segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18380: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 30 e 31: Se forem para a guerra, acabem com os namoros!


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) >  Beldades de Fulacunda: bajudas biafadas

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita]

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. É vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa,, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura.  Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade. José Claudino da Silva,

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook: é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia



2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 30 e 31

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]]


30º Capítulo  > ENTRE FULACUNDA BULA OU BINAR

Dia 16 de Novembro de 1972 foi o dia do meu despertar. Confesso-lhes sinceramente que, neste instante, as lágrimas invadem os meus olhos. Precisei de muitos anos, 45, para reler o que vos vou relatar. O aerograma começa assim.

“Minha doce e amada Melly. Nem sempre me é possível calar que te amo loucamente, pois o amor é um sentimento estranho que subjuga e domina aqueles que dele dependem, por isso eu em dias como o de hoje sinto um frémito de emoções a percorrer-me o corpo.

Como te tinha dito veio uma avioneta para evacuar um soldado, mas de repente chegaram aqui seis helicópteros da força aérea. Dois pelotões nossos estavam no mato e soube que mais uma vez colaboravam connosco pára-quedistas e comandos, também estiveram envolvidos quatro caças Fiat e dois bombardeiros. Durante toda a manhã não se ouvia outra coisa que não fossem bombas a rebentar. o combate desenrolou-se a cerca de 10 quilómetros daqui. Não sei se houve mortos ou feridos pois não nos informam, talvez logo saiba na rádio Argel porque o locutor dessa rádio, sabe tudo que se passa na Guiné e o da nossa emissora não sabe. Por exemplo: Na estrada que liga Bula a Binar um grupo de “turras” que eles dizem são o P.A.I.G.C. (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) atacaram uma camioneta, mataram 10, feriram 14 e raptaram mulheres e uma criança. Os nossos dizem que eram civis os que morreram e na rádio Argel dizem que eram militares. Não sei em quem acreditar! Também os nossos dizem que matamos 18 “turras” e ferimos muitos e nem sei se é verdade. De concreto só o barulho dos aviões e das bombas a rebentar, já passaram umas horas e ainda tenho esse som nos ouvidos.”


De repente, o amor estava misturado com a guerra. Prezo-me porém de ter escrito muito mais vezes a palavra amor que a palavra guerra. Sem qualquer dúvida, o amor venceu.

No dia seguinte, na tabanca, houve “Manga de ronco” (em crioulo significa “muita festa”). Voltámos a rir ao som do batuque, em vez de chorar ao som das bombas.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Capa do jornal de caserna, mensal, "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


31º Capítulo  > SE FOREM PARA A GUERRA, ACABEM COM OS NAMOROS

O melhor mesmo é ir estudar.

O jornal da companhia ["O Serrote", dirgido pelo alf mil Jorge Loureiro Pinto, nosso grã-tabanqueiro] começou a sair e, embora eu escrevesse vários textos e versos a que chamava poesia, sabia que na companhia havia gente muito mais letrada que eu, especialmente alferes e furriéis. Destaco o alferes Pinto. (Como isso mudou! Hoje, qualquer sem-abrigo tem mais conhecimentos do que eles). Surpreendi-me por alguns dos meus textos serem publicados e, mais uma vez, tive a sorte de encontrar as pessoas certas. Professores.

Podia, se o quisesse fazer, adquirir o 1º e 2º ciclo liceal. Pois é! se pensam que em Fulacunda não se podia estudar, estão enganados. Os nossos oficiais estavam dispostos a ensinar-nos, depois iríamos a Tite fazer os exames.

Capa da revista "Plateia", nº 196, possivelmente
de janeiro de 1965. Cópia pessoal do nosso
grã-tabanqueiro  Manuel Joaquim
.
Era muito popuiar entre os militares
no ultramar, por causa do correio sentimental.-
Em  1965 custava 3$00 no continente,
4$00 no ultramar (A preços de hoje, 1,16 e 1,55 €,
respetivamente)
Em Tite, estava colocada a CCS. Era nesse local que permanecia o comando do batalhão [de artilharia] 6520.

Não sei se a ideia vingou, mas honro, neste pequeno capítulo, os meus superiores hierárquicos que o tentaram fazer. Lançaram em mim a semente que muitos anos mais tarde iria frutificar e,  se hoje tenho o 12º ano, o primeiro incentivo que recebi como adulto, para estudar, deu-se dentro do arame farpado que protegia Fulacunda.

Que desgraça! Zanguei-me com a namorada. Da maneira em que a troca de correspondência anda… Nessa altura, entre enviar e receber mediavam cerca de três semanas. Iria demorar muito tempo até fazermos as pazes.

A razão? Recebi uma carta a dizer-me que ela foi vista com outro. Nesses cinco meses eu já era, talvez, o 25º a ser trocado. Mas atenção! Também podia ser algum espertinho a querer engatá-la! A carta que recebi era anónima. De qualquer modo, fiquei muito fodido. É só ler o aerograma do dia 5 de Dezembro [de 1972]. Algumas frases soltas

“Maldita Guiné que me está a fazer perder tudo que mais amava  Lenta e persistentemente o tempo vai passando.  Para que eu possa viver em perfeito equilíbrio de ideias preciso de fazer coisas diferentes do habitual que actue sobre mim como um antídoto ou como uma espécie de válvula de escape. Porque hei-de estar com escrúpulos se ela não me quer? Vou pôr um anúncio na Plateia e escreverei a todas que me escreverem até pode ser que me esqueça que existe uma Maria Amélia”.

Foleiro. Foi muito foleiro eu concluir que 90% das mulheres que deixávamos, quando íamos para a guerra, procuravam noutros aquilo que de repente perderam.

Em todo caso digo:

“Se ela traiu o que de mais puro havia em mim. Também digo que o amor é mais forte que o ódio”.

Por favor, não me peçam para colocar aqui na íntegra o aerograma do dia 7. Deve ter sido a resposta mais disparatada da história da humanidade aquela que eu dei, a respeito de conter o desejo sexual, naqueles já cinco longos meses, sem ter uma mulher.

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Nota do editor:

ÚLtimo poste da série > 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18338: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 28 (O Ramadão) e 29 (A PPSH de tambor)... Ou um "estúpido" na guerra...

domingo, 4 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18379: Efemérides (270): no 4º aniversário da morte do nosso querido amigo Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014)... "O Chefe: cântico à maneira fula", poema de Artur Augusto Silva (1912-1983)


Lisboa, campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 7 de setembro de 2007 >

Neste rosto luminoso e fraterno, há carisma, afabilidade, determinação, coragem física e moral, visão estratégica  e capacidade de liderança,  seis qualidades pessoais que eu identificava e admirava no engº agrº Carlos Schwarz da Silva (1949-2014), mais conhecido por Pepito ("nickname" que vem dos tempos da meninice: segundo o irmão João, o Carlos tinha um herói, uma das figuras de banda desenhada do "Cavaleiro Andante", o Agapito, um nome com 4 sílabas, difíceis de pronunciar por uma criança, e que ele abreviava, chamando-lhe "Pepito").

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 18 de fevereiro de 2016 > A palmeira cresceu, está vigorosa, contrariamente a muitas que na zona foram atacadas pelo escaravelho da palmeira (Rhynchophorus ferrugineus Olivier) e morreram... Sempre que passo por ela, lembrou-me do Pepito e da sua face luminosa, e continuo a sentir o vazio da sua ausência.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Morreu há 4 anos, em 18 de fevereiro de 2014.  Era filho de Artur Augusto Silva (1912-1983) e de Clara Schwarz  da Silva (1915-2016). Filho e mãe eram (e continuam a ser) membros da nossa Tabanca Grande. O Pepito era líder, assumido por ele, aceite e respeitado por aqueles que com ele trabalhavam, nomeadamente na ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento. Conheci-o em 16/2/2006. Era um líder, muito mais do que um chefe. Aprendeu, seguramente como seu pai, a conhecer e a amar a cultura e a sabedoria dos povos da Guiné. Acreditou, até  talvez 1991, no projeto político do PAIGC. Em 1998, com a guerra civil, teve que recomeçar tudo de novo.  Era um homem despojado, do dinheiro, das honrarias, do poder... (*)

Era um grande amigo nosso, que nos continua a fazer muita falta, era uma extraordinária ponte entre nós, antigos combatentes, e o povo da Guiné-Bissau de hoje... Orgulho-me da sua amizade e vejo que a foto que eu lhe tirei, em 2007, ficará para sempre associada à sua memória... Era, em 2007,  um Pepito "luminoso", em grande forma, cheio de projetos e de esperança, aquele que eu fotografei à sombra da palmeira da minha Escola, que entretanto cresceu largos metros...em altura.

Há cerca de um mês atrás, o seu nome (e a sua memória) veio à baila, por causa da "relação especial" que ele teria com os felupes... Na realidade, não era exclusiva, essa relação: ele trabalhava com toda a gente, exceto com os 'esbirros' do 'Nino' Vieira ou os 'ninjas' do Kumba Ialá...  Trocámos alguns comentários sobre a sua ação em prol do desenvolvimento dos povos da Guiné, no poste P18236 (**) que reproduzimos mais abaixo. E o Cherno Baldé levanta uma questão interessante (mas incómoda): será que os guineenses o amavam e o reconheciam como guineense ?

Eu sei que ele tinha horror aos "demónios étnicos" que, qual caixinha de Pandora, se vez em quando dilaceravam a "sua" Guiné, a "sua" terra... Mas agora queremos apenas lembrar, para os mais novos, ou recém chegados à Tabanca Grande,  a data da sua morte, prematura, em Lisboa, em 18/2/2014 (***). E homenageá-lo com um poema do seu pai, Artur Augusto  Silva. É retirado, justamente, de um livrinho de que o Pepito foi um dos coordenadores, editado em Bissau, a título póstumo, em dezembro de 1997, pelo Institituto Camões, Centro Cultural Português da Guiné.Bissau.



O CHEFE
Cântico à maneira Fula



AO FERREIRA DE CASTRO


por Artur Augusto Silva


Que o som dos tambores inflame as minhas palavras;
que o grito dos guerreiros exalte o meu ardor
e a aprovação das mulheres
cubra este canto,
como as árvores cobrem as feridas dos heróis.

Como um tornado que passa pela floresta,
quebra os altos ramos
e faz tombar as grandes árvores,
assim Monjur passava entre os inimigos...

Como o raio que cai dos céus
e derruba a maior árvore da floresta,
assim Monjur vencia os poderosos.

Como a água tépida que escorre pelos corpos cansados
e faz reviver o coração,
assim Monjur governava o seu povo.

Com a rapidez da gazela das lalas
correu por toda a terra dos Fulas
o nome de Monjur
e Alá teve medo dele,
receou as suas vitórias e a sua santidade,
e resolveu que morresse.
Nesse dia o povo Fula
chorou o seu chefe,
e Alá dormiu descansado.

Alá, tu que és grande como a terra
e poderoso acima de todos,
tu que sabes o passado e o futuro
e tudo vês,
restitui-nos o grande chefe,
que te daremos doze carneiros brancos
e cinco bois,
e sete nozes de cola,
e um cabaço de almoço.


In: Artur Augusto da Silva - E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu poemas. Bissau: Instituto Camões, Centro Cultural Português, 1997, p9. 59-61.

2. Comentários ao poste P18236 (**)

Antonio Rosinha

A geração de Artur Santos Silva (1912),  dada a África, que se dizia popularmente de «africanistas», e que como ele apoiaram a candidatura de Norton de Matos contra Salazar, não viam o anticolonialismo como prioridade, nem como um fim a atingir. Eram essencialmente anti-salazaristas.

Havia em Angola muitos angolanos e cabo-verdeanos, como ele, onde ele também esteve no Governo de Angola, que tinham uma ideia muito precisa do que era preciso fazer e concertar nas colónias, mas não passava tudo de um sonho, naquele turbilhão que se apoderou de África no pós desgraça da II Guerra Mundial.


Cherno Baldé

Tambem sou admirador dos Felupes, do seu orgulho e tenacidade, em especial das suas dançaas tradicionais, mas achei muito exagerados todos esses adjectivos que não correspondem à verdade:

(i) melhores em quê? Pela sua capacidade sistemática de furtivamente matar e comer os viajantes que inadvertidamente se aventuravam nos seus territórios ?

(ii) mais puros ? Qual seria o critério ? Em Africa tudo é aparente, tudo relativo e surpreendentemente tão comum. Entre Banhuns, Diolas, Baiotes e Bijagós, todos eles vizinhos, o diabo que venha e escolha o pior ou o melhor, dependendo das circunstâncias e de que ponto de vista sáo vistos;

(iii) mais corajosos ? Na Guiné é uma tarefa extremamente difícil julgar esta faceta e por etnia. Todas as etnias tiveram seus heróis e gestas. Na Guiné todos reconhecem a bravura Felupe, mas dentro do seu minúsculo território de pântanos e tarrafes, pois nunca sairam destes limites.

E a afirmação de que foram as maiores vítimas da escravatura, parece-me sem fundamento e contraria à afirmação anterior de que seriam mais corajosos.

O engº  Pepito nunca escondeu a sua predileção pelos povos do litoral que considerava mais genuínos, mais puros, mais honestos, os Nalus, os Felupes, mas eram suas convicçoes pessoais q~ue não correspondem, necessariamente, à nossa realidade.A realidade é muito mais complexa.

(...) E, paradoxalmente, quanto maior era o amor que ele lhes dedicava, maior era o ódio e o desprezo destes povos do litoral para com os Europeus e tudo o que representavam. Apesar do imenso amor e sacrifício consentido em prol dos mesmos, não creio que estes tenham compreendido e o tenham reconhecido e aceitado como seu filho ou ainda como Guineense, filho da terra. A Guiné tem destas coisas, impossíveis de entender.


Luís Graça


Cherno, o Pepito era sportinguista e guineense como tu... Ele nem sequer tinha dupla nacionalidade... E levou uma bandeira do Sporting e outra da Guiné-Bissau na urna que foi diretamente para o crematório...

O amor aos felupes (e aos nalus) era igual ao dos fulas... Sabias que ele tinha uma ilha no rio Corubal oferecida pelo Cherno Rachid, de Aldeia Formosa ? E o pai dele tinha igualmente grandes amigos entre os "homens grandes" do teu povo...

Se calhar fui eu que adjetivei de mais... Devemos ser sempre cautelosos e comedidos no uso do superlativo relativo de superioridade quando falamos de povos e de atributos... Tens razão nas tuas críticas... Ao divinizar un,  estamos a diabolizar outros...

Cherno Baldé

Eu trabalhei com ele, lado a lado, quando foi Ministro das Obras Públicas (1999/2000), na altura eu era Director Executivo do Fundo Rodoviário, constatei de perto o seu patriotismo, seriedade e afinco no trabalho, homem simples que nunca usava gravata, que o incomodava. Ainda, eu era estudante em Bafatá e já o conhecia de nome em Contuboel, como Director do DEPA (1978/80). Não é isso que está em causa.

A questao é a seguinte: Sera que o seu sacrifício foi compreendido e reconhecido? Será que aqueles Guineenses "puros e autênticos" o reconheciam como seu filho, irmão, Guineense igual a eles?

Não esquecer que a primeira constituição guineense aprovada após a abertura politica (1992?) não reconhecia o próprio Amílcar Cabral como filho legítimo da Guiné-Bissau e com ele muitos e muitos outros, dos chamados "Burmedjos".

José Teixeira

Tive a felicidade de acompanhar de perto a vida do saudoso Pepito nos últimos 6 anos da sua vida. É verdade que ele tinha afeição especial pelos Felupes, no que respeita a seriedade, assunção de compromissos e como povo trabalhador. Tinha na região onde os Felupes são maioritários, vários projetos de desenvolvimento e a sua relação com eles era de Grande homem grande, mas dinamizava projetos independentemente da etnia, por ex. em Ingoré ( Balantas e Fulas) sem distinção de raças. 

No Sul o Rei dos Nalus assumiu-o como filho e era com este velho rei que ele se aconselhava, a quem chamava pai. Outro povo que acarinhou foi o Tanda, uma pequena etnia protegida pelos Fulas de Iemberem. 

Em suma,  promovia projetos de desenvolvimento onde as populações tinham carências e aceitavam trabalhar nos projetos em parceria, sem distinção de raças. Claro que com as tabancas onde a população não colaborava, o Pepito não avançava. 

Testemunhei vários momentos gratificantes de acarinhamento ao Pepito em diversas tabancas de predominância étnica diversa. Claro que centrava a sua atividade nas áreas mais afastadas dos centros de decisão, e de acessos mais difíceis, onde naturalmente havia mais carência, Como o Norte (predominância Felupe) e o Sul (Cantanhês) onde a predominância se repartia entre Fulas Balantas, Nalus e outros. Ele chegava à Tabanca, sentava-se à sombra dum mangueiro e ouvia os mais velhos, e as mulheres sobre as suas necessidades, sonhos e projetos, organizava-os e propunha parcerias de atuação fazendo-os comprometerem-se com os projetos, por exemplo as escolas EVA - Escola de valorização ambiental geridas pela a sua esposa Isabel. Acesso à água, melhoria das condições ambientais e de apoio à saúde.


3. Artur Augusto Silva (1912-1983): nota biográfica

(i) nasceu na Ilha da Brava, a 14 de outubro de 1912;

(ii) viveu os primeiros anos em Farim, na Guiné;

(iii) estudo em Lisboa, onde tirou a licenciatura em Direito (1938);

(iv) ainda estudante, fundou (e foi director de) a revista “Momento”, equivalente à coimbra “Presença”:

(v) ainda enquanto estudante, publicou vários artigos, fez jornalismo, organizou e promoveu saraus literários, exposições de arte moderna, conferências culturais;

(vi) em 1939, partiu para Angola, onde trabalhou como Secretário do Governador Geral, Manuel Marques Mano;

(vii) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós:

(viii) Em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(ix) foi também membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com Amílcar Cabral, de quem era grande amigo;

(x) participou, com esposa, dra. Clara Schwarz da Silva (1915-2016), e outras figuras da elite local,  na fundação do futuro liceu de Bissau, Honório Barreto;

(xi) fez estudos sobre os usos e costumes jurídicos de algumas etnias como os Fulas (1958),  Feluopes (1960) e Mandingas (1969);

(xii) visitou vários países africanos,  e foi defensor de presos políticos, nos início da década de 1960  em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, todos acusados de subversão,  teve apenas duas condenações;

(xiii) era seguido pela PIDE desde os anos 40; em 1966,  foi preso à chegada ao aeroporto de Lisboa; esteve cinco meses em Caxias sem culpa formada:

(xiv) libertado por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que o admiravam como homem de carácter, mesmo discordando das suas ideias políticas, foi proibido  regressar à  Guiné, ficando com  residência fiixa em Lisboa;

(xv) regressou à  Guiné-Bissau, em 1976, tendo sido convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça; também foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvi) faleceu em Bissau a 11 de julho de 1983.

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

18 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15765: Efemérides (216): O Pepito deixou-nos há 2 anos... Retenho a ideia que tinha dele em vida: um homem de grande coragem física e moral, um cidadão de princípios e de valores, um intelectual de fina inteligência e sensibilidade sociocultural, um engenheiro agrónomo e gestor com uma espantosa capacidade de trabalho, organização, determinação e liderança, um dirigente de arguta visão, um abnegado patriota, um amigo generoso e hospitaleiro, um bom pai e melhor avô, e sobretudo, um bom gigante com um coração de ouro... Enfim, um homem que, perante a adversidade, sabia que "desistir era perder, recomeçar era vencer"... (Luís Graça)

7 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...

31 de julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (12): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)


(**) Vd. poste de 21 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18236: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) -Parte XI: Mulheres e bajudas (3): homenagem à felupe (poema de Artur Augusto Silva)

(...) Nas muitas conversas que tive com o Pepito, ao vivo e por email, entre 2006 (quando o conheci) e o mês e ano da sua morte (em 18/2/2014), verifiquei que ele tinha, tal como o pai uma enorme admiração pelos felupes, o seu "chão" e a sua cultura. O pai era autor dum livro, etnográfico, sobre os felupes: Usos e costumes jurídicos dos felupes da Guiné / Artur Augusto da Silva.

(...) Para o Pepito, os felupes eram a melhor etnia da Guiné, os mais puros, os mais autênticos, os mais valentes, os mais leais... E é bom lembrar que foram, historicamente, as grandes vítimas do esclavagismo. Povo ribeirinho, era caçado pelos temíveis mandingas e vendidos aos negreiros europeus... O memorial da escravatura, no Cacheu, muito deve ao Pepito, que infelizmente já nºao viveu o suficente para assistir à sua inauguração, em 2016. (...) 

Guiné 61/74 - P18378: Convívios (841): XXXV Encontro Nacional dos ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá, 1964-1974, a realizar-se no dia 14 de Abril de 2018 na Tornada, Caldas da Rainha (Lima Ferreira, ex-Fur Mil do BENG 447)

XXXV ENCONTRO NACIONAL DOS EX-OFICIAIS, SARGENTOS E PRAÇAS DO BENG 447, BRÁ, 1964-1974

DIA 14 DE ABRIL DE 2018

TORNADA - CALDAS DA RAINHA


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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18340: Convívios (840): Celebração dos 45 anos após o regresso à Metrópole no próximo Encontro do pessoal do BCAV 3846, a levar a efeito no dia 11 de Março de 2018, no Cartaxo (Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º)

Guiné 61/74 - P18377: Blogpoesia (556): "Devasso minha alma...", "Moinho de vento", e "As regras...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Devasso minha alma...

Devasso minha alma aos raios luminosos deste sol nascente
E mergulho na profundidade da beleza.
Oiço Chopin na sua majestade sublime.
Abro todas as janelas, apesar do frio.
Entre a paz e a mansidão nas ondas deste mar de luz.
Desfraldo ao vento minhas asas e me baloiço como ave que despertou para a liberdade.
Minhas preces se elevam em oração aos céus.
Meu corpo fica etéreo como uma pena ao vento.
Avanço e brinco a dança das quimeras e da concórdia,
atrás das notas dum piano a arder.
Quem me dera saber cantar solfejos de oiro e diamante como retinem harmónicas as suas cordas tão vibrantes.
É luminoso este sol que faísca os olhos.
Meu peito quente arfa de consolação.
É o mês de Março que nasce da alvorada, anunciando a suave Primavera.
Pelos telhados brancos e copas nuas, cintilam os matizes que dormiam em invernosa sonolência.
Enquanto o piano como um gamo à solta, corre atónito pela encosta verde.
Bendito o sol que tudo alegra...

ouvindo Concerto nº 1 de Chopin, com Martha Argerich
Berlim, 1 de Março de 2018
7h51m
Jlmg

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Moinho de vento

Moro no topo do monte.
Perto das nuvens,
Vizinho do céu.
Me alimento do vento.
Brinco com ele.
Solto-lhe as asas.
Dou tantas voltas.
Fica sem norte.
Puxo a mó.
Moo o centeio.
Farinha tão branca,
Como a neve que cai.
Às vezes, eu choro,
Sozinho e sem vento.
Muitas, eu canto.
Feliz de contente.
Nasci um moinho,
Sou filho do vento.
Nada mais sei.
Bendigo a sorte
De morar onde moro
E ser o que sou…

Berlim, 2 de Março de 2018
19h44m
Jlmg

********************

As regras…

Apontam condutas.
Impõem deveres.
Ordenam o mundo.
Trazem a paz.
Reúnem as forças.
Remos dos braços.
Sulcam as águas.
Cortam as ondas.
Alcançam os fins.
Marcam o ritmo.
Abrem caminho.
Boas sementes,
Garantem bons frutos.
Nem demais nem de menos.
Sem elas o mundo
Se transforma num caos…

Berlim, 3 de Fevereiro de 2018
7h58m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18361: Blogpoesia (555): "Simplesmente um homem", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor do BCAÇ 3872

Guiné 61/74 - P18376: Historiografia da presença portuguesa em África (111): Gabu, terra sangrenta, palco de lutas entre mandingas e fulas, vista pelos olhos do grande repórter, Norberto Lopes (Diário de Lisboa, 27 de fevereiro de 1947)








"Diário de Lisboa", diretor: Joaquim Manso. Ano 26, nº 8710,  quinta feira 27 de fevereiro de 1947. O jornal avulso custava 80 centavos... Cortesia do Portal Casa Com,um / Fundação Mário Soares / Fundos: DRR - Documentos Ruella Ramos

Citação:
(1947), "Diário de Lisboa", nº 8710, Ano 26, Quinta, 27 de Fevereiro de 1947, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_22406 (2018-3-4)
Continuação das "crónicas" do grande repórter Norberto Lopes, que parte de Bafatá até Sara Gabu (, ainda não se chamava Nova Lamego)...

Tópicos:  (i) os burros que transportam mancarra para Batafá, logo de manhã: (ii) os saracolés que se dedicam à indústria da tinturaria; (iii) a tabanca de Dandum ( ou Dando) e o seu velho régulo Idriss Alfa Baldé; (iv) a decadência da outrora orgulhosa e aguerrida  tribo fula, povo de pastores e nómadas, devida à alimentação deficiente e ao sobreconsumo de noz de cola;  (v) a tabanca futa-fula de Chana e o seu régulo Madiu Embaló: referêndia ao grande Monjour (ou Monjuro, ou Monjur...), que morreu em 1944, aos 88 anos [Monjour Meta (Em)Baló, régulo do Gabu entre 19089 e 1927, segundo o antropólogo e nosso grã-tabanqueiro Eduardo Costa Dias]; (vi) a 'guerra de Turubam' [, que quer dizer em fula "a sementeira acabou"]; (vii) o compensador contrabando de ouro, o seu impacto na economia local, e os 300 ou 400 quilos de que continuam a entrar em Portugal, por ano;  (vii) o comércio e a "febre da construção na região; e, por fim, (viii) o fascínio desta parte de África: "é nos extensos plainos dioríticos do Gabu, de vegestação arbústica, de grandes clareiras desoladas, que vem terminar, na costa ocidental, o mundo muçulmano",















1. Norberto Lopes (Vimioso, 1900-Linda A Velha, Oeiras, 1989) foi um notável jornalista e escritor, tendo estado entre outros ao serviço do "Diário de Lisboa", onde foi chefe de redação, desde 1921, cronista e grande repórter, além de diretor (entre 1956 e 1967). Saiu do "Diário de Lisboa" para cofundar em 1967 o vespertino "A Capital" (que dirigiu até 1970, ano em que se jubilou).

Mestre do jornalismo na época da censura, transmontano de alma e coração, grande português, sempre se bateu pela liberdade de expressão, que considerou a maior conquista do 25 de Abril. Entre a suas obras publicadas, destaque-se:"Visado pela Censura: A Imprensa, Figuras, Evocações da Ditadura à Democracia "(1975). Aprendeu a lidar com a censura e os censores e a escrever nas entrelinhas, com engenho, manha e arte, como muitos jornalistas que viveram no tempo do Estado Novo,

Claro, conciso, preciso. objetivo e imparcial... são alguns dos atributos da sua escrita e do seu estilo como repórter da imprensa escrita, um dos maiores do nosso séc. XX português. Foi. além disso, um grande amigo da Guiné e dos guineenses. Tal como nós, também ele bebeu a água do Geba... Visitou aquele território pelo menos duas vezes. Esteve lá em 1927 e em 1947. Das suas crónicas de 1947,  onde não esconde a sua admiração por Sarmento Rodrigues,  transmontano cono ele, publicou o livro "Terra Ardente -Narrativas da Guiné" (Lisboa, Editora Marítimo-Colonial, 1947, 148 pp. + fotos). (*)

O livro de Norberto Lopes, "Terra Ardente - Narrativas da Guiné", já não é de fácil acesso, para a generalidade dos nossos leitores (e muito menos para os nossos amigos da Guiné-Bissau) mas em contrapartida as suas reportagens, publicadas no "Diário de Lisboa", podem ainda ser lidas no portal Casa Comum, da Fundação Mário Soares, graças ao legado de António Ruella Ramos, seu último diretor, É uma documentação fundamental da nossa história do séc. XX, e que ops nossos leitores têm o direito a conhecer.

Hoje reproduzimos, com a devida vénia, a nona crónica que ele mandou para o seu jornal, justamente sobre o Gabu (*),  Foi publicada em 27/2/1947, há 70 anos, a idade, em média,  por que rondam muitos dos nossos camaradas  que nos leem. (**)



Capa do livro de Jorge Vellez Caroço - Monjur: O Gabu e a sua História.  Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948,  269 pp.
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Notas do editor:

(*) 18 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17877: Historiografia da presença portuguesa em África (98): Bissau, em 1947, ao tempo de Sarmento Rodrigues, revisitada por Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"

(**) Último poste da série > 28 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18365: Historiografia da presença portuguesa em África (110): Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca em O Mundo Português, por Edmundo Correia Lopes (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 3 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18375: Os nossos seres, saberes e lazeres (255): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 17 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Foi uma das poucas viagens fora de Bruxelas, esta ida a Namur. Em Novembro de 1984, o viandante participou numa conferência em Veneza e aí se encetou uma grata amizade com Nelly Alter, fluente em 8 idiomas. Ao longo de décadas, sempre que se vinha a Bruxelas, havia um telefonema prévio para saber se Nelly por ali andava. Nos dias de sorte, houve encontros memoráveis com passeios, idas ao teatro, ao cinema, à ópera, o viandante beneficiou de um acolhimento extraordinário com mesa farta, tinha e tem sempre que trazer novidades da literatura portuguesa, Nelly é insaciável, retribuição mais feliz não pode haver que lhe trazer o último Lobo Antunes.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (5)

Beja Santos

O dia vai ser passado em Namur, capital da Valónia, conhecida pela sua famosa cidadela, uma cidade magnificamente posicionada na confluência dos rios Sambre e o Meuse, tem o viandante a dita de aqui regressar frequentemente, fez há mais de 30 anos amizade com Nelly Alter, que vive a escassos quilómetros da cidade, em Saint Marc. O viandante vai feliz na companhia de André Cornerrote, que muito aprecia o bom vinho e as excelentes vitualhas com que Nelly amesenda os amigos. Recordam-se outros passeios, outros encontros, Nelly não esconde também a sua satisfação em receber o amigo e o amigo do amigo.





É este o ambiente cativante em que se faz a receção. Programadora previdente, Nelly tem seis pontos para passeios pós-prandiais, André encolhe-se, precisa de fazer uma pequena sesta, pede redução do programa para metade. Negócio fechado. Bebeu-se do melhor Beaujolais, depois de uma excelente sopa de cebola e uma tábua de queijos, café e chocolate belga. Depois de um soninho reparador, começa a excursão por Namur. Primeiro prato forte, uma ida ao Museu de Arte Antiga de Namur, aparentemente modesto, mas acolhe desde 2010 uma das chamadas sete maravilhas da Bélgica, o tesouro do antigo priorado de Oignies, um conjunto excecional de 400 peças de ourivesaria do século XIII, único no mundo pela sumptuosidade dos materiais. O museu com opulências na ourivesaria, marfins, pintura, escultura em madeira e pedra. A visita tem um móbil claro, uma exposição sobre fumos, vem-se com o tempo contado, impossível nesta visita passar pelo gabinete de numismática, de enorme valor, ou pelo gabinete de estampas e pela biblioteca, enfim, faz-se um percurso e mostra-se alguma coisa que cativou o viandante.




Já estamos na exposição dos fumos celestes ou funestos, do século XII ao século XVIII, dir-se-á que é uma exposição muito contida mas está inteligentemente organizada, incorpora vasos de sepulturas, tabaqueiras, cachimbos, arte efémera, gravuras alusivas ao uso do fumo na relação do homem com as potências sobrenaturais, nas relações entre a terra e o céu. O fumo para perfumar, o fumo do tabaco e os usos nas armas e no fogo-de-artifício. Uma exposição de grande ecrã, sobre os aspetos religiosos e profanos, fumos para oração, para afugentar a cólera divina, fumo das resinas odoríferas, fumos dos fogos de artifícios. Enfim, uma exposição que é um espetáculo.




Segue-se uma “visita de médico” ao museu Félicien Rops para ver em relance a exposição Shakespeare Romântico, título atrativo mas insólito mas que se prende com o facto do genial dramaturgo ter inspirado autores românticos como Delacroix ou Moreau e que puseram na tela Hamlet e Ofélia, Romeu e Julieta, Otelo e Desdémona, Macbeth e a sua mulher, é uma exposição sobre estas figuras trágicas que se organiza a exposição. Na continuidade do romantismo, também os artistas simbolistas representarem os heróis shakespearianos como arquétipos das paixões humanas, caso de Constantin Meunier ou Alfred Stevens, aqui representados. E depois dessa tragédia pictórica em muitos atos, a expedição vai até à Antica Namur 2017, um pavilhão monumental que alberga riquezas de várias épocas e onde até se podem comprar desenhos ou gravuras de grandes mestres a preços não chocantes. Foi uma passeata e peras, com os olhos deslumbrados por quilómetros de tanta maravilha, os expedicionários regressam a Namur, regalam-se com jantar opíparo, adeus até ao meu regresso, pela calada da noite regressa-se a Watermael-Boisfort e desde já se informa que o programa seguinte é bastante animado, como se contará.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18349: Os nossos seres, saberes e lazeres (254): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18374: Em busca de... (287): Minha prima Gilda Pinho Brandão e outros membros da família, a que pertenço, e de que estou a fazer a árvore genealógica (José Pedro Caetano)


Gilda Pinho Brandão, nascida em Catió, de mãe fula e pai português, quando veio para Portugal, aos 7 anos, em 1969, para uma família de acolhimento, trazida por um camarada nosso, o Fur Mil João  Pina, a quem ela chama mano. Em 2007 pediu ajuda ao nosso blogue, para encontrar a família do pai, que é de Arouca. Afonso Pinho Brandão, comerciante, foi assassinado em 1962, em Catió.

Foto: © Gilda Brandão (2007). Todos os direitos reservados [ Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso leitor José Pedro Caetano

Data: 2 de março de 2018 às 20:38
Assunto: Gilda Brandão

Olá, Luís,

Espero que esteja bem.

Deparei-me com o seu blogue e vi um pedido  da Gilda Brandão [, procurando descendentes da família Pinho Brandão] (*)

Acontece que sou sobrinho de uma prima da Gilda e gostava de entrar em contacto com ela. Tentei enviar-lhe um email (para gilda@asanto.pt) mas recebi uma mensagem de erro. Por acaso o Luís não terá um outro contacto da Gilda que me possa facultar?

Encontro-me a construir a árvore genealógica da minha família. Neste sentido, não terá também alguma fotografia dos meus familiares Afonso Pinho Brandão e Manuel Pinho  Brandão, que estiveram na Guiné?

Obrigado,
José Pedro Caetano
[telemóvel, telefone e emails...]


2. Resposta do editor LG:

José Pedro:

Não tenho notícias, desde finais de 2015,  da nossa amiga e grã-tabanqueira Gilda Brandão. Mas vamos tenta localizá-la, através do seu último endereço (um gmail),  de que lhe dou conhecimento, a título privado...

Há também um familiar, aliás, filho do mesmo pai, irmão dela, em Bissau, o engº Carlos Pinho Brandão, que terá interesse em contactar... Foi colega, em agronomia, do nosso também grande e saudoso amigo Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014). Foi através deles os dois  que ela soube das circunstâncias da morte do pai, Afonso. Preciosas foram também as ajudas do nosso amigo, guineense, Leopoldo Amado, cujo pai era chefe dos correios de Catió, e cuja família convivia com os Pinho Brandão.

É uma família extensa, os Pinho Brandão... Ajudámos a Gildão Brandão [Brás, por casamento] a encontrar as suas raízes portuguesas, em Arouca... e em Bissau.

Ver aqui referências a ela  [Gilda Brás] e à família Pinho Brandão:

Obrigado, por nos autorizar a publicar esta mensagem... Assim, é possível chegar mais facilmente a ela e a outros membros da família, bem como camaradas nossos que estiveram em Catió (***).  Dou-lhe também o email do engº Carlos Pinho  Brandão, de Bissau. Boa sorte para a sua pesquisa.

O editor,
Luís Graça

PS - Infelizmente não temos, connosco, nenhuma  foto do pai dela, Afonso, morto logo no princípio da guerra. Ela conseguiu, em Arouca, pelo menos a certidão de nascimento do pai. E estava feliz por poder mostrar as suas raízes arouquesas à filha (**). Vou repescar mais informação no nosso blogue.

A Gilda faz parte do nosso blogue desde 25 de julho de 2007. Foi graças a nós, e com o incentivo do nosso saudoso Vítor Condeço, e as preciosas informações do Leopoldo Amado, do Pepito e do Carlos Pinho Brandão, em Bissau, que ela conseguiu encontrar os seus irmãos e outros familiares do pai.
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Notas do editor:

(* ) Vd. poste de 30 de maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1798: Região de Catió: Descendentes da família Pinho Brandão procuram-se (Gilda Pinho Brandão)


sexta-feira, 2 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Estamos em plena guerra, a economia e o sistema financeiro da colónia entraram em retração. Data de 23 de Setembro de 1940 um documento espantoso enviado para Lisboa sobre um serial killer que deixa bem claro que a ideia feita sobre a pacificação tinha profundas fissuras, os Papéis ainda sonhavam em liquidar o poder dos brancos na ilha de Bissau, andavam também acirrados com os Mandingas e o documento termina numa completa hilaridade, quando um grupo veio reclamar o corpo do régulo, vinham de camisas castanhas, o administrador mandou uns tiros para o ar e quis prender gente, julgava tratar-se de uma arruaça do tipo nazi, os tais camisas castanhas que espancavam opositores e destruíam os estabelecimentos dos judeus... enfim, um episódio de ópera bufa.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24)

Beja Santos

Aproximamo-nos da II Guerra Mundial, certos assuntos que irão ser versados na correspondência entre o BNU da Guiné para Lisboa prendem-se com o entendimento das modificações que foram ocorrendo desde a governação de Leite de Magalhães (1927-1931). Viu-se como a chamada “revolta da Madeira”, de Abril de 1931 teve ressonância na Guiné, os republicanos em 17 de Abril tomaram conta do quartel e de outras instalações públicas de Bolama. Fazemos uso do que escreve João Freire na sua obra “A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, edição da Comissão Cultural de Marinha, 2017. Leite Magalhães e alguns militares não aderiram, foram presos e metidos no navio Maria Amélia com destino ao Funchal e Lisboa. Em Bissau, os insurretos tomaram conta da fortaleza e da estação da TSF. Fizeram proclamações, expediram telegramas, tentaram mesmo, sem êxito, aliciar Cabo Verde para que aderisse ao movimento insurrecional. Isolados pela derrota ocorrida na Madeira a 2 de Maio, os revoltosos aceitaram negociar. É nesta atmosfera que o Major de Artilharia João Soares Zilhão chegou às funções de governador de colónia e toma medidas administravas interessantes, a Guiné passa a ter uma nova orgânica, os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições civis de Canchungo, Bissorã, Farim, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. Recorde-se que no ano seguinte entra em vigor a “Carta Orgânica do Império Colonial Português”. Em 1934, Soares Zilhão é substituído por Carvalho Viegas. Aparece o serviço militar dos indígenas a quem serão fornecidos um calção de caqui, um jaleco de caqui, uma camisola e um barrete. No limiar da guerra, o governo de Lisboa determinou que a Guiné tivesse três Companhias de Caçadores, uma Companhia de Engenhos (pequenos veículos motorizados a lagartas, para todo-o-terreno, abertos e geralmente armados de metralhadora) e uma Bateria de Artilharia. O investigador João Freire refere que se manteve rotina na atividade administrativa-financeira, lançaram-se novos impostos sobre o património, os orçamentos da colónia mantiveram-se equilibrados. É a época em que aparece o transporte aéreo, chegaram os hidroaviões da Pan-American Airways, Carvalho Viegas era um extremo defensor destas linhas aéreas internacionais, considerava-as decisivas para o progresso da colónia.

A correspondência de Bissau, neste tempo, afina por outro diapasão, cuidando sempre de quem chega e de quem parte, lançando alertas quanto aos aspetos económicos e recriminando o funcionamento dos serviços. Veja-se um documento confidencial datado de 1 de Agosto de 1939 que tem por assunto “Autoridades – Tribunal Judicial” onde reza o seguinte:
“O Tribunal Judicial vai de mal a pior. Sem juiz de carreira há quase dois anos, têm passado por ele vários juízes interinos que, como é natural, apenas fazem o menos que é possível fazer-se. Há dias um escrivão desrespeitou e insultou o juiz interino e este, para não se incomodar mais, pediu a demissão informando o governo da colónia da vergonha que suportara, mesmo dentro do tribunal.
Foi chamado o segundo o substituo que, vendo o que de vergonhoso se está passando e não querendo ligar o seu nome honesto ao suspeito e rápido andamento que se está dando a um processo célebre e escandaloso, só para o criminoso ficar sem castigo para os seus gravíssimos crimes, se negou a entrar em funções.
Foi então nomeado juiz interino o senhor capitão do porto o que, e com razão, Bissau achou simplesmente espantoso, por muitos motivos.
Mas, para cúmulo de tudo e para o delegado efetivo não intervir no tal processo, nomeou-se delegado substituto um cabo-verdiano aqui conhecido pelo “Pé de Cabra”, nome este que o classifica. Trata-se de um indivíduo ainda há pouco não nos deixava à porta a pedir um lugar de praticante e que não nos podia merecer atenção devido a não nos merecer confiança, o nome o dizia.

É isto que o tribunal da Guiné chegou e, dando este aviso, queremos dizer a V. Exas. que se nós ou qualquer cliente tivermos necessidade de recorrer à justiça é melhor esperarmos que ela exista e expulse a desvergonha que vai naquela casa.
O tribunal, tal como está, é por e simplesmente uma extensão do gabinete do senhor governador.
À hora de fecharmos esta, soubemos que as forças vivas de Bissau, cheias de repugnância pelo que se passa no tribunal, quiseram telegrafar a Sua Excelência o Ministro e pedir providências, mas resolveram nada fazer com receio de vinganças absolutamente de esperar neste regime de meio terror em que aqui se vive e para que já não há nenhum apelo, ao que parece”.

Os relatórios anuais dão informações preciosas sobre os mercados, convém não perder de vista que a filial de Bolama mantém-se igualmente ativa e dá as suas informações de acordo com o território que cobre, mas já não ilude a apagada tristeza para que foi encaminhada. As informações económicas são de quem está muito atento, vejamos alguns exemplos:
“Couros – Tem estado ativo o respetivo negócio e os preços são bons. Os couros das regiões de Bafatá e de Farim (Fulas e Mandingas) continuam a ser os de melhor preço. Os das regiões de Mansoa (Balantas) e de Canchungo (Manjacos) têm menor preço. Os de Canchungo são os piores. Couros ressequidos e mal tirados, regra-geral são os que vêm do território francês.

Borracha – Tem tido procura aos preços de 4$50 e 4$60 a dos Mandingas e 5$ a de primeira, ou seja a dos Beafadas (Quínara). O mercado de Lisboa deve começar a precisar de borracha das nossas colónias por ter talvez dificuldade de a importar das colónias estrangeiras, do Oriente. Interessou-se o mercado de Lisboa pela nossa borracha e para lá foi alguma boa. Mas a Casa Guedes colocou uma partida de má borracha mandinga e deve ter, por algum tempo, desacreditado a borracha da Guiné. É a eterna ganância de fazer fugir os escrúpulos.

Cera – Mercado parado. Pouca vai aparecendo, extemporânea, e é paga a uns 9$00 por quilo.

Coconote – Se bem que não se esteja em tempo de negócios ativos, têm-se feito alguns. Regra-geral, os detentores revendem à Gouveia que carrega a granel nos barcos da Sociedade Geral. Outras entidades não podem carregar por não haver sacaria e por haver dificuldades de compradores em Lisboa, que os do estrangeiro não aparecem. A Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, que trabalha na ilha de Bubaque, Bijagós, de aspeto português mas alemã na essência, está tratando de vender o seu coconote e azeite para a América, fazendo-os seguir – via Lisboa – pelo “Guiné”. Assim pretende dar saída ao grupo contra dólares que tem que por à ordem do governo alemão.

Purgueira – A “ferocidade” que o governo da colónia que vem aplicando aos detentores de terreno vulgo os concessionários, querendo por força que eles façam agricultura nesses terrenos, coisa que o governo da colónia não é capaz de fazer pelos seus erviços agrícolas e nas granjas onde se tem enterrado milhares de contos, obriga aqueles a defenderem-se, plantando purgueira a torto e a direito, pois é a única coisa que nasce e se desenvolve sem mais despensas nem cuidados além de se espetar a estaca no chão e colher dali a dois ou três anos”.

O gerente Virgolino Teixeira pretende manter Lisboa informado ao máximo mesmo quando os assuntos envolvem crime e animismo. Vejamos o documento enviado em 23 de Setembro de 1940 em que o assunto é marcadamente sensacionalista:
“Acontecimentos anormais”. E segue a informação:
“Por se tratar de factos passados, em parte, com gentio da nossa propriedade de Bandim, damos conhecimento do que se segue.

Há uns 10 dias, por uma circunstância de acaso, soube-se que tinha sido assassinado perto de Bissau um indígena que andava a vender panos pelo mato. Das averiguações, resultou-se conhecer-se que um outro indígena, ex-soldado do Corpo de Polícia desta cidade era o assassino mas, ao mesmo tempo, veio a saber-se que além desta morte, já tinha praticado, pelo menos, umas oito mais.
Preso, declarou então que procedia aos assassinatos por razões de ordem ritual, a instigação do balobeiro, ou seja o feiticeiro, do régulo da nossa propriedade de Bandim.
Declarou que ele tinha que matar um cento de pessoas, pouco mais ou menos, de todas as raças, incluindo quatro europeus. Com o sangue das vítimas, faziam então os régulos e os seus súbitos, por intermédio do balobeiro, oferendas ao Irã, seu Deus, para que este acabasse com o poder dos brancos na ilha de Bissau e tornasse a dar o poderio antigo dos Papéis da referida ilha.
Implicados em tudo, segundo o senhor administrador de Bissau nos informa, o régulo de Bandim e outro do Biombo e um chefe de Safim. Os dois primeiros foram presos e levados para o posto de Safim. O de Safim cortou a garganta para não falar. Está à morte. O de Bandim, no dia imediato à prisão, morreu. As autoridades dizem que teve uma congestão. O filho e outros indígenas contam que foi manducado (morto à paulada) pelos Mandingas do nosso ex-servente Borah, tenente de segunda linha e auxiliar do senhor administrador na perseguição e prisão dos culpados ou suspeitos. Vamos pela segunda versão”.

De acordo com este documento, havia um conflito latente entre Papéis e Mandingas. Mas outras surpresas estavam para vir, apareceram à porta do banco muitos indígenas de Bandim a solicitar, visto ser o banco o proprietário das terras onde moram, que se pedisse ao senhor administrador a entrega do corpo do régulo para se fazer o ‘choro’. O gerente de Bissau ficou intrigado por alguns desses Papéis estarem vestidos de camisas castanhas. Segue-se um episódio de uma quase ópera bufa. Apareceu o administrador que trazia um pedido do governador, ao ver aquela gente de camisas castanhas pensou que se tratavam de uma fação política, excitou-se e quis prender todos, os Papéis fugiram. Ficou um preso que esclareceu, estupefacto, que não havia nenhuma intenção de provocar motim pelo facto de usarem camisas castanhas. Não deixa de surpreender as apreensões do senhor administrador, sugerindo qualquer associação entre as camisas castanhas dos Papéis e porventura a tropa de choque dos camisas castanhas nazis…




Três magníficas imagens de um evento Felupe, propriedade da investigadora Lúcia Bayan, que prepara o seu doutoramento na história desta etnia. Vemos jovens lutadores rezando junto do seu Irã, uma cena de luta e depois um desfile, é uma apoteose de cor desta etnia djola, ciosa pela sua cultura e pelos valores da sua identidade.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 23 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18344: Notas de leitura (1043): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18356: Notas de leitura (1044): “Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído”, por Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira; Oficina do Livro, 2006 (Mário Beja Santos)