quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ   > Um enfermeiro "rigoroso e... despachado"...



1. Continuação do texto publicado anteontem, da autoria do Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) (*) [, foto atual à direita,]:

Já era noite fechada em Bula quando o Teixeira, meu soldado maqueiro, veio ao bar dizer-me:
– Furriel, está uma mulher à porta de armas a pedir para tratarmos o filho.
– Já lá vou.
– Mas, ó furriel, olhe que o miúdo se não está morto, parece.
– Leva-a para a enfermaria que eu é só acabar o café.

 Fui de seguida. Em Bula, a enfermaria ficava muito próximo da porta de armas. O bar de sargentos era lá mais para os fundos do aquartelamento. Quando cheguei lá acima, os olhos muito brancos e muito abertos da mulher mandinga, agitavam-se numa correria, ora na minha direcção, ora na do filho que apertava contra o peito. Estendi-lhe os braços pedindo-lhe que me o entregasse. Aquele corpo quase inerte ardia em febre.
– Teixeirinha, vai lá abaixo chamar o doutor e tu, João, arranja-me aí alguém que me ponha a falar com a mulher.

Não lhe conseguimos arrancar uma palavra. Só olhava para o filho, em desesperado silêncio. Chegou o doutor, o alferes miliciano Chaves Ferreira.
– Ó doutor, ela não disse nada mas aqui o Braima, que a conhece, diz que o rapaz tem aí uns cinco ou seis anos e que já deve estar com uma carrada de paludismo há vários dias. Devem ter-lhe feito as mezinhas todas, mas como não resultou trouxe-o aqui.

O doutor Chaves Ferreira era um homem alto que falava em voz baixa.
– O puto está bera, pá – disse-me ele depois de o ter examinado.
– E o que lhe fazemos ? – perguntei-lhe.
– Para já temos que lhe baixar a febre e metê-lo a soro. Depois deitamo-nos a inventar porque para tratar pneumonias é que nós não temos aqui nada. E para um puto desta idade, ainda menos.

Uma pneumonia. Bonito sarilho. Aquele peito franzino nem parecia respirar. Antipirético LM (laboratório militar) partido aos quartos e diluído em água, com uma seringa metido na boca aos poucos e devagar, e a agulha mais fina do tacho de esterilização, capaz de pegar a veia onde entrasse o soro.

E agora?
– Ó doutor – disse-lhe eu – devíamos levar o miúdo para Bissau.
– Pois devíamos – concordou ele – mas a esta hora como é que o levas, a nado?

Entre Bula e Bissau interpunha-se, como sabemos, o rio Mansoa.
– Se o doutor der uma palavrinha ao nosso Comandante, talvez ele concorde em pedir uma evacuação.
Vou lá a baixo falar com ele e tu põe-te de olho no rapaz e vê se lhe baixas a febre.
– Se não baixar com o LM, o que faço?
– Lava-o com água fria.

O Chaves Ferreira saiu e eu pedi ao João, outro dos meus maqueiros, que fosse ao bar buscar um balde com gelo. Enchi de água a tina esmaltada que na enfermaria servia para lavar as mãos e lá dentro meti o gelo que o João trouxera. Na água fria ensopámos um lençol e com ele lavámos o corpo do miúdo.

Quando o doutor regressou foi para me dizer que estavam a tentar a evacuação. Ficámos ali, com o doutor a conjecturar no que mais podia fazer, quando o Machado, o meu cabo-enfermeiro, quase gritou:
– Ó doutor, o miúdo apagou-se.

Saltámos que nem molas. Aquele peito frágil desapareceu no interior das mãos do doutor, que o pressionou, e uma, e duas, e três, “já o tenho”, disse ele, ao mesmo tempo que o miúdo parecia bolsar, “é especturação, vê lá se a tiras que o está a impedir de respirar”, pediu-me enquanto lhe comprimia o peito, como se de dentro dele quisesse expulsar o mal. Tentei um estilete de punção com compressa na ponta, mas o resultado foi fraco. Lembrei-me, então, de ir buscar um tubo de plástico, daqueles para administrar soro, abri-lhe uma ponta a sugerir maior espaço de sucção, na outra ponta do tubo introduzi aquelas borrachas que serviam para lavar os ouvidos, e fui aspirando, aspirando, enquanto o doutor, com o rapaz deitado de lado, ajudava com secas palmadas nas costas.

E disse então o médico:
– Calma, pá, deixa lá agora o gajo descansar.

Foram momentos de grande aflição. Apareceu o [João] Vinagre, alferes miliciano de informações, da CCS [, BCAÇ 2861], para nos dizer que havia a possibilidade de evacuar o miúdo na DO que de manhã iria distribuir o correio pelo sector.
– Ó alferes, mas isso só lá para o meio dia é que o puto vai para Bissau.
– É o mais certo  – retorquiu-me ele.
– E, entretanto, apaga-se-lhe o maçarico.
– O que é que queres que eu faça?
– Se o meu alferes pedisse uma secção à [CCAÇ] 2466 e ao capitão Monge [, do EREC 2454
que disponibiliza-se uma Panhard, a gente logo às seis horas levava o miúdo para Bissau.
– Ó doutor – disse o Vinagre para o Chaves Ferreira – aqui para o seu enfermeiro é tudo facilidades.
– É, pá – foi a vez do doutor falar ao Vinagre  – mas olha que a ideia do gajo não está mal vista.
– Pois, talvez, mas falta convencer o homem da jangada a vir buscá-los a João Landim.
– Aí, falo eu outra vez com o Comandante.


Saíram os dois e eu também. Fui à procura da malta da 66 [, CCAÇ 2466,] e o primeiro a encontrar foi o Furriel Gomes.
–  Ó Gomes, preciso de ti, pá.

Expliquei-lhe o que se estava a preparar e ele respondeu-me que, desde que o capitão autorizasse, com a equipa dele podia contar. Fui ao comando, lancei ao Vinagre  o polegar virado para cima, “secção já temos”, correspondendo-me ele com a informação de que Panhard também. Estava o Comandante a tratar de resolver o problema da jangada.

Reunimo-nos, de novo, na enfermaria. A febre do rapaz baixara, enfim. A barriga parecia menos apressada na sua tarefa de ajudar os pulmões a trabalhar. Sentada na mesma cadeira onde eu a mandei sentar quando chegou, estava a mulher mandinga, a mãe do rapaz. Aquele rosto era só angústia. Chamei o Braima, que cuidava das limpezas e arrumações da enfermaria, pedi-lhe para dar água à mulher e me traduzir. Disse-lhe o que o filho tinha, o que fizemos e o que íamos fazer. Só ela não disse nada. Ela só queria o filho, de novo, encostado ao peito e a respirar com ela.

Adicionar legenda
Veio o alferes Vinagre para nos dizer que a jangada estava garantida. Era só chegar a João Landim [, foto à esquerda], enviar o sinal e ela vinha logo buscar-nos. Até lá, foi continuar a lavar o rapaz com a água fresca, mais um quarto de LM, o doutor Chaves Ferreira a dar-lhe umas palmadas nas costas e eu, com o meu improvisado instrumento, a tirar-lhe a especturação possível da garganta.

Às seis da manhã, eu, o soldado maqueiro Teixeira, e a mãe do rapaz, entrámos com ele para a ambulância. Com a Panhard à nossa frente e a secção do Gomes atrás, fizemo-nos ao caminho, em direcção a João Landim. Mal lá chegados ouvimos o roncar do motor da jangada a iniciar a travessia do Mansoa. Logo que acostou, subiu apenas a ambulância porque do lado de lá era só andar depressa.

Entreguei o jovem mandinga no Hospital Civil de Bissau, talvez não fossem ainda oito horas da manhã.

Muitos dias passados, o Machado, com um sorriso de orelha a orelha, veio ter comigo e disse-me:
– Furriel, sabe quem é que está ali à porta para falar consigo? A mãe do miúdo que a gente levou para Bissau.

Lá estava ela, à porta da enfermaria, com o filho pela mão. Tirou o safeu que o rapaz trazia cruzado no peito e entregou-mo.
– Para furriel ter sorte.

Foi a primeira vez que a ouvi falar e, julgo, foi a primeira vez que lhe vi uma lágrima nos olhos.

Dou comigo a pensar como foi possível, com todos estes acontecimentos, nem o nome da mãe, nem o nome do filho, terem ficado registados na memória. Presente na memória dos meus dias, ficou apenas o safeu. Quando abro a minha caixa dos segredos e o vejo lá dentro, gosto de lhe sorrir.


De ontem e para sempre, o meu safeu

Texto, fotos (e legendas): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.

[Com este relato,  quero homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Vinagre, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.]

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Nota do editor:

(*) Último poste da sério > 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Guiné 763/74 - P10628: Blogpoesia (304): Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades [Ta muda tenpu, ta muda vontadi] (Luís de Camões / José Luís Tavares)


Efígie de Luís de Camões, "principe dos poetas. Selo de 50 centavos, Guiné, República Portuguesa, emitido por ocasião do 400º aniversário de Os Lusíadas



Fonte: Cortesia de

Postugal > Portugal on stamps, blog de Michel Wermelinger [ "I’m a Portuguese living in the UK and this is a ‘show and tell’ site about my home country. The rest of this page explains how the site and my stamp collection are organised. Thanks for dropping by and I hope you enjoy the visit" (Michel Wermelinger)].


[Poste dedicado aos nossos amigos da banda portuguesa de música klezmer Melech Mechaya em digressão por Cabo Verde e Brasil, no âmbito da 20ª edição do Festival Sete Sois Sete Luas: João Graça, violino e nosso grã-tabanaqueiro; Miguel Veríssimo, clarinete; André Santos, guitarra; João Sovina, contra-baixo; e Francisco Caiado, percussão; e que esta noite estão a tocar na Ilha da Brava, berço desse poeta maior da caboverdianidade, que se chama Eugénio Tavares, 1867-1930]


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
Ta muda tenpu, ta muda vontadi, 

Muda-se o ser, muda-se a confiança; 

Ta muda ser, ta muda konfiansa; 

Todo o mundo é composto de mudança, 

Tudu mundu é fetu di mudansa, 

Tomando sempre novas qualidades. 

Ta toma senpri nobus kolidadi. 



Continuamente vemos novidades, 

Sen nunka pára nu ta odja nobidadi, 

Diferentes em tudo da esperança; 

Diferenti na tudu di speransa; 

Do mal ficam as mágoas na lembrança, 

Máguas di mal ta fika na lenbransa, 

E do bem, se algum houve, as saudades. 

Y di ben, si izisti algun, ta fika sodadi. 



O tempo cobre o chão de verde manto, 

Tenpu ta kubri txon di berdi manta, 

Que já coberto foi de neve fria, 

Ki di nebi friu dja steve kubertu, 

E em mim converte em choro o doce canto

Y, na mi, ta bira txoru u-ki n kantaba 



E, afora este mudar-se cada dia,
Ku dosura. Y, trandu es muda sen konta,

Outra mudança faz de mor espanto: 

Otu mudansa ta kontise ku más spantu, 

Que não se muda já como soía. 

Ki dja ka ta mudadu sima kustumaba.


Camões (c. 1524-1580)


Tradução, do português para crioulo cabo-verdiano, de José Luís Tavares)
Fonte: Blogue Um Reino Maravilhoso > 3 de fevereiro de 2011 > Camôes em crioulo cabo-verdiano [Adaptado e reproduzido aqui, com a devida vénia...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10625: Blogpoesia (303): Quero um futuro marcado com traço por mim riscado (Josema)

Guiné 63/74 - P10627: Do Ninho D'Águia até África (24): O nosso Cabo Reis (Tony Borié)

1. Vigésimo quarto episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


Do Ninho D'Águia até África (24) 

O Nosso cabo Reis

Veio para os Estados Unidos, na década de setenta, do século passado. Primeiro para o estado de Maryland, distrito de Washington, D.C., depois querendo um clima mais parecido com a sua vila de Óbidos, donde era oriundo em Portugal, veio para o estado da Florida, onde continuou a trabalhar até atingir a idade da reforma. Era carpinteiro, fazia trabalhos de carpintaria, onde quase sempre sob a orientação de engenheiros, produzia peças únicas, algumas das quais correram mundo em revistas da especialidade.

É o Jorge de Sousa Reis, ( na foto ao lado, já na diáspora e em baixo ainda na Guiné), mais conhecido pelo Reis, pessoa bastante popular e respeitada, no clube da comunidade portuguesa, onde vive.

Esteve na província da Guiné, em cumprimento do serviço militar, do qual se orgulha e gosta de lembrar alguns momentos que lhe ficaram marcados na memória. Seguiu o mesmo trajecto de todos nós antigos combatentes. Portugal estava em guerra e como todo o cidadão, antes dos vinte anos de idade, que vivia em território português, foi à inspecção, levou o carimbo de “apurado para todo o serviço militar”, tirou a instrução básica, depois a especialidade, no seu caso de carpinteiro e em seguida foi logo mobilizado, o que no seu caso podia ter evitado por motivos que não interessa mencionar, mas o seu dever de cidadão foi mais forte e levou-o a não recorrer a qualquer outro meio.

Assim foi para a Guiné em rendição individual, como primeiro cabo, especialista em carpintaria, era o ano de 1968. O navio Uíge, trouxe-o para Bissau, e orgulha-se de dizer que foi a última vez que o navio Uíge, ficou ao largo do cais, em Bissau, porque mais tarde o rio foi dragado e permitiu, à maior parte dos navios, atracar ao referido cais. Quando fala em rio, fica emocionado, pois lembra-se que a primeira notícia da guerra, logo à sua chegada, foi o afogamento de uma jangada de militares, num rio do norte, em zona de combate, onde morreram muitos dos nossos companheiros combatentes.

 1.º Cabo Jorge de Sousa

O aquartelamento de Bissalanca (foto em baixo) era o seu estacionamento, onde havia oficinas de carpintaria, com serração de madeiras, e umas máquinas a que chamavam “Charrion”, que cortavam os toros, fazendo-os em tábuas. Algumas madeiras eram raras e exóticas, de que se faziam móveis para escolas e repartições governamentais, em toda a província, assim como para alguns sargentos e oficiais que lá estacionados com as suas famílias, que depois de construídos, eram encaixotados e enviados para Portugal, como ”recordação”.

Bissalanca

Esteve para ir para Guilege, mas como era um bom trabalhador, o seu chefe, o sargento Ventura, fez todas as diligências para que não fosse incorporado num pelotão que ia prestar apoio a esse destacamento, diz mesmo que foi esse sargento que o salvou de uma possível morte, pois esse pelotão teve algumas baixas.

Quando se refere ao sargento Ventura, diz:
- Ele não era um irmão mais velho, era quase um pai, pois era um homem já com uma certa idade, sabia muito e era compreensivo.

E dizia mais:
- Ele, o amigo Luis Carlos Nobre, o Fortunato, e alguns mais, que não me recorda o nome, não vou esquecer mais.

O nosso cabo Reis, foto em baixo juntamente com o amigo, Luís Carlos Nobre, tem muitas histórias, algumas pitorescas, como esta, em que estava a fazer um móvel para o cabo do rancho, e quando este lhe negou um copo de vinho, furioso, na companhia do amigo Fortunato, também carpinteiro, destruiu-lhe o móvel em algumas partes.

 O Reis com o amigo Luís Carlos Nobre

Dizia que havia um grupo, em Bissalanca, que ia desde o cabo do rancho até aos sargentos, que não bastava todas as suas regalias, ainda levavam quase todos os dias sacas de mercearia e outros bens para as suas casas, bens esses que pertenciam aos soldados que ali estavam estacionados, pois na mesa do refeitório, faltava sempre comida.

Havia, um cabo-verdiano na carpintaria, que era assalariado, bom artista que fazia alguns bons trabalhos em madeira, e os naturais, portanto guinéus, tinham-lhe inveja. Um dia queriam serrá-lo ao meio na serra de madeira, sendo salvo das mãos dos guinéus no último momento.

Tem saudades do tempo em que convivia com o amigo Luis Carlos Nobre, pois eram da mesma terra em Portugal, e ambos, neste momento, estão na diáspora. Luís Nobre estava em zona de combate, mas veio requisitado para Bissalanca para tratar dos geradores porque a sua especialidade era electricista. Iam juntos para Bissau, principalmente para o café “Benfica”. Também fugiam para o “Pilão”, mas sempre acompanhados.

Também, como bom ex-combatente, falava na sua lavadeira, últuma foto, que quase sempre lhe trocava a roupa, mas às vezes, era mais que lavadeira, de quem guarda algumas recordações. Enfim, podíamos ouvi-lo por horas, que a Guiné estava bem viva no seu pensamento.

Regressou a Portugal, no mesmo navio Uíge, agora atracado ao cais em Bissau, quando o militar, que o foi render, chegou.
Ao desembarcar em Portugal, esse país maravilhoso, de sol brilhante, à beira mar plantado, era quase tudo para si, mas já o achava um pouco pequeno para as suas ambições. Logo que encontrou uma oportunidade, como tantos naquela altura, emigrou.

A lavadeira do Luís Carlos Nobre
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10611: Do Ninho D'Águia até África (23): O maldito dente (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10626: Tabanca Grande (368): José António Viegas, natural de Faro, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54 (1966/68), grã tabanqueiro nº 587




1. Mensagem de José António Viegas, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54, com data de ontem, e pedido de entrada na Tabanca Grande:

Caro Luís:
Junto alguns dados para intodução.

Nome: José António Viegas;
Nascido em Faro, em 16-11-1944;
Embarquei para o CTI da Guiné em 30 de Julho de 1966 no Uíge;

Fui em rendição individual para ir formar, em Bolama, com outros camaradas, os primeiros Pelotões de Caçadores Nativos.

Chegámos a 3 de Agosto, desembarquei no Cais do Pijiquiti com a malinha na mão e a ver qual era o meu destino, quando ouço alguém chamar pelo o meu nome e dizer "o que faz aqui,  menino?!"... Era o meu amigo Júlio, já falecido, que estava ali, dos Adidos, para levar o pessoal.

Meteu-me no Jeep o fomos fazer um roteiro turístico a Bissau para ficar a conhecer a cidade. Passados que foram 4 dias seguimos para Bolama para receber os Pelotões e fazer os treinos operacionais. O meu Pelotão foi o 54.

Depois de fazermos as apresentações, saiu da formatura um soldado mandinga, chamado José Abdulai Sissé que me disse, para grande espanto meu:
- Meu Furriel, eu quero ser o seu guarda-costas.

Perante a sua insistência aceitei. Foi um homem fiel, até à sua morte, que ainda hoje recordo com saudade.

Nos primeiros dias de treino em Bolama, numa das noites em que chovia imenso, passada noite em treinos, apanhei o meu primeiro paludismo que me deixou de rastos por uns dias. O cheiro de que estávamos numa guerra e não de férias em África, era o ouvir de rebentamentos todas as noites em S. João, que ficava em frente a Bolama, e em Tite, e logo de seguida fazer a guarda de honra a um camarada que tinha morrido no rebentamento de uma bailarina em S. João e que foi enterrado no cemitério de Bolama.

Um abraço grande a todos os que passaram por aquela terra. Alguns desses já não voltaram.
Paz às suas almas.
Um abraço.

P.S - Anexo: Foto no Uige,  1-8-1966

Na foto do Uíge [em cima,]  sou o que estou no lado da parede com o emblema da Guiné no braço [ assinalado com cercadura a vermelho].
Nós já nos conhecemos dos lançamentos dos livros do Beja Santos em que fui com o Matos.

2. Comentário de L.G.:

Pois é, já nos encontrámos por aí, na companhia do açoriano mais algarvio da nossa Tabanca Grande, o Henrique Matos Francisco, o 1.º Comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68). Finalmente decidiste juntar-te a esta grande família que já a nossa Tabanca Grande. Conheces os cantos á casa. Sê bem vindo, acomoda-te pro aí e senta-te à sombra do nosso poilão, disposto a contar mais histórias da fundação e da  atividade operacional dos primeiros Pel Caç Nat. 

Do teu Pel Caç Nat 54 temos cerca de duas dezenas de referências. Contamos contigo para a aumentar e melhorar a informação disponível sobre a tua subunidade. Diz-me por onde andaste, desde que saíste de Bolama. Passas a ser o grã tabanqueiro nº 587.  Por outro lado, é pressuposto conheceres e aceitares as nossas regras de bom convívio. Manda mais fotos, se tiveres. Dá um abraço ao Henrique quando o vires.
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Guiné 63/74 - P10625: Blogpoesia (303): Quero um futuro marcado com traço por mim riscado (Josema)



1. Poema, sem título,  do nosso camarada José Manuel Lopes (ex-Fur Mil da CART 6250, Mampatá, 1972/74), mais conhecido na região de Tombali pelo seu pseudónimo literário Josema... Retirado das lides literárias, é hoje vitivinicultor na região demarcada do Douro, produzindo belos néctares com a ajuda da patroa Maria Luísa Valente e com o talento do filho de ambos, Vasco Lopes, enólogo. 

Apesar de já ter sido publicado, no poste P2265, de 29/3/2008, juntamente com mais outros 7 poemas do seu "poemário", achamos que é tempo de dar-lhe o devido destaque, agora na nossa série Blogpoesia... É um texto, intemporal, não datado, que  merece ser lido em voz alta, pausadamente,  nestes dias tristes de PAZmaceira, martelando as últimas cinco  linhas do final:


(...) foda-se!, /quero um futuro / marcado / com traço / por mim riscado.

Título [do poste] da  responsabilidade do editor... LG


Sabes?
Sonhei
que as coisas boas
não acabaram,
pois
não têm fim,
acreditei
que vale a pena esperar,
vale a pena
saber
que o nosso inferno
um dia
vai acabar,
o maldita
ou a má sina,
como lhe queiras chamar,
havemos de enganar,
juro-te,
sinto dentro de mim
confiança,
uma força renovada
- dos tolos! - dizes tu,
seja, porra,
mas vale a pena,
pois 'tou
farto de escutar
aquela voz
que tanto quero calar,
‘tou farto de lamentar
este destino traçado,
foda-se!,
quero um futuro
marcado
com traço
por mim riscado.

Colibuía, 1973


Josema

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Nota do editor:
Último poste da série > 3 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10614: Blogpoesia (302): O teu lenço (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P10624: Parabéns a você (490): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)



1. Comentário de L.G.:

Foi através do Humberto Reis, o nosso "cartógrafo", e meu companheiro de quarto no "resort" de Bambadinca, que  eu reencontrei o Jorge Cabral, em finais de 2005, em Lisboa. Advogado, o Jorge era "cravado", de vez em quando, pelo Humberto. Claro, "pro bono"!...

Éramos os três do mesmo tempo de Guiné, ele "régulo" de Fá Mandinga, e nós "nharros" em Bambadinca... Falei com ele ao  telefone, soube do crescente interesse com que ele já acompanhava, na época,  o nascimento e o desenvolvimento da nossa tertúlia, e lia as nossas "estórias"...

O Jorge sempre foi, a meus olhos, o mais paisano e o mais puro dos militares que eu conheci na Guiné: filho de militar de carreira, estudante universitário, alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afeto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).

Pelo que fui sabendo e observando, em Fá (que ficava a escassos quilómetros de Bambadinca, à esquerda da estrada que seguia para Bafatá, onde íamos de vez em quando "ver a civilização", leia-se comer o bife a cavalo, e visitar as meninas do Bataclã...), o "nosso alfero" não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, comerciante, quarteleiro, conselheiro, poeta, juiz de paz, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado (leia-se: apanhado)!...

Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos:  montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde (Conacri, 22 de novembro de 1970) ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para a Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC, que vivia lá para os lados de Madina/Belel... 

O que para o Jorge não era problema, já que ele era - dizia-se à boca calada - o único de todos nós a quem o PAIGG tinha algum respeitinho. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!

Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) dos nossos grã-tabanqueiros... Feito o convite, por escrito, em papel selado,  ele acabou por aparecer aqui, num belo dia, trazendo debaixo do braço um monte de estórias, que se tornariam famosas, as "estórias cabralianas"... 

Ainda há coisas, no seu glorioso passado militar, que ele nos vai  explicar em vida, como por exemplo como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Acho que a intenção era mesmo ir lá beber uns copos, aproveitando uma boleia dos paraquedistas, e dizer à rapaziada do PAIGC, "Make love, not war!"... 

Parabéns, nosso alfero, que é hoje dia grande!... Luís Graça

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10623: Efemérides (112): Cerimónias do 94.º aniversário do Dia do Armistício, 89.º aniversário do Dia da Liga dos Combatentes e 38.º aniversário do Fim da Guerra Colonial, e convívio do S. Martinho do Combatente, dia 17 de Novembro de 2012 em Matosinhos (Carlos Vinhal)

1. A pedido no Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, levamos ao conhecimento dos nossos camaradas o Convite para as cerimónias constantes do programa e Magusto na Sede do Núcleo, a levar a efeito no próximo dia 17 de Novembro de 2012.
A Cerimónia, obviamente, e o Magusto são abertos a todos os ex-combatentes e seus familiares, sejam ou não sócios da Liga.

C O N V I T E

PROGRAMA PARA A CERIMÓNIA DO 94º ANIVERSÁRIO DO DIA DO ARMISTÍCIO, 89º ANIVERSÁRIO DO DIA DA LIGA DOS COMBATENTES E 38º ANIVERSÁRIO DO FIM DA GUERRA DO ULTRAMAR

A Direcção do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes tem a honra de convidar V. Exa., seus familiares e amigos para a cerimónia em epígrafe, que terá lugar no próximo dia 17 de Novembro (Sábado) e que será presidida pelo Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Matosinhos, Dr. António Parada, com o seguinte programa: 

-10H30 - Concentração em frente ao edifício da Junta de Freguesia de Matosinhos.

-10H35 - Içar da Bandeira Nacional na Junta de Freguesia.

- 10H40 - Sessão solene no Salão Nobre da Junta:
- Alocução por um ex-Combatente do Ultramar;
- Alocução pelo Presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes de Matosinhos;
- Alocução pelo Presidente da Junta;
- Condecoração de ex-combatentes com a Medalha Comemorativa das Campanhas;
- Entrega de Testemunho de Apreço;
- “Testemunho de um Combatente”, pelo Professor Luís de Almeida.

11H30-Cerimónia militar no Cemitério de Matosinhos (Sendim) – Talhão Militar da Liga dos Combatentes (Presentes Porta-Guião da Liga dos Combatentes, Força Militar da EPT e Terno de Clarins com Caixa de Guerra do RA5):
- Deposição de coroa de flores no Talhão Militar, seguido de 1 minuto de silêncio e leitura de prece;
- Terno de Clarins executa Toque de Homenagem aos Mortos;
- Hino Nacional;
- Fim da cerimónia.

12H45 - S. Martinho do Combatente – magusto de confraternização na Sede do Núcleo. 

- Solicita-se pré-inscrição para o magusto do número de presenças, até ao dia 12NOV (2ª Feira), através dos contactos abaixo mencionados;

- Sócios €3,00, n/ sócios €4,00 (caldo verde, fêveras, castanhas, vinho, doce e café).

Sem outro assunto de momento, com elevada estima e consideração.
Matosinhos, 17 de Outubro de 2012

O PRESIDENTE
Armando José Ribeiro da Costa
Tenente Coronel

Nota: -  A Sede do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes situa-se na Avenida Rodrigues Vieira, 80 - a 250 metros da Estação do Metro do Araújo (Leça do Balio) - na antiga Escola Primária do Araújo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10562: Efemérides (111): 3 de Outubro de 1968 - Já lá vão 44 anos desde que deixei Lisboa a caminho de Bissau (Carlos Pinheiro)

Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)


Lisboa > Hospital Militar Principal > 1968 > "Rigoroso", diz hoje o Armando Pires, na altura um aplicado "estudante" de enfermagem…


Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.


1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)

Meu Caro Luís Graça, Camarada:

Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.


2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre. 


“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.” 


Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]


- Então doutor, o puto safa-se?

Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.

Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.

A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.

Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.

Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.

O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado.  Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.

Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.

Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.

Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.

Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.

Assim, longe da vista,  Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.

Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.

Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.

Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era,  levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.

Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?

Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.

À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.

Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.

E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.

Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.

Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?

O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.

Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.

Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.

De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava.  O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei.  Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele?  Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?

Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa.  Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.

Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.

Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida.  Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge

Guiné 63/74 - P10621: Notas de leitura (426): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à narrativa do meu serviço cívico na Guiné, nos idos de 1991.
Ao acabar este relato sinto que o meu entusiasmo não foi em vão, mesmo com resultados totalmente inúteis. A ascensão do multipartidarismo parecia uma embriaguez social, refazia-se o imaginário dos dias melhores à volta de slogans; muitos daqueles técnicos e dirigentes com quem eu privava, anunciavam a saída do PAIGC, na esperança de que novas propostas trouxessem paz e dignidade à Guiné. A visita a Bolama encheu-me de uma tristeza sem limites, com a agravante de estar ali bem registada a presença portuguesa, mas era como esta acompanhasse a derrocada da velha capital.

Agora rasgo os últimos papéis desse serviço cívico, o filtro da memória foi passado a escrito, aqui no blogue.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) 

Beja Santos 

As últimas três semanas deste serviço cívico irão estender-se até 21 de Dezembro, o projeto da criação da unidade de defesa do consumidor foi debatido a nível de vários ministérios, todos concordaram com o esquema proposto. Havia que tomar decisões quanto à coordenadora, a minha escolha recaiu em definitivo na Dr.ª Ana Pereira. Fui apresentá-la aos diferentes serviços, na maioria dos casos, fosse de manhã fosse de tarde, não era possível encontrar o técnico ou o dirigente em apreço porque não estava e não se sabia a hora que vinha, porque tinha seguido em viagem, e não se sabia a dimensão da viagem, ausentara-se para ir a um choro, ou fora às finanças, esteja descansado que ele entra em contacto consigo imediatamente… e o imediatamente eternizava-se, seja como for, deixavam-se os documentos para a análise do técnico ou dirigente e pedia-se a sua tramitação para o decisor político. No papel e nas intenções, em meados de Dezembro, quando chegou o ministro do Ambiente de Portugal, já existia a defesa do consumidor da Guiné. O ministro chegou e teve a deferência de me ouvir ou particular. Depois partiu para Bubaque mas com encontro marcado para no dia do regresso, ao fim da tarde, ajustar com o ministro do Ambiente e dos Recursos Naturais e da Indústria a oferta de cooperação: o governo da Guiné-Bissau daria um sinal de querer ver institucionalizada uma política defesa do consumidor, bastava um despacho governamental; em segundo lugar, havia que mostrar interesse pela legislação elementar, o controlo e inspeção de alimentos era um bom pretexto, era mesmo uma exigência da FAO que subordinava tal medida à continuação de apoios; subscrever-se-ia até final de Janeiro um protocolo de cooperação com financiamento garantido para o funcionamento da Comissão Interministerial de Defesa do Consumidor, duas bolsas de estudo para investigadores do INEP terem condições de estudarem a fundo duas problemáticas com interesse relevante para o consumidor guineense; e abria-se os cordões à bolsa para apoiar uma campanha na comunicação social, contribuir para os programas televisivos e, não menos importante, a realização de dois seminários em Bissau, para formadores. Quando a reunião acabou entre os dois ministros, a que também assisti, havia um estado de anuência absoluta ao que a parte portuguesa sugeria, o senhor ministro de Portugal que não tivesse mais cuidados. Eu desconfiava da fartura, havia para ali descontração a mais. Numa reunião com a representante da FAO vi esta esbaforida a gritar com o diretor com o Laboratório Nacional de Saúde Pública, há dois anos que estava prometido um projeto-lei para o controlo e inspeção dos géneros alimentícios, a representante parecia apoplética, ameaçava mesmo em ir-se embora e pedir à FAO para negar doravante qualquer tipo de apoio. Outro sinal lastimável foi da suspensão do programa televisivo, o senhor secretário de Estado dos Recursos Naturais prometera à tv local um qualquer patrocínio para “1 Milhão de Consumidores”, os programas eram exibidos e o patrocínio não chegava, a tv local não esteve para meias medidas, suspendeu o programa até haver apoio financeiro, este nunca mais apareceu, morria à nascença este projeto que eu tanto acalentara.

O tempo estava mais ameno, chegara a época seca com um calor de 26 a 27 graus, com uma aragem benfazeja ao fim da tarde. Os meus serões eram passados invariavelmente à secretária, no espaço que a CICER me reservara, a papelada lá seguia meticulosamente para o trabalho e para os jornais onde eu colaborava. Já tinha na cabeça os voos, para orientar o meu correio: os voos Bissau – Lisboa partiam na manhã de terça-feira e na madrugada de sábado, portanto, e a título exemplificativo eu metia a carta no correio, durante a manhã de sábado com a quase garantia de que as cartas podiam chegar ao destinatário a partir de quarta-feira à tarde. Eu dependia, em termos logísticos de uma unidade denominada CITA – Centro de Investigação e Tecnologia Aplicada, um serviço realista que respondia pelos pesos e medidas, pela normalização e outras áreas de grande importância, passeava-me por aquelas salas, tudo me parecia surrealista, não havia instrumentos, não havia laboratórios, ou o que havia eram equipamentos do tempo da Maria Cachucha, os próprios técnicos se queixavam amargamente daquele logro, o pior de tudo eram os salários permanentemente em atraso.

É também um tempo de recordações indeléveis. Benício Costa tinha conseguido que um dirigente me desse guarida em Bolama, na ausência de qualquer unidade hoteleira, nem uma pensão existia. Parti sexta-feira ao fim da manhã, a aproximação à ilha de Bolama permite ver toda a sua beleza, pus pé em terra e dei com aquele pedregulho monumental que Benito Mussolini ofereceu à cidade de Bolama em memória de uns pilotos que ali morreram num acidente aéreo; era já uma cidade em escombros, parei em frente do Hotel do Turismo, já só restava parte da fachada, vai-se deambulando por um cenário fantasmagórico, fica a percepção que terá sido uma capital com certo espírito cosmopolita, mas a indiferença levara à ruína de tudo, mesmo assim era o Palácio do Governador o edifício mais apresentável. Só tinha direito a guarida, andei errante à procura de um local onde pudesse comer, tive sorte com uma organização que andava a fazer reparações navais, propuseram-me que eu fizesse ali as refeições, incluindo o pequeno-almoço. Aliviado por ter resolvido esta necessidade fundamental, pedi ajuda para percorrer Bolama. Encontrei um voluntário que de bom grado tudo me mostrou: as antigas praias onde os equipamentos jaziam desfeitos; visitei a tipografia de Bolama que tanto me comoveu, tanto ou mais que calcorrear aquelas ruas com nomes sonantes da I República. Regressei domingo à tarde, fomo-nos afastando lentamente porque toda a baia está assoreada, a embarcação anda por ali a vaguear para evitar ficar metida na areia, é uma vista esplêndida, Bolama à distância tem imponência em todas aquelas manchas esbranquiçadas, últimos vestígios da velha capital que nunca mais recuperou do abandono, quando em 1941 Bissau se tornou na metrópole.

Fui visitado na CICER por um jovem que tinha uma juba como cabeleira e me chamou paizinho, era tão hermético no seu crioulo que precisei de ir chamar um intérprete. Fiquei siderado, era Abudu Cassamá, o menino que conheci em Finete, em 1968, tinha as costas retalhadas devido à explosão de uma granada de fósforo. Tratei-o sempre com muito afeto, no meu tempo nunca se conseguiu fazer reparação aos danos que sofria no seu físico, tanto ele como a mãe. O intérprete disse-me que o Abudu vinha ali buscar um saco de arroz, um relógio e um rádio, era o mínimo que esperava do paizinho. É verdade que em Bissau, sempre que encontrava alguém do Cuor eu perguntava por Abudu, ele vinha cobrar tanta pergunta que eu andava a fazer. Encontrei igualmente no bairro de Missirá Mufali Iafai, o nosso canoeiro no rio Geba, foi uma grande alegria. Cherno Suane também aparecia regularmente era o meu companheiro de canja de ostra numa locanda onde me levou, o aparato higiénico era intimidador mas o que caiu no estômago era mesmo manjar de deuses.

Nos últimos dias, conversei longamente com a senhora coordenadora em expectativa: falámos das obras naquele 1º andar do Quartel-General, nas campanhas de sensibilização, nas reuniões com os juristas para o mais rapidamente possível os projetos de diploma irem a conselho de ministros. Embarquei na madruga de 21 com negros presságios. Nenhum despacho fora assinado pelo presidente do Conselho de Estado, tudo se movia em areias movediças. Cheguei, elaborei relatório, enviei cópia ao ministro dos Recursos Naturais e Indústria. E caiu um silêncio espesso, parece que não tinha havido qualquer missão. Em Fevereiro, fui alertado que ou se cabimentava as verbas para o projeto de cooperação até ao final do mês ou o dinheiro seria transferido para outra rubrica. Alertei Bissau, os membros do Governo e a senhora coordenadora em expectativa. E caiu o pano, entreguei-me às minhas obrigações profissionais, a Guiné ficou no fundo do túnel. Aí para Setembro ou Outubro de 1992, a Dr.ª Ana Pereira informou-me num tom como se eu soubesse de tudo, que já havia despacho governamental e que pretendia receber instruções. O desleixo de alguém em Bissau não mereceu qualquer complementação em Lisboa. O meu serviço cívico terminara ingloriamente.

O Pidjiquiti, local mágico de todo o antigo combatente. Era por aquele cais de cimento que, regra-geral, chegávamos a terra firme. As palmeiras da Marginal estavam cuidadas e era agradável estar sentado a ver o porto e o Ilhéu do Rei ao fundo. Está tudo escalavrado, o cimento esfarela-se com a falta de manutenção. Mas é o nosso Pidjiquiiti, ninguém esqueceu a alegria na hora do embarque.

A Associação Comercial e Industrial de Bissau era um edifício com algum arrojo arquitectónico, era uma estrutura moderna que contrastava da imponência do Palácio do Governador e da estrutura ao nível do rés-do-chão do museu da Guiné, com o seu lanternim peculiar. Em 1991, era a sede do PAIGC. Continua a ser, mas não esconde os maus tratos da falta de manutenção. 
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)
e
2 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)

2 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10609: Notas de leitura (425): A Guiné na História de Portugal, de Rui Ramos (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P10620: Questões politicamente (in)correctas (41): A origem da palavra Turra (António Rosinha)

1. Mensagem do António Rosinha, de 13/1/2007, que esteve para ser publicada na série Questões politicamente (in)correctas, sob o poste P1426, e que por qualquer razão (falha técnica ou erro humano, os dois bodes expiatórios do costume) não o foi... 

O poste  [ Guiné 63/74 - P1426: Questões politicamente (in)correctas (17): A origem da palavra Turra (António Rosinha)] estava em rascunho, em fase de edição, creio até que chegou a ser publicado... O nº 17 da série acabou por ser atribuído a um poste do Amílcar Mendes (*). E o texto do Antº Rosinha acabou por ir para ao "limbo" (, mas não para o lixo)... Cinco anos no limbo!...  Fomos recuperá-lo. Vê agora a luz do dia, com outra numeração por causa da cronologia... . Com o nosso pedido de desculpas ao Antº Rosinha (que está connosco, de pleno direito, desde 29 de novembro de 2006) (**) e,claro,  também aos nossos leitores. Na numeração dos nossos postes fica em branco o nº 1426... (LG)


2. A origem da palavra Turra,
por António Rosinha

Tuga, portuga, caputo, chicoronho, cabeça de porco, baranco, chindele, e por fim cubano, já ouvi esses nomes dirigidos a mim e a outros,  ao vivo e a cores. In loco. Nem todos eram depreciativos, mas alguns eram. Logo que sejam ditos em português, ou crioulo, madeirense ou carioca ou baiano, para mim é fabuloso.

Isto tudo para dizer qual o mês e o ano em que surgiu uma palavra que para muita gente não tem justificação: TURRA (terrorista) e a sua motivação. Pois, apesar da muita informação descarregada neste Blogue, penso que esta explicação que vou dar, e é dos livros, não foi lida aqui.


15 de Março de de 1961. Pois houve um movimento, União dos Povos do Norte de Angola, UPNA, depois UPA, depois FNLA, que provocou actos de terrorismo, contra brancos, mulatos, negros que não fossem Bacongos (***), que a par de outro terrorismo que se desenvolvia nos vizinhos Congo Belga, Ruanda e Burundi, explica uma grande parte do apoio popular que o Governo Português teve em todas as frentes, que sem esse apoio não aguentaríamos...13 longos anos.

Para quem assistiu "tudo a meter o rabo entre as pernas"e a fazer as malas, eu não era excepção, e saber que o 1º classificado do meu pelotão do CSM, angolano, mestiço, uma simpatia, já na sua actividade civil, foi na leva, toda a gente tinha alguém conhecido que tinha morrido (nem descrevo os processos usados, e depois a reacção).


Para quem assistiu, ficou no ar a palavra terrorismo (TURRA). E por uns pagam outros. Foi tão revoltante que todos os mestiços, negros assimilados com estudos que já enchiam as repartições e escritórios, brancos angolanos, guineenses e moçambicanos de várias gerações, e que todos eram pela independência das colónias - não o escondiam, tanto na tropa como no desporto como no ambiente profissional (posso noutro ambiente mencionar nomes públicos, vivos uns e falecidos outros)- , todos se viraram contra as independências de qualquer maneira, e não alinharam com Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Chipenda, etc. Até porque todos os vizinhos independentes viviam em constantes matanças étnicas.(Será que acabou?).

A origem da palavra foi só esta, e justificadíssima. Essa palavra foi aproveitada para todos os fins. Muitos conhecem esta história,  concerteza. Outros, verifico que não (****).
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 16 de janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)

Último poste da série > 15 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)
(**)  Vd. poste de 29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)

(***) Etnia do norte de Angola, que outrora (antes da conferência de Berlim, de 1885, que retalhou o continente africano pelas principais potências coloniais europeias, era o povo que vivia no Reino do Congo):

(...) "A luta anticolonial divide-se em três grupos que refletem diferenças étnicas e ideológicas: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), multirracial e marxista pró-URSS, com predomínio da etnia quimbundo; a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA), anticomunista, sustentada pelos EUA e pela República Democrática do Congo (ex-Zaire), com base na etnia bacongo (norte do país); e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), com forte presença da etnia ovimbundo (centro e sul), inicialmente de orientação maoísta, que depois se torna anticomunista e recebe o apoio do regime sul-africano do apartheid. Independência" (...).

Fonte: Sítio brasileiro Mulheres Negras: do umbigo para o mundo > Angola

Segundo o sítio da CIA, com dados estatísticos sobre Angola,  
os bacongos representariam 13% da população. Restantes: Ovimbundos: 37%; quimbundos: 25%; mestiços: 2%; Europeus: 1%; outros: 22%. [Consult. em 4/11/2012].

(***) Vd. também a opinião do linguista Rui Ramos, colaborador do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:


(...) [Pergunta] Li algures que a palavra tuga era pejorativa. Não a encontro em nenhum dicionário mas de facto tornou-se conhecida pois foi o nome dado à Selecção Nacional aquando do Mundial 2002.  A pergunta é: a palavra existe? E é pejorativa? Manuela Couto, Portugal
[Resposta] A palavra «tuga» é de facto pejorativa. Surgiu em contraponto à palavra «turra» («terrorista») que os colonos portugueses em África usavam para designar os que, com armas, se opunham ao colonialismo. 

Surgiu na década de 60, já em plena luta armada de libertação nacional. Eu próprio a usava, já inserido na luta clandestina do MPLA em Luanda, para falar dos «soldados portugueses em Angola». «Turra-Tuga» é uma dicotomia que faz parte integrante da luta anticolonial e que, já se vê, define o «lado mau» da luta.

Por isso eu desde o início considerei que a palavra tinha sido muito mal escolhida para a selecção portuguesa devido à carga guerreira, colonial e incivilizada, porque parece homenagear um dos períodos mais tristes da História de Portugal.

Em sentido mais amplo temos a expressão «pula» (os imigrantes africanos tratam, invariavelmente, os brancos por esta palavra) (*****). 
Rui Ramos (2003) (...) 



(*****) Vd. poste de 26 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10074: Em bom português nos entendemos (8): O angolês, termos angolanos que pode dar jeito integrar no nosso léxico (Luís Graça, com bué de jindandu para o Raul Feio e demais kambas kalus)

(...) Pula. Pessoa branca (pejorativo). O mesmo que braga, cangando, tuga.(...)

O termo "turra" já está  grafado nos dicionários de língua portuguesa (por ex., o Priberam) como substantivo, com o significado de "guerrilheiro dos movimentos independentistas africanos nos tempos da guerra colonial portuguesa".

Vd.  também a Infopédia:  Turra, forma de turrar;

(i) turra, nome feminino: 1. popular, pancada com a testa; cabeçada; marrada; 2. figurado,  teima; birra; disputa (...)

(ii) turra, nome masculino: gíria, depreciativo, nome atribuído pelos militares portugueses aos combatentes independentistas africanos, durante a guerra colonial portuguesa;
(iii) andar às turras, andar desavindo

(Derivação regressiva de turrar) (...)

domingo, 4 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10619: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (1): A morte do quarteleiro

O Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) pediu-nos para juntar os seus textos (prosa e verso) numa só série... Vamos fazer-lhe a vontade, até por que é um direito que lhe assiste, como membro da Tabanca Grande que nos honra com a sua colaboração ativa e continuada... 

Chamámos à série Prosas & versos do Ricardo Almeida". E aqui vai o primeiro poste, "Heranças de guerra"... O editor, contudo, achou por bem arranjar um título mais concreto e sugestivo: "a morte do quarteleiro". (LG)

1. Prosas & versos > Heranças de guerra (1)
por Ricardo Almeida



Dia inesquecível aquele em que um batalhão de caçadores [, o BCAÇ 2879,]  deixa Portugal a caminho da Guiné (ex- ultramar), já tão calcada e espezinhada por milhares de jovens que,  deixando outrora sua família e seu lar, vão enfrentar o caminho da guerra, que lhes foi predestinado, e que deixa nos rostos de cada um expressões de mágoa, de dor e até de ressentimentos, que transportavam nos seus corações. 

Neste monótono turbilhão de coisas que me deixam atordoado, eis que exprimo toda a minha amargura e desagrado por tudo o que vivi com camaradas excepcionais, com outros mais desonestos, mais desumanos, mas, enfim… é tropa e a nada disto se pode fugir quando se cumpre uma missão.

Perante estes factos, destaco um jovem militar que, pelo seu comportamento, não chegou a conquistar a amizade dos seus companheiros, dada a sua personalidade baixa, modos insuportáveis, desordeiros e irrequietos, mas que cumpria a sua missão como tantos outros.

Dispenso-me de citar o seu nome.  
Com a especialidade de condutor auto, foi destacado para a arrecadação, municiando-nos de material quando saíamos para a mata. 

Valeu-lhe aquela colocação a alcunha de Hipócrita.  
Certo dia tive problemas com ele, mas a crise passou e tudo esqueci. Mais tarde de regresso de uma operação no capim, senti como que uma fraqueza infindável e baixei à enfermaria. Ai estive dez dias, até que fui transferido para o hospital de Bissau e seguidamente evacuado para a metrópole. 

Esperava-me o HMDIC [, Hospital Militar de Doenças Infeto-Contagiosas, em Lisboa, Belém,]  e o Caramulo. Resultado:  
“Tuberculose pulmonar”. Moral: desfeita! 

Já em período de restabelecimento e em data que de momento não recordo, após o jantar, entretia-me a ler um pouco para tentar afogar pensamentos horrorosos que tentavam afluir-me à memória.
Um colega, uma triste noticia, um abraço. 
- Almeida, sabes quem está aqui com a morte quase no goto? 
- Não, quem é? Morre-se todos os dias, na frente, na retaguarda e até no Hospital. -  conclui. 

O colega foi directo e espontâneo e com voz rouca, disse:
- “O Hipócrita”da arrecadação de material! 

Apesar de tudo, considerava-o humano, tal como eu, e desloquei-me à enfermaria onde ele se encontrava. A enfermaria 2 era uma espécie de cubículo, onde os “esqueletos vivos” se amontoavam, jogando-se forte na vida.

Espiei-os e encontrei o que procurava. Estava a oxigénio afim de lhe facilitar a respiração. Pronunciei o seu nome mas ele não me ouviu. Tinha os olhos fechados, a boca um pouco  a
berta e a resposta saiu-lhe dos lábios, como que arrancada lá do fundo: 
- Morro...Água! 

Eu não podia suportar aquele drama doloroso. Um homem a debater-se com a morte apesar de tantas ter visto, mas aquele era diferente. Aproximei-me e perguntei-lhe:
- Queres água? Não me conheces? 

O som das minhas palavras abriu desmesuradamente os olhos e num esgar de dor, respondeu:
- Não! 

Não era para admirar, pois que nem eu, às primeiras impressões, o reconheci. Estendi a mão e disse-lhe quem era. Apesar do choque, já refeito, as lágrimas afloraram-me aos olhos, não podia já olhar aquele corpo já inerte, só com a pele a segurar-lhe os ossos e a recordar como mo conheci: Forte, esbelto e saudável. 

– Água, Almeida. Tem dó de mim! 

Ensopei um bocado de algodão em água e coloquei-lho nos lábios, que já me parecia moribundos. 
Consegui mexê-los e, de repente, tentou suprimir todas as dores naquele bocado de algodão introduzido agora na boca.  Retirei-lho e tentei acalmá-lo, mas inutilmente. As lágrimas apareceram-lhe nos olhos e pediu-me perdão. 
–  Estás perdoado,  amigo. –  respondi. 

Fui-me deitar não consegui conciliar o sono nessa noite.  Os dias iam passando e a minha companhia era inseparável da sua cabeceira. Até que chegou o momento mais doloroso para mim, apesar de viver a guerra e estar habituado a ver coisas que os meus olhos nunca sonharam ver, mas que forçosamente eram obrigados a aceitá-las. 

Dia 21 de Outubro daquele ano de 1970.  
Encarando a realidade e sem coragem de me despedir dele, soube que tinha falecido.  Poucas horas decorridas e inesperadamente, vi-o, pela última vez, envolto num lençol, aquele farrapo humano, transportado em maca, pelo corredor de acesso à casa mortuária, onde deveria entrar naquela maldita “urna”, oferta exclusiva do Exército Português! Envolto nos meus pensamentos e alheio até ao lugar que ocupava, dei uma palmada no caixão, como que a implorar-lhe vida: 
 Acabaram-se as tuas forças, as tuas reguilices, a tua fraca reputação. Apesar de tudo eras humano, por isso te rendo homenagem com o coração destroçado e como teu amigo que era, me despeço até um dia…  – Balbuciei!!! 

Ricardo Marques de Almeida
1.º Cabo 089225/68

Guiné 63/74 - P10618: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (8): 9.º episódio: As confissões de um prisioneiro

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 1 de Novembro de 2012:

Caros camaradas e amigos
Então aí vai mais um episódio, com abraços reconhecidos
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

9.º episódio - As confissões de um prisioneiro

E lá se ia passando o tempo...

Voltámos no dia seguinte, para um provável reencontro com os tipos que nos andavam a querer dificultar a vida e já o haviam feito neste mesmo local. A determinada altura, vindo de dentro da mata e próximo, veio o zurrar dum burro, daqueles com quatro patas. Aqui nesta zona do K3, nunca tal houvera visto, embora conhecesse, um ou outro, mas de duas patas.

Acomodámo-nos melhor, uns atrás das baga-bagas, outros atrás das vetustas árvores, outros ainda deitados na camuflagem natural da selva. O dedo permanecia no pinchavelho, ou seja, naquela coisa que na G3 faz accionar a saída pelo cano, duma pecita que ao encontrar algo, derruba que se farta. Pedi que ao verem o asno, o deixassem para mim, experimentado que era e sou, em engatá-los na nora do meu sogro que também era o proprietário duma mula bem vistosa.

Passado pouco tempo, lá chegaram aqueles por quem amigavelmente esperáramos para uma aterradora surpresazinha e para lhes cantar também os parabéns. Vinham descontraídos... conversando... alegres e bem dispostos... não antevendo, ingénuos, que também sabíamos preparar recepções. A tiracolo traziam, a meu ver e depois confirmei, armas proibidas e para as quais não tinham a necessária e indispensável licença para uso e porte. No final da fila em pirilau, que o caminho era estreito, lá vinha o jumento, que tanta alegria me viria a dar mais tarde.

Tadinho... vinha carregado que "nem um burro", trazendo num dos lados do lombo... espingardões e do outro lado um canhão sem recuo. Tudo, sem sela nem canga.

Imaginei o sofrimento do pobre e pensei:
- Quais selvagens, tratam assim as bestas ???...

Hora da festa... faça-se a festa... e fez-se. Manga de ronco... mesmo... e só tarde se aperceberam do que lhes estava a acontecer. Regressámos depois a penates e de livre vontade, acompanhou-nos com arreata, o prisioneiro que ia entrementes fazendo uma alarvice de zurraria do caraças. Com este eram agora dois, os aprisionados, porque ontem um outro, bem aparamentado e com a fisga e de mãos no ar, havia desertado e entregou-se às NT.

Estava a ser interrogado a fim de vermos se nos cedia quaisquer informações, mas apenas respondia: "Je ne sais pas". Qual crioulo... qual português? Seulement français, dizia. Até que, por caridade, lhe levei o nosso prato do dia, para que se alimentasse, claro. Ao ver a "dobrada liofilizada com feijão branco", pediu em Português correcto:
- Não, não me torturem... eu falo... eu conto... eu denuncio... mas lá comer isso é que não.

E confessou que tinham:
- na bolanha, três submarinos sem portas, apenas com escotilha;
- no Cacheu, um porta aviões, perto de Farim;
- aviões, manga deles escondidos na mata, junto dos helicópteros;
- comida: camarões e lagostas de Quinhamel e ostras do Geba;
- armas de todo o calibre e feitio, morteiros e em mais quantidade, costureirinhas e AK 47, 48, 49 e 50.

K3 > Entrada da suite. Com o Ismael da Secção de Morteiros 60 

(continua)
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Nota de CV :

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10602: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (7): 8.º episódio: Uma emboscada perigosa