava bastante sangue de um lado da anca, com uma bala que lhe passou a raspar essa área do corpo, mas de raspão, só o feriu. Foi um ataque de uma fracção de segundos, de alguém que estava à espreita, procurando a ocasião certa para atacar. O chefe da secção de combate, militar já com bastante experiência, flagela a área de onde vieram os tiros com diversas rajadas de G-3, no que é seguido por outros militares que disparam para o local.
Não havendo, tiros de resposta, e antes de inspecionar o local de onde vieram os tiros, houve um soldado que para lá queria mandar uma granada o que foi impedido de fazer pelo chefe da secção, militar muito experiente, que disse:
- Eu conheço este tipo de ataques, foi só uma ou duas armas que dispararam, creio que se não disparam mais é porque não têm munições, fugiram pois já fizeram o que quiseram, ou estão mortos, eu vou na frente e vamos inspecionar.
Aproxima-se, dispara mais uma rajada rente ao chão e em circulo, e quando tocaram no capim, tentando afastá-lo com a mão, viram dois guerrilheiros. Um já morto e o outro alvejado nas pernas, acima dos joelhos, pois era daí que vinha um grande rasto sangue, tentando mover-se em direcção oposta. Tinham duas metralhadoras com os carregadores já vazios. O que estava vivo barafustava numa linguagem que não se compreendia, mas pelos gestos não estaria a desejar as boas festas a ninguém.
Um dos voluntários, o Banana, talvez sobre influência, depois de ver o africano morto e os colegas lastimando-se com dores dos ferimentos que tinham, avança para o guerrilheiro, com uma faca em punho, gritando:
- Deixem-me matar este este filho da puta!
Tentando cortá-lo na região do estômago. O Cifra salta para cima dele, tentando impedi-lo, foi ferido na mão e alguns dedos, coisa sem importancia, pela faca do Banana.
Mas este gesto do Cifra não teve qualquer importância, pois o guerrilheiro acabou por morrer, tinha mais ferimentos de balas de um lado, nas costas.
O Banana, sem a faca, e vendo o Cifra a sangrar na mão, começa a chorar e a gritar:
- Perdoa-me, oh Cifra, mas estava fora de mim.
O Cifra era amigo do Banana.
Regressados ao aquartelamento, os feridos foram evacuados para o hospital da província. Mais tarde veio a saber-se que os guerrilheiros já andavam a tentar matar o africano, amigo dos militares há bastante tempo. O seu corpo creio que ficou enterrado no cemitério da vila. Os corpos dos guerrilheiros mortos ficaram a cargo do dono das pastagens, que disse num português que quase não se compreendia, com uma voz bastante firme que se encarregava deles.
Mais tarde esse homem, dono das pastagens, apresentou-se no aquartelamento dizendo que alguns guerrilheiros vieram buscar os corpos dos seus companheiros e que lhe levaram parte dos seus animais, que todos os seus animais pertenciam ao movimento de libertação e eram um contributo para a guerra de independência. Este homem pediu alguma protecção para si, para as suas três mulheres, duas filhas e um filho, dos quais mostrou documentos de identificação passados pelos serviços da tal repartição que funcionava como câmara municipal, que existia na vila, e que já aqui falámos, e que era melhor que não o procurassem mais, pois não podia vender mais animais, de contrário iriam matá-lo.
O comando incluiu a área das pastagens nos patrulhamentos de rotina, e passado uns dias, os militares passaram por essas pastagens que já não existiam. Não viram nem um animal, nem o dono nem a sua família, a casa de colmo estava abandonada e as cercas do gado destruídas.
Alguns reportes com informações passaram pelas mãos do Cifra, onde diziam que os guerrilheiros levaram os animais, o homem, as suas três mulheres, as duas filhas e o filho, abateram os animais e os consumiram nas suas diferentes bases, e tanto o homem como a sua família, agora eram guerrilheiros e desempenhavam diferentes tarefas em diferentes bases, o filho que pouco mais era do que uma criança, até estava a receber treino de guerrilha num país estrangeiro.
A partir dessa altura não houve mais bifes e batatas fritas, a carne era considerada um luxo, havia muita dificuldade em obtê-la e chegou a vir alguma da capital da província, mas pouca que normalmente era consumida na messe dos oficiais superiores, onde o Cifra ia roubar alguma comida, com o consentimento do sargento da messe, que era seu amigo e a quem o Cifra ajudava a fazer as contas no final de cada mês.
Para os restantes militares no aquartelamento a ementa era “peixe frito e arroz da bolanha”, cinco ou seis dias por semana, intervalada com o típico rancho, onde alguns só queriam, chouriça, outros só feijão, outros só massa, outros só massa e feijão! Alguns tinham alguma sorte, pois calhava-lhe um bocadinho de carne de galinha.
Enfim, compreendia-se.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Guiné 63/74 - P10335: Notas de leitura (397): A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial Que Não Se Apagam, de Mário Beja Santos (1) (Carlos Vinhal)
Apresentação do livro "A Viagem do Tangomau", de Mário Beja Santos, no dia 19 de Junho de 2012, no Auditório da Associação Nacional das Farmácias
A VIAGEM DO TANGOMAU – 1
Carlos Vinhal
A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial Que Não Se Apagam (Temas e Debates/Círculo de Leitores, Junho de 2012) é o último livro de Mário Beja Santos que relata a sua viagem iniciada em Abril de 1967, quando é incorporado, como Cadete de Infantaria, na EPI de Mafra, culminando com a recente visita de saudade à Guiné-Bissau, em Novembro de 2010, com o propósito de revisitar locais, jamais esquecidos, e rever camaradas e irmãos de armas.
O livro começa com os preparativos para a entrada no Serviço Militar, acontecimento que vem alterar profundamente a vida de um jovem funcionário público. Ficamos a saber como foi o seu último dia como civil, as despedidas dos amigos mais próximos, as últimas recomendações das senhoras da família e o arrumo das malas onde não podiam faltar os livros. Chegado o grande dia, foi a viagem de comboio até Malveira e depois de camioneta até Mafra. Somos depois impressionados pela descrição pormenorizada do Convento de Mafra, onde está instalada a EPI, dos seus corredores e salas, respectivos nomes, cores e até cheiros. A recepção aos Cadetes na Escola, a adaptação sempre difícil à nova situação de militar, os camaradas que se conhecem e os amigos que se criam para sempre. A nova vida começa ali mesmo quando se experimentam as peças de fardamento que durante alguns anos irão fazer parte da indumentária. Ouvem-se os primeiro mimos: - A menina vem com uns caracóis muito grandes…, ou: - Vá já ali ao barbeiro, à tosquia.
O início da instrução, a confusão das formaturas, das palavras de ordem, dos toques de clarim para tudo e mais alguma coisa, a ginástica, a aplicação militar, os crosses, a instrução nocturna, a táctica e o armamento. A alegria das idas para o fim de semana, a ocupação dos tempos livres na indispensável leitura e a exploração da Vila da Mafra.
O tempo passa e a Recruta acaba. Começa então a Especialidade de Atirador de Infantaria para este Cadete que entretanto tinha adquirido, apesar de alguns desalentos momentâneos, um traquejo que lhe permitia ver de outro modo o seu futuro como Oficial Miliciano. Sabia que iria comandar um grupo de homens em situação de guerra, pela vida dos quais se sentia já responsável. Com a semana de campo chega ao fim a Instrução, é promovido a Aspirante a Oficial Miliciano, dão-lhe uma Guia de Marcha e uma passagem para o navio Carvalho Araújo que o levará até Ponta Delgada, Açores. Tinha sido colocado no BII 18.
O Tangomau relata-nos com pormenor a chegada, o desembarque e as primeiras impressões que teve da bonita capital da Ilha de S. Miguel. Na apresentação é incumbido pelo Segundo Comandante de gerir a Messe dos Oficiais: - Nosso aspirante, chamo-lhe a atenção que o seu antecessor foi severamente punido, continua devedor de centenas de contos, desmandou-se na contabilidade, dava bifes e boa carne assada praticamente todos os dias, é um bom ensinamento para si, acautele-se, estude as ementas, aprenda a fazer as contas, faça frente ao sargento vagomestre, perca o tempo que for preciso para não ter amargos de boca. O certo é que em pouco tempo acabará “despedido” face à má qualidade das ementas.
Ficaremos a conhecer as deambulações do viajante, o seu modo de disfarçar as saudades da família, onde pontua a senhora sua mãe sempre preocupada com a saúde do filho, os locais de cultura e os livros que devora. A vida no quartel corre sem sobressaltos, marcando-o especialmente o acto da distribuição das sobras do Rancho pelos miúdos que afloravam a Porta de Armas do BII 18 e o fervor religioso daquele povo. Chegado o Natal de 1967, aos recrutas de Santa Maria impossibilitados de irem a suas casas, é-lhes dedicada, por iniciativa do Tangomau, a feitura de um presépio no quartel, o fornecimento das iguarias próprias da Ceia e até distribuição de prendas, dando assim algum alento àqueles homens que passavam o seu primeiro Natal longe da família.
A determinada altura da sua estadia nos Açores, Tangomau é convidado a substituir um conferencista do Continente que não iria comparecer no Ateneu Comercial local para dissertar sobre literatura. Quase irresponsavelmente aceitou, não por não se sentir à vontade a falar sobre o tema, mas por dispor de pouco tempo para se preparar, uma vez que andava em marchas finais das recrutas. Era acima de tudo, no momento, um militar.
O tempo decorre, acaba mais uma recruta, e em Março de 1968, embarcando, outra vez, no Cais de Ponta Delgada no velhinho Carvalho Araújo, regressa ao Continente. O então RI 1 da Amadora espera-o. Será na carpintaria daquele quartel que o Soldado Macieira fará dois caixotes de tamanho generoso para albergar os livros, os discos e a respectiva aparelhagem de som, material este levado para a Guiné pelo Tangomau, que irá ser destruído por um incêndio aquando do ataque a Missirá em 19 de Março de 1969, como adiante no livro será lembrado.
Mais recrutas e semanas de campo, desentendimentos com superiores hierárquicos, inquéritos, ameaças de punição e entram em cena personagens que virão a ter papel activo na vida política portuguesa do pós 25 de Abril de 1974. É também nesta altura (1968) que o Tangomau conhece a Besuga que virá a ser sua esposa e, que após casamento por procuração, irá para Bissau ao encontro do marido onde casarão pela Igreja em Abril de 1970.
Entretanto o dia 24 de Julho de 1968 aproximava-se, e o navio Uíge esperava o Tangomau para a sua primeira viagem a caminho da Guiné.
(Continua)
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10319: Notas de leitura (396): "Guiné-Bissau, 3 Anos de Independência" (Mário Beja Santos)
A VIAGEM DO TANGOMAU – 1
Carlos Vinhal
A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial Que Não Se Apagam (Temas e Debates/Círculo de Leitores, Junho de 2012) é o último livro de Mário Beja Santos que relata a sua viagem iniciada em Abril de 1967, quando é incorporado, como Cadete de Infantaria, na EPI de Mafra, culminando com a recente visita de saudade à Guiné-Bissau, em Novembro de 2010, com o propósito de revisitar locais, jamais esquecidos, e rever camaradas e irmãos de armas.
O livro começa com os preparativos para a entrada no Serviço Militar, acontecimento que vem alterar profundamente a vida de um jovem funcionário público. Ficamos a saber como foi o seu último dia como civil, as despedidas dos amigos mais próximos, as últimas recomendações das senhoras da família e o arrumo das malas onde não podiam faltar os livros. Chegado o grande dia, foi a viagem de comboio até Malveira e depois de camioneta até Mafra. Somos depois impressionados pela descrição pormenorizada do Convento de Mafra, onde está instalada a EPI, dos seus corredores e salas, respectivos nomes, cores e até cheiros. A recepção aos Cadetes na Escola, a adaptação sempre difícil à nova situação de militar, os camaradas que se conhecem e os amigos que se criam para sempre. A nova vida começa ali mesmo quando se experimentam as peças de fardamento que durante alguns anos irão fazer parte da indumentária. Ouvem-se os primeiro mimos: - A menina vem com uns caracóis muito grandes…, ou: - Vá já ali ao barbeiro, à tosquia.
O início da instrução, a confusão das formaturas, das palavras de ordem, dos toques de clarim para tudo e mais alguma coisa, a ginástica, a aplicação militar, os crosses, a instrução nocturna, a táctica e o armamento. A alegria das idas para o fim de semana, a ocupação dos tempos livres na indispensável leitura e a exploração da Vila da Mafra.
O tempo passa e a Recruta acaba. Começa então a Especialidade de Atirador de Infantaria para este Cadete que entretanto tinha adquirido, apesar de alguns desalentos momentâneos, um traquejo que lhe permitia ver de outro modo o seu futuro como Oficial Miliciano. Sabia que iria comandar um grupo de homens em situação de guerra, pela vida dos quais se sentia já responsável. Com a semana de campo chega ao fim a Instrução, é promovido a Aspirante a Oficial Miliciano, dão-lhe uma Guia de Marcha e uma passagem para o navio Carvalho Araújo que o levará até Ponta Delgada, Açores. Tinha sido colocado no BII 18.
O Tangomau relata-nos com pormenor a chegada, o desembarque e as primeiras impressões que teve da bonita capital da Ilha de S. Miguel. Na apresentação é incumbido pelo Segundo Comandante de gerir a Messe dos Oficiais: - Nosso aspirante, chamo-lhe a atenção que o seu antecessor foi severamente punido, continua devedor de centenas de contos, desmandou-se na contabilidade, dava bifes e boa carne assada praticamente todos os dias, é um bom ensinamento para si, acautele-se, estude as ementas, aprenda a fazer as contas, faça frente ao sargento vagomestre, perca o tempo que for preciso para não ter amargos de boca. O certo é que em pouco tempo acabará “despedido” face à má qualidade das ementas.
Ficaremos a conhecer as deambulações do viajante, o seu modo de disfarçar as saudades da família, onde pontua a senhora sua mãe sempre preocupada com a saúde do filho, os locais de cultura e os livros que devora. A vida no quartel corre sem sobressaltos, marcando-o especialmente o acto da distribuição das sobras do Rancho pelos miúdos que afloravam a Porta de Armas do BII 18 e o fervor religioso daquele povo. Chegado o Natal de 1967, aos recrutas de Santa Maria impossibilitados de irem a suas casas, é-lhes dedicada, por iniciativa do Tangomau, a feitura de um presépio no quartel, o fornecimento das iguarias próprias da Ceia e até distribuição de prendas, dando assim algum alento àqueles homens que passavam o seu primeiro Natal longe da família.
A determinada altura da sua estadia nos Açores, Tangomau é convidado a substituir um conferencista do Continente que não iria comparecer no Ateneu Comercial local para dissertar sobre literatura. Quase irresponsavelmente aceitou, não por não se sentir à vontade a falar sobre o tema, mas por dispor de pouco tempo para se preparar, uma vez que andava em marchas finais das recrutas. Era acima de tudo, no momento, um militar.
O tempo decorre, acaba mais uma recruta, e em Março de 1968, embarcando, outra vez, no Cais de Ponta Delgada no velhinho Carvalho Araújo, regressa ao Continente. O então RI 1 da Amadora espera-o. Será na carpintaria daquele quartel que o Soldado Macieira fará dois caixotes de tamanho generoso para albergar os livros, os discos e a respectiva aparelhagem de som, material este levado para a Guiné pelo Tangomau, que irá ser destruído por um incêndio aquando do ataque a Missirá em 19 de Março de 1969, como adiante no livro será lembrado.
Mais recrutas e semanas de campo, desentendimentos com superiores hierárquicos, inquéritos, ameaças de punição e entram em cena personagens que virão a ter papel activo na vida política portuguesa do pós 25 de Abril de 1974. É também nesta altura (1968) que o Tangomau conhece a Besuga que virá a ser sua esposa e, que após casamento por procuração, irá para Bissau ao encontro do marido onde casarão pela Igreja em Abril de 1970.
Entretanto o dia 24 de Julho de 1968 aproximava-se, e o navio Uíge esperava o Tangomau para a sua primeira viagem a caminho da Guiné.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10319: Notas de leitura (396): "Guiné-Bissau, 3 Anos de Independência" (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P10334: In Memoriam (126): António Rodrigues Soares da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)
António Rodrigues Soares da CART 1689/BART 1913 - Guiné, 1967/69
De acordo com a mensagem do nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo) chegada hoje ao nosso Blogue, mais um ex-combatente da Guiné, e agora da vida, nos deixou. Desta feita foi a vez do camarada António Rodrigues Soares, natural da Freguesia de Melres, mas que vivia na Freguesia das Medas, Concelho de Gondomar.
Em tempos foram publicados dois postes (P4121* e P8143*) onde se falava de António Rodrigues Soares, já que então o seu estado de saúde suscitava alguma preocupação aos seus camaradas de Gondomar e da Tabanca dos Melros especialmente.
À família do nossos malogrado camarada apresentamos, em nome da tertúlia, as mais sentidas condolências.
____________
Notas de CV:
1 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4121: Ser solidário (32): O nosso camarada António Rodrigues Soares da CART 1689 precisa dos seus amigos (Jorge Teixeira)
e
20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8143: Convívios (314): Reencontro com António Soares em Medas-Gondomar (José Ferreira da Silva)
Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10306: In Memoriam (125): Cor inf cmd ref Jaime Abreu Cardoso (1936-2012)
Guiné 63/774 - P10333: Ser solidário (135): A Tabanca Pequena - Grupo de Amigos da Guiné-Bissau vai realizar um Encontro no dia 22 de Setembro de 2012, a partir das 12h00, no Monte dos Burgos - Matosinhos
A Tabanca Pequena – Grupo de Amigos da Guiné-Bissau, ONGD, vai realizar um ENCONTRO / CONVÍVIO aberto a todos os seus associados familiares e amigos, no próximo dia 22 de Setembro de 2012 (sábado)
Alguns de nós, cruzamo-nos às quartas-feiras na Tabanca de Matosinhos. Outros há, que por razões pessoais, profissionais, de distância ou outra, raramente se comunicam.
Estamos unidos por laços de amizade e solidariedade que são a razão da existência da nossa Associação. Há que alimentar esta corrente que une tantos ex-combatentes da Guiné.
Com esse objetivo vimos convidar todos os associados da TABANCA PEQUENA, bem como os seus familiares e amigos a participarem no ALMOÇO / CONVÍVIO que vamos organizar no próximo dia 22 de Setembro em casa do Associado Manuel Graça, à Rua Nova do Seixo, 65 próximo do monte dos Burgos no Porto.
Como ementa teremos:
- SARDINHADA ASSADA À PORTUGUESA
- FRANGO DE XABÉU À GUINEENSE.
A tarde será animada por um conjunto formado por tabanqueiros e seus amigos liderados pelo Vitorino Silva.
Inscreve-te para: 966 238 626
A Administração da Tabanca Pequena
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Setembro de 2012 > Guiné 63/774 - P10330: Ser solidário (134): A Humanitarius (Associação Humanitária de Apoio Internacional) prepara a sua IV Expedição solidária à Guiné-Bissau e necessita de apoios financeiros (António Bernardo)
Guiné 63/74 - P10332: Blogpoesia (198): Uma estranha maneira de dizer adeus (Luís Graça)
Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos > Meados de 1965 > Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné. Ao fundo, o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo ainda em construção. Compare-se, entretanto, esta foto com as cenas dos dois primeiros minutos do vídeo feito pelo Henrique Cardoso com a história da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69): embarque do pessoal, no N/M Ana Mafalda, em 14 de janeiro de 1968.
Foto: © Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.
O meu país megalítico > Penafiel > Oldrões - Galegos > 25 de agosto de 2012 > Castro de Monte Mozinho > Povoação castreja, da época da romanização ( Sec. I d.C. e seguintes). A acrópole (o "terreiro do povo") ao centro, assinalado a tracejado.
Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.
Uma estranha maneira de dizer adeus
por Luís Graça (*)
uma estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.
a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus,
para fora.
paridos e expulsos da mátria,
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.
uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.
todas as despedidas são breves e tristes,
uma estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.
a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus,
para fora.
paridos e expulsos da mátria,
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.
uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.
todas as despedidas são breves e tristes,
o momento
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine,
cinéfilo,
garboso,
charmoso,
pronto para a acção.
há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão,
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha de dien bien phu
nem da operação tridente
na ilha do como.
e o filme da noite é
uma comédia,
do cinema mudo,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano,
num país de bacanos,
de soldados rasos,
primeiros cabos,
furriéis
e segundos sargentos.
uma tragicomédia,
escreverás tu
no teu diário
a que mais tarde chamarás
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família,
os primeiros,
a fina flor,
os morgados,
os primogénitos,
os fidalgos,
a casta,
a raça,
o sangue azul,
o pedigree,
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.
lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro.
uma só nação,
valente mas mortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos,
quando dei o meu nome para as sortes.
estranha palavra esta,
das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.
a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestida de branco
com xaile preto.
a ponte de salazar,
ainda reluzente.
o velho abutre
que alisa as suas penas,
dirás tu, sophia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
o último império.
o cristo rei em terra que outrora foi de infiéis,
o terreiro que continua do paço, não do povo,
lisboa e o seu casario,
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum.
a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição,
zelando pela pureza do sangue,
o cemitério dos prazeres
ao alto,
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula,
de fio a pavio,
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.
ah!, e as santas das nossas mães
que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas.
um fado que tu ouviste no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado
nem cantado.
um fado apenas gemido.
ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
anhos, dizem no norte.
alinhados
no cais da rocha conde de óbidos,
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados.
aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria,
o pai-patrão
que lhe cobra o dízimo
em sangue, suor e lágrimas.
mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros,
magarefes,
corneteiros,
apontadores de dilagrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
sacristães,
coveiros.
coitadas das mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló,
o cadafalso,
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
por senhoras
do movimento nacional feminino.
a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem,
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
leia-se: da tragédia inelutável.
senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos
e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureirinha.
protege-me do IN,
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora minha,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.
lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
puseste o combate do possível
na tua agenda
de expedicionário da guiné.
puseste o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que te deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz.
o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
da pátria,
para lá do mar,
em terra que não me viu nascer.
descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.
levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado
calcolítico,
castrejo,
romanizado.
camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem,
numa anta do meu país megalítico. (**)
luís graça
lisboa-bissau / niassa, 24-30 de maio de 1969 /
revisto e aumentado: lisboa, março de 2007 / abril 2021
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine,
cinéfilo,
garboso,
charmoso,
pronto para a acção.
há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão,
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha de dien bien phu
nem da operação tridente
na ilha do como.
e o filme da noite é
uma comédia,
do cinema mudo,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano,
num país de bacanos,
de soldados rasos,
primeiros cabos,
furriéis
e segundos sargentos.
uma tragicomédia,
escreverás tu
no teu diário
a que mais tarde chamarás
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família,
os primeiros,
a fina flor,
os morgados,
os primogénitos,
os fidalgos,
a casta,
a raça,
o sangue azul,
o pedigree,
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.
lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro.
uma só nação,
valente mas mortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos,
quando dei o meu nome para as sortes.
estranha palavra esta,
das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.
a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestida de branco
com xaile preto.
a ponte de salazar,
ainda reluzente.
o velho abutre
que alisa as suas penas,
dirás tu, sophia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
o último império.
o cristo rei em terra que outrora foi de infiéis,
o terreiro que continua do paço, não do povo,
lisboa e o seu casario,
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum.
a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição,
zelando pela pureza do sangue,
o cemitério dos prazeres
ao alto,
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula,
de fio a pavio,
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.
ah!, e as santas das nossas mães
que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas.
um fado que tu ouviste no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado
nem cantado.
um fado apenas gemido.
ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
anhos, dizem no norte.
alinhados
no cais da rocha conde de óbidos,
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados.
aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria,
o pai-patrão
que lhe cobra o dízimo
em sangue, suor e lágrimas.
mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros,
magarefes,
corneteiros,
apontadores de dilagrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
sacristães,
coveiros.
coitadas das mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló,
o cadafalso,
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
por senhoras
do movimento nacional feminino.
a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem,
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
leia-se: da tragédia inelutável.
senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos
e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureirinha.
protege-me do IN,
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora minha,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.
lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
puseste o combate do possível
na tua agenda
de expedicionário da guiné.
puseste o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que te deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz.
o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
da pátria,
para lá do mar,
em terra que não me viu nascer.
descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.
levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado
calcolítico,
castrejo,
romanizado.
camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem,
numa anta do meu país megalítico. (**)
luís graça
lisboa-bissau / niassa, 24-30 de maio de 1969 /
revisto e aumentado: lisboa, março de 2007 / abril 2021
________________
Notas do editor:
(*) Uma primeira versão foi publicada na I Série do blogue > 16 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXL: o meu país megalítico
(**) Último poste da série > 24 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10297: Blogpoesia (197): O trabalho, por António Peres, poeta popular (José Colaço)
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