Caros camaradas Editores
Dando cumprimento ao apelo do nosso Editor-Chefe Luís Graça que pediu para 'alimentar o Blogue' durante os tempos que iria ficar no 'estaleiro' devido à intervenção à anca, aqui fica um modesto contributo com este pequeno episódio que me 'tocou' e que ocorreu na passada 3ª feira.
Penso que pode ser inserido na série que, em certa medida, me 'pertence' e a que dei o título de "Histórias em Tempo de Guerra".
Em anexo remeto também uma foto minha actualizada, uma foto relativamente recente do amigo a que me refiro, o nosso camarada da Guiné, Furriel Mil. Bento de Jesus Luís, uma foto em que estou a almoçar com ele no "Enfarta Brutos" em Bissau e uma outra foto em que estou com a moto que utilizava nas minha deslocações a Nhacra, na companhia do meu amigo e também trabalhador na "Escuta", o Fur. Mil TSF Manuel Martinho.
Abraços
Hélder Silva
HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA
15 - O MEU AMIGO FUR MIL BENTO LUÍS
ou
A amizade através dos tempos
Hesitei um pouco sobre como enquadrar este meu artigo. Na verdade, o motivo próximo, foi uma recente intervenção de carácter público que esse meu amigo fez em Vila Franca, mas como o que a motivou teve a ver com algo passado aquando das nossas vivências na Guiné, não será de todo desenquadrado do teor do título que fui dando às minhas memórias, que chamei de “Histórias em tempo de guerra”.
Eu e o Bento já nos conhecíamos há muito. Desde os tempos do exame de admissão à Escola Industrial e Comercial de Vila Franca de Xira, corria o ano de 1959. O Bento, que tem por uma das suas características principais a discrição (por feitio, por formação, por necessidade), teve o azar de nas vésperas ter tido um problema que o fez apresentar-se nessas provas de ambulância, maca e perna engessada. Para quem não gosta, nem quer, ‘dar nas vistas’, convenhamos que ‘melhor’ seria difícil!
Ex- Fur Mil Bento Luís
A partir daí, em que era fácil ser referenciado, e pelo facto de termos ficado na mesma turma nesse ano inicial, de arranque, da Escola Técnica, fomos estreitando, desenvolvendo e cimentando a nossa estima e amizade. Foi-se mantendo ao longo dos tempos, mesmo tendo cursado áreas diferentes pois eu fiz o curso de montador electricista e ele o de formação de serralheiro (tempos em que se procurava obter formação para trabalhar….). Terminada essa fase os nossos destinos originaram um afastamento. O Bento foi ingressar no mercado de trabalho e eu fui continuar os estudos em ‘modo diurno’ para a Machado de Castro, em Lisboa, com vista a obter a formação complementar para tentar o ingresso no Instituto Industrial.
Ao longo do tempo fomos tendo vivências diferentes, convergindo contudo na procura de respostas para se encontrar caminhos para uma sociedade mais justa, mais feliz. O ano de 1969 fez-nos reencontrar em Santarém, na EPC, sendo que ele foi na 2ª incorporação e eu na 3ª mas como ficou na Cavalaria acabámos por ser contemporâneos, sendo que nessa altura estava com ele outro colega da EICVFXira, o meu amigo Joaquim Pedrosa, jogador da Académica de Coimbra e que aí foi colega do Brasfemes, Vítor Campos, Costa, Gervásio, etc.. O ano de 1971 foi o do reencontro em Bissau.
O Bento pertenceu à CCAV 2721, que esteve na Guiné entre 69/71 e que andou pelo Olossato, Companhia a que pertenceu, entre outros o nosso “tertuliano” Paulo Salgado. Tenho a ideia que inicialmente teve um Capitão a comandar a Companhia mas foi substituído (por falecimento?) pelo Capitão Mário Tomé e terminaram a comissão em Nhacra.
Fruto dessa proximidade a Bissau e tendo em conta que desde o final de Maio de 71 já me encontrava na “Escuta”, o Bento, na sequência da sua ida ao Hospital, procurou-me e eu dei-lhe o apoio possível. É dessa época a foto que anexo em que estamos a comer no restaurante da Estrada de Santa Luzia, o “Enfarta Brutos”, julgo que eram umas omeletes de camarão, e cuja foto foi tirada por outro camarada que estava connosco, o Fernando Roque.
Bissau > No Enfarta Brutos com o Fur Mil Bento Luís
A partir daí fui algumas vezes a Nhacra, com o Roque, de moto. Na foto que anexo está a moto que utilizava, embora o camarada que está comigo seja o Manuel Martinho outro “Ilustre TSF” que estava comigo na “Escuta”. Em Nhacra não se vivia só da guerra e para a guerra. Havia conversas, perspectivava-se o futuro, iam-se ‘formando vontades’. Havia também sessões culturais, leitura de poesia, etc.
Setembro de 1971 > Hélder Silva e Manuel Martinho
Quando ele acabou a comissão, em 1971, eu ainda fiquei quase até ao final de 1972 e portanto deixámos de nos ver pois as nossas vidas familiares, profissionais e até de residência eram diferentes. Mas, mais do que isso, foram as diferenças nos nossos “entendimentos” de como se chegar a uma sociedade melhor, que não nos deixaram aproximar mais, permanecendo apenas a amizade e estima ‘à distância’, consubstanciada tantas vezes de forma colateral, já que o Bento manteve a amizade com o meu pai, a quem visitava com frequência e a quem deixava sempre um abraço para mim.
Um dia destes, na passada 3ª feira, dia 1 de Abril, calhou estarmos presentes numa sessão em Vila Franca de Xira promovida pela Junta de Freguesia, integrada nas actividades destinadas a comemorar os 40 anos do 25 de Abril de 74, dando voz, na ocasião, a alguns dos vilafranquenses (naturais ou adoptados), meus contemporâneos, que experimentaram a repressão e a ignomínia da prisão e da tortura pela execrável polícia política.
No final das intervenções dos quatro elementos do painel, em que se falou de resistência, de coragem, de determinação, de solidariedade e de mais outras coisas, foi dada a palavra à assistência, que apesar da noite fortemente chuvosa lotava o auditório da Junta. Numa delas, para minha surpresa e algum embaraço, o Bento resolveu citar-me como um exemplo de solidariedade, forjado na guerra, na medida em que lhe cedi alojamento e outros apoios aquando da passagem dele pelo Hospital de Bissau e de como isso lhe tinha sido marcante e agradável, a ponto de o estar ali a referir.
Confesso que nunca me tinha apercebido do efeito que, de forma natural e impulsiva, fui causador. Para mim, o que fiz foi uma coisa simples, auxiliando um amigo, sem qualquer esforço. Fiquei a pensar que muitas vezes os nossos gestos têm um alcance muito maior do que aquilo que julgamos. E que o “fazer bem” não só não é difícil como é compensador.
No final ficámos a rever as nossas vivências e, mais uma vez, a ‘teorizar’ sobre a necessidade de nos empenharmos, de novo, no combate por um mundo melhor. E, naturalmente, celebrámos a amizade!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10613: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (14): Um poema-despedida da Naty, dedicado ao seu companheiro a caminho da Guerra Colonial