1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de hoje, 20 de Julho de 2014:
A propósito do texto do Francisco Baptista, espelhado no post 13420, sob o tema Lançados no mundo sem motivo nem explicação... difícil de levarmos a vida a um final digno*.
Viva Carlos!
Hoje venho a terreiro sob aquele pretexto em epígrafe.
Se achares bem, podes publicar esta mensagem, que pretendo uma espécie de contraditório, suave, mas a lançar dúvidas sobre as soluções entretanto vividas que conhecemos, e que alguns persistem em elevar à condição de verdades incontestáveis, naturalmente, com o inconfessado objectivo de fugirem a julgamento.
E se antes era a pobreza franciscana de uma super-estrutura arrogante, isolada, feudal e totalitária (chegou ao poder pelo movimento da "Ditadura", não escondia a estratégia), segue, ainda, o período da rebaldaria pseudo-democrática, que, provavelmente, dentro de poucos anos, vai reduzir o valor da minha pensão, para uma quantia inexpressiva e próxima da pobreza, afinal, mais condizente com o estado da nação. Mas continuo a ouvir o "lá vamos, cantando e rindo", enquanto continuarem a emprestar-nos (até que gerações?) para importarmos todos os bens necessários às nossas necessidades, e às que só alimentam negociatas, offshores e vaidades.
Após este género de intróito avisador, refiro que o Francisco Baptista voltou a brindar-nos com novo texto muito bem escrito e revivalista. Recorda com a facilidade das caracterizações feitas, uma espécie de espírito de aceitação, se assim puder dizer, necessário para nos convencer a combater pela pátria, nas condições de fragilidade que conhecemos.
Eu só fui incorporado em Janeiro de 69, mas antes percorri algumas direcções rurais do país, e lembro-me de ver muita gente que parecia não ter outra roupa para além da coçada que envergava, nem dispor de casa com as modernices de casa-de-banho, nem frequentar a escola com regularidade (apesar do ensino obrigatório, como hoje), nem dispor de apoios sociais institucionalizados. Por essas razões (ou como prevenção para elas), as famílias rústicas eram grandes e funcionavam solidariamente entre si. Só a título excepcional, não eram provenientes das elites os estudantes universitários. Outros, provinham dos seminários, tal como o "botas" inspirador.
O Portugal ultramarino era igualmente tão estagnado economicamente, e atrasado socialmente, quanto a metrópole, pobre, inculta, e atrasada no cotejo com os países próximos. Mas em África o calor permite a dispensa de agasalhos, e essa estranheza fazia-nos considerar aqueles pobres tão pobres, coitadinhos, que não se vestiam. O que havia era diferenças de circunstância, e contavam-se as estórias mais fantasiosas.
Nas colónias, os escassos "colons" (termo importado pelo Rosinha, mas com duvidosa correspondência na generalização), não podiam ser confundidos com os verdadeiros colonizadores, o que conferia algumas particularidades aos territórios sob administração (não o domínio) português. Os primeiros, fazendeiros e cantineiros penetravam no mato e fizeram de "bandeirantes" nas extensas áreas de Angola e Moçambique, muitas vezes constituíram família com mulheres indígenas, e constituíam a única ligação a um arremedo de civilização e à administração pública; os segundos, correspondiam aos dignatários do Estado e aos representantes das companhias que exploravam os recursos locais, minerais e agrícolas. Já os representantes das empresas de importação e exportação, pela natureza de funções, apareciam como cosmopolitas. Para estes últimos exercerem o predomínio sobre os primeiros, havia leis descricionárias, que também afectavam os poucos brancos nascidos em África. Brancos que brincaram, estudaram e trabalharam com pretos, com quem partilhavam e mantinham boas relações. Ou conduzir o camião carregado de café ou sisal, já seria manifestação de arrogância colonizadora?
Com o dealbar da guerra, acentuou-se a emigração para as colónias, com destaque para os milicianos que tinham acabado as suas comissões, e foram seduzidos pela riqueza local, o desenvolvimento, as oportunidades, e o modelo de vida informal. Assim, atrevo-me a referir que a maioria dos brancos não colonizaram, antes, integraram-se nas sociedades urbanas cujos serviços asseguraram as necessidades da crescente população, tanto no público, como no privado. A distinção relativamente à maioria da população, resultava das qualificações e remunerações correspondentes, como em qualquer parte do mundo. Mas os autóctones que, cada vez mais, exerciam as mesmas funções, ganhavam o mesmo sem discriminações, com as mesmas diferenças em relação à massa de que provinham. A população harmonizava-se com diferenças sociais equivalentes às da metrópole, mas, no geral, com relacionamentos muito naturais, até amistosos.
Não posso, por isso, confundir as formas de meditação monásticas com dependência de princípios dogmáticos (aceitação tácita e sem contraditório possível), com a inventariação desapaixonada e despreconceituada dos factores de condicionamento ou de expansão social (até certa altura muito parecidos com os que caracterizavam a sociedade metropolitana, com uns poucos ricos e influentes, com outros atraídos pela emergente sociedade urbana, e com muitos outros que, agricultores, pescadores, ou proletários, com as dificuldades raiavam nas margens da pobreza). Aquela nova forma de vida exigia romper com a dependência legislativa, económica e administrativa da metrópole, o que equivalia ao cometimento de um pecado, não necessariamente mortal, pelo que, convenço-me, em Abril de 74 já se davam passos seguros e sistematizados com vista à autodeterminação. Os 3 dês do programa do MFA, Democratizar, Desenvolver e Descolonizar, como pode constatar-se, não passaram de intenção para justificar o golpe, e os capitães envolvidos, com um
bouquet de oficiais generais e graduados em generais a "dar-lhes" "credibilidade", revelaram total incompetência e aspectos pessoais altamente negativos, do que resultou a trágica descolonização.
O meu gosto pela história ganha foros de fascínio no que respeita à presença dos portugueses em África, e à capacidade de adaptação e relacionamento evidenciada desde os pioneiros.
Agradeço ao Francisco a oportunidade que me deu para expor o meu ponto de vista, e agradeço a paciência dos que leram.
Para o Carlos, para o Francisco e para o Tabancal, envio um abraço fraterno
JD
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Notas do editor
(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2014 >
Guiné 63/74 - P13420: (In)citações (68): Lançados no mundo sem motivo nem explicação, estamos sós no cumprimento desta missão difícil de levarmos a nossa vida a um final digno (Francisco Baptista)