sexta-feira, 2 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018



1. Mais um artigo de opinião da nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres (*), publicado no Diário de Coimbra a 23 de fevereiro de 2018. Foi-nos remetida cópia,  diretamente, por mensagem da autora, de 26/2/2018.  

O "Diário de Coimbra", "órgão regionalista das Beiras", foi fundado em 24 de Maio de 1930 por Adriano Viegas da Cunha Lucas (1883-1950). Afirma-se como um jornal republicano,  independente, de orientação liberal, defensor da democracia pluralista,

A guerra em "copo meio cheio"

por Sílvia Torres
O Fernandes nunca viu o mar, ao vivo e a cores, mas imagina-o enquanto pesca, silenciosamente, à beira-rio. O Rodrigues toma banho às vezes. Poucas. O Simões nunca entrou numa escola e o Veiga só sabe escrever o seu primeiro nome. Foi o irmão mais novo que o ensinou, ao serão, quando ele era já um pastor experiente, apesar da juventude que vivia. O Marques nunca saiu da aldeia onde nasceu mas sonha conhecer Lisboa. Um dia, talvez. O Falcão não sabe usar talheres e não vê neles qualquer utilidade. O Oliveira trabalha de sol a sol, sete dias por semana, desde menino. O Pinto, nas suas orações diárias, pede a Deus um carro, enquanto poupa trocos para a carta de condução. O mealheiro é um tacho velho, furado e ferrugento, escondido num monte de agulhas. Está mais vazio do que cheio.
No século passado, histórias idênticas encaixavam perfeitamente noutros sobrenomes: Ribeiro, Sousa, Martins, Lopes, Sena… Alguns, durante o Serviço Militar Obrigatório e no decorrer da Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, tiveram a "sorte" de ser destacados para Angola ou Moçambique. A milhares de quilómetros de casa, num Portugal pouco português, ficaram estupefactos com o mundo novo que lhes era dado a conhecer: tão grande, tão diferente, tão quente, tão despido, tão livre, tão africano…

Para os Fernandes, os Rodrigues, os Simões e muitos outros, a tropa e a consequente ida para o império lusitano longínquo, não foi apenas sinónimo de perda mas também de ganho, a vários níveis. A Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, afinal, também teve um lado positivo para alguns dos soldados que nela foram forçados a participar, no auge da juventude.

"Lá longe, onde o sol castiga mais", o Fernandes viu e sentiu o mar e até aprendeu a nadar. O Rodrigues inseriu o banho na rotina diária. O Simões e o Veiga foram à escola e conseguiram ainda escrever, orgulhosamente e com a ajuda de camaradas, aerogramas para a família. O Marques descobriu que o mundo é enorme e o Falcão, a custo, aprendeu a comer com talheres. Regressados à metrópole, o Oliveira, mudou de profissão e o Pinto, já com a carta de condução que a tropa lhe deu, passou a amealhar para o carro. Apesar dos horrores da guerra, ambos viveram no ultramar momentos felizes e de descoberta. Para alguns (muitos) jovens combatentes, que foram e voltaram sem grandes mazelas, a vida mudou para melhor porque o olhar alcançou outros mundos.

A guerra foi uma lição e um impulso para um futuro mais promissor e cheio de oportunidades. Jovens combatentes regressaram a Portugal (metrópole) com mais conhecimentos, mais competências e novas ideias. Assim, a Guerra Colonial/Guerra do Ultramar pode também ser vista na perspetiva do "copo meio cheio". Afinal, até na guerra há um lado positivo. E nesta, como noutras, o conflito foi também um "catalisador de desenvolvimento", que teve depois impacto na sociedade portuguesa. (**).

Sílvia Torres

[Fixação de texto, negritos e sublinhado a amarelo: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P18371: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XX: o render da guarda do palácio do Governador, aos domingos, "grande ronco"


Foto nº 1 > Bissau > Palácio do Governador – neste caso ocupado pelo general Spínola  [1968-1973] >  Junho de 1969 > Render da Guarda >  Faz parte um destacamento da Marinha (fuzileiros), a força mais vistosa, e uma força do Exército, Infantaria, Cavalaria ou Artilharia, ou dos Comandos, ou Paraquedistas e  bem como a Banda Militar de  Bissau.


Foto nº 2 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > A força da Marinha (fuzileiros) na escadaria do Palácio do Governador; 


Foto nº 3 > Bissau > Palácio do Governador  >  Junho de 1969 > Render da Guarda >  A Banda e os fuzileiros, dando a volta ao Palácio em formação 


Foto nº 4 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > A força da armada portuguesa logo atrás,  fazendo as honras militares ao Governador 


Foto nº 5 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda >  As forças  em parada descendo a Avenida da Republica, acompanhada por populares locais que apreciavam estes desfiles e a atuação da vistosa banda militar de Bissau (, constituída exclusivamente por militares do recrutamento local);


Foto nº 6 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > Novas fotos com a parada militar pela avenida abaixo, com participação da banda, fuzileiros e população local;


Foto nº 7 >  Bissau > Palácio do Governador  >  Junho de 1969 > Render da Guarda > As forças  em parada descendo a Avenida da Republica, acompanhada por populares locais que apreciavam estes desfiles e a atuação da banda militar africana.


Foto nº 8 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > A população local perfilada pela berma da rua principal, para ver e apreciar as nossas tropas, aplaudindo-as à sua passagem. Não esquecer que estava lá também a banda militar africana.

Fotos: © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado. (*)

Assunto - Tema T025 – Render da Guarda no Palácio do Governador em Bissau

(i) Anotações e Introdução ao tema:

Todos os domingos havia uma cerimónia militar com grande envergadura e acompanhada de perto pelas populações locais e militares que se encontravam em Bissau, com "grande ronco",  com vista a mostrar que estava lá um representante do Governo da Republica, e a reforçar a imagem de Portugal.

Tive a oportunidade de assistir algumas vezes ao render da guarda do palácio, por me encontrar em Bissau nesses dias de Domingo de manhã, mas só tenho fotos reais captadas pouco mais de um mês antes de embarcar, de regresso, em Junho de 1969. Nota-se o piso molhado, com poças de água, devido ao tempo de chuvas que era o máximo nessa época.

(ii) Legendas das fotos:

F1 – Mostra o Palácio do Governador da província – neste caso ocupado pelo general Spínola. Faz parte da guarda um destacamento da Marinha, a força mais vistosa, e uma força do Exército, Infantaria, Cavalaria ou Artilharia, ou dos Comandos, Paraquedistas e Fuzileiros, bem  como a Banda Militar, constituída por elementos do recrutamento local.

F2 – A força da Marinha na escadaria do Palácio do Governador;

F3 – A Banda Militar dando a volta ao Palácio. (**)

F4 – A força da armada portuguesa (fuzileiros),  logo atrás,  fazendo as honras militares ao Governador

F5 – As forças  em parada descendo a Avenida da Republica, acompanhada por populares locais que apreciavam estes desfiles e a atuação da Banda Militar.

F6 – Novas fotos com a parada militar pela avenida abaixo, com participação da banda, marinha e população local;

F7 – A parada após ter descido a avenida, volta a subir até ao cima da Rotunda, onde se vê a bandeira e o Palácio do Governador, cor-de-rosa.

F8 – A população local perfilada pela berma da rua principal, para ver e apreciar as nossas tropas, aplaudindo-as à sua passagem. Não esquecer que estavam lá também tropa africana (a banda militar)

Em, 12-02-2018 - Virgílio Teixeira

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18360: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XIX: Visita ao território, do Presidente da República Almirante Américo Tomás, com início em 2/2/1968 - II (e última) parte


Postal ilustrado da época >  A Banda Militar de Bissau

(**) Vd. poste de  29 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

(...) A guarda ao Palácio englobava as seguintes forças essenciais:

a) - Uma Secção de tropa regular, comandada por um Sargento da Guarda, que tinha a seu cargo os postos de sentinela ao fundo do jardim e ainda um posto de sentinela ao lado direito do jardim. A segurança era feita durante o dia do lado de fora do jardim. Com o render dos postos de sentinela às seis horas da tarde a segurança passava a ser feita do lado de dentro dos muros.

b) - Uma Secção da Polícia Militar, incluindo um sargento e um oficial, que tinha a seu cargo o pórtico principal do Palácio e o portão lateral de serviço geral.

c) - Durante a noite, entre as dezoito e as seis horas, a segurança era reforçada com um elemento da Polícia de Segurança Pública, que ficava encarregado do espaço entre a casa da guarda e do pessoal civil servente do Palácio e o edifício principal.

d) - Também durante a noite, a segurança era ainda reforçada com um cão treinado em segurança e respectivo tratador, na altura um pára-quedista, que tinha a seu cargo o patrulhamento do interior do jardim,

(...) No Domingo de manhã acontecia ronco grande em Bissau.

O atavio militar das Praças da Guarda era o fardamento n.º 2, com cordões brancos nas botas, tendo como armamento a G3. O Sargento da Guarda também vestia o fardamento n.º 2, com luvas brancas e cordões das botas da mesma cor. O seu armamento era a FBP. Durante a cerimónia o carregador na arma estava vazio. Em verdade se diga, os carregadores que estavam nas cartucheiras estavam devidamente carregados.

(...) Para além das Praças da Guarda, as Forças em Parada eram, normalmente, as seguintes: dois Grupos de Combate reduzidos, nesta nossa participação, da CCaç 3327, com fardamento n.º 2 e G3, um Pelotão da Polícia Militar em camuflado e G3, e um Grupo do Destacamento de Fuzileiros Navais em fardamento branco e G3. Os Leopardos (se a memória não me falha essa era a sua sigla e sujeito a correcção) de Bissau, com os seus inconfundíveis turbantes vermelhos, eram a Banda Militar que nos acompanhavam nestas cerimónias.

Após o içar da bandeira e o render da Guarda, as forças desfilavam pela Avenida da República indo destroçar junto ao Quartel da Amura.


(...) Nunca poderei esquecer a atenção e o respeito que os guineenses demonstravam nestas cerimónias. Novos e velhos, homens e mulheres seguiam com muita atenção todos os pormenores do içar da bandeira e do Render da Guarda. Vi muitos deles saudar com continência a Bandeira que subia no mastro, e senti o calor de milhares de palmas quando as nossas tropas acabavam as manobras em frente ao Palácio e desfilavam pela Avenida da República. Nestas ocasiões, devo confessar, não sentia que os guineenses procuravam a sua independência. Quanto muito desejavam a paz, a mesma paz que nós procurávamos. Nós éramos a sua esperança. (,,,)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18370: Álbum fotográfico de António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 e da CCAÇ 17 (4): Ainda a visita à Guiné-Bissau em Março e Abril de 2017

ÁLBUM FOTOGRÁFICO DE ANTÓNIO ACÍLIO AZEVEDO, EX-CAP MIL, CMDT DA 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 E DA CCAÇ 17, BULA E BINAR, 1973/74

AINDA A VISITA À GUINÉ-BISSAU ENTRE OS DIAS 30 DE MARÇO E 7 DE ABRIL DE 2017


Foto 56 - Colega Isidro, no interior da Fortaleza do Cacheu e junto à estátua de Teixeira Pinto

Foto 58 - Foto do amigo tabanqueiro, Carlos Schwarz da Silva "Pepito", falecido em 2014 e colocada numa das paredes do Museu da Escrvatura e do Trafico Negreiro, no Cacheu

Foto 89 - Foto tirada num bar, em S. Domingos (norte da Guiné) - junto ao Senegal e onde aparecem os colegas Rebola, Rodrigo, Moutinho, Monteiro, Isidro, Leite Rodrigues e Cancela, convivendo com um grupo de portugueses que tinham viajado no mesmo avião em que fomos para a Guiné

Fto 93 - Foto da localidade de Susana, situada entre o Ingoré e S. Domingos, onde aparece a espada Felupe estilizada, construída em betão armado e onde ainda se vê o mastro de ferro onde era hasteada a bandeira portuguesa. Apresenta-se agora pintada com inscrições do PAIGC

Foto 134 - Um jovem guineense aplainando uma prancha de madeira numa pequena oficina, em Bissorã

Foto 154 - A pequena Igreja de Safim, localidade entre Bissau e Bula

Foto 157 - Posto de combustível em Jugudul, onde parámos para abastecer os jeeps e tomar um café

Foto 158 - Edifício de destacamento de trânsito, à saída de Bafatá, a caminho de Gabu

Foto 160 - Arrozais na bolanha, junto ao Rio Geba e à entrada de Bafatá
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Nota do editor

Poste anterior de 16 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18219: Álbum fotográfico de António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 e da CCAÇ 17 (3): Ainda a visita à Guiné-Bissau em Março e Abril de 2017

Guiné 61/74 - P18369: Manuscritos(s) (Luís Graça) (139): Um triste tuga entre três tristes fulas... Elegia para as vítimas da "justum bellum" do comandante Mamadu Indjai

Um triste tuga entre três tristes fulas

Elegia para as vítimas da "justum bellum" de Mamadu Indjai (*)
 

por Luís Graça
 

E de repente
tudo te é estranho,
o muro que corta, rente,
a brisa da manhã,
a fonte onde ainda ontem
os
djubis tomavam banho,
o portentoso poilão aonde ias rezar,
à tua maneira, ao teu irã,
ponta onde colhias a manga, a papaia, o abacaxi,
o macaco-cão que chora e que ri…

De repente
não sabes donde vens,
não sabes o que és,
aqui de camuflado e de G-3,
dois cantis de água,
oito cartucheiras e quatro granadas à cintura,
nem a verdadeira razão para matar e morrer,
não sabes o que fazes neste lugar,
muito longe da tua terra,
abaixo do Trópico de Câncer,
a 11 graus e tal de latitude norte.

Mal reconheces, pobre periquito,
os sinais da guerra,
o combate em noite de luar,
o cavalo de frisa esventrado,
os pássaros de morte,
os jagudis no alto da árvore descarnada,
a terra revolta, ensanguentada,
o arame farpado,  aqui e acolá cortado,
o colmo das moranças,  carbonizado,
o medo que não se vê mas se pressente,
num olhar de relance, breve,
sobre a tabanca que quiseram riscar do mapa,
as cápsulas de 12.7 da metralhadora pesada Degtyarev,
um par de chinelos,
os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
das granadas de RPG…

Um triste cão, famélico, vadio e louco, ladra
ao cacimbo fumegante
e o seu latido lancinante
ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha,
que não se foi embora,
com a sua máscara impassível
de séculos de dor,
de seu nome, Satu.

Mais tarde, saberás tu,
saberão de cor,
os jovens pioneiros,  os blufos, do PAIGC,
que por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível,
hoje valoroso, amanhã insidioso,
combatente da liberdade da pátria,
hoje herói,  amanhã traidor,
que nunca conhecerá a glória nem a honra
do Forte da Amura,
transformado em Panteão Nacional.

Diz-me tu, Satu, mãe e pitonisa,
onde estão as mulheres da tua tabanca,
com os balaios à cabeça
e os seus filhotes às costas ?
Onde estão as tuas gentis bajudas, de mama firme,
cujo sorriso climatizava os nossos pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
e donde vêm aqueles sons, ambivalentes, de bombolon?

Diz-me tu, homem grande,
onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
sopram os ventos da história, afinal ?

Dis-me, mauro,  onde fica Meca ?

E a quem e para onde é que eu hei-de rezar ?
E, no seu conciliábulo, meu irmão,
os nossos deuses, o meu e o teu,
o que sobre nós
, cinicamente, decidirão ?

Diz-me onde está o velho cego,  mandinga,
a quem demos boleia, até Mansambo,
que tocava kora
e nos contava a história
de velhos e altivos senhores do Mali e do Gabu,
agora servos no seu chão ?

Passei na madrugada
de um final de mês de julho de 1969,
pela tua tabanca, abandonada,
do triste regulado do Corubal,
de que já não guardo o nome,  na memória:
Sinchã qualquer coisa,
Sinchã-a-ferro-e-fogo,
Afiá ou Candamã...
Que importa, de resto, minha irmã,
o topónimo para a história?!...

Venho apenas em teu socorro, meu irmãozinho,
quando as cinzas ainda estão quentes
no forno da tua morança,
da morança que fora também minha…

Raiva, sim, meu camarada,
Abibo Jau, meu bom gigante,
que serás mais tarde fuzilado em Madina Colhido
com o teu comandante Jamanca,
como eu te compreendo!…
Mas vingança, para quê ?

Do teu justum bellum ao justum bellum do teu inimigo,
de guerra em guerra se chega ao nada!

A um espelho partido me estou vendo,
e a mim mesmo me pergunto  quem sou eu,
um triste tuga entre três tristes fulas, ai!,
para te dar lições de história ?!

Saberei apenas,  muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai, no Boé,
que diziam ser região libertada da Guiné…

O mesmo Mamadu Indjai,
fero e bravo comandante,

que fazia a sua justum bellum,
que os tugas de Mansambo irão ferir gravemente
em emboscada no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois, chefe das secretas,

será um dos carrascos de Amílcar Cabral.

Versão 12 (**), 
Alfragide, 1 de março de 2018 (***)
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Notas do editor:

(*) Muitos dos nossos camaradas nunca viram o rosto do IN, nem vivo nem morto... Durante a minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71), fizemos diversos prisioneiros, entre guerrilheiros e população civil... Mas o Mamadu Indjai, o Bobo Keita ou Mário Mendes, nunca lhes pus a vista em cima...  Destes três, Mamadu Indjai foi fuzilado pelos seus antigos camaradas, Bobo Keita morreu de morte natural, em Lisboa, e Mário Mendes foi abatido pela minha antiga CCAÇ 12, já depois do meu regresso...

O nosso blogue tem feito luz sobre estes homens que nos combateram... Temos vindo a juntar as peças do puzzle... E sabemos hoje um pouco mais sobre quem foram estes homens que lutaram por um ideal,  uma causa que consideravam justa ("justum bellum"), mas também espalharam a morte, o terror, a miséria e a dor no setor L1 ou setor 2 (para o PAIGC)... As populações civis foram as vítimas da violência, de parte a parte...

Durante anos Amílcar Cabral (e o seu partido, o PAIGC) foi glorificado e levado ao céu dos mitos... , foi para o  olimpo dos deuses e dos heróis... Hoje voltamos à terra, e a realidade é muito mais "mesquinha", ou seja, "humana"...

A PIDE/DGS (e seguramente outras polícias secretas, desde a do Sekou Touré, às francesa, russa, sueca e outras) tinham os seus "olhos e ouvidos" no próprio seio do PAIGC...  Não sei se Mamadu Indjai foi agente da PIDE/DGS, e se vendeu por 30 dinheiros como Judas, tal como sugere o historiador e nosso grã-tabanqueiro Leopoldo Amado... 

Seja como for, mais de meio século depois, temos dificuldade em perceber  como é que um homem inteligente e experiente como Amílcar Cabral (mas também egocêntrico, vaidoso e ingénuo, como outro líderes revolucionários) se "deixou cair na armadilha" que o levou à morte: ao que parece, toda a gente sabia, menos ele e a corte cabo-verdiana, da traição que se estava a preparar debaixo da sua janela, em Conacri...

O que leva um "herói da liberdade da Pátria", como Mamadu Indjai, a tornar-se um "vilão" e um miserável "traidor"? Bom, isso é outra história... Infelizmente, a história está cheia de vilões e traidores...

Temos 21 referências no blogue sobre este homem... que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e fogo nos  primeiros meses da época das chuvas de 1969.

(**) Vd. poste de 4 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(***)  Vd. poste de 14 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18316: Manuscrito(s) (Luís Graça) (138): a vida são dois dias e o carnaval são três

Guiné 61/74 - P18368: (Ex)citações (330) O "meu querido mês de julho de 1969"... e a "justum bellum", de Mamadu Indjai, contra os colonialistas e os "cães" dos colonialistas (Luís Graça)


Foto nº 1 >  No rescaldo do ataque a Candamã, na madrugada de 30/7/1969: granadas de canhão s/r, e de RGG, 1 granada de mão, munições, restos de fardamento, etc,


Foto n.º 2 > Em Mansambo, o Henrique Cardoso, alf mil, cmdt do 1.º Gr Comb, 2.ª cmdt da CART 2339 (1968/69)



Foto nº 3 > A tabanca de Candamã, transformada em "alvo militar" pelo Mamadu Injdai...

Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (Mansambo, 1968/69) > Candamã


Fotos: © Henrique Cardoso  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em todas as guerras as grandes vítimas são sempre as criança, as mulheres e os velhos que não podem pegar em armas... E logo seguir os combatentes,  os que pegam as armas, convencidos de que lutam por uma causa justa ("justum bellum")... E depois ainda os combatentes que lutam contra a sua própria guerra, os combatentes sem causa, arrebanhados para a guerra, como eu e tantos outros, de um lado e do outro... Quantos dos que morreram nas guerras, sabiam por que lutavam e podiam morrer? 

Este foi "o meu querido mês de julho de 1969" em que tive o primeiro contacto, brutal, com a guerra e as suas insanáveis contradições... Foi aqui que comecei a perceber que não se pode fazer uma guerra sem tomar partido e sem odiar... É preciso "objetivar" o outro, o "inimigo"... Não há guerras justas, muito menos sem ódio... O resto é ideologia...

Amílcar Cabral falava, não poucas vezes, dos "cães dos colonialistas"... Amílcar Cabral usou, não poucas vezes, esta expressão racista, referindo-se aos guineenses que não tomaram partido pela sua causa, o seu partido... (É verdade que ele sabia fazer a distinção entre os portugueses e o "regime colonialista" português; mas também é verdade que, não poucas vezes,  se referia a nós, "tugas", em sentido depreciativo, se não mesmo racista...).

Para os comandantes e demais combatentes do PAIGC, seguindo esta ordem de pensamento (único), o termo "cães dos colonialistas"  tinham um sentido explicitamente racista e um alvo concreto: os fulas, os manjacos e outros grupos étnicos,  menos permeáveis ao apelo da  "guerra de libertação", da "justum bellum"...

O comandante biafada (ou mandinga, não sabemos ao certo...) Mamadu Indjai levava a peito a "justum bellum": um "cão" dos colonialistas bom, era um "cão" morto... Infelizmente, alguns dos meus soldados fulas também partilhavam a teoria inversa: um balanta bom era  um balanta morto... Cada um tinha a sua "justum bellum" e os seus ódios de estimação...

O meu papel, como graduado da CCAÇ 12, na minha esfera de ação muito limitada, foi  impedir que, em situações-limite,  os meus "mamadu indjai" fulas, fardados com a farda do exército do meu país, levassem a teoria à prática... O verdadeiro Mamdu Indjai, biafada ou mandinga, comandante do PAIGC; esse, nunca se coibiu de praticar a teoria...

Dizem os cronistas que terá sido ferido três vezes em combate. À quarta, sucumbiu sob o pelotão de fuzilamento dos triunfadores da "justum bellum"... Mas Amílcar Cabral já não estava lá para ver... Já estava no olimpo dos deuses e dos heróis... A história (ou uma certa historiografia...) encarregou-se  de o 'santificar'... Em boa verdade, ele teve, apesar de tudo, a sorte dos criadores que não sobrevivem às suas criaturas...


2. Confirmei a sequência dos acontecimentos na história do BCAÇ 2852 (1968/70), Cap. II, pag. 90, bem como na história da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

As coisas andavam "feias e bravas"  lá para aqueles lados dos regulados a norte do Corubal, depois da retirada de Madina do Boé em 6/2/1969...  O "chão fula" ficou desguarnecido a sul e sudeste, incluindo o setor de Galomaro (vd. carta de Duas Fontes ou Bangácia, nome do sede do posto administrativo que, com a guerra, terá perdido importância, em detrimento de Galomaro):

Na madrugada de 30 de Julho de 1969, eu estava em Candamã, ainda as armas dos defensores da tabanca fumegavam ... O espetáculo dessa madrugada ficou-me na memória e inspirou-me um poema que vou sucessivamente revendo...

Eis o filme desse mês (só registo a actividade da guerrilha que, haveríamos de saber mais tarde, era comandada pelo Mamadu Indjai, na zona de acção da CART 2339, Mansambo, 1968/69):

(1) No dia 1 de julho, às 20h00, um Grupo IN, estimado em 30 elementos, flagelou à distância o destacamento de Dulombi, a sudeste de Galomaro / Duas Fontes... durante duas horas (!). Os camaradas do PAIGC utilizaram Mort 60, LGFog, Metralhadoras Ligeiras e armas automáticas. Causaram 1 morto e 7 feridos, todos civis. Retiraram na direcção Norte...

(2) Em 10, um outro grupo IN, em número não estimado, emboscou um grupo de 4 civis de Dulombi, a partir de uma árvore, em Paiai Numba [, a sul de Padada, vd. carta da Padada]. Só dois dos civis conseguiram regressar a Dulombi, para contar o sucedido...

(3) Quatro dias depois, a 14, por volta das 16h05, um bigrupo (equivalente a um Gr Comb nosso, reforçado, c. 40 homens) - que presumivelmente se dirigia a Dulombi - reagiu a uma emboscada nossa em (PADADA 2E4), com Mort 60, LGFog e armas automáticas durante cerca de 35 minutos... Antes de retirar para Sudoeste, o IN causa às NT 1 morto, 2 feridos graves (1 civil), 3 feridos ligeiros, além de danos materiais num rádio CHP (de mal o menos)...

(4) No dia seguinte, às 20h00, um grupo IN (estimado em cerca de 40 elementos) atacou as tabancas de Cansamba e Madina Alage, durante 60 minutos, com Mort 60, LFog e armas automáticas mas, desta vez, felizmente, sem consequências... O IN retirou na direcção da tabanca de Samba Arabe, levando consigo um elemento da população...

(5) A 20, pelas 20h00, tocou de novo a vez à tabanca de Cansamba, flagelada por um grupo de 30 guerrilheiros, durante 20 minutos, sem consequências... Retirou na mesma direcção (Samba Arabe)...

(6)A 24, às 00h45, é atacado o destacamento de Dulombi, da direcção SSW. O IN, estimado em 60 elementos, utiliza LGFog e armas automáticas.

(7) Nesse mesmo dia, às 17h20, o aquartelamento de Mansambo é flagelado, a grande distância, com Mort 82, a partir da direcção sudoeste. Sem consequências. Na outra ponta do Sector L1, o Xime é flagelado, às 19h45 por canhão s/r.

(8) Meia hora depois, a sul de Madina Xaquili, a cerca de 1 Km, um grupo IN não estimado reagiu a forças da CCAÇ 2445, causando 6 feridos ligeiros, entre os quais 2 milícias. Simultaneamente, este destacamento é flagelado à distância, com Mort 60 e LGFog. Há apenas danos numa viatura GMC. O IN retira na direcção de Padada. Três Grupos de Combate da CCAÇ 12 (na altura, ainda CCAÇ 2590) tiveram aqui, nesse dia, o seu baptismo de fogo... em farda nº 3 (!).

(9) No dia seguinte, à 1h20, é atacado o destacamento de  Quirafo, durante 3 horas (!), por um grupo estimado em mais de 100 elementos, que utilizam 3 Canhões s/r, 3 Mort 82, vários Mort 60, RPG 2 e 7, Metr Lig e outras armas automáticas... Felizmente, há apenas 1 ferido, mas as instalações do destacamento ficam praticamente destruídas, bem como os rádios DHS e AN/RC-9 e quatro G-3... O arame farpado fora cortado em vários pontos... Quirafo, na altura é guarnecido por um pelotão da CCAÇ 2406.

(10) A 26, há uma nova flagelação do Xime, às 17h45, da direcção Sul. Com Canhão s/r e Mort 82 durante 10 minutos. No Xime está a CART 2520, com menos dois pelotões (um destacado em Galomaro e outro - duas secções - na Ponte do Rio Udunduma).

(11) No dia seguinte, 27, às 16h50, Mansambo volta a ser flagelado, à distância, durante 10 minutos, com Mort 82. Sem consequências.

(12) Em 28, por volta das 22h30, o destacamento e tabanca de Madina Xaquili vai conhecer o inferno: durante 1 hora e meia, é atacado de todas as direcções, por um grupo de cerca de 60 elementos, com Mort 82, Mort 60, LGFog e armas automáticas. Há dois feridos. Na altura era defendido pelo Pel Mil 147.

(13) A 29, às 10 da manhã, um grupo IN reagiu, durante 10 minutos, a um patrulha nossa, a 200 metros a SW de Dulombi, que acabava de sair na sequência do rebentamento de uma mina A/C. O IN, que utilizou Mort 60, LGFog e armas automáticas, causou 2 feridos civis.

(14) A 30, às 18h00, Mansambo sofre nova flagelação à distância, da direcção SW, durante 20 minutos, com Canhão s/r e Mort 82. Sem consequências.

(15) A fechar o mês (quente) de julho de 1969, é a vez da tabanca em audodefesa de Candamã [, já no limite leste da ZA da unidade de quadrícula de Mansambo,] conhecer o inferno: a 30, às 3h40, um numeroso grupo IN (80 a 100 elementos) ataca a tabanca, até de madrugada, durante 2 horas e 20 minutos, utilizando 2 Canhões s/r, Mort 82, 3 Mort 60, LGFog, Metralhadora Pesada, Pistolas-Metralhadoras e Granadas de Mão Defensivas, causando um 1 ferido grave e 4 feridos feridos às NT e 2 mortos, 3 feridos graves e vários ligeiros à população civil... Valeu o comportamento heróico dos homens - menos de  pelotão - de Mansambo!...

Registe-se para a história: o 1.º pelotão da CART 2339, comandado pelo alf mil Henrique Cardoso foi quem, com a população civil, defendeu a bela tabanca de Candamã... Por feitos muito  menos heróicos, distribuíram-se a torto e a direito muitas cruzes de guerra durante a guerra colonial...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

26 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18357: Efemérides (269): 30 de julho de 1969, quando o famigerado comandante Mamadu Indjai (, um dos carrascos de Amílcar Cabral), quis pôr Candamã, a última das duas tabancas do regulado do Corubal, a ferro e fogo... Recordando um raro e precioso vídeo sobre uma tabanca fula em autodefesa, da autoria de Henrique Cardoso, ex-alf mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), que vive hoje na Senhora da Hora, Matosinhos

5 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16562: (De)Caras (47): Ainda o enigma dos ferimentos de Mamadu Indjai [N'Djai] e a missão do Bobo Keita na mata do Fiofioli (Jorge Araújo)

 4 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(**) Último poste da série >  15 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18321: (Ex)citações (329): Da Restauração da Independência de 1640 à guerra na Guiné (1963/1974). Batalhas em campos e tempos desiguais (José Saúde)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18367: Fotos à procura de... uma legenda (101A) : A técnica de construção da estrutura superior das moranças fulas... (Cherno Baldé / Luís Graça / António Rosinha / Armando Tavares da Silva)



Desenho manual da fase inicial de construcao de uma palhota
Infografia: Cherno Baldé (2018)




Foto nº 1


Foto nº 2

Foto nº 3


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (1968/69) > Candamã > Reconstrução de moranças, depois do ataque de 30/7/1969. Fotograma de "slides", do Henrique Cardoso, retiradas, com a devida cortesia, do seu vídeo, disponível aqui, no You Tube / Henrique Cardoso.

Fotos: © Henrique Cardoso (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 4

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > Madina Xaquili > Junho de 1969 > A morança que foi destinada ao Fernando Gouveia quando foi destacado para Madina Xaquili, para reforçar o sistema de autodefesa.

Foto: ©  Fernando Gouveia  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Comentário de Cherno Baldé ao poste P18357 (*):

Quero desafiar a capacidade de observação dos antigos combatentes com a seguinte questão:

- Quem sabe ou quem é capaz de descrever a técnica que os Fulas do campo usavam na construção daquelas casas (palhotas) redondas onde viviam? Quem acertar dou um preéio.

 PS: Nas imagens vemos algumas casas (palhotas) com a estrutura já pronta, faltando cobrir com a palha [Fotos nº 1 e 2]

2.  Comentário do nosso editor LG [Tabanca Grande]:

Cherno, é um bom desafio...Mas eu não me atrevo a ser o primeiro a tentar responder-te... 

Passei algumas semanas em tabancas em autodefesa, sobretudo no tempo das chuvas... A (re)construção das moranças, a mudança do colmo, etc., era feita no tempo seco... E o tempo seco era o das grandes operações, quando íamos aos 'santuários' [ou 'zonas libertadas']  do PAIGC, uma vez por ano...



3. Comentário de António Rosinha:


Respondendo à pergunta sobre a técnica dos fulas na construção das cubatas redondas e o colmo de palha no telhado, não sei bem a que se refere o Cherno, sei que são abrigadas contra o calor, o frio e os ventos de qualquer direcção.

Com aquele telhado que fica a aba a 1 metro do chão, temos uma climatização o ano inteiro.

Mas já vi jovens cooperantes suecos a fazer adobe e a construir,  com esses tijolos, uma escola nos arredores de Bissau, e os guineenses sentados à sombra dos mangueiros a ver aquela "novidade", adobe.

Também já vi japoneses a fazer arroz numa bolanha de Bafatá, e balantas e fulas a assistir àquela novidade agrícola, o arroz.

Acho que os suecos e os japoneses já foram todos embora e os guineenses não continuem sentados.


4. Resposta do Cherno Baldé:

Caros amigos Luis e Rosinha,

A última imagem do Post mostra uma armadura circular feita de canas de bambu enrodilhadas e suportada por paus à volta com um diâmetro de mais ou menos 4/5 metros (onde os dois rapazes estão encostados) [Foto nº 2] . É este o sítio onde se começa a montagem/construção das estruturas que vão servir de cobertura às casas (Palhotas).

Para começar, escolhem as melhores canas de bambu e encostadas uma a uma a volta da estrutura circular, vão cruzá-las no meio do círculo onde serão atadas, formando desse modo a parte que, quando invertida ou levantada para cima , vai constituir o topo da casa, chamada de cabeça.

Assim, mais de metade desta estrutura de cobertura de colmos é colocada ainda no chão e amarrada com cordas de ramos de palmeira (ráfia), antes de a levantar, colocando a parte que estava em baixo para cima, e fazer subir em cima das paredes redondas (ou outra estrutura qualquer de Kirintins) que servirão de base de apoio à cobertura feita de palha ou de folhas de cibes, conforme as regiões do país e a disponibilidade da palha de cobertura que se podia encontrar na orla das bolanhas, que é cada vez mais rara.

À primeira vista parece simples, da mesma forma que, aos olhos do leigo, parece simples matar uma galinha e dividi-la em partes, mas os mais novos tinham que aprender com os mais velhos e respeitar os procedimentos e o ritual subjacente, sem o qual o trabalho não tinha o devido valor aos olhos da comunidade e dos seus valores.

Se calhar, todos acham que sabem fazer o trabalho elementar de matar uma galinha é de a dividir em diferentes partes!?

Nada mais errado. Da forma como os metropolitanos matavam galinhas no quartel, nenhum Homem grande Fula aceitaria consumi-la. Primeiro por razões religiosas sim, mas também porque não correspondia às normas locais de procedimento e de respeito à vida do animal.

Uma casa que fosse construida sem respeitar as regras ancestrais, também podia ser rejeitada pelos mais velhos e transformar-se num trabalho inglório.

Tenho a quase certeza que o "alfero Cabral",  de Missira, sabia esfregar mamas de Bajudas, mas não aprendeu a arte de matar uma galinha ou da construção de uma bela palhota, palhota de receber hóspedes ilustres, como aquela que reservaram ao Fernando Gouveia em Madina Xaquili ou ao Luís Graça em Saré Ganá com os respectivos mobiliários, sem esquecer a "turpeça" do chefe.


4. Comentário de Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno: sim, a cobertura ou cabeça da habitação em forma cónica é montada ao nível do solo à volta da estrutura circular de bambú que se vê na imagem do lado direito e onde estão encostados os dois rapazes [Foto nº 2].

As canas de bambú serão atadas no meio, mas penso que esta operação não será feita ao nível do chão, pois, de contrário os rapazes não chegariam ao topo onde as pontas das canas irão ser atadas.
Mas acrescenta que esta estrutura é ”levantada ou invertida”, fazendo crer que esta fase da construção pode ser realizada de 2 maneiras. Em qualquer caso isto obriga a levantar a estrutura alguns metros acima do solo, para se poder construir por baixo as paredes da habitação. E isto, como é que é feito? Não será preciso mais gente?

Agradeço estes esclarecimentos.


5. Resposta do Cherno Baldé:

Caro Armando,

Obrigado pelo interesse sobre o assunto.

O topo da cobertura das casas que estão a ver, estavam no chão e no centro da estrutura circular, mas invertidas e na posição contrária daquela que se ve nas imagens. Mais de metade desta cobertura em canas de bambu deve ser montada no chão, em posição invertida, antes de se colocar em cima da parede da casa. Para a colocar, o indivíduo que estava a montar e amarrar as canas  precisava do apoio de um número determinado de pessoas para colocá-la em cima da parede, dependendo do tamanho da casa em construção.

A fase seguinte consistia em meter mais canas de bambu, agora de baixo para cima e fechar todos os espaços vazios. É isto que o rapaz da primeira imagem { Foto nº 1] está a fazer, estando em cima da cobertura a fim de prender solidamente com as cordas de rafia fabricadas a partir de ramos de palmeiras.

Espero ter ajudado a compreender o procedimento,


 6. Nova pergunta Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno:

Peço desculpa mas ainda não compreendi bem o procedimento. Invertidas significa que a parte de cima (ou de fóra)  é a que vai ficar da parte interior da habitação? O atar da extremidade das canas de bambú é feito quando estas se encontram ao nível do chão (no plano do chão)? Qual a utilidade da estrutura circular? Como é que ela é utilizada na momtagem das estruturas de cobertura? Eu pensava que esta estrutura servia para nela se encostarem as canas de bambú de modo a serem atadas no topo.

Abraço

7. Resposta  final do Cherno Baldé:

Caro amigo Armando,

Tenho umas fotos que vou tentar recuperar e enviar-te via  Blogue da Tabanca Grande, pois acho que não consegui explicar convenientemente, mas com a imagem será mais facil. Se quiseres, poderás indicar um contacto de e-mail para poder enviar-te directamente, caso consiga recuperar a tal imagem que tinha numa máquina fotográfica [, vd infografia acima]. (**)

Um abraço,
Cherno Balde

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Guiné 61/74 - P18366: Agenda cultural (631): Lisboa, Bairro Alto, Teatro do Bairro, hoje, 28, às 21h30: Lançamento do álbum de estreia do músico e compositor lourinhanhense Diogo Picão, "Cidade Saloia"



Cortesia da página oficial do Diogo Picão.


1. Álbum "Cidade Saloia":

"É o meu álbum de estreia.

"Gravado com músicos de várias nacionalidades residentes em Lisboa, este disco espelha o meu interesse por vários estilos musicais, e a influência das viagens na minha escrita, e na maneira de observar o mundo rural e citadino. É composto por doze canções autorais.

"O concerto de lançamento será no dia 28 de Fevereiro, às 21h30, no Teatro do Bairro com o apoio da Sociedade Portuguesa de Autores.

"Disponível nas plataformas digitais e em formato físico por encomenda no site."


2. Diogo Picão  tem página também no Facebook.

Apresenta-se de maneira bem humorada e originail:

(...) Nascido no oeste [, Lourinhã, distrito de Liosboa], apaixonado pelo sul, com a cabeça virada a norte. A leste mas orientado pela música. Canta, toca saxofone, e percute o que lhe aparecer à frente.
Chama-se Diogo Picão e gosta da canção mas nunca se nega a uma livre improvisação.

 (...) Influências: Cantautores Portugueses e Brasileiros, Música de Intervenção, Samba, Bossa Nova, MPB, Jazz, Blues, Salsa, Son Cubano, Música Clássica Indiana.

Press contact: Joana Garcia
email: joana@constroisons.com
telefone: +351 218 404 062
telemóvel: +351 961 357 906


3. Sinopse do espetáculo, hoje, no Teatro do Bairro [ Rua Luz Soriano, 63 (Bairro Alto),1200-246 Lisboa, Portugal]

Diogo Picão, um dos autores de canções mais promissores da sua geração, apresenta-nos agora o álbum de estreia Cidade Saloia.

Nascido na vila da Lourinhã, começou a aprender saxofone na Escola de Jazz de Torres Vedras, seguindo depois para a ESMAE, no Porto. Mais tarde viajou pela América Latina, território que influenciou fortemente as suas composições.

Filho de professora primária [, a trabalhar há muito em Macau], desde cedo se habituou a divertir com as palavras. O jogo completou-se quando as juntou à música. Em Lisboa, encontrou a sua mais recente morada, povoada de músicos em trânsito, com quem partilha e descobre afinidades musicais. 

Cidade Saloia é um disco que usufrui dessa família alargada. Composto por doze canções da sua autoria, todas em português excepto uma em espanhol, o disco conta com a participação do seu trio (Olmo Marín, Anders Perander e Matteo Bowinkelmann) e a de vários convidados incluindo Salvador Sobral, com quem partilha a interpretação da canção Sem Respostas.

Fonte: Bilheteira FNAC (com a devida vénia)


4. Comentário do editor:

O Diogo é meu conterrâneo e meu amigo. É filho e sobrinho de amigos meus, de uma grande família que deu combatentes para a(s) guerra(s) de África, pelo menos dois, das  minhas relações,  o tio paterno José F. Oliveira Picão (que esteve em Canquelifá, na Guiné, 1973/74) e o tio materno Jaime Bonifácio Marques da Silva, do BCP 21 (Angola, 1970/72), nosso grã-tabanqueiro.

É um jovem músico de grande talento, cantor, saxofonista, compositor, que merece o apoio da nossa Tabanca Grande. Eu vou lá estar esta noite do Teatro do Bairro, no Bairro Alto, a aplaudi-lo.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2018 >  Guiné 61/74 - P18364: Agenda cultural (630): Seminário "Nos Mares da Memória", 4ª feira, dia 7 de março, às 15h00, em Paço de Arcos, Escola Superior Náutica Infante D. Henrique... Aberto a todos os que se interessam pela história dos portugueses nos mares da Terra Nova e da Gronelândia.

Guiné 61/74 - P18365: Historiografia da presença portuguesa em África (110): Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca em O Mundo Português, por Edmundo Correia Lopes (1) (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Há quem suponha que foi preciso esperar pela vida do Governador Sarmento Rodrigues e o seu colaborador Teixeira da Mota para que se tivessem encetado os estudos etnológicos, antropológicos e etnográficos. Se é verdade que é a partir deste período que ganham profundidade tais estudos, eles são anteriores.
Cientistas de renome como Bernatzik tinham publicado estudos como o da originalidade da cultura Bijagó e Bernatzik chegou mesmo a dizer, no início dos anos 30: "É um trágico destino, na Guiné Portuguesa, o de uma cultura africana que em nada lhe fica atrás dos outros famosos ramos oeste-africanos. Um feliz acaso permitiu que esse mundo brilhante ainda se nos patenteasse no momento, podia dizer, do seu ocaso".
E também se encontram em Boletins Oficiais do Governo da Guiné respostas a questionários de inquérito que eram pedidos aos administradores. Mereciam uma nova visita, é de elementar justiça. Reconheça-se que estes trabalhos de Edmundo Correia Lopes têm um sabor de novidade, põem mesmo em cheque os trabalhos de caráter racista que era frequentes em certas escolas antropológicas da época.

Um abraço do
Mário


Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca (1)

Beja Santos

Tem-se aqui repetidamente falado da publicação O Mundo Português, da Agência Geral das Colónias, apresentava-se como revista de cultura e propaganda, incluía discursos das figuras gradas do Estado Novo, artigos de divulgação histórica, pequenas reportagens e até ensaios. Figuras importantes do modernismo português como Stuart, Bernardo Marques e Diogo Macedo, emprestaram a sua colaboração ao nível gráfico. Entre Maio e Novembro de 1943 apareceu em O Mundo Português um conjunto de artigos sobre a etnia Manjaca assinados por Edmundo Correia Lopes. Encontramos no Google os seguintes elementos sobre o autor: Edmundo Correia Lopes (1898-1948), filólogo e etnógrafo, distinguiu-se como estudioso africanista, e desde cedo a cultura das colónias portuguesas despertou nele um profundo interesse. Formado em Letras, publicara já um repositório de música tradicional, fruto do seu apego à cultura popular, quando embarcou para o Brasil em 1927 e se fixou no Rio de Janeiro e em São Paulo, tendo percorrido Pernambuco, o Ceará e a Amazónia. Faleceu no arquipélago dos Bijagós, onde integrava uma missão etnográfica ao serviço do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

Vamos ressaltar alguns dos aspetos mais interessantes do seu trabalho.

O autor reconhece que não foi bem sucedido com o estudo da língua dos Bijagós, e aproveitando a vinda a Lisboa de um grupo de Manjacos, sentiu-se atraído pela sua cultura e civilização, e daí o punhado de notas etnográficas decorrentes da sua investigação. Oiçamo-lo: “Que eu não tenha podido encontrar uma linguagem dos Manjacos expressões próprias para designar Norte e Sul, que os Mandingas designam “lua à direita e lua à esquerda”, deve-se à perda de memória dos meus informadores ou corresponde a uma deficiência da cultura? Que “dívida” empregue, do mesmo modo, uma expressão da nossa língua, a ponto de que a forma de depoimento nos pleitos da espécie levados ao conselho dos anciãos seja A deberul (devem-lhe) é caso para meditar. As dívidas não foram um presente novo da civilização. Existiam antes de 1914 (o ano de Teixeira Pinto), ocasionando até essa data a escravização dos insolventes".

“Ajuramentar”, “poder”, “mandar”, “coblar injudi” (receber indemnização) são expressões a que é difícil encontrar o correspondente vernáculo na linguagem falada pelos Manjacos que vieram a Lisboa. Para o autor dá-se como comprovado que as respostas linguísticas só poderão ser encontradas no estudo do meio. E termina o seu primeiro texto dizendo que o declínio das culturas negras na Guiné Portuguesa envolve toda a etnografia da colónia portuguesa pelo que o seu trabalho procurará estudar a cultura dos Manjacos nas seguintes vertentes: língua; vida material; clã e família; folclore e vida espiritual.

Falando da língua, começa por observar:
“Embora os Manjaco sejam um grupo mais numeroso que os Papel, destes, por estarem em contacto há muito com os centros dos europeus (Bissau e Cacheu), proveio o primeiro conhecimento da língua e o seu batismo. Os Brame falam também um dialeto Papel. Tão irmãos de língua e de raça são os Manjaco dos Bayum que consideram, como dos Bahuula (Brame) que despreza; e eles próprios não reconhecem, segundo me parece, a designação de Manjaco na sua língua.
A língua Papel, hoje falada por mais de uma centena de milhares de nativos na nossa Guiné, pertence ao grupo atlântico ocidental, e cita vários cientistas para relevar que o Banhum, o Nalu, o Balanta, o Landumâ e o Bijagó estaria em oposição ao Felupe, ao Papel e ao Beafada". 
Volta a recordar que o seu contacto com a língua Bijagó tinha sido muito penoso e espraia-se em minudências filológicas, disserta sobre a identificação das vogais e das consoantes, prefixos de classe, conjugações, etc, e termina dizendo: 
“Posso ficar por aqui. Não procurarei fazer uma gramática, que muita incompleta e errada deveria ser. Para o fim a que estas notas se destinam, pode ser que elas sejam boas. Consola-me das dúvidas e possíveis erros os muitos dias de trabalho que poupei ao estudioso que queira voltar a atenção para uma língua cujo conhecimento, como o das outras da nossa colónia da Senegâmbia, se impõe já de há muito, como uma obrigação da cultura nacional. Por isso me apresso a publicar resultados obtidos mais pelo gosto da pesquisa e do exercício que obedecendo a qualquer outro propósito”.



O investigador é bastante mais acessível no texto que dedica à vida material. Começa por dizer que o prestígio da realeza Manjaca irradiou do regulado de Bassarel, aquele de cuja confirmação dependia a escolha de todos os outros régulos. Era também o único de cujo poder emanavam direitos de sucessão familiar. Era dado que o régulo de Bassarel era escolhido pelo irã. Falando da propriedade, diz-se que os Manjacos conhecem a propriedade coletiva e a propriedade individual da terra. O régulo não pode ser o dispensador da terra, senão em relação ao usufruto que tem dos bens da reinança. É uma espécie de arrendamento. Cultivam o arroz que com o azeite de palma é a base da economia dos Manjacos da Costa de Baixo. É trabalho dos homens lavrar a bolanha no princípio da estação das chuvas para a cultura do arroz, tocando às mulheres semear, o quintal é lavrado pelos homens onde semeiam mancarra, inhame, batata ou feijão. No registo que faz da habitação, cita Vítor Hugo de Menezes que fora administrador da antiga circunscrição civil da Costa de Baixo. Refere a casa coletiva dos solteiros, a existência no andar térreo de uma cozinha e de que existem casas de planta retangular comparáveis às habitações palafíticas dos Felupes, determinadas pela mesma razão geográfica dos nossos palheiros do litoral, podendo mesmo filiá-las na influência Felupe. Estas casas de planta retangular têm três compartimentos: o da frente é destinado a tudo quando não seja dormir ou não vá invadir a parte do fundo, onde ficam as divisões das camas; por baixo do teto, fica o celeiro onde são recolhidas as provisões. O teto apoia-se em estacas enterradas no solo. À direita da porta levanta-se do solo um pau pequeno para exibir em rude escultura a imagem de um antepassado.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18341: Historiografia da presença portuguesa em África (109): I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, São Tome e Principe, Angola), no vapor "Moçambique", de agosto a outubro de 1935... A iniciativa foi da revista "O Mundo Português", sendo o diretor cultural do cruzeiro o jovem Marcelo Caetano (1906-1980), então com 29 anos, e que só voltaria a estes territórios em abril de 1969, com 62 anos, mas já então na qualidade de chefe do governo