segunda-feira, 4 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vovô Zé (1): As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2019, enviou-nos uma bonita história sobre as andorinhas. Conversa entre avô e netos que nos devia sensibilizar a todas a preservar a natureza.


Histórias do vovô Zé

As nossas andorinhas

https://youtu.be/QrrawrmJkOM

Passados mais de setenta invernos, lá vinha de novo mais uma ansiada primavera. Das coisas boas do inverno pouco havia a recordar. Não fora a quadra natalícia, por excelência a dos dias de maior aconchego e afecto familiar, e apenas recordaríamos a chuva teimosa, o frio penetrante e os dias pequeníssimos daquela estação anual.

A primavera era anunciada com a chegada das andorinhas e o friorento vôvô-Zé, sempre ansioso, passava o tempo a olhar o céu na expectativa de as ver chegar. Ele sabia que todos os anos por volta do dia 20 de Março elas se instalavam no seu espaço, para dar início a mais um admirável ciclo das suas vidas. Para ele, até parecia que, com a chegada das andorinhas, lhe estava garantido mais um ano de vida. Nos últimos anos, talvez devido ao aquecimento global da Terra elas, por vezes, têm vindo mais cedo uns dias. Foi o caso daquele ano em que coincidiu a chegada da primeira andorinha, na última semana de Fevereiro, precisamente com o dia de mais um aniversário do avô Zé.
Mal os netos chegaram para a festa do aniversário, já o avô babado lhes contava a grande novidade:
- Já chegou a primeira andorinha, a exploradora! Acordei cedo a ouvi-la chilrear poisada no fio eléctrico que passa diante da janela do meu quarto. Ela não se calou enquanto não me viu feliz a dar-lhe as boas-vindas.
- E as outras, vôvô-Zé, quando chegam? – Perguntava o pequeno Dudu (de 6 anos). Logo ele a quem o avô costumava levantar várias vezes para, pasmado de curiosidade, espreitar os ninhos.
- Esta apenas vem cá dormir mas não todas as noites. Penso que vai ver se encontra locais disponíveis para os demais familiares. Alguns deles devem ser bem longe daqui. No ano passado, tivemos aqui cinco ninhos com cinco filhotes, excepto um que teve só quatro. Fazendo as contas, vemos que a exploradora vai ter muito que fazer. O que lhe vale é que devem chegar para a ajudar mais duas ou três dentro de poucos dias.


Mais interessada em pormenores, a Kika (de 9 anos), uma excelente aluna na escola primária, parecia querer enriquecer os conhecimentos que já possuía nessa matéria. E questionava:
- Mas, ó vôvô-Zé, assim já devíamos ver mais andorinhas. Onde andam as outras?
- Olha, tenho a certeza absoluta que temos descendentes daqui da nossa Casa dos Aidos, espalhados pelo norte de Portugal. Às vezes penso até que também estão na Galiza. Há já uns anos, fiquei a dormir numa pensão em S. João da Pesqueira e, de manhã, querendo admirar melhor aquela lindíssima paisagem duriense, subi a um ponto alto da povoação, que ficava dentro de uma vinha. Fiquei tão satisfeito que não queiras saber. Um pequeno grupo de andorinhas, a chilrear, fez círculos sobre mim, tal e qual como me costumam fazer aqui no quintal, quando chegam. Fiquei convencido de que elas me conheciam.

Entusiasmados com o tema, seguiram para o alpendre para verem se a andorinha lá estava. Até as gémeas Rita e Carmo, com três anitos apenas, lá seguiam os mesmos passos curiosos.
- Aquele ninho continua destruído. Já não me lembro o que aconteceu – Observou o Dudu.
- Foi devido a um ataque do milhafre. Não foi, vôvô-Zé? Lembrou a Kika.
- Sim, foi num dia em que ouvimos as andorinhas a gritar muito. Lembro-me que o Malhadinho saltou de repente dos meus joelhos e correu para a varanda. Ao segui-lo, ainda vi o milhafre a fugir. Descemos ao alpendre e encontrámos três filhotes novinhos, ainda com as penas pequenas. Haviam caído dois, ali, dentro da gamela do moinho eléctrico e um, aqui, no chão.

Ao ver a muita atenção dos quatro irmãos, filhos da Ana e do Abel, o avô continuou:
- Quando peguei nesses filhotes, os pais choravam e pediam muito para que eu tivesse muito cuidado com eles. Vi que um dos ninhos estava vazio, arranjei-o com as palhas mais finas e mais fofinhas, caídas do seu e coloquei-os lá dentro. E eles, caladitos, lá ficaram muito quietinhos. No ano seguinte, quando as andorinhas haviam chegado, fui vê-las pousadas sobre os arames, antes de decidirem começar a trabalhar. Algumas aproveitaram para me olharem atentamente, talvez para saberem se estava a ficar muito velho ou verem se estava doente. Porém, duas delas fugiram cheios de medo, a gritar devido à minha aproximação e eu afastei-me para não as incomodar. Já no jardim, vejo-me sobrevoado pelas quatro andorinhas que quase me tocaram. Para mim, fiquei com a certeza de que os pais já tinham explicado aos filhos que fora este velhote quem os salvara no ano anterior. Acenei-lhes com um gesto de simpatia e elas lá foram subindo aos esses e a chilrear de satisfação.
- Mas, ó vôvô-Zé, não foram três as que salvaste? – Observou a Kika.
- Sim. É natural que uma tenha morrido. Talvez, aquela que caiu ao chão. Também te digo que muitas não aguentam as grandes viagens que fazem até África. Por outro lado, são muitas as que morrem por comerem mosquitos envenenados por alguns produtos químicos que são espalhados para desinfecção dos campos e para limpeza das ruas. Antigamente só se usavam adubos caseiros e produtos orgânicos, biodegradáveis e bastante seguros.

Entretanto, chegaram as duas netas de Vila do Conde, filhas da Beatriz e do Zé-Tó. Após algum entusiasmo neste reencontro, já se ouve a Inês de 12 anos (uma intelectual em potência), a neta mais velha, a explicar:
- É verdade. Há dias a minha professora esteve a explicar várias coisas sobre esse assunto. Agora, procura-se gananciosamente a reprodução intensiva através de produtos sintéticos que até são nocivos para a saúde e para a natureza. Por sua vez, os nossos governantes, na ânsia de mostrar as ruas e caminhos limpos, também aplicam pesticidas desmesuradamente. Com as chuvas, dá-se o arrastamento desses produtos para os rios e fontes, provocando o seu envenenamento e, também, o desaparecimento dos peixes e de outros seres vivos úteis à natureza.

A irmã Francisca de 10 anos (a super- activa), sempre agarrada à Kika, também ajudou no tema e lembrou que na Casa do Couto, do avô David e da avó Maria José, de Barcelos, também existem ninhos de andorinhas.


Nesta Casa dos Aidos, onde nasceu a avó Gilda, ela lembra-se bem do alpendre com mato para fazer estrume e dos aidos do gado à volta, no rés-do-chão da casa. Talvez devido às moscas ali produzidas, esse tipo de casas de lavoura, sempre tinham ninhos por perto, debaixo das varandas. Agora, que o gado já não existe, nem os matos no alpendre (cimentado), as andorinhas continuam a vir fazer os seus ninhos. Pensamos que isso se deve ao seu sentido de posse, de defesa das suas tradições e da sua afectividade à casa dos seus antepassados. Normalmente, elas são merecedoras da nossa grande admiração e de toda a simpatia. Diz-se, até, que as casas com andorinhas são abençoadas. Muitas dessas casas já não as têm, porque alguém as perseguiu ou mal tratou. Pois, aqui, elas mandam. Sim, elas é que são donas desta casa. Se esta casa tem mais de duzentos anos, imagine-se quantas gerações delas, já cá passaram. E se elas vivem em média cerca de 7 anos, teremos mais de 30 gerações em equiparação, o que, transferido para a nossa média de vida de 70 anos, daria qualquer coisa como 2.100 anos!


Em Julho e Agosto, as andorinhas novas sobem para apanhar os ventos marítimos. É o período de preparação/musculação para poderem seguir a grande viagem continental. E à medida que a data de partida se aproxima, elas reúnem, para organizar essa grande viagem colectiva. Primeiramente reúnem aqui a sua família mais chegada, umas 25 ou mais e, depois, umas 80 a 100. Talvez, já com os familiares mais afastados, que vêm descendo do norte. Depois, juntam-se muitas centenas junto da igreja matriz, ocupando extensões enormes de fios eléctricos, durante cerca de dois dias.


O vôvô-Zé ainda acrescentou:
- Já me tenho levantado da cama para vê-las em reunião madrugadora, a planearem a sua longa viagem. É impressionante a sua educação e a disciplina democrática que elas nos mostram. Estão todas sobre os arames da antiga ramada e voltadas para o centro do alpendre. Só se ouve uma a “falar” que, por sua vez, “dá a palavra” a outra e… a outra. Um dia ouço algumas a “avisar” de que está alguém a espreitar. Mas, a chefe deve tê-las acalmado, informando-as de que eu não lhes faria mal algum. Fui buscar a máquina e quando procurava uma boa posição para as fotografar, elas partiram e devem ter suspendido ou terminada a assembleia.
- Mas, ó vôvô-Zé, por que é que elas vão embora, se nós não lhes fazemos nenhum mal?- Lamentava-se o Dudu.
- Porque com o frio do inverno não existem moscas e mosquitos e elas precisam de comer muitos. Por isso, vão para a África passar o nosso inverno e que lá faz muito calor.



Já voltado para os filhos, nora e genros que se juntaram, o vôvô-Zé comentava:
- Em Setembro, podemos continuar a sentir o clima agradável e a ouvir os vários pássaros teimando no prolongamento dos dias felizes do Verão. Porém, quando as andorinhas partem, parece que tudo muda e que já nada é como dantes. Sinto um ligeiro calafrio que se irá acentuar nos meses de inverno e que só me “ressuscitará” a partir de finais de Fevereiro, não por celebrar mais um aniversário mas, isso sim, por ver chegar de novo as nossas andorinhas.
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Nota do editor

Último poste da série de16 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19105: Estórias avulsas (92): Triste memória de guerra (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P19548: Notas de leitura (1155): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Na sequência das análises que se tem feito a um importante livro que é uma homenagem a um grande investigador, Patrick Chabal, dois autores apreciam as instituições da sociedade rural e a sua proverbial estabilidade que agora estão em mudança graças a vários fatores: a arbitrariedade dos preços do caju, a crescente procura de trabalho no exterior, a ameaça de segurança alimentar (entenda-se o risco e não haver comida para todos, até agora tem havido, a ameaça permanente é a subnutrição).
Outros dois autores dão-nos um quadro bem curioso do pluralismo religioso e da convivência interétnica, que permite a previsão de que não há condições para a presença avassaladora do terrorismo e fundamentalismo islâmico.
Por último, outro autor aborda a descriminação de género, um dos aspetos mais grotescos do incumprimento das promessas de Amílcar Cabral, isto quando a mulher combateu ao lado do homem, destemidamente, na luta de libertação.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (3)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

A introdução e a primeira parte, dedicada às fragilidades históricas, motivaram os dois primeiros textos.
Iniciamos hoje a segunda parte, centrada nas manifestações de crise. Marina Padrão Temudo e Manuel Bivar Abrantes retomam a questão da estabilidade social e do modo de viver rural. Tenha-se em conta o que outros autores já referiram: o caráter suave do Estado da Guiné-Bissau, a sua ineficácia no processo de elaboração de políticas, o seu gradual desfasamento fazer chegar as instâncias do PAIGC à sociedade rural, aos poucos a participação política foi-se restringindo; foram exíguos os investimentos na agricultura, soçobraram as medidas de nacionalização do import/export e a nacionalização das terras não passou de uma utopia. Para estes dois autores as sociedades rurais guineenses foram resilientes, fizeram frente aos desaires do Estado, resistiram às suas prepotências e irresponsabilidades com a política agrícola. Mas o conflito político-militar de 1998-1999 apanhou as sociedades rurais já na monocultura do caju, as deslocações maciças de população desestabilizaram as formas de viver, uma coisa é a pobreza com alimentação e mesmo focos de subnutrição, outra coisa é subitamente as tabancas do interior serem confrontadas com insegurança alimentar. Até recentemente, estes pequenos agricultores e os ponteiros conseguiam uma harmonia precária entre a comida de subsistência e a produção de troca e a exportação, nomeadamente o caju.

Está devidamente estudado que a intervenção colonial não desarticulou, dentro de certos limites, este precário equilíbrio nas sociedades rurais. O amendoim foi o produto de exportação por excelência entre 1846 e 1974. Houve igualmente exportação de arroz para a Europa, que se iniciou na década de 1930, a guerra de libertação inverteu esta tendência. Distinguem-se fundamentalmente os modos de sobrevivência alimentar dos povos animistas (com os Balantas e os Manjacos à cabeça) dos muçulmanos. Seja como for, é na diversidade étnica que se encontram formas complementares destes sistemas de modo de vida que integram cereais, coconote, óleo de palma, arroz, com uma correspondente economia de troca, onde pode entrar carne, pescas, frutos e outros produtos. A guerra de 1998 levou a que mais de 200 mil guineenses urbanos tenham procurado refúgio nos campos, houve que encontrar acolhimento e amortecimento ao choque de providenciar comida em tão grandes quantidades aos refugiados. Os autores abordam o fenómeno das pontas exploradas ao tempo em que houve financiamentos durante o processo de ajustamento estrutural, agravou as desigualdades sociais e criou uma nova elite política e financeira que, de um modo geral não pagou ao Estado os créditos concedidos pelas linhas generosas desse dinheiro vindo do exterior. Os autores fazem uma análise demorada das mudanças sociais que se estão a operar na vida comunitária cuja evidência é a explosão migratória, a perda da autoridade dos mais velhos e o crescente número de casamentos interétnicos. A monocultura do caju está a revelar-se um desastre, os agricultores estão cada vez mais dependentes de compradores que jogam com as baixas cotações do mercado internacional, a Índia está a tornar-se um feroz competidor e o mercado dos cereais é cada vez mais instável. As mudanças em curso estão a reduzir a solidariedade nas comunidades rurais.

Bem curioso é o artigo de Ramon Sarró e de Miguel de Barros sobre a convivência entre credos religiosos, entre crentes monoteístas e animistas. É crescente a presença da religião na esfera pública e o pluralismo de opiniões é uma moeda corrente. Os autores dão como exemplo a povoação de Enxalé onde há 8 diferentes línguas, uma mesquita, uma igreja católica, um templo protestante, neopentecostais e balobeiras, membros do movimento profético Kyang-yang, onde se misturam elementos simbólicos do Islão, da cristandade e da religião Balanta. Eles analisam historicamente o mapa religioso da Guiné-Bissau a partir das etnias, das práticas religiosas, para concluir que até ao presente têm funcionado com sucesso todos os processos de mediação entre convicções religiosas, acentuando que em pleno conflito político militar todos os atores se reuniram fazendo um apelo à paz.

O último artigo é da responsabilidade de Aliou Ly que analisa as relações de género na Guiné-Bissau destacando que todas as promessas de Cabral no campo da promoção da mulher têm sido ignoradas pelos sucessivos poderes, ao longo de 40 anos. A mulher continua marginalizada do sistema político, o seu contributo nas estruturas sociais e económicas está praticamente limitado ao trabalho braçal e a obedecer sem reticências ao homem, estão sub-representadas no sistema educativo, administrativo e nas instituições políticas de todo o tipo. Estuda o impacto da marginalização da mulher na Guiné pós-independente, a despeito de muitas licenciadas que se impõem no mundo dos negócios. As leis contra a discriminação de género não são respeitadas, é notória a resistência masculina como se mantêm inúmeras desigualdades de classe e étnicas que agravam a condição da mulher. Nos primeiros anos da independência ainda se falava nas heroínas como Titina Sila, referindo-se sempre com respeito mulheres como Francisca Pereira ou Carmen Pereira. O autor atribui responsabilidades a este fenómeno discriminatório logo à governação de Luís Cabral, teria começado aqui o círculo vicioso da desigualdade de género e da imposição da ordem masculina. Os homens emigram para os países limítrofes, as mulheres ficam com cada vez mais trabalho na tabanca e na vida familiar. O paradoxo de tudo é que Amílcar Cabral tinha prometido que se construiria um país com igualdade e melhor vida para todos.

O próximo e último artigo centra-se na diáspora guineense depois de 1998, as consequências políticas da crise e o aparecimento do Narco-Estado e Toby Green apresenta as suas conclusões.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19543: Notas de leitura (1154): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75) (Mário Beja Santos)

domingo, 3 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19547: Blogpoesia (610): "De tristezas e alegrias", "De bico no chão" e "Não sou marinheiro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Póvoa de Varzim - PasseioAlegre
Com a devida vénia a "O Poveiro"


1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


De tristezas e alegrias

Fazem parte de sua história, tristezas e alegrias.
Lisboa nasceu dum feliz encontro e ousadia.
Seduzido pela beleza, assentou arraiais aqui Ulisses, há muitos séculos.

Misto de saudade, audácia e de sonho.
Deixou o Mediterrâneo tacanho e lançou-se ao mundo.
Com vontade de regressar. Prometera.

Chegado ao oceano imenso, virou para o norte.
Sempre rente à costa.
Logrou um rio largo de que não sabia o nome.
Avançou nele.
Duas margens sumptuosas. Verdes.

Quando o viu alargar demais, receou ir dar ao mar.
Atracou e subiu a colina.
Que haveria de se chamar a Mouraria.

E, desarmado, ali se instalou com a comitiva.
Tão afáveis as gentes que vieram saudá-los que nunca mais tiveram coragem de se ir embora.
Excepto, Ulisses.
Para cumprir o juramento de amor à sua esposa. Penélope.
Assim nasceu Lisboa que deu ao rio o lido nome que ainda mantém.

Ouvindo Carlos Paredes

Bar Castelão em Mafra, 26 de Fevereiro de 2019
8h40m
Jlmg

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De bico no chão

Pareço um pião, rombudo,
às voltas, de bico no chão.
Ando e cirando.
Velas ao vento.
Moinho parado no alto do monte.

Não adianta clamar.
A chuva ou vem ou não vem.
Por mais que se reze.
A terra está seca.
Uma sede maluca.
Arde e não seca.

Se não fosse o passado
A dizer como é,
Morria de susto.

Às duas por três,
Rebentam os céus,
Se desfazem em água,
O chão floresce
E a vida retorna.

dia cinzento

Bar "Caracol", arredores de Mafra,
27 de Fevereiro de 2019
9h20m
Jlmg

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Não sou marinheiro

Não sou marinheiro mas vivo do mar.
Me cura seu sal.
Me adormece acordado.
Faz-me feliz.
Me põe a sonhar.

Não sou nada sem ele.
Me reviro de dor quando não o oiço bramir.
Companheiro de sempre.
Desde menino a chorar.
Minha Mãe me levava,
ao romper da manhã.

Dois mergulhos gelados
pelas mãos do banheiro.
Garantiam-me rijo
por um ano a viver.

Póvoa de Varzim, que saudades eu tenho.
Do Agosto-Verão, à beira do mar.

Aqueles rochedos medonhos,
revestidos de conchas,
Me guardam segredos,
nas vazias marés.
Mexilhões com fartura.
Nunca mais acabar.
Jantaradas de graça.
Como sabiam a sal.

Nunca fui marinheiro.
Como eu gosto do mar!...

Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19524: Blogpoesia (609): "Parecemos diferentes", "Tardes de Lisboa" e "Renovar...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19546: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte V: Catió, o quartel e a vida da tropa


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > O João em cima de Daimler, uma autometralhadora ligeira.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Messe de oficiais em Catió. Jogando King. O cor Matias supervisiona a jogatana.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Qartel: o armazém de combustíveis


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > O "artista"... bem "emoldurado"

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Com o Cabo Quarteleiro Mourão, responsável pelo armazém da Companhia


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Café do  libanês Jassi em Catió: quatro alferes, da esquerda para a direita: Sasso, Gonçalves, Cardoso e eu.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) >  Na esplanada do Café do  libanês Jassi.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Escrevendo para casa no meu quarto, partilhado com o cap Alexandtre-



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) >  "Fazendo turismo" nos arredores de Catió. O João Sacôto em primeiro plano, na base do bagabaga.


Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, de seu nome completo... Foi alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66). Trabalhou depois como Oficial de Circulação Aérea (OCA) na DGAC [Direção Geral de Aeronáutica Civil]. Foi piloto e comandante na TAP, tendo-se reformado em 1998.

Estudou no Instituto Superior de Ciencias Económicas e Financeiras (ISCEF, hoje, ISEG) . Andou no Liceu Camões em 1948 e antes no Liceu Gil Vicente. É natural de Lisboa. É casado. Tem página no Facebook (a que aderiu em julho de 2009, sendo seguido por mais de 8 dezenas de pessoas). É membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011.


2. Continuação da publicação do seu álbum fotográfico: no poste anterior publicámos as primeiras fotos da vila de Catió, que era sede de circunscrição.

Lembre-se que a CCAÇ 617 esteve em Catió de 1 março de 1964 até 22 de setembro de 1965, altura em que assume a responsabilidade do susector do Cachil, por troca com a CCAÇ 728. Será rendida pela CCAÇ 1424, em 16 de janeiro de 1966, preparando.se depois para regressar à metrópole.

Quanto à operação Tridente, o João esclareceu-nos o seguinte:

"(...) Ainda bem que perguntas, para não haver mal entendidos, que detesto. Nós tínhamos acabado de chegar a Bissau (éramos uns “maçaricos” muito inexperientes), a nossa companhia teve uma participação na operação Tridente muito reduzida, creio que unicamente com uma secção de apoio logistico, comandada pelo furriel Carlos Cruz, também nosso tabanqueiro." (...)

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Nota do editor:

Ýltimo poste da série > 28 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19539: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte IV: Catió: as primeiras impressões

sábado, 2 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19545: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXIV: Memórias do Gabu (III)



Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 > Foto nº 7 > A ‘Porta de Armas’ das instalações do Quartel. Junto ao local de entrada, uma legenda da BCAÇ 1856 (Nova Lamego, 1965/67).  Junto de mim (oficial de dia) o alf.mil inf Carneiro. 


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 > Foto nº 7A  > A ‘Porta de Armas’  do Quartel. O oficial de dia, Virgílio Teixeira, e o alf mil inf Carneiros, sentados num monumento erigido à  memória  do BCAÇ 1856 (Nova Lamego, 1965/67). 


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Janeiro de 1968 > Foto nº 10 > Uma casa nova e moderna com cobertura de telha. Como cidade em desenvolvimento, as casas faziam-se a bom ritmo, para o local.
Foto captada em Nova Lamego, em Janeiro de 1968.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  Dezenbro de 1967 > Foto nº 2 >  Casa de pasto, tasca, um local de comer, ‘ O Geraldes’. Pode ver-se o Geraldes, da direita para a esquerda, o 3º de camisa aberta, ao meu lado.  Do outro meu lado, o Sargento Parracho (acho que era de Aveiro) e tinha chegado da Madina do Boé, era da CCAÇ 1589, e lá vinha com os seus ‘autos de destruição’ para serem aprovados.  Os outros comensais são civis, comerciantes.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 > Foto nº 8 > Uma noite de festa da população local. Não me lembro que festa se trata, possivelmente por alturas do Natal, é noite e a foto foi feita sem o flash.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Outubro de 1967 > Foto nº 11 > Na esplanada do Clube do Gabu com o seu ‘Patrão’. Estamos ali num fim de tarde, o furriel Rocha, e um 1º cabo escriturário. O omem da camisa branca, cabo-verdiano, era o dono e patrão do estabelecimento, só não consigo lembrar-me do nome dele, era um gajo porreiro.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > 4º trimestre de 1967 > Foto nº 5 > No cimo de um monte bagabaga com alguns camaradas. Era uma foto imprescindível, num local de milhares de montes bagabaga.  No cimo sou eu e o soldado condutor ‘O Ermesinde’. Em baixo o Furriel Carvalho e outros.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 > Foto nº 6 > Rua principal num dia de chuva torrencial, um lamaçal.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Outubro de 1967 > Foto nº 12As nossas amigas e lavadeiras, na Fonte de Nova Lamego. Estas eram as nossas bajudas e as nossas lavadeiras, as melhores amigas, sem dúvidas.

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economismita e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde. (*)



CTIG/Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:

T061 – IMAGENS DO GABU – NOVA LAMEGO

PARTE III (*)

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19540: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXIV: Memórias do Gabu (II)

Guiné 61/74 - P19544: Os nossos seres, saberes e lazeres (310): Viagem à Holanda acima das águas (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Deixo-vos as imagens da visita às coleções do Museu Municipal de Haia, o museu é riquíssimo, logo o edifício, caso ímpar da arquitetura Arte Deco, o arquiteto H. Berlage deixou aqui uma das suas obras-primas.
Depois o acervo de Mondrian, as coleções permanentes, as exposições apuradíssimas. E havia a paga de um domingo sombrio que aqui se viveu em 1978, logo a inquietação que deixou Piet Mondrian, do alto dos então 33 anos ele julgava que os grandes artífices e feiticeiros das Artes Plásticas do século XX tinham as suas coordenadas máximas em Picasso e Matisse, ver assim Mondrian provocou sério abalo que chegou aos tempos de hoje, pois Mondrian estende pontos para a arquitetura, gera mais sobressaltos no cruzamento das linhas, das formas e das cores.
Mas nisto das artes, os gostos não se discutem.
E a viagem vai continuar.

Um abraço do
Mário


Viagem à Holanda acima das águas (14)

Beja Santos

Continua a visita ao Museu Municipal de Haia, desta feita a um núcleo expositivo que fala do passado nas praias do Mar do Norte. O viandante não resistiu a captar esta fotografia, é a espontaneidade e a alegria lavar pernas e pés, a moral não permitia mais, tempos depois viriam os fatos de banho da cabeça aos pés, mesmo os homens taparão o tronco. Mas naquele exato momento as mentalidades só autorizavam esta felicidade que a fotografia regista.





O que chama a atenção? São obras eivadas de naturalismo, são cores nórdicas, um tanto soturnas, mesmo no verão a claridade é caprichosa e arredia, veja-se aqueles céus no belíssimo quadro centrado no veleiro, vejam-se as crianças a brincar e tome-se em consideração a nesga de mar sombrio, no fundo do horizonte.


O átrio do museu é uma obra-prima de azulejaria, tem tanto de espaçoso como repousante, aqui os visitantes amesendam, lêem livros e jornais, preparam-se para novas acometidas, ver exposições, rejubilar com as coleções de valor extraordinário ou, pura e simplesmente, deleitar-se com estes pormenores da Arte Nova, olhem só para esta fonte um tanto espampanante mas de um cromatismo tão equilibrado, tão ajustado.


Como resistir a estes aracnídeos da Louise Bourgeois, uma escultura que nada tem de terrificante, pelo contrário são pernas elegantíssimas, contempla-se e venera-se o espantoso talento de uma grande escultora da nossa contemporaneidade.


Quando aqui esteve em 1978 o viandante apreciou imenso a reconstituição de um espaço desse estilo decorativo que só virá a ser substituído pela Arte Deco. Belíssima composição, uma integração de leitura acessível, há reconstituições de ambientes que nos lavam a alma. Esta é uma delas.





Primeiro, temos uma obra de Constant Permeke, um artista um tanto inclassificável, um espantoso alterador de formas, parece trabalhar em paralelo com a Arte Naif. E depois, estes espantosos quadros de Francis Bacon, uma espantosa figura que reformatou o figurativismo, há sempre figuras que se torcem e retorcem, por vezes rostos convulsivos, troncos e membros que parecem estar submetidos a jogos de espelhos, e muitas vezes cores sanguinárias contrastando com o cor-de-rosa onírico. Aqui esteve o viandante especado, não tem pejo em dizer que esta arte o deixa estarrecido, estas torções que parecem tão brutais para que a evidência salte à vista.


Estávamos num tempo em que o museu que se prezasse no Norte da Europa tinha que exibir Monet, Gauguin ou Matisse, e este museu de Haia não faltou à regra. O viandante vinha encadeado pelo Francis Bacon, saudou esta dança e despediu-se da bela coleção do museu de Haia.


E mesmo à saída não resistiu a mostrar estas formas revolucionárias, de alto a baixo, luz por todos os lados, linha e profundidade, uma genial simplicidade esquemática que tornou este museu um paradigma da interligação de todas as artes. Por isso é que Piet Mondrian tem aqui a sua casa-mãe.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19521: Os nossos seres, saberes e lazeres (309): Viagem à Holanda acima das águas (13) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19543: Notas de leitura (1154): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Caminhamos para o último punhado de documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU.
Hoje passa-se em revista as decisões tomadas quanto às propriedades do BNU na Circunscrição de Fulacunda, mais de 1% do território guineense, todas elas encravadas num Quínara em efervescente guerra, a Casa Gouveia doou o que tinha para uma cooperativa agropecuária, a governação do BNU, no final de 1973, quis fazer uma cessão a 15 anos. A guerra não parecia abrandar o ritmo dos negócios, o Governo criou o Hotel Nuno Tristão em Bissau, constituíra-se a CICER - Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné em fevereiro de 1974 já estava completamente paralisada, apareceu e desapareceu.
Veremos seguidamente um pouco da história da Sociedade Comercial Ultramarina, constituída em 19 de fevereiro de 1923 e que paulatinamente se transformara numa das jóias da coroa do Banco.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75)

Beja Santos

Desde muito cedo que o BNU na Guiné passou a ser detentor de dezenas de milhares de hectares, tornou-se um banqueiro com assinaláveis propriedades rústicas, centradas na região de S. João, Tite, Fulacunda e Buba, mais de 1% do território. Num documento de indiscutível importância histórica, os apontamentos de António Júlio de Castro Fernandes, administrador do BNU e um dos próceres do Estado Novo, elaborados depois da viagem que fez à Guiné de março a abril de 1957, é levantada a questão e preconizada uma gama de soluções para a rentabilização destas propriedades, refere Castro Fernandes nas suas notas a natureza dos solos, fala na organização de seis blocos de propriedades, invoca mesmo um estudo elaborado pelo engenheiro José Teles Ribeiro.
Este, a propósito da valorização das propriedades do BNU, escreveu o seguinte:
“Os terrenos do BNU integram-se na designação de ‘Propriedades Perfeitas’ o que, segundo os termos do regulamento de concessões, garante ao proprietário o domínio directo, o domínio útil e a faculdade de venda; em contraste com a concessão por aforamento em que o foreiro tem exclusivo direito ao domínio útil, pertencendo o directo ao Estado e revertendo o terreno a este desde que não esteja devidamente aproveitado no prazo de tempo para tal afixado. Daqui resulta o alto interesse e valor das propriedades do BNU e a necessidade de os valorizar ao longo dos anos, mediante uma ocupação agrícola gradual em vez de a deixar ir desvalorizando pelo abandono das mesmas à acção devastadora do indígena.
Essa desvalorização terá de assentar necessariamente na ocupação das melhores parcelas dos terrenos por culturas de carácter arbóreo, não só por serem as que permitem uma maior extensão ocupada com o mínimo de investimentos, mas também porque, ao contrário das culturas arvenses de cultura anual, se traduzem por uma ocupação quase definitiva.

Com base no conhecimento das condições ecológicas locais, consideramos preferenciais as seguintes culturas:
Caju – árvore bastante rústica, podendo ser semeada directamente no terreno definitivo, é a que se traduz numa ocupação mais económica, dada a inexistência de granjeios.
Coleira – Com elevados rendimentos por árvore, poderia ser usada na ocupação dos terrenos mais ao Sul.
Coqueiro e palmeira – Viável nos terrenos baixos e húmidos, onde seja possível a obtenção de água superficial ou subterrânea.
Cafeeiro – Embora ainda não definitivamente estudado, parece admitir-se como provável uma boa adaptação da variedade ‘robusta’.”

Anteriormente, o BNU encarregara um perito alemão, E. W. Boesser, a quem Castro Fernandes também alude, a fazer um estudo sobre as possibilidades económicas destes terrenos, mormente na região de Quínara. O seu relatório debruça-se sobre a natureza dos terrenos e o que eles podem produzir.
O que escreve tem bom recorte literário, ele procura enquadrar e pôr em consonância os dados naturais de solo, clima e planta:
“A ciência que se ocupa com estes factores, com as suas interdependências e influências mútuas é a fitogeografia, no seu ramo da ecologia vegetal; e quando se respeitam propositadamente as condições especiais que se constituem e põem, quando as actividades e finalidades económicas do Homem terão de ser relacionadas com aqueles factores básicos da vida vegetal, com os quais querem ser postas em harmonia e produtiva efectuação recíproca, é de falar em fitogeografia aplicada.”

É muito expressivo em tudo quanto escreve, está muito atento aos “rios” e à sua importância nas explorações, pensa logo na cultura do arroz e nas formas de mangal de alto fuste e equaciona as quatro entidades naturais da paisagem, falando das áreas marinas dos rios comenta os solos lodosos que podem ser transformados em terras de arroz.

É técnico, e tudo quanto redige tem essa matriz, mas a sua escrita é muito elegante, falando de rios, mangais, lalas, população vegetal, a organização da selva, solo dos matos secundários, linhosas secundárias, rematando: “Um facto muito remarcável é que em todas essas variantes de vegetação, desde a espessa floresta secundária, de aspecto quase virgem, até à mais clara savana arborizada, se encontram sempre ora numerosamente ora de modo mais disperso, em todo o caso porém em aparente prosperidade, palmeiras de óleo”.

E tece um enquadramento entre essa paisagem e o habitat:
“Embutidas naquela paisagem, variada em si, de floresta, bosque e parque, acham-se as pequenas roças dos indígenas de data recente que no decurso de poucos anos já serão reconquistadas pela savana e pelo mato. Somente nas proximidades das aldeias ou tabancas e especialmente nas penínsulas dos arredores de S. João de Bolama observam-se extensas áreas de cultura, continuadamente exploradas e por isso quase completamente desnudadas”. E em jeito de conclusão dirá que aqueles terrenos colinosos oferecem condições para a vida vegetal, não haverá qualquer impedimento essencial à concentração desejável das produções.

Atenda-se que nas reuniões do Conselho Geral do BNU ocorridas em 10 e 16 de maio de 1957, Castro Fernandes lembrou estes terrenos, que em conversações havidas com a Sociedade Nacional de Sabões, esta chegara à conclusão não estar interessada em tal compra, comentou detalhadamente o documento elaborado em 1954 pelo fitogeógrafo E. W. Boesserg, referiu que a Casa Gouveia estava a fazer em Bolama uma exploração agrícola e que o próprio Governador fazia constantemente apelos ao desenvolvimento. Fez comentários ao punhado de notas que enviara a todos os membros do Conselho, enfatizou a situação cambial da Província, manteve a sua enorme expetativa no florescimento da Sociedade Comercial Ultramarina e por fim versou assuntos sociais do BNU na Guiné como as moradias para os empregados, beneficiações no edifício da sede e a compra de dois bungalows destinados aos empregados do Banco na Praia de Varela.

A agricultura associada ao comércio passou a ser uma tónica dominante da presença do BNU na Guiné, em qualquer relatório ela virá a ser tratada com realço.
Veja-se o relatório da visita de inspeção à Filial de Bissau em 13 de dezembro de 1968, estamos no auge da luta armada:
“A agricultura, outrora a base da economia da Guiné, não pode hoje ser considerada como elemento efectivo do desenvolvimento desta Província. A situação criada à região levou o agricultor a concentrar-se nos grandes centros comerciais ou em tabancas onde efectivamente encontra a protecção das Forças Armadas mas, em contrapartida, depara com solos fracos, sem grandes possibilidades.
E ao natural afrouxamento das culturas tradicionais – milho, mandioca, sorgo e arroz – também não será completamente alheio o facto de, por razões de defesa, haverem sido chamadas largas centenas de homens para as milícias e que deixaram assim de prestar o seu contributo braçal à agricultura.
Não se torna por isso difícil explicar a necessidade em que se viu nos últimos anos a Província de, tradicionalmente exportadora de arroz, embora de quantidades reduzidas, passar a importar grandes quantidades deste cereal para sustento das populações.
As indústrias existentes, reflexamente, têm também na actual conjuntura uma muito menor influência na economia da região se atendermos a que a matéria-prima – a mancarra, o coconote e o próprio arroz – escasseou pelos mesmos motivos apontados.
Se dantes dizíamos que a economia assentava basicamente na agricultura, hoje podemos afirmar que a Guiné encontra relativo equilíbrio orçamental no comércio importador, que passou a desfrutar de grande prosperidade – melhor diríamos, a viver uma fase de autêntica euforia – na medida em que se lhe proporciona um maior poder de compra trazido pela presença dos grandes efectivos militares, de 1963 a esta parte. Esta situação, como não podia deixar de ser, provoca um desnível muito acentuado na sua balança comercial”.

O BNU, tal como a Casa Gouveia, vão gradualmente perdendo esperanças de pôr a agricultura dos seus terrenos a funcionar. E tomar-se-ão decisões drásticas, em 1973, ambos os empórios oferecem aqueles prédios rústicos para cooperativas.

No Arquivo Histórico do BNU encontra-se uma informação que tem a data de 9 de julho de 1973 em que toda a questão é repertoriada: a posse daqueles cerca de 44 mil hectares na Circunscrição de Fulacunda, propriedade do BNU desde 1927, por efeito de execução hipotecária; a tentativa de criar uma sociedade em Bissau, à qual seriam vendidas as propriedades, para devida exploração agropecuária, que, afinal, não chegou a constituir-se; a ocupação e controlo das propriedades por parte dos terroristas; em situação análoga se encontravam na Guiné cerca de 15 mil hectares de terrenos pertencentes ao grupo CUF que vieram a ser doados à Província em abril de 1973, para serem explorados pelas populações, em regime comunitário; o General Spínola conversara com a administração do BNU tendo ficado verbalmente assente que o Banco faria a doação dos terrenos; o General Spínola enviara agora uma minuta de escritura onde se sugeria uma doação ao Governo da Província com uma importância destinada à instalação da cooperativa agropecuária, que teria a designação de Cooperativa do Quínara; quem assinava a informação dava o parecer que apenas se deveria doar os terrenos e não conceder qualquer subsídio ou, quando muito, conceder um subsídio simbólico de 100 ou 200 contos e se a Cooperativa precisasse de auxílio do Banco, estabelecer-se-ia um crédito.

Em 8 de fevereiro de 1974 temos uma última referência a estas propriedades, numa documentação avulsa onde também se fala da CICER, da Companhia de Pesca e Conservas da Guiné e do Hotel Nuno Tristão em Bissau. Quanto às propriedades de Fulacunda, escrevia-se que o Conselho do Banco considerara, em 10 de outubro de 1973, ser preferível fazer uma cedência gratuita do direito de uso pelo prazo de 15 anos, atribuindo um subsídio de 10 mil contos. Quanto à CICER, aqui temos a primeira referência a esta sociedade fundada em 21 de dezembro de 1971, tendo como principais acionistas a Sociedade Central de Cerveja, a Companhia União Fabril Portuense, a Cuca de Angola e a Fábrica de Cervejas Reunidas de Moçambique, Lda. Para satisfazer diversos encargos com a construção da sua fábrica em Bandim, a CICER solicitou, em julho de 1973, créditos, o apoio do BNU no final desse ano de 1973 somava 54 mil contos. A Companhia de Pesca e Conservas da Guiné, dizia-se já em fevereiro de 1974, era um empreendimento que não ultrapassara a fase de arranque, a sociedade estava paralisada e sem meios para funcionar, o crédito concedido pelo BNU era de cerca de 8 mil contos. Quanto ao Hotel Nuno Tristão, era um empreendimento que o Governo da Província chamara a si, o previsto hotel constaria de um edifício de três andares, com 53 quartos e 7 suites, cujo custo estava orçado em 26 mil contos. Para cobertura da parte financeira, o Governo solicitara ao BNU um empréstimo de 20 mil contos a liquidar em 15 anuidades. O BNU concedia o empréstimo a liquidar em 24 semestralidades.

Caminhamos para o final da documentação avulsa, temos ainda pela frente o grande dossiê da Sociedade Comercial Ultramarina, dela se falará já a seguir.

(Continua)

Navegação à vela nos rios. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Tocadores de “Mutaro”. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Farol do canal de Pedro Álvares, Bijagós. Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Notas do editor

Poste anterior de 22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19516: Notas de leitura (1152): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19542: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XVI: Cirilo Bismarck Freitas Soares (Matosinhos, 1918 - Piri, Angola, 1965)






1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972. Foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar

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