(i) Luís Graça:
O meu pai, Luís Henriques (1920-2012), também andou "lá fora", a defender o Império, a Pátria, durante a II Guerra Mundial: Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43...
Cresci, fascinado, a folhear o seu álbum de fotografias, que andava por lá escondido numa gaveta, entre papéis velhos... Mas ele nunca me sentou ao colo e me explicou, tim por tim, por que terras e mares tinha passado, por que é que andou a "engolir pó" durante 26 meses, lá nessa terra distante, enfim, não me contou histórias desse tempo, ainda eu não era nascido...
Mas era eu que as tinha que adivinhar, criar histórias, mesmo se muitas das fotos tinham legendas, lacónicas no verso... Mas, como era puto, e mal sabia ler, não entendia nada...
Um dia tocou-me a vez de ir para a tropa e também de ir "defender a Pátria", neste caso, ainda mais longe, lá na verde e rubra Guiné, em 1969/71... Nunca falámos, nem ele me deu conselhos: olha isto, olha aquilo... Por pudor ? Sim, por pudor...
Luís Henriques (c. 1941) |
Passaram-se os anos até que, em 1980, comecei a interessar-me pelas minhas vivências da Guiné, publiquei uma série de escritos no semanário "O Jornal"... e por tabela fui "redescobrir" o velho álbum do meu pai, já desconjuntado. amarelecido, comido pela humidade...
Com o blogue, há 10 ano atrás, começámos a ter conversas de grande "cumplicidade", eu e o meu pai, como dois bons e velhos camaradas... Publiquei com ternura as fotos dele, em São Vicente, Cabo Verde, (as que restaram, ao fim de tantos anos...) e fiz diversos vídeos com entrevistas com ele, sobre esses tempos de "expedicionário"...
Criei, no nosso blogue, uma série "Meu pai, meu velho, meu camarada"... Tenho pena de, por razões de saúde, nunca ter podido levá-lo em viagem de saudade, de regresso, a São Vicente... Teimoso, ele nunca quis fazer uma artroplastia das ancas... A velhice (e o blogue) aproximou-nos... Tarde, mas valeu a pena...
Provavelmente, sem o blogue, ele teria morrido, como morreu, há dois anos atrás, sem eu ter sabido mais nada sobre os três anos e tal de vida que ele passou na tropa e na guerra, os seus medos, temores, amores, desamores. problemas de saúde, amizades, histórias de vida dos seus camaradas, etc.
Jorge Cabral, c. 1970 |
(ii) Jorge Cabral:
Um milhão de homens foram para África. Mais de 1 milhão de filhos. Talvez 2 milhões de netos...Que os jornalistas peguem no tema, acho bem. Só que, para o fazerem, devem estudar o Portugal dos anos 60 e perceber que guerra existiu e como eram os rapazes que a fizeram.
Luís Graça, Contuboel. junho de 1969 com Renato Monteiro, no Rio Geba |
Há quem não tenha nada para contar...e quanto ao medo, só os que viveram situações de perigo podem falar...Entre ser contabilista em Lourenço Marques e operacional no Guiledje, as diferenças são óbvias...
(iii) Luís Graça
(iii) Luís Graça
Além disso, Jorge, "um homem não chora"... Não se queixa, não grita, não tem dores, não tem medo, não tem angústias, não sente, não pensa, não faz perguntas... E, "se tem medo, compra um cão"!
Não era assim, no nosso tempo ? Nas nossas casas, nas nossas igrejas, nas nossas escolas, nos nossos quartéis, nas nossas empresas ?
Concordo contigo, o Portugal salazarento dos anos 60 não tem nada a ver com o Portugal de hoje... Quem tratava o pai por tu ? Além disso, para muitos dos nossos camaradas, sobretudo do meio rural, pai era pai-e-patrão... Para fugires à sua autoridade, ou emigravas ou te casavas, às vezes "à força" (, por exemplo, "raptando a noiva", no Alentejo)...
Não era assim, no nosso tempo ? Nas nossas casas, nas nossas igrejas, nas nossas escolas, nos nossos quartéis, nas nossas empresas ?
Concordo contigo, o Portugal salazarento dos anos 60 não tem nada a ver com o Portugal de hoje... Quem tratava o pai por tu ? Além disso, para muitos dos nossos camaradas, sobretudo do meio rural, pai era pai-e-patrão... Para fugires à sua autoridade, ou emigravas ou te casavas, às vezes "à força" (, por exemplo, "raptando a noiva", no Alentejo)...
(iv) Vasco Pires [, foto à esquerda, Ingoré, c. 1972]
Mas como vejo aconteceu com muitos, a "rolha" só saiu há pouco.
Não só deixei de falar da guerra com meus filhos, mas também com outras pessoas, durante mais de quarenta anos; o Blog que tirou a "rolha".
Quantos aos nossos escritos, acredito que poucos além de nós os leem, contudo, certamente, mais na frente, algum antropólogo vai dar vida aos nossos relatos.História dos "vencidos", já que os que não seguiram o nosso caminho em Portugal, assumiram o controle, me parece que até hoje; e as verdades e as mentiras quando repetidas, e ampliadas pelos mídia, tornam-se verdades(quase)absolutas.
Mas como vejo aconteceu com muitos, a "rolha" só saiu há pouco.
Não só deixei de falar da guerra com meus filhos, mas também com outras pessoas, durante mais de quarenta anos; o Blog que tirou a "rolha".
Quantos aos nossos escritos, acredito que poucos além de nós os leem, contudo, certamente, mais na frente, algum antropólogo vai dar vida aos nossos relatos.História dos "vencidos", já que os que não seguiram o nosso caminho em Portugal, assumiram o controle, me parece que até hoje; e as verdades e as mentiras quando repetidas, e ampliadas pelos mídia, tornam-se verdades(quase)absolutas.
O J. Cabral diz que os jornalistas "devem estudar o Portugal dos anos 60 e perceber que guerra existiu e como eram os rapazes que a fizeram. Há quem não tenha nada para contar..."
E digo eu que os jornalistas devem também estudar os rapazes que se furtaram à guerra, tanto os que tiveram a coragem de ir para o bidonville de Paris, como certa burguesia, tanto dos meios citadinos como provincianos, e até de certos filhos cujos pais lhe mandavam a mesada a partir das próprias colónias em guerra.
Estas burguesias tinham em geral uma motivação muito semelhante à esperteza nacional e cultural que é a eterna fuga aos impostos e contribuições... para os malandros do Estado!
Mas claro, essa fuga à guerra era pela precocidade política do jovem de 19/20 anos, não era por uma mesquinha "esperteza" à maneira nacional. Esses jovens tremendamente precoces é que precisam de ser bem estudados, porque gritaram tanto todos estes anos, que não tem dado espaço para se lhes fazer perguntas. E muitos têm andado de partido em partido, de governo em governo, de administração em administração de Empresas Públicas.
Essa precocidade também tem que ser bem compreendida, para não se perder a tradição.
J. Cabral, de facto há mais gente sem nada para contar, como tu dizes, por isso poucos aparecem a falar, era interessante um dia alguém tentar encontrar uma percentagem dos que não ouviram qualquer tiro...como eu, em 13 anos de guerra (,no mato e nos muceques de Angola e nas praias de Luanda).
(vi) António J. Pereira da Costa [,. foto a seguir em Cacine, c. 1968, com a enf pára Maria Ivone Reis]
Parece-me que esta questão, por si própria, levanta uma ainda mais importante: como é que, no fundo, lidamos com a guerra?
Parece-me que cerca de 50% de nós não temos a nossa relação com a "guerra" devidamente arrumada. De outro modo teríamos falado dela com desassombro com os nossos filhos e teríamos conseguido sensibilizá-los para o que ela foi e o que passámos/fizemos.
Não me parece que tivéssemos tido grande êxito nesta matéria. Ou estou enganado?
Eu já votei... No entanto, e a verdade seja dita, eu tive alguma dificuldade para votar numa das opções.É que actualmente estou mesmo quase a fazer 65 anos e já não dá para falar assim tanto com os filhos, pois que eles andam tão ocupados a não perder os empregos que nem tempo têm para grandes conversas e muito menos para conversas com o pai sobre o ex-Ultramar.
Eu até entendo. Quando eu estava no Ultramar, só queria que o tempo passasse para poder regressar ao trabalho activo e ao melhoramento da minha vidinha tanto em formação como em apostar numa carreira de trabalho.
A NI e o puto do Henrique Cerqueira, Nuno Miguel, na estrada de Biambe-Bissorã, c. 1973 |
Bom, pelo menos e para já, vou falando ao neto sobre a guerra do ultramar e mais especificamente sobre a Guiné. Pois que por acaso o pai dele (meu filho), até esteve na Guiné em criança. Mas quando me alongo de mais e me perco em "devaneios" sobre a Guiné, o "puto" começa logo a bocejar e desvia a conversa para os interesses dele. É que os programas escolares sobre a história ultramarina e em especial as guerras coloniais não se alongam muito e quanto a mim dando a entender existir alguma "vergonha" em aprofundar mais os conhecimentos da nossa participação na Guerra Colonial.
Foi a minha opinião.
Foi a minha opinião.
Amigo Luís, é um facto que " o baú está um pouco mais rapado" mas longe de estar esgotado. Continua a ser útil para todos os camaradas e ex-combatentes, de modo especial, aqueles que tardiamente se aperceberam desta ferramenta, que os pode aliviar das tormentas da guerra.
Falo na guerra aos meus filhos nos momentos em que os vejo interessados e receptivos a ouvir as estórias em que, na Guiné, muitos ex-combatentes foram protagonistas.
O convívio é indispensável, é o agrupar das tropas e já sentimos a sua falta. Vamos a isso Luís.
____________
Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
17 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13000: 10º aniversário do nosso blogue (9): Sondagem: resultados finais (n=129): mais de um terço dos respondentes nunca falou da guerra, ou só muito raramente, aos seus filhos... Comentário da jornalista e escritora Catarina Gomes: "não esperem por perguntas, digam filho, anda cá que eu quero contar-te uma coisa"
11 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12966: 10º aniversário do nosso blogue (3): Resultados preliminares (n=67) da nossa sondagem ("Camarada, com que regularidade falas da guerra, aos teus filhos?")... Mais de um terço admite que nunca falou ou raramemte fala, da guerra, aos seus filhos...
(**) Último poste da série > 18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13006: 10º aniversário do nosso blogue (12): Faz hoje 2 meses que o Pepito nos deixou... Em sua memória reproduzimos aqui um vídeo de 2012, em que ele relata, com humor e boa disposição, uma das cenas de violência de que foi vítima, na sua casa do Quelelé, ao tempo de Kumba Ialá (c. 2000)...
17 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13000: 10º aniversário do nosso blogue (9): Sondagem: resultados finais (n=129): mais de um terço dos respondentes nunca falou da guerra, ou só muito raramente, aos seus filhos... Comentário da jornalista e escritora Catarina Gomes: "não esperem por perguntas, digam filho, anda cá que eu quero contar-te uma coisa"
11 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12966: 10º aniversário do nosso blogue (3): Resultados preliminares (n=67) da nossa sondagem ("Camarada, com que regularidade falas da guerra, aos teus filhos?")... Mais de um terço admite que nunca falou ou raramemte fala, da guerra, aos seus filhos...
(**) Último poste da série > 18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13006: 10º aniversário do nosso blogue (12): Faz hoje 2 meses que o Pepito nos deixou... Em sua memória reproduzimos aqui um vídeo de 2012, em que ele relata, com humor e boa disposição, uma das cenas de violência de que foi vítima, na sua casa do Quelelé, ao tempo de Kumba Ialá (c. 2000)...