1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2016:
Queridos amigos,
Haja luz e não haja inundações, Veneza oferece sempre esplendor, suscita todo o espanto porque oferece sem reservas a sua magnificência, a singularidade de uma cidade implantada em lagoas, uma arte que nasceu da tradição bizantina e que deu à humanidade pintores excecionais como Bellini, Mantegna, Carpaccio, Lorenzo Lotto, Ticiano, Tintoretto, Tiepolo, Francesco Guardi e Canaleto. São as pontes, o constante sobe e desce, as sonoridades dos barcos a vapor e os táxis aquáticos, as cantilenas dos gondoleiros, os turistas a ir ou a regressar do centro nervoso da cidade, S. Marcos.
Era uma estadia de pouco mais de dois dias, preparei-me para o programa mais solto do mundo, nada de compromissos e tudo quanto viesse à rede era peixe.
Um abraço do
Mário
Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (9)
Beja Santos
São dois dias inteiros na Sereníssima, não dá para encher a cova de um dente, há que ser parcimonioso no que se pretende ver, visitar, calcorrear; acresce que chegou o calor e dá para perceber logo na estação de Santa Lucia que Veneza entrou na enchente, dá mesmo para pensar como é que esta cidade é transitável no Verão. A escolha do aboletamento, os preços moderados, leva o viandante a fixar-se num lugar que se chama Fondamente Nuove, em frente à ilha-cemitério de S. Miguel, felizmente com estação à porta para no final da jornada partir diretamente para o aeroporto de Marco Polo.
Portanto, nada de tentações de visitar repetidas vezes a Basílica Bizantina de S. Marcos ou o Palácio dos Doges, nada de andar com guia na mão para entrar naquelas portentosas igrejas barrocas onde se admiram Veronesos, Tiepolos, Tintorettos e Tizianos; igrejas que dão por nomes muitos belos: Santa Maria Gloriosa dei Frari, com obras de Bellini e Tiziano; Madonna della Salute, com a cúpula a dominar o grande canal; San Giorgio Maggiore, fronteira à Piazzetta. O viandante conhece Murano e Burano mas não conhece Torcello, na Laguna, está cheio de entusiasmo por rememorar alguns palácios do grande canal como Cà Grande, Cà Foscari, Cà d’Oro, Cà Pesaro… e assombrar-se com a fachada da Fenice, a magnífica casa de ópera. Fiquemos por aqui. Mal desembarcado, logo o enamoramento com a paisagem sempre desigual, sempre a antítese da monotonia. Sim, esta a Veneza que guardo no coração.
Arrumados os trastes nas frugalíssimas instalações da casa dos Jesuítas, sem agenda organizada para saborear a arte veneziana, toca o viandante de encostar-se ao muro para ver o trânsito de gôndolas ou táxis aquáticos, com escassas horas de luz do dia pela frente, urge avançar pela Rainha do Adriático a caminho de S. Marcos, haja condições e um assento, e ali se fica especado a ver o movimento a partir da Piazzetta até à Praça de S. Marcos, que tem umas proporções tão delicadas. Há praças únicas, desde o Terreiro do Paço à Praça Vermelha mas dito com sinceridade a harmonia da Praça de S. Marcos é um dado perene para quem a contempla. Napoleão Bonaparte tinha carradas de razão.
O viandante volta-se agora para a basílica, já contemplou mil vezes o Campanile, quer tomar nota de alguns elementos da fachada. Leva um guia de Veneza na mão e não tem pejo em reproduzir o que ali se escreve sobre a basílica: em forma de cruz grega e encimada por cinco abóbadas enormes. Uma basílica que tem vindo a conhecer ao longo dos muitos séculos modificações. Olhou para os cavalos, hoje réplicas dos originais de bronze dourado que estão no interior da basílica; passeou-se demoradamente a ver mosaicos da fachada, não são todos tão antigos quanto se pensa, há ali um mosaico do século XVII onde se vê o corpo de S. Marcos a ser levado de Alexandria, escondido num carregamento de carne de porco.
Mais uma deambulação, desta vez o viandante especa-se frente a um conjunto de valor inesgotável, os Tetrarcas, grupo escultórico de pórfiro (Egito, século IV) representa Diocleciano, Maximiano, Valeriano e Constâncio: tetrarcas nomeados por Diocleciano para colaborarem no governo do Império Romano.
Por hoje chega, já foi uma dose cavalar à volta de S. Marcos, amanhã de manhã aqui se virá para ver o interior com algum preceito, a fazer horas para um jantar suculento, começa o desfastio de andar rua a rua. É nisto que uma tabuleta chama à atenção, aqui mesmo viveu e seguramente aprontou algumas das obras-primas que de vez em quando o viandante vai apreciar ao Museu Calouste Gulbenkian, o celebérrimo Francesco Guardi, que aqui também morreu. O viandante tem por ele uma enorme devoção. Artistas venezianos consagrados são Bellini, Mantegna, Lorenzo Lotto, Tintoretto, Veronese, seguem-se Francesco Guardi, Tiepolo e Canaletto, sem desprimor para este último, para o viandante é inimaginável Veneza sem a pintura de Guardi.
Anoitece, paulatinamente Veneza despovoa-se, os turistas concentram-se, seguir-se-á o jantar, e depois ouvir-se-ão os barcos a motor, mais ou menos trepidantes, os barcos-ambulâncias têm aquela sirene angustiante que nos afeta as entranhas. O viandante está consolado com estas horas de reencontro, veio sem pressa e bem gostaria de ir visitar o belo Museu da Accademia ou o Museu de Peggy Guggenheim. Bem se tentou fotografar a ponte do Rialto, a mais célebre das pontes venezianas, estava com tapumes.
Na casa dos Jesuítas, espera ao viandante uma cena canalha, às vezes o barato sai caro, são dois quartos servidos com uma só casa de banho, uma senhora russa esteve lá mais de uma hora no duche e outras serventias. Procurou-se um protocolo de funcionamento, impossível, a senhora, por sinais, deu a entender que só falava a língua de Tolstoi. Pelas 4 da manhã, nova barulheira na casa de banho, mais uma hora e tal de esfregação e barulho de secador de cabelo. O viandante perdeu a cabeça, gritou ou imprecou bem alto. Não resultou, repetir-se-á a farsa na noite seguinte.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16704: Os nossos seres, saberes e lazeres (184): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (8) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 16 de novembro de 2016
Guiné 63/74 - P16726: (De)Caras (52): Um bravo do meu pelotão, o 1.º cabo apontador Manuel Lucas dos Santos: evocando aqui uma delicada escolta a uma coluna que, em 16 de maio de 1973, foi do Pelundo a Jolmete resgatar 6 cadáveres (Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 3089, Teixeira Pinto, 1971/73)
Lisboa > Cais da Rocha Conde dfe Óbidos > 11 de outubro de 1973 > Regresso no T/T Niassa > Alguns dos bravos do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73) > Da esquerda para a direita, (i) José Eduardo Alves, (ii) Gonçalo Garcia Pedroso (condutor da viatura Daimler, aqui referida nesta crónica), (ii) David da Silva Miranda (1º cabo mecânico, de óculos escuros), (iv) Lino Pereira Barradas, (v) Manuel Lucas dos Santos (1º cabo, assinalado com um retângulo a verde, o protagonista da história que se conta a seguir, natural de Açor, Góis), e (vi) José Gabriel Caloira.
Lisboa > Cais da Rocha Conde dfe Óbidos > 11 de outubro de 1973 > Regresso no T/T Niassa > O resto dos bravos do pelotão, que acompanharam o seu comandante no regresso a casa: da esquerda para a direita, Manuel Teque da Silva, Ademar Peres Marques, Luís Soares da Silva e Fernando Cândido Silva.
Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Janeiro de 1972 > A “oficina” do Pelotão Rec Daimler 3089. É visível o 1º cabo mecânico David Miranda que fazia o "milagre" de manter as viaturas sempre operacionais. O pelotão chegou a ter duas ou três Daimlers, vindas da sucata de Bissau, para "canibalizar". Ao trabalho do Miranda muito ficou a dever o sucesso do Pelotão. O pelotão conseguia ter as cinco viaturas operacionais, do princípio ao fim da comissão, foi um ponto de honra para o seu comandante. Estavam equipadas com a metralhadora MG 42, e circulavam sem a torre giratória. O problema das Daimlers não era o motor mas o sistema de transmissão... A boa conservação das viaturas e das MG 42 era fundamental para a sua operacionalidade e fiabilidade...
Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Fevereiro de 1973 > O 1º cabo apontador Manuel Lucas dos Santos, no regresso de uma viagm a Caió
Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73)
Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Esta crónica chegou-nos à caixa do correio em 6 de junho passado. Faz sentido publicá-la agora, depois da edição do último poste relativo ao álbum fotográfico do autor, Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73).
É um texto inédito, escrito a pensar no nosso blogue, a partir da reconstituição de memórias do ex-1º cabo cav, Manuel Lucas dos Santos. Datado de junho de 2016, não faz parte dos textos (poemas e crónicas) do livro recente do Francisco Gamelas: "Outro olhar - Guiné 1971-1973" (Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp.+ ilust; preço de capa 12,50 €). (*).
Entenda-se também este texto como uma homenagem a todos os camaradas da arma de cavalaria (Pel Rec, EREC...) que alinhavam com os infantes em colunas como esta, a seguir descrita, delicada, não isenta de riscos e com momentos de grande tensão (**).
Nesta crónica há uma referência ao condutor Pedroso, o Gonçalo Garcia Pedroso (vd. foto acima), outro dos bravos do Pel Rec Daimler 3089. Iam duas Daimlers na coluna, uma à frente e outra atrás.
Segundo esclarecimento adicional do autor da crónica, e depois de voltar a falar com o Manuel Lucas dos Santos, ele confirmou a data e acrescentou o seguinte:
(i) estas seis mortes (civis ou na maior parte civis), foram contados um a um por ele;
(ii) resultaram de um ataque do PAIGC ao aquartelamento no momento em que população e militares assistiam a uma sessão de cinema ao ar livre;
(iii) o capitão da companhia de Jolmete foi depois transferido para a companhia africana (, a CCAÇ 16, ) que estava em Bachile...
O Manuel Lucas dos Santos, há uns largos anos, encontrou-se com o antigo capitão de Jolmete, num casamento, e tiveram ocasião de recordar estes tristes acontecimentos. Acresce ainda dizer que o troço Pelundo-Jolmete era "picada", não era alcatroado, e estava-se já no início da época das chuvas...
Nessa altura estava no Pelundo o BART 6521/72:
(i) mobilizado pelo RAL 5 (Penafiel);
(ii) partiu em 22/9/1972 para o TO da Guiné;
(iii) regressou em 27/8/1974;
(iv) esteve sediado no Pelundo;
(v) cmdt: ten-cor art Luís Filipe de Albuquerque Campos Ferreira.
Em Jolmete esteve a 3ª C /BART 6521/72 (de 27/9/19721 a 27/8/1974). Teve 2 cmdts: cap mil art Luís Carlos Queiroz da Silva Fonseca; e cap mil inf Edmundo Graça de Freitas Gonçalves. Na Tabanca Grande, temos poucos camaradas deste batalhão.
Desconhece-se, por outro lado, as razões que terá levado comandante de batalhão a integrar a coluna a Jolmete e pedir o apoio do Pel Rec Daimler 3089, que estava adido a outro batalhão, o BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73). (LG)
2. Sob o signo do medo
por Francisco Gamelas (com Manuel Lucas dos Santos)
Cedo, por volta das oito da manhã, acabados de regressar do pequeno almoço, depois de já termos feito a escolta da coluna que seguia para Bissau até ao Pelundo, entrou na caserna um mensageiro com uma convocação: o nosso Comandante [, do BCAÇ 3863,] requer a presença do 1º Cabo que substitui o Alferes Gamelas.
Corria o dia 16 de maio de 1973. O nosso Alferes estava em Bissau à procura de peças para as Daimlers, no cemitério de viaturas semidestruídas que ali havia. Depois da saída do mensageiro, olhei os meus camaradas e comentei: quem é que andou a fazer merda ontem à noite? Ninguém se acusou.
Respirei fundo, agarrei coragem e lá fui para o covil, como rês a caminho do matadouro. Boa coisa não seria. À porta semiaberta do gabinete, enquanto fazia a continência, pronunciei a fórmula da praxe: dá-me licença meu Comandante? O Tenente Coronel já se encontrava sentado à secretária, de semblante pensativo e preocupado. Não parecia zangado, apenas apreensivo, respondendo em voz baixa, como era seu timbre, mas de forma suave: entre nosso Cabo. Fique à vontade.
Por detrás das lentes dos óculos os seus olhos miúdos começaram por me sondar durante alguns segundos. Deveria ser visível a minha inquietação e o Comandante ponderava as suas palavras. Ontem, no Jolmete, sede duma companhia do Batalhão do Pelundo, deu-se uma flagelação muito forte do inimigo. Houve vários mortos cujos corpos é preciso resgatar para seguirem para Bissau.
Com uma breve pausa avaliou o efeito das suas palavras. Não sei o que viu no meu semblante, mas, depois da surpresa, uma inquietação, filha do medo, ia tomando conta do meu espírito. O Comandante continuou. O Senhor Comandante do Pelundo solicitou-me ajuda para ir ao Jolmete resgatar os cadáveres. Perguntou se haveria possibilidade das Daimlers poderem fazer parte da escolta. Pareceu-me bastante preocupado, nosso Cabo.
A preocupação dele era visível. Fez outra pausa para me olhar bem nos olhos espreitando uma reacção. Desde quando estes gajos gastavam tanto latim para darem as suas ordens? Nosso Cabo, tenha prontas duas Daimlers para integrarem a escolta ao Jolmete dentro de vinte minutos, seria tudo quanto era necessário para que a ordem se cumprisse sem mais delongas.
Estas falinhas mansas eram como facas afiadas a penetrarem de mansinho pelo ventre da minha inquietação. Permaneci calado. O nosso Cabo não acha que os devemos ajudar? Perguntou, sem parar de me fitar. Desta vez, o tom já foi mais incisivo, ainda que permanecesse dentro do cordial, mesmo com uma certa dose de intimidade, o que me desconcertava. O Comandante estava a fazer de mim alguém suficientemente importante para ter voto na matéria, o que me inquietava porque nunca tal tinha acontecido, nem seria normal acontecer. Não era este o ADN do relacionamento comando versus subordinados.
O cerco apertava-se e não tinha como fugir a dar uma resposta. Quem sou eu, meu Comandante, para fazer avaliações. O Pelotão Daimler fará o que o meu Comandante determinar. Um muito leve sorriso acompanhou uma pequena, mas visível descompressão do seu semblante. Estava satisfeito com o evoluir da situação, o mesmo será dizer, que estava satisfeito com os resultados da sua estratégia de abordagem. O Senhor Comandante do Pelundo [, BART 6521/72,] pode então contar com a ajuda das Daimlers na deslocação ao Jolmete?
Foi uma pergunta a meio caminho duma afirmação. Limitei-me a articular o óbvio: o meu Comandante sabe que o Pelotão Daimler só está ao serviço deste Batalhão. Contudo, se o meu Comandante entender prestar uma ajuda solidária ao nosso Comandante do Pelundo, o Pelotão Daimler está pronto para cumprir a sua parte.
Desta vez o sorriso foi franco e a descompressão evidente. Óptimo, nosso Cabo. Vou então dizer ao Senhor Comandante do Pelundo que pode contar com duas esquadras dentro de uma hora no Pelundo - e levantou-se para dar por terminada a conversa.
Foi uma pergunta a meio caminho duma afirmação. Limitei-me a articular o óbvio: o meu Comandante sabe que o Pelotão Daimler só está ao serviço deste Batalhão. Contudo, se o meu Comandante entender prestar uma ajuda solidária ao nosso Comandante do Pelundo, o Pelotão Daimler está pronto para cumprir a sua parte.
Desta vez o sorriso foi franco e a descompressão evidente. Óptimo, nosso Cabo. Vou então dizer ao Senhor Comandante do Pelundo que pode contar com duas esquadras dentro de uma hora no Pelundo - e levantou-se para dar por terminada a conversa.
Ainda arranjei coragem para articular: o meu Comandante desculpe, mas gostaria de fazer um pedido... E ele: Diga lá nosso Cabo. O tom permanecia cordial. Pretendia que o Senhor Comandante do Pelundo nos garantisse um rebenta-minas a abrir a coluna. Ser uma Daimler a fazer esse papel não seria justo e era um desperdício de uma metralhadora, em caso de problemas. O Comandante, já de pé, olhou-me como que admirado e retorquiu: Compreendo. Tem toda a razão. O nosso Cabo pode contar com a viatura rebenta-minas.
Fiz a continência, e, de novo, articulei a fórmula aplicável: o meu Comandante dá-me licença que me retire? Resposta: Dentro de uma hora esteja pronto para partir para o Pelundo, nosso Cabo. Por instruções do nosso Capitão das Informações, que teve a “gentileza” de me informar que era provável haver contacto com o inimigo, a Daimler da frente – a minha - foi reforçada com uma segunda metralhadora e respectivas fitas de munições, para além de mais umas quantas granadas. Que não fosse por falta de fruta que perdêssemos a contra-dança.
Chegámos ao Pelundo cerca das dez e trinta, onde já nos esperava, no meio da parada, o Tenente Coronel Comandante do Batalhão, que imediatamente se acercou de nós. Obrigado por terem vindo nosso Cabo. E a estupefacção continuava. Este comportamento não era nada normal. Já almoçaram? Perguntou o Comandante. Às dez e meia da manhã ainda ninguém almoçou, pelo que, meio a sorrir respondi: não meu Comandante, viemos com ração de combate. Retorquiu: Vou já mandar preparar um bom almoço para vocês,
E assim foi. Dentro de umas dezenas de minutos, estávamos todos a almoçar, como raramente tivemos oportunidade de o fazer ao longo de toda a comissão. Contudo, a inquietação era mais que muita. Todos os sinais indicavam que a deslocação iria ser bastante perigosa. Se tivermos que morrer, morreremos de bandulho cheio, comentei sarcástico.
E assim foi. Dentro de umas dezenas de minutos, estávamos todos a almoçar, como raramente tivemos oportunidade de o fazer ao longo de toda a comissão. Contudo, a inquietação era mais que muita. Todos os sinais indicavam que a deslocação iria ser bastante perigosa. Se tivermos que morrer, morreremos de bandulho cheio, comentei sarcástico.
Cerca do meio dia, começámos a organizar a coluna. Ao deparar com o Comandante, perguntei-lhe pela viatura rebenta-minas, que, essa sim, era a minha grande preocupação. O Comandante, apontando com o braço, disse sorridente: olhe ali nosso Cabo. Lá estava uma Berliet atulhada de sacos de areia até acima. Até aqui tudo bem. Siga a marinha e alma até Almeida. Percebi que o Comandante também iria integrar a coluna, o que, por não ser comum, somava alguns pontos a seu favor.
Pusemo-nos em marcha pelas doze e trinta. Connosco, seguiam na coluna mais seis unimogs com soldados armados. Entre eles seguia o Comandante do Pelundo. A ligação ao Jolmete fazia-se por uma sequência de picadas, em alguns percursos apenas visíveis nos trilhos das rodas das viaturas, onde o vermelho da terra se deixava ver. Nesses trilhos elas seguiam sozinhas, sem necessitar do volante. O resto era vegetação, com capim da altura de um homem a roçar nas laterais. Digamos que poderíamos ser “pescados à mão”. Pedroso, deixa a Berliet afastar-se um bocado, disse para o camarada condutor quando iniciámos a marcha - a nossa Daimler seguia em segundo lugar na coluna. Se houver merda, teremos, assim, mais algumas hipóteses de reagir.
O trajecto era de cerca de vinte e cinco quilómetros, que foi percorrido debaixo de uma enorme tensão, a baixa velocidade. O que nos corria nas veias era pura adrenalina. Sem qualquer peripécia no percurso, lá chegámos ao nosso destino em pouco mais de uma hora.
O cenário que encontrámos era desolador: destruição e caos, com semblantes fantasmáticos a espreitar pelos cantos. Os seis corpos já estavam alinhados nas macas à nossa espera. Vim a concluir que a Berliet, afinal, não carregava só sacos de areia, também trazia as "salgadeiras" para os cadáveres. Mau sinal. Não iríamos ter rebenta-minas no regresso, quase de certeza. Não seria lógico que a viatura com os corpos voltasse a fazer de rebenta-minas. Foi o que aconteceu.
O cenário que encontrámos era desolador: destruição e caos, com semblantes fantasmáticos a espreitar pelos cantos. Os seis corpos já estavam alinhados nas macas à nossa espera. Vim a concluir que a Berliet, afinal, não carregava só sacos de areia, também trazia as "salgadeiras" para os cadáveres. Mau sinal. Não iríamos ter rebenta-minas no regresso, quase de certeza. Não seria lógico que a viatura com os corpos voltasse a fazer de rebenta-minas. Foi o que aconteceu.
Depois dos caixões fechados e do Comandante ter terminado a observação do local e falado com os seus oficiais, regressámos ao Pelundo. Desta feita já não vai haver viatura rebenta-minas, nosso Cabo, teve a “gentileza” de me informar o Comandante. Pedroso, sempre a abrir. Quem quiser que nos siga. Apesar do repto, demorámos a chegar quase o mesmo tempo que tínhamos gasto na ida. A Berliet não poderia acompanhar um ritmo mais enérgico.
Por volta das cinco e meia estávamos em Teixeira Pinto, sãos e salvos, já depois do grosso da coluna ter ficado no Pelundo. Agora, era só esperar que os níveis de adrenalina descessem, que a serenidade possível recuperasse os seus níveis normais. Entretanto, no que respeita ao horrendo observado no Jolmete, não houve borracha eficaz que o apagasse. Até hoje.
Quanto aos “estranhos” comportamentos dos Comandantes, continuam a fazer-me cócegas nos neurónios. Digamos que, com o medo à mistura, comum a todos nós, a alma humana tem destes comportamentos desalinhados.
Quanto aos “estranhos” comportamentos dos Comandantes, continuam a fazer-me cócegas nos neurónios. Digamos que, com o medo à mistura, comum a todos nós, a alma humana tem destes comportamentos desalinhados.
Aveiro, junho de 2016
Francisco Gamelas
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Comentário do autor
Este episódio foi-me contado pelo então 1º Cabo do meu Pelotão Daimler Manuel Lucas dos Santos – o narrador da crónica - que, na minha ausência, assumia o seu comando (o meu 1º Sargento estava destacado no Cacheu com duas esquadras do pelotão).
Durante estes últimos anos, em que, quase sempre, nos nossos almoços anuais este episódio vinha à baila, comecei a dar-lhe alguma importância, mas, sem verdadeiramente compreender as motivações do comando para os seus tão incomuns comportamentos. Até que parei para reflectir.
Será que as Daimlers seriam solicitadas se o Tenente Coronel do Pelundo [BART 6521/72] não integrasse a coluna? Obviamente que não: nunca o foram, assim como a enormidade de seis unimogs com tropa armada. Nas minhas colunas para o Cacheu e para Bissau, iam dois.
E a atitude do Tenente Coronel de Teixeira Pinto [BCAÇ 3863], como se explica? No caso de existirem sarilhos graves com as Daimlers e os seus ocupantes, eles teriam que constar no relatório da acção e alguém em Bissau [leia-se: o gen Spínola] iria perguntar o que é que as Daimlers estavam lá a fazer. Não acredito que fosse a decisão favorável de um 1º Cabo em participar na escolta que ilibasse o Comandante de sérias responsabilidades.
Será que as Daimlers seriam solicitadas se o Tenente Coronel do Pelundo [BART 6521/72] não integrasse a coluna? Obviamente que não: nunca o foram, assim como a enormidade de seis unimogs com tropa armada. Nas minhas colunas para o Cacheu e para Bissau, iam dois.
E a atitude do Tenente Coronel de Teixeira Pinto [BCAÇ 3863], como se explica? No caso de existirem sarilhos graves com as Daimlers e os seus ocupantes, eles teriam que constar no relatório da acção e alguém em Bissau [leia-se: o gen Spínola] iria perguntar o que é que as Daimlers estavam lá a fazer. Não acredito que fosse a decisão favorável de um 1º Cabo em participar na escolta que ilibasse o Comandante de sérias responsabilidades.
Visto deste prisma, o episódio passa a ter algum interesse, pelo que aqui to deixo à tua apreciação para eventual publicação no teu blogue. (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 15 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16602: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte XIII: No fim viemos (quase) todos... e demos vivas à peluda
(**) Último poste da série > 31 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16662: (De)Caras (60): Domingos Ramos, desertor do exército português e herói nacional da Guiné-Bissau: entre o mito e a realidade: as últimas palavras que ele nunca poderia ter dito, nem muito menos escrito, antes de morrer, em 10/11/1966, no ataque a Madina do Boé (Jorge Araújo)
Guiné 63/74 - P16725: Parabéns a você (1163): José António Viegas, ex-Fur Mil Art do Pel Caç Nat 54 (Guiné, 1966/68)
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de Novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16720: Parabéns a você (1162): António Inverno, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 (Guiné, 1972/74); Orlando Pinela, ex-1.º Cabo Reabast Material da CART 1614 (Guiné, 1966/68) e Coronel Cav Ref Pacífico dos Reis, ex-Cap Cav, CMDT da CCAÇ 6 (Guiné, 1968/70)
Nota do editor
Último poste da série de 15 de Novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16720: Parabéns a você (1162): António Inverno, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 (Guiné, 1972/74); Orlando Pinela, ex-1.º Cabo Reabast Material da CART 1614 (Guiné, 1966/68) e Coronel Cav Ref Pacífico dos Reis, ex-Cap Cav, CMDT da CCAÇ 6 (Guiné, 1968/70)
terça-feira, 15 de novembro de 2016
Guiné 63/74 - P16724: Agenda cultural (516): Sessão de apresentação do livro do Paulo Salgado, 5ª feira, dia 17, às 18h30, na Fundação Portugal - África, Rua de Serralves, nº 191, Porto
Convite para a sessão de apresentação do livro do nosso camarada e grã-tabanqueiro Paulo Salgado, no próximo dia 17, 5ª feira, às 18h30, no Porto, na Fundação Portugal - África. A apresentação estará a cargo do médico pediatra José Manuel Pavão, cônsul honorário da República da Guiné-Bissau no Porto. (*)
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Nota do editor:
Guiné 63/74 - P16723: Agenda cultural (515): No passado dia 10 de Outubro, na Messe Militar do Porto, sita na Praça da Batalha, foi apresentado o livro "Quatro Rios e Um Destino" do nosso camarada Fernando de Jesus Sousa (Carlos Vinhal)
No passado dia 10 de Outubro, na Messe Militar do Porto, sita na Praça da Batalha, foi apresentado o livro "Quatro Rios e Um Destino" do nosso camarada Fernando de Jesus Sousa, ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, Bedanda, 1970/71.
Foi uma jornada emotiva, não porque o nosso camarada precise de nós, mas antes porque ele próprio é uma força de vida e um exemplo. Somos nós que precisamos dele.
A força da amizade entre ele e o médico que o tratou em Bedanda enquanto não foi possível a evacuação, o ex-Alf Mil Médico Amaral Bernardo, ficou bem patente e sabemos que perdurará. Um misto de sentimentos fez com que a assistência se mantivesse em religioso silêncio, com algumas lágrimas a fazer arder os já gastos olhos dos Combatentes, e não só, ali presentes.
Ficámos a conhecer melhor o Fernando, a sua força de viver, aquela que todos quereríamos ter para enfrentar os mesquinhos problemas que nos surgem e que julgamos serem os mais importantes do mundo.
Quem venceu a morte e suplantou a adversidade é digno do nosso respeito e admiração.
Obrigado Fernando.
Segue-se a reportagem.
Carlos Vinhal
A sala estava composta embora o autor do livro merecesse mais audiência.
Momentos antes do início dos trabalhos, ultimam-se os pormenores.
O Coronel Belchior deu início à sessão cumprimentando a Mesa e os presentes, dando a palavra ao apresentador do livro, Prof. Dr. Amaral Bernardo que foi Alferes Médico em Bedanda, nos anos de 1970 a 1972, onde se encontrava aquando do acidente que feriu gravemente o autor Fernando Sousa.
Falar do livro e dos momentos vividos em Bedanda, pelo Fernando, nas primeiras horas a seguir ao infeliz acontecimento, foi doloroso para o nosso camarada Amaral Bernardo, que visivelmente comovido, lembrou o seu papel de médico no mato, sem as condições mínimas necessárias para assegurar a sobrevivência do ferido grave que tinha entre mãos. Fez o que pôde até que a evacuação se efectivasse, para que no hospital, com outros meios, o Fernando fosse devidamente tratado. Disse ainda, que foi com a maior emoção e alegria que, passados mais de 30 anos, o encontrou a andar normalmente e a levar uma vida plena.
Salientou o facto de o infortúnio ter criado uma amizade especial entre o médico e o doente que os unirá até ao fim dos dias.
Amaral Bernardo fala do Fernando Sousa com a maior admiração pela sua coragem e força vontade em suplantar as dificuldades.
Chegou a vez do autor, que dedicou as suas primeiras palavras ao homem a quem deve a sua vida, ao seu Alferes Médico e amigo Amaral Bernardo. Disse que a princípio não lhe ficou reconhecido pelo esforço em lhe salvar a vida porque o que queria era terminar ali mesmo a sua existência, mas que depois de ultrapassadas todas aquelas horas, e foram muitas, difíceis e dolorosas, reconhece o quanto lhe deve.
Falou do seu livro, onde descreve as horas, mais más do que boas, enquanto militar e enquanto sobrevivente e lutador, tentando viver com a maior normalidade possível face à sua deficiência de guerra.
Falou de Bedanda, localidade onde conheceu os piores dias da sua vida, a que dedicou um poema intitulado "Bedanda terra de Magia", que começa assim: Bedanda. Terra de nada, repleta de tudo / Sem ruas de avenidas despida / Onde o Tuga espera quedo e mudo / Nas entranhas de África nascida.
Podem ler o resto na página 230 de "Quatro Rios e um Destino"
Falou dos seus versos, do seu último livro "Sussuros Meus", do qual também leu alguns poemas, um dos quais em homenagem à Mulher.
O autor, Combatente Fernando Sousa, diz aos presentes o que o levou a escrever este livro.
Dada a possibilidade de intervenção aos presentes, falou em primeiro lugar o Combatente Carlos Pinto Azevedo, contemporâneo do Fernando Sousa e do Dr. Amaral Bernardo na CCAÇ 6 - Bedanda. Recordou também os momentos dolorosos que todos viveram com o acidente do autor ali presente, contando que no primeiro convívio dos bedandenses, ainda a caminho, se lembraram do Fernando e até puseram a hipótese de ele não ter sobrevivido aos graves ferimentos infligidos. Se fosse vivo, deslocar-se ia com certeza com muita dificuldade, talvez apoiado em canadianas ou até em cadeira de rodas. Quando reunidos, perguntam pelo Sousa, se estava vivo. Aparece então aquele homem caminhado normalmente. "Sem uma perna e andas assim?" - "Sem uma não, sem duas".
Espanto geral, estava ali vivo e são, um verdadeiro Combatente, alguém digno da nossa admiração.
Aqui o editor pede desculpa, mas a foto com a intervenção do Carlos não estava em condições de ser publicada.
Falou seguidamente o Presidente da ADFA-Porto, o Combatente Abel Fortuna, também ele um mutilado pela guerra da Guiné - S. Domingos.
Falou da dificuldade que os Combatentes têm, especialmente os Deficientes para quem tudo são barreiras
O camarada Abel Fortuna, Presidente da ADFA-Porto no uso da palavra.
Levantou-se também da assistência o Dr. Paulo Salgado, nosso camarada tertuliano, para saudar o autor e dizer o quanto o marcou positivamente o seu exemplo
Paulo Salgado - Ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72
Na fila da frente estava o Superintendente Isaías Teles, Presidente da Direcção do Núcleo de Oeiras/Cascais da LC, que falou das Tertúlias do Fim do Império e do apoio que esta iniciativa tem dado na edição ou divulgação da bibliografia da Guerra Colonial.
O Superintendente Isaías Teles falando aos presentes.
Era inevitável que não se falasse das mulheres das nossas vidas, principalmente daquelas que a seu modo, na retaguarda, viveram a guerra e sofreram pelos filhos, irmãos, maridos, namorados, afilhados de guerra, etc.
Levantou-se uma senhora que agradeceu as palavras dirigidas às mulheres presentes, e ausentes, uma mulher que já visitou a Guiné inúmeras vezes e por lá cooperou mais o marido. Estamos a falar, como documenta a foto, de Conceição Salgado, esposa do Paulo Salgado, e mãe de Paula Salgado, todos eles com publicações no nosso Blogue.
Peço desculpa pela foto, não é das melhores.
Conceição Salgado falando em nome das mulheres que também sentiram a guerra
Habitual interveniente nas tertúlias da Messe da Batalha, o Coronel Manuel Ferreira da Silva, que foi Comandante o COP 5, Gadamael/Guileje, falou também da falta de respeito e consideração que algumas autarquias ainda têm pelos Combatentes, mantendo aquela distância fria, quase ignorando que existem, esperando que vão morrendo no anonimato. Ele que é um activo defensor de quem foi chamado para a guerra, que nunca se ganha pelas armas, até que o poder político a resolvesse, contou algumas peripécias, quase hilariantes, que vai ultrapassando com muita persistência.
O senhor Coronel Ferreira da Silva
Da assistência levantou-se alguém que só faltou a uma das muitas tertúlias Fim do Império que já se realizaram na Messe da Batalha, no Porto, e que nunca tinha pedido a palavra antes, o Presidente da Direcção do Núcleo de Ribeirão da LC, o Combatente José Ferreira dos Santos.
Disse que não se podia calar perante o exemplo de força de vida que era o Fernando Santos. Que ia levar um exemplar de "Quatro Rios e Um Destino" para a sua mulher ler. Que melhor homenagem lhe podia fazer?
O Combatente José Ferreira dos Santos, Presidente da Direcção do Núcleo de Ribeirão da LC.
Ainda estava reservada uma surpresa, porque quando o Coronel Belchior se levanta é para dar fim aos trabalhos e dar a palavra ao Presidente da Mesa. Mas desta feita, o Coronel Belchior levantou-se para intervir, fazendo o paralelo entre o Fernando Sousa e ele próprio, ferido duas vezes em combate. Claro que como militar profissional, tantos anos no campo de batalha, ser ferido é quase como inevitável, mas um jovem miliciano ficar mutilado é sempre uma tragédia.
O senhor Coronel Belchior falando de si e do Combatente Fernando Sousa
Como médico que é, e como Tenente Médico Miliciano em Angola que foi, o Dr. Reis Lima não podia ficar indiferente ao que ali se passou. Cumprimentou o Fernando pela coragem em ultrapassar as dificuldades que a sua deficiência lhe acarreta e pela sua escrita sentida, tanto em prosa como em verso.
Para encerrar a tertúlia da tarde, o Coronel Belchior deu a palavra ao senhor Coronel Sousa Machado, que aproveitou para dizer que também ele, apesar de não ser contemporâneo, enquanto militar, da Guerra de África, também a sua família sofreu as consequências mais funestas daqueles conturbados tempos.
O senhor Coronel Sousa Machado a encerrar os trabalhos da tarde.
Texto, fotos e legendas: Carlos Vinhal
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16709: Agenda cultural (508): Lançamento do livro "25 de Novembro, Reflexões", coordenação do Coronel Manuel Barão da Cunha, no próximo dia 15 de Novembro de 2016, pelas 15h00, na Livraria/Galeria Municipal Verney, Rua Cândido dos Reis, 92, em Oeiras
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Guiné 63/74 - P16722: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (22): Quem terá sido o Daniel Alves, "duplamente desertor" ? Primeiro, fugiu das nossas fileiras, possivelmente em 1967, e depois das fileiras do PAIGC... Amilcar Cabral, traído e preocupado, escreveu: "O Daniel Alves conseguiu enganar a malta (sic) e fugiu em Dacar. É um facto banal numa luta (deserção ou traição), mas pode complicar-nos muito a vida em relação aos amigos"....
(...) “A segunda má notícia é que o Daniel Alves conseguiu enganar a malta e fugiu em Dakar. É Vamos ver como é que as coisas se passarão, mas é pena que nos tenhamos deixado enganar dessa maneira, tanto mais que sempre desconfiámos do Daniel que a estas horas já deve estar com os tugas. […] Quanto ao Daniel até pode-nos servir de propaganda, mas o diabo são os amigos que têm medo de tudo”. (...)
Fonte: Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Documento, s/d [circa jan/fev 1969] de Amílcar Cabral, em que dá a notícia, aos seus camaradas, do desaparecimento, em Dacar, do desertor português Daniel Alves...
Citação:
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34366 (2016-11-8) [Excerto de documento reproduzido com a devida vénia]
1. Comentário do editor (*):
Jorge:
Cheira-me que são dois casos diferentes pelo "desfasamento" das datas... Ou será que o David Costa viveu em Dacar um ano e meio, beneficiando da "hospitalidade" do PAIGC (cama, mesa e roupa lavada ?)... Temos que esclarecer o(s) caso(s)... Também ter acontecido haver aqui uma "troca de nomes" por parte do Amílcar Cabral... que, no fundo, era um líder centralizador e que queria estar a par de tudo... (De resto, o drama do PAIGC foi o Amílcar Cabral, enquanto líder, nunca ter preparado ninguém para o suceder; ele, no íntímo, devia achar que era único e insubstituível, daí a sua dificuldade em delegar; no caso dos desertores, tomava muito a peito esse dossiê, era paternalista com eles, fazia questão de os tratar com "humanidade" mas não escondia os suas intenções, que eram pô-los ao "serviço da propaganda" do PAIG.)
De qualquer modo, este episódio do tal "Daniel Alves" só revela que éramos todos... uma camabada de "ingénuos", nós (as NT), o Amílcar Cabral, o Luís Cabral, o Mário Pádua... Uma trágica ingenuidade que nos levou, a todos, a um puta de uma guerra sem sentido, como todas as guerras...
2. Resposta de Jorge Araújo (*):
O alegado desertor que é apanhado, primeiro, pelo PAIGC, e que depois os finta todos (Amílcar Cabral, Luís Cabral, Mário Pádua...), fugindo de Dacar, será mesmo o David Costa ou será um outro caso ?...
O Amílcar Cabral chama-lhe DANIEL ALVES... Será que o David Costa lhes deu um nome falso ? Em princípio, é possível, ele deve ter fugido indocumentado, em 17 de maio de 1967...
Temos que confirmar as datas... Quando puderes... O documento que citas, em que o Amílcar Cabral dá aos seus camaradas duas más notícias, deve ser de janeiro ou fevereiro de 1969:
(i) uma é o massacre de Sagonhá (6/1/1969); e (ii) a outra é a "deserção" (desta vez das "fileiras" do PAIGC...) do tal "Daniel Alves" (sic)...
O Amílcar Cabral chama-lhe DANIEL ALVES... Será que o David Costa lhes deu um nome falso ? Em princípio, é possível, ele deve ter fugido indocumentado, em 17 de maio de 1967...
Temos que confirmar as datas... Quando puderes... O documento que citas, em que o Amílcar Cabral dá aos seus camaradas duas más notícias, deve ser de janeiro ou fevereiro de 1969:
(i) uma é o massacre de Sagonhá (6/1/1969); e (ii) a outra é a "deserção" (desta vez das "fileiras" do PAIGC...) do tal "Daniel Alves" (sic)...
Cheira-me que são dois casos diferentes pelo "desfasamento" das datas... Ou será que o David Costa viveu em Dacar um ano e meio, beneficiando da "hospitalidade" do PAIGC (cama, mesa e roupa lavada ?)... Temos que esclarecer o(s) caso(s)... Também ter acontecido haver aqui uma "troca de nomes" por parte do Amílcar Cabral... que, no fundo, era um líder centralizador e que queria estar a par de tudo... (De resto, o drama do PAIGC foi o Amílcar Cabral, enquanto líder, nunca ter preparado ninguém para o suceder; ele, no íntímo, devia achar que era único e insubstituível, daí a sua dificuldade em delegar; no caso dos desertores, tomava muito a peito esse dossiê, era paternalista com eles, fazia questão de os tratar com "humanidade" mas não escondia os suas intenções, que eram pô-los ao "serviço da propaganda" do PAIG.)
De qualquer modo, este episódio do tal "Daniel Alves" só revela que éramos todos... uma camabada de "ingénuos", nós (as NT), o Amílcar Cabral, o Luís Cabral, o Mário Pádua... Uma trágica ingenuidade que nos levou, a todos, a um puta de uma guerra sem sentido, como todas as guerras...
Luís e restantes camaradas,
Antes de mais, as minhas desculpas pelo enorme lapso que cometi e que só agora dei conta.
De facto, estamos perante dois casos distintos. Serão, certamente, dois desertores das NT, o 1.º é o David Costa, que depois de ter regressado a Bissau, foi preso e julgado em 1968 [segundo as minhas contas entre maio e junho].
O 2.º é o Daniel Alves [se o nome for verdadeiro!?] e que terá fugido de Dacar, a exemplo do David Costa, em finais de 1968.
Baralhei-me com os nomes: David vs Daniel. (**)
Antes de mais, as minhas desculpas pelo enorme lapso que cometi e que só agora dei conta.
De facto, estamos perante dois casos distintos. Serão, certamente, dois desertores das NT, o 1.º é o David Costa, que depois de ter regressado a Bissau, foi preso e julgado em 1968 [segundo as minhas contas entre maio e junho].
O 2.º é o Daniel Alves [se o nome for verdadeiro!?] e que terá fugido de Dacar, a exemplo do David Costa, em finais de 1968.
Baralhei-me com os nomes: David vs Daniel. (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 15 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16721: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XII: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [III]: o encontro, em Boké,com o médico português Mário Pádua (Jorge Araújo)
(*) Vd. poste de 15 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16721: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XII: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [III]: o encontro, em Boké,com o médico português Mário Pádua (Jorge Araújo)
(**) Último poste da série > 8 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16699: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (21): Mário Moutinho Pádua, o primeiro oficial português a desertar, em Angola, em outubro de 1961... Será, mais tarde, médico do PAIGC, no hospital de Ziguinchor, entre fevereiro de 1967 e setembro de 1969... Regressou a Portugal em novembro de 1974, e cumpriu o resto do serviço militar... Aposentou-se em 2003 como médico do Hospital Pulido Valente (Juvenal Amado)
Guiné 63/74 - P16721: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XII: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [III]: o encontro, em Boké,com o médico português Mário Pádua (Jorge Araújo)
Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > "Guerrilheiro recebendo assistência médica" (Reprodução com a devida vénia...)
Citação:
(1963-1973), "Guerrilheiro recebendo assistência médica", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43678 (2016-11-8)
Guiné-Conacri > Boké > 1968 > Aspetos da assistência médico-cirúgica no hospital do PAIGC por onde passaram médicos cubanos como o dr. Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), mas também o português dr. Mário Pádua (que não era cirurgião mas patologista clínico)
1. INTRODUÇÃO
Depois de na narrativa anterior [P16662] termos efectuado uma análise histórica superficial (entre o real e a ficção) ao modo como Amílcar Cabral [1924-1973] abordou /utilizou a morte em combate do cmdt Domingos Ramos, um quadro superior da estrutura militar do PAIGC e que fizera a sua formação inicial no exército português, ao concluir o 1.º Curso de Sargentos Milicianos, realizado em Bissau no ano de 1959, retomamos a publicação do nosso projecto de investigação tendo por título «d(o) outro lado do combate». (*)
Este tem a sua génese na divulgação de algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969.
Com efeito, o presente texto corresponde ao terceiro fragmento do diálogo estabelecido com o médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], sendo a terceira e última entrevista no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch. Trata-se de uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação.
[Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em:
http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf ]
Uma vez que estamos perante uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurámos respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendemos não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net, em particular da Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Por outro lado, e tendo em consideração as questões formuladas pelo entrevistador, estas permitiram-nos fazer a ligação com outros aspectos intrínsecos ao conflito, de que são exemplos concretos a falta de recursos básicos e as deserções militares.
2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [III]
Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era “Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.
Depois de ter assistido à morte do cmdt da Frente Leste, Domingos Ramos, ocorrida em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, faz agora cinquenta anos, o dr. Virgílio Duverger é transferido com destino à Frente Sul, por troca com o dr. Rómulo Soler Vaillant, que entretanto adoecera. Porém, durante essa permuta, é nomeado chefe do Hospital Militar de Boké, aonde se manteve durante dois meses.
Seguem-se mais alguns desenvolvimentos revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião cubano Virgílio Camacho Duverger.
- Entrevista com 22 questões [Parte 3 > da 13.ª à 15.ª] - “Testemunhos antes da morte”
[A nota introdutória é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando, pelo desenlace à posteriori, o titulo dado à entrevista: «testemunhos antes da morte»].
O diálogo com o médico Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] foi realizado pelo jornalista e historiador cubano Hedelberto Blanch numa tarde de janeiro de 2003, num pequeno gabinete do Hospital [Clínico Quirúrgico] Hermanos Ameijeiras, aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras.
Viria a falecer dez meses depois vítima de enfarte do miocárdio.
Com efeito, o presente texto corresponde ao terceiro fragmento do diálogo estabelecido com o médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], sendo a terceira e última entrevista no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch. Trata-se de uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação.
[Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em:
http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf ]
Uma vez que estamos perante uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurámos respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendemos não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net, em particular da Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Por outro lado, e tendo em consideração as questões formuladas pelo entrevistador, estas permitiram-nos fazer a ligação com outros aspectos intrínsecos ao conflito, de que são exemplos concretos a falta de recursos básicos e as deserções militares.
2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [III]
Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era “Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.
Depois de ter assistido à morte do cmdt da Frente Leste, Domingos Ramos, ocorrida em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, faz agora cinquenta anos, o dr. Virgílio Duverger é transferido com destino à Frente Sul, por troca com o dr. Rómulo Soler Vaillant, que entretanto adoecera. Porém, durante essa permuta, é nomeado chefe do Hospital Militar de Boké, aonde se manteve durante dois meses.
Seguem-se mais alguns desenvolvimentos revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião cubano Virgílio Camacho Duverger.
- Entrevista com 22 questões [Parte 3 > da 13.ª à 15.ª] - “Testemunhos antes da morte”
[A nota introdutória é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando, pelo desenlace à posteriori, o titulo dado à entrevista: «testemunhos antes da morte»].
O diálogo com o médico Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] foi realizado pelo jornalista e historiador cubano Hedelberto Blanch numa tarde de janeiro de 2003, num pequeno gabinete do Hospital [Clínico Quirúrgico] Hermanos Ameijeiras, aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras.
Viria a falecer dez meses depois vítima de enfarte do miocárdio.
(xiii) Como era o trabalho em Boké?
Em Boké [em junho de 1967] já existia uma base hospitalar com quinze camas, com uma pequena sala de operações. Depois chegou o dr. Raúl Currás [Regalado] (morreu num acidente em Angola). Ele era médico interno e tinha de fazer em certas ocasiões de anestesista. Eu tinha que administrar todos os medicamentos e material de cirurgia aos dois hospitais [de mato] da Frente Sul, no interior da Guiné-Bissau. Nestes lugares começou-se a atender a população civil e os casos mais frequentes eram as hérnias.
Chegou o momento em que houve que limitar a entrega de materiais, sobretudo de cirurgia, pois corria-se o risco de poderem fazer falta para os combatentes feridos, por se terem esgotado. Recordo dois casos que operámos e tivemos que os coser com linha doméstica. Para as operações cirúrgicas utilizávamos a técnica intravenosa Pentotal sódico na veia quando era necessário, e se não, usava-se anestesia local.
Cerca de dois meses e depois passei a um dos hospitais [no mato] na Frente Sul, aonde as acções de combate eram em maior número dos que as na Frente Leste devido à quantidade de aquartelamentos portugueses.
Desde o local aonde ocorriam os combates até ao hospital, às vezes demorava-se três ou quatro dias para se transportar os feridos e estes chegavam em muito más condições. Decidiu-se, então, organizar uma pequena enfermaria aonde se podiam fazer algumas operações, embora tivéssemos muito pouco material como fio cirúrgico e soros.
Entretanto, este pequeno grupo de médicos cubanos, em Boké, recebe, também nesta data, em julho de 1967, um reforço inesperado para a sua equipa multidisciplinar com a chegada, agora, de um português - o dr. Mário Moutinho de Pádua – que seis anos antes, em 1961, ano zero da que se convencionou chamar de «Guerra Colonial» ou «Guerra do Ultramar», decidira desertar da sua unidade militar [, BCaç 88] em Angola, optando por aderir aos objectivos dos movimentos africanos de oposição e resistência às colónias europeias, onde o PAIGC acabaria por contar com a sua colaboração.
Dos diferentes itinerários e das muitas experiências vividas ao longo de cada um deles, o dr. Mário Moutinho de Pádua decidiu publicar em livro as suas memórias a que deu o título de «No Percurso de Guerras Coloniais, 1961-1969», Edições Avante, 2011. Trata-se de um tema já abordado no Blogue da iniciativa do camarada Beja Santos que nos presenteou com as suas esclarecedoras «Notas de Leitura» [P10184].
Deste trabalho divulgado no poste supra, tomámos a liberdade de citar, com a devida vénia, alguns fragmentos, com destaque para os elementos sócio históricos que considerámos relevantes, justamente para enquadramento da presente narrativa.
Em primeiro lugar, é de referir que este cidadão português, natural de Coimbra, filho de um conhecido e respeitado advogado e notário com escritórios em Luanda nos anos cinquenta/sessenta do século passado, ficará na história da Guerra Colonial/Ultramar como sendo o primeiro oficial do exército português [alferes miliciano] a desertar em Angola, em outubro de 1961 [portanto, seis meses após o início do conflito], na companhia do [1.º] Cabo Alberto Pinto, para se juntar [em?] [não conseguimos confirmar a opção deste segundo militar] aos movimentos de libertação. [http://recordacoescasamarela.blogspot.pt/2012/07/o-passado-presente-agora-novo-jornal.html].
Para melhor entendimento do percurso narrado pelo autor sobre as suas experiências, eis uma Sinopse [https://www.wook.pt/livro/no-percurso-das-guerras-coloniais-1961-1969-mario-moutinho-de-padua/11518509]:
“O autor foi o primeiro oficial português a desertar em Angola, em 1961. Neste livro narra a sua impressionante experiência a seguir à deserção, nomeadamente as prisões e torturas de que foi alvo no Congo, a sua passagem pela [ex] Checoslováquia e o seu desencanto com vários aspectos do “socialismo real”, a sua participação na construção de uma Argélia recém-libertada do colonialismo, e por fim a sua contribuição como médico na luta travada pelo PAIGC na Guiné”.
Quanto à sua colaboração com o PAIGC, ela inicia-se com a sua chegada em 1967 a Conacri [um ano depois de ter ocorrido semelhante situação com o primeiro contingente de “internacionalistas” cubanos, do qual faziam parte nove médicos]. As suas primeiras actividades clínicas acontecem no Lar do Combatente, em Conacri, onde trata os guerrilheiros feridos e doentes.
Decorrido algum tempo [pouco] sente a necessidade de realizar outras tarefas mais consentâneas com as suas habilitações académicas, vindo a concretizar esse objectivo poucas semanas depois com a sua transferência para o Hospital de Boké [julho de 1967]. Aí trabalha em cooperação com a equipa de médicos e enfermeiros cubanos, aonde os recursos clínicos eram muito limitados.
Essas lacunas estavam já identificadas há algum tempo como prova o telegrama abaixo dirigido, em 11 de abril de 1967, ao «Comité de Solidariedade Afro-asiático Thallmann Platz, em Berlim», por Amílcar Cabral.
Com tradução do francês, eis a sua transcrição na íntegra:
Telegrama ao Comité de Solidariedade Afro-asiático Thallmann Platz 8/9 Berlim
“Face situação muito grave motivo falta total medicamentos colocando perigo vida vários combatentes feridos e elementos população vítimas bombardeamentos lançamos premente apelo envio urgente quantidades medicamentos possíveis nomeadamente álcool, mercurocromo, curativos, algodão, antibióticos, antipalúdicos (antimaláricos), antidiarreico, soro, leite STOP Confiante vossa solidariedade esperamos confirmação expedição endereço PAIGC BP [caixa postal] 298 Conacri STOP Fraternais agradecimentos
Amílcar Cabral
Secretário-geral do PAIGC
BP 298 Conacri, 11 abril 1967"
Citação: (1967), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34963 (2016-11-8)
No âmbito da sua missão, [certo dia?] o dr. Mário Pádua desloca-se a uma base guerrilheira no interior do território guineense [Frente Sul], aonde tem contacto com a enfermaria aí existente. Era uma base com uma dezena de cabanas enquadradas e camufladas pelas copas de grandes árvores, e aonde havia uma sala de operações. Ao observar o seu interior ficou surpreso com a extraordinária limpeza do solo, para além de existir uma enfermeira afugentando as moscas durante as intervenções cirúrgicas.
Passadas algumas semanas abandona Boké [agosto de 1967], sendo transferido para Ziguinchor, no Senegal, e colocado no Lar do Combatente, que havia sido criado há pouco tempo.
Os meios postos à disposição do PAIGC, como já foi referido anteriormente, eram rudimentares, onde nas suas bases os guerrilheiros passavam toda a casta de provações e muitas vezes subalimentados, e onde os combatentes feridos estavam em primeiro lugar. Refere que estes logo que desembarcavam assistia-se ao espectáculo de feridas enormes, abertas, que já não se podiam suturar, dado o intervalo de tempo que decorrera após a lesão [alguns dias].
(...) "Eu [Mário Pádua] e os enfermeiros guineenses, meus colaboradores, limpávamos os tecidos infectados com água oxigenada, cortávamos os tecidos mortos e terminada a limpeza cirúrgica tentávamos aproximar os bordos esticando a pele com adesivo. Sucedeu, em feridas fundas e com pequeno orifício de entrada, que quando retirava a sonda exploratória, me vinha ao nariz o cheiro inconfundível da gangrena gasosa.
"Um dia comecei a tratar um soldado que tinha o braço direito muito destroçado embora não sangrasse. Estas limpezas cirúrgicas em geral demoravam horas. Este doente não se queixava de dores. Quando terminei, pele, músculos, vasos e nervos de um dos membros superiores tinham praticamente desaparecido. Apenas restavam os ossos completamente descarnados. Nestas circunstâncias só restava a amputação." (...)
Refere ainda que os guerrilheiros passavam literalmente fome, para além de serem anémicos. No Lar de Ziguinchor momentos houve em que a alimentação estava reduzida a arroz. Por isso valoriza o excessivo sofrimento dos combatentes.
Acrescenta que “quando os feridos demoravam dias para chegar a Ziguinchor, as larvas fervilhavam nos tecidos expostos. O que fazia parte da rotina da guerra e me deixava estupefacto era o transporte dos feridos e doentes por zonas flageladas, vinham em macas fabricadas com troncos. O esforço físico exigido dificilmente se pode conceber”.
Entretanto, durante a sua presença em Ziguinchor, o dr. Mário Pádua contabiliza duas experiências únicas, estas relacionadas com dois militares portugueses que, quis o destino, ali foram parar, por motivos diferentes: um por deserção, estratégia, improvidência, fuga voluntária para a prisão ou outra razão difícil de provar [que só o próprio saberá qual foi], o outro para sobreviver aos ferimentos em combate depois de ter sido capturado por grupo de guerrilheiros, o que veio a verificar-se… e ainda bem!
O primeiro, de nome David Ferreira de Jesus Costa [David Costa], soldado da CART 1660 (1967/1968), que um dia [17 de maio de 1967] decidiu, consciente ou inconscientemente, pôr a sua vida em risco ao abandonar, pela calada da noite, o quartel de Mansoa, vindo a ser localizado na mata por elementos do PAIGC, que o convidaram a acompanhá-los depois de ele lhes ter dito de que tinha fugido do exército português. Dirigiu-se ao Morés, seguindo-se outras bases, talvez Maqué, Naga e Sambuia, até chegar a Ziguinchor, provavelmente algumas semanas depois.
Esta história foi contada pelo próprio e publicada em livro com o título «Desertor ou Patriota», Editora Ausência, 2004, e que constava já do espólio de memórias do Blogue, por iniciativa do camarada Virgínio Briote [P3371, de 2008], do camarada Beja Santos na sua tradicional e importante coluna «Notas de Leitura» [P6776, de 2010] e do camarada Jorge Lobo, companheiro do David Costa na CART 1660 [P7351, de 2010].
Este episódio, ao ser recentemente resgatado como tema em debate da nossa tertúlia “desertores” [P16686], originando novos comentários com diferentes perspectivas, levou-me a adiar a conclusão desta narrativa, alterando-a, inclusivamente, para não ser repetitivo.
Da investigação realizada na Casa Comum, Fundação Mário Soares, encontrei umas notas de Amílcar Cabral, escritas nos primeiros dias de janeiro de 1969, onde refere:
“Depois de sair daí [passagem de ano de 1968 na Frente Sul], tive más notícias que são as seguintes:
A priemrias relatuva a baixas do PAIGC, na sequência do ataque a Gantur+é, em 6/1/1969… [a desenvolver em próxima narrativa].
“A segunda má notícia é que o Daniel Alves [será que era o nome de guerra de Daniel Costa, ou estaremos perante outro desertor com o mesmo nome próprio?] conseguiu enganar a malta e fugiu em Dakar. É um facto banal numa luta (deserção ou traição), mas pode complicar-nos muito a vida em relação aos amigos. Vamos ver como é que as coisas se passarão, mas é pena que nos tenhamos deixado enganar dessa maneira, tanto mais que sempre desconfiámos do Daniel [?] que a estas horas já deve estar com os tugas. […] Quanto ao Daniel [?] até pode-nos servir de propaganda, mas o diabo são os amigos que têm medo de tudo”. […]
Citação:
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34366 (2016-11-8)
O segundo, de nome Manuel Fragata Francisco [ou Manuel Fragata], soldado da CART 1690 [1967/1969], sediada em Geba, ao participar na “Op Invisível”, realizada a 19 de dezembro de 1967, na mata do Óio, é gravemente ferido, sendo aprisionado e levado para a base de Sinchã Jobel. Desta base seguiu depois, certamente, por Sará, Morés, Maqué, Naga e Sambuia, em direcção ao Hospital de Ziguinchor, onde foi recebido e tratado pelo dr. Mário Pádua.
Sobre esta ocorrência, o camarada A. Lopes Marques refere nos [P45 + P15202} que o cmdt do PAIGC, Agostinho Cabral de Almada, com nome de guerra “Gazela”, lhe contou que o soldado Fragata foi atingido pelos estilhaços de uma granada de RPG2, tendo ficado “furado” e, por consequência, impossibilitado de caminhar. Ficou prisioneiro, e levado de maca [talvez de troncos onde, certamente, a sua dor e o sofrimento seriam constantes em cada batimento cardíaco] desde a mata do Óio até ao Hospital de Ziguinchor, em Casamansa, Senegal [aonde terá chegado muito perto do Natal de 1967].
Mapa da Guiné-Bissau > Indicam-se os prováveis itinerários utilizados pelo David Costa (a vermelho) e o Manuel Fragata (a azul) até Ziguinchor.
Aí permaneceu cerca de dois meses e meio em recuperação, sob os cuidados do dr. Mário Pádua, até que em 15 de março de 1968 foi entregue à Cruz Vermelha do Senegal e repatriado, por via aérea, para Portugal, onde ficou internado no anexo do Hospital Militar Principal, na Rua Artilharia Um, em Lisboa.
Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44075 (2016-11-8)
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 05224.000.038Título: Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal
Assunto: Osvaldo Lopes da Silva durante a entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal, em Dakar [Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco].
Data: Sexta, 15 de Março de 1968
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias
_________________
Chegou o momento em que houve que limitar a entrega de materiais, sobretudo de cirurgia, pois corria-se o risco de poderem fazer falta para os combatentes feridos, por se terem esgotado. Recordo dois casos que operámos e tivemos que os coser com linha doméstica. Para as operações cirúrgicas utilizávamos a técnica intravenosa Pentotal sódico na veia quando era necessário, e se não, usava-se anestesia local.
(xiv) Permaneceu muito tempo em Boké?
Cerca de dois meses e depois passei a um dos hospitais [no mato] na Frente Sul, aonde as acções de combate eram em maior número dos que as na Frente Leste devido à quantidade de aquartelamentos portugueses.
Desde o local aonde ocorriam os combates até ao hospital, às vezes demorava-se três ou quatro dias para se transportar os feridos e estes chegavam em muito más condições. Decidiu-se, então, organizar uma pequena enfermaria aonde se podiam fazer algumas operações, embora tivéssemos muito pouco material como fio cirúrgico e soros.
(xv) Recorda algum caso interessante?
A escassez era muita e por isso tínhamos de inventar. Em certa ocasião, recordo-me que a um paciente com uma ferida no abdómen, tive de lhe fazer uma pequena ressecção abdominal, e a recuperação foi com água de coco, pois não tínhamos soro para fazer venóclise [método para infundir líquidos dentro das veias], e plasma muito menos. Todos os casos evoluíram perfeitamente porque os africanos são virgens não só em relação aos antibióticos como também aos restantes medicamentos.
Outro caso que recordo e que tinha lido nos livros, foi um paciente que chegou com uma ferida torácica perto da região axilar [de axila]. Aí suspeitámos sobre o que havíamos lido, pois a explosão podia ter causado dano em algum vaso importante e estivemos vigilantes na crosta, produto da lesão produzida pela explosão do projéctil, pois se caísse poderia dar lugar a um sangramento agudo. Assim aconteceu, mas como estávamos atentos, o acudimos a tempo. Não tínhamos os instrumentos necessários, nem sangue nem plasma. Foi um dos momentos mais angustiantes por que passei, pois com a mão esquerda tinha o vaso agarrado, comprimindo-o, ou seja, eu tinha, praticamente, numa mão a vida desse combatente, e na outra o instrumental, que não era o adequado, tentando controlar a hemorragia.
Parei e depois esperei, pois o que estava descrito na literatura de consulta era que deveria esperar e observar por onde poderia gangrenar [morte local dos tecidos], uma vez que foi na artéria axilar que leva a nutrição fundamental ao membro superior.
Naquele caso, teve-se que amputar ao paciente, nada mais que uma parte da mão. Coisa rara, pois na maioria dos casos há que amputar o braço ou o antebraço. Era guineense, e fiz-lhe uma necrose distal da mão, ou seja, era uma evolução satisfatória naquele sentido.
Continua…
3. Nota de Jorge Araújo sobre o médico português Mário PáduaOutro caso que recordo e que tinha lido nos livros, foi um paciente que chegou com uma ferida torácica perto da região axilar [de axila]. Aí suspeitámos sobre o que havíamos lido, pois a explosão podia ter causado dano em algum vaso importante e estivemos vigilantes na crosta, produto da lesão produzida pela explosão do projéctil, pois se caísse poderia dar lugar a um sangramento agudo. Assim aconteceu, mas como estávamos atentos, o acudimos a tempo. Não tínhamos os instrumentos necessários, nem sangue nem plasma. Foi um dos momentos mais angustiantes por que passei, pois com a mão esquerda tinha o vaso agarrado, comprimindo-o, ou seja, eu tinha, praticamente, numa mão a vida desse combatente, e na outra o instrumental, que não era o adequado, tentando controlar a hemorragia.
Parei e depois esperei, pois o que estava descrito na literatura de consulta era que deveria esperar e observar por onde poderia gangrenar [morte local dos tecidos], uma vez que foi na artéria axilar que leva a nutrição fundamental ao membro superior.
Naquele caso, teve-se que amputar ao paciente, nada mais que uma parte da mão. Coisa rara, pois na maioria dos casos há que amputar o braço ou o antebraço. Era guineense, e fiz-lhe uma necrose distal da mão, ou seja, era uma evolução satisfatória naquele sentido.
Continua…
Entretanto, este pequeno grupo de médicos cubanos, em Boké, recebe, também nesta data, em julho de 1967, um reforço inesperado para a sua equipa multidisciplinar com a chegada, agora, de um português - o dr. Mário Moutinho de Pádua – que seis anos antes, em 1961, ano zero da que se convencionou chamar de «Guerra Colonial» ou «Guerra do Ultramar», decidira desertar da sua unidade militar [, BCaç 88] em Angola, optando por aderir aos objectivos dos movimentos africanos de oposição e resistência às colónias europeias, onde o PAIGC acabaria por contar com a sua colaboração.
Dos diferentes itinerários e das muitas experiências vividas ao longo de cada um deles, o dr. Mário Moutinho de Pádua decidiu publicar em livro as suas memórias a que deu o título de «No Percurso de Guerras Coloniais, 1961-1969», Edições Avante, 2011. Trata-se de um tema já abordado no Blogue da iniciativa do camarada Beja Santos que nos presenteou com as suas esclarecedoras «Notas de Leitura» [P10184].
Deste trabalho divulgado no poste supra, tomámos a liberdade de citar, com a devida vénia, alguns fragmentos, com destaque para os elementos sócio históricos que considerámos relevantes, justamente para enquadramento da presente narrativa.
Em primeiro lugar, é de referir que este cidadão português, natural de Coimbra, filho de um conhecido e respeitado advogado e notário com escritórios em Luanda nos anos cinquenta/sessenta do século passado, ficará na história da Guerra Colonial/Ultramar como sendo o primeiro oficial do exército português [alferes miliciano] a desertar em Angola, em outubro de 1961 [portanto, seis meses após o início do conflito], na companhia do [1.º] Cabo Alberto Pinto, para se juntar [em?] [não conseguimos confirmar a opção deste segundo militar] aos movimentos de libertação. [http://recordacoescasamarela.blogspot.pt/2012/07/o-passado-presente-agora-novo-jornal.html].
Para melhor entendimento do percurso narrado pelo autor sobre as suas experiências, eis uma Sinopse [https://www.wook.pt/livro/no-percurso-das-guerras-coloniais-1961-1969-mario-moutinho-de-padua/11518509]:
“O autor foi o primeiro oficial português a desertar em Angola, em 1961. Neste livro narra a sua impressionante experiência a seguir à deserção, nomeadamente as prisões e torturas de que foi alvo no Congo, a sua passagem pela [ex] Checoslováquia e o seu desencanto com vários aspectos do “socialismo real”, a sua participação na construção de uma Argélia recém-libertada do colonialismo, e por fim a sua contribuição como médico na luta travada pelo PAIGC na Guiné”.
Quanto à sua colaboração com o PAIGC, ela inicia-se com a sua chegada em 1967 a Conacri [um ano depois de ter ocorrido semelhante situação com o primeiro contingente de “internacionalistas” cubanos, do qual faziam parte nove médicos]. As suas primeiras actividades clínicas acontecem no Lar do Combatente, em Conacri, onde trata os guerrilheiros feridos e doentes.
Decorrido algum tempo [pouco] sente a necessidade de realizar outras tarefas mais consentâneas com as suas habilitações académicas, vindo a concretizar esse objectivo poucas semanas depois com a sua transferência para o Hospital de Boké [julho de 1967]. Aí trabalha em cooperação com a equipa de médicos e enfermeiros cubanos, aonde os recursos clínicos eram muito limitados.
Essas lacunas estavam já identificadas há algum tempo como prova o telegrama abaixo dirigido, em 11 de abril de 1967, ao «Comité de Solidariedade Afro-asiático Thallmann Platz, em Berlim», por Amílcar Cabral.
Com tradução do francês, eis a sua transcrição na íntegra:
Telegrama ao Comité de Solidariedade Afro-asiático Thallmann Platz 8/9 Berlim
“Face situação muito grave motivo falta total medicamentos colocando perigo vida vários combatentes feridos e elementos população vítimas bombardeamentos lançamos premente apelo envio urgente quantidades medicamentos possíveis nomeadamente álcool, mercurocromo, curativos, algodão, antibióticos, antipalúdicos (antimaláricos), antidiarreico, soro, leite STOP Confiante vossa solidariedade esperamos confirmação expedição endereço PAIGC BP [caixa postal] 298 Conacri STOP Fraternais agradecimentos
Amílcar Cabral
Secretário-geral do PAIGC
BP 298 Conacri, 11 abril 1967"
Citação: (1967), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34963 (2016-11-8)
No âmbito da sua missão, [certo dia?] o dr. Mário Pádua desloca-se a uma base guerrilheira no interior do território guineense [Frente Sul], aonde tem contacto com a enfermaria aí existente. Era uma base com uma dezena de cabanas enquadradas e camufladas pelas copas de grandes árvores, e aonde havia uma sala de operações. Ao observar o seu interior ficou surpreso com a extraordinária limpeza do solo, para além de existir uma enfermeira afugentando as moscas durante as intervenções cirúrgicas.
Passadas algumas semanas abandona Boké [agosto de 1967], sendo transferido para Ziguinchor, no Senegal, e colocado no Lar do Combatente, que havia sido criado há pouco tempo.
Os meios postos à disposição do PAIGC, como já foi referido anteriormente, eram rudimentares, onde nas suas bases os guerrilheiros passavam toda a casta de provações e muitas vezes subalimentados, e onde os combatentes feridos estavam em primeiro lugar. Refere que estes logo que desembarcavam assistia-se ao espectáculo de feridas enormes, abertas, que já não se podiam suturar, dado o intervalo de tempo que decorrera após a lesão [alguns dias].
(...) "Eu [Mário Pádua] e os enfermeiros guineenses, meus colaboradores, limpávamos os tecidos infectados com água oxigenada, cortávamos os tecidos mortos e terminada a limpeza cirúrgica tentávamos aproximar os bordos esticando a pele com adesivo. Sucedeu, em feridas fundas e com pequeno orifício de entrada, que quando retirava a sonda exploratória, me vinha ao nariz o cheiro inconfundível da gangrena gasosa.
"Um dia comecei a tratar um soldado que tinha o braço direito muito destroçado embora não sangrasse. Estas limpezas cirúrgicas em geral demoravam horas. Este doente não se queixava de dores. Quando terminei, pele, músculos, vasos e nervos de um dos membros superiores tinham praticamente desaparecido. Apenas restavam os ossos completamente descarnados. Nestas circunstâncias só restava a amputação." (...)
Refere ainda que os guerrilheiros passavam literalmente fome, para além de serem anémicos. No Lar de Ziguinchor momentos houve em que a alimentação estava reduzida a arroz. Por isso valoriza o excessivo sofrimento dos combatentes.
Acrescenta que “quando os feridos demoravam dias para chegar a Ziguinchor, as larvas fervilhavam nos tecidos expostos. O que fazia parte da rotina da guerra e me deixava estupefacto era o transporte dos feridos e doentes por zonas flageladas, vinham em macas fabricadas com troncos. O esforço físico exigido dificilmente se pode conceber”.
Entretanto, durante a sua presença em Ziguinchor, o dr. Mário Pádua contabiliza duas experiências únicas, estas relacionadas com dois militares portugueses que, quis o destino, ali foram parar, por motivos diferentes: um por deserção, estratégia, improvidência, fuga voluntária para a prisão ou outra razão difícil de provar [que só o próprio saberá qual foi], o outro para sobreviver aos ferimentos em combate depois de ter sido capturado por grupo de guerrilheiros, o que veio a verificar-se… e ainda bem!
Capa do livro "Desertor ou patriota" |
Esta história foi contada pelo próprio e publicada em livro com o título «Desertor ou Patriota», Editora Ausência, 2004, e que constava já do espólio de memórias do Blogue, por iniciativa do camarada Virgínio Briote [P3371, de 2008], do camarada Beja Santos na sua tradicional e importante coluna «Notas de Leitura» [P6776, de 2010] e do camarada Jorge Lobo, companheiro do David Costa na CART 1660 [P7351, de 2010].
Este episódio, ao ser recentemente resgatado como tema em debate da nossa tertúlia “desertores” [P16686], originando novos comentários com diferentes perspectivas, levou-me a adiar a conclusão desta narrativa, alterando-a, inclusivamente, para não ser repetitivo.
Da investigação realizada na Casa Comum, Fundação Mário Soares, encontrei umas notas de Amílcar Cabral, escritas nos primeiros dias de janeiro de 1969, onde refere:
“Depois de sair daí [passagem de ano de 1968 na Frente Sul], tive más notícias que são as seguintes:
A priemrias relatuva a baixas do PAIGC, na sequência do ataque a Gantur+é, em 6/1/1969… [a desenvolver em próxima narrativa].
“A segunda má notícia é que o Daniel Alves [será que era o nome de guerra de Daniel Costa, ou estaremos perante outro desertor com o mesmo nome próprio?] conseguiu enganar a malta e fugiu em Dakar. É um facto banal numa luta (deserção ou traição), mas pode complicar-nos muito a vida em relação aos amigos. Vamos ver como é que as coisas se passarão, mas é pena que nos tenhamos deixado enganar dessa maneira, tanto mais que sempre desconfiámos do Daniel [?] que a estas horas já deve estar com os tugas. […] Quanto ao Daniel [?] até pode-nos servir de propaganda, mas o diabo são os amigos que têm medo de tudo”. […]
Arquivo Amílcar Cabral > Documento, s/d, de Amílcar Cabral, em que dá a notícia do desaparecimento, em Dacar, do desertor português Daniel Costa...
Citação:
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34366 (2016-11-8)
O segundo, de nome Manuel Fragata Francisco [ou Manuel Fragata], soldado da CART 1690 [1967/1969], sediada em Geba, ao participar na “Op Invisível”, realizada a 19 de dezembro de 1967, na mata do Óio, é gravemente ferido, sendo aprisionado e levado para a base de Sinchã Jobel. Desta base seguiu depois, certamente, por Sará, Morés, Maqué, Naga e Sambuia, em direcção ao Hospital de Ziguinchor, onde foi recebido e tratado pelo dr. Mário Pádua.
Sobre esta ocorrência, o camarada A. Lopes Marques refere nos [P45 + P15202} que o cmdt do PAIGC, Agostinho Cabral de Almada, com nome de guerra “Gazela”, lhe contou que o soldado Fragata foi atingido pelos estilhaços de uma granada de RPG2, tendo ficado “furado” e, por consequência, impossibilitado de caminhar. Ficou prisioneiro, e levado de maca [talvez de troncos onde, certamente, a sua dor e o sofrimento seriam constantes em cada batimento cardíaco] desde a mata do Óio até ao Hospital de Ziguinchor, em Casamansa, Senegal [aonde terá chegado muito perto do Natal de 1967].
Mapa da Guiné-Bissau > Indicam-se os prováveis itinerários utilizados pelo David Costa (a vermelho) e o Manuel Fragata (a azul) até Ziguinchor.
Aí permaneceu cerca de dois meses e meio em recuperação, sob os cuidados do dr. Mário Pádua, até que em 15 de março de 1968 foi entregue à Cruz Vermelha do Senegal e repatriado, por via aérea, para Portugal, onde ficou internado no anexo do Hospital Militar Principal, na Rua Artilharia Um, em Lisboa.
Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > 15 de março de 1968 > Entrega de prisioneiros portugueses à Cruz Vermelha do Senegal (Reprodução com a devida vénia...)
Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44075 (2016-11-8)
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 05224.000.038Título: Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal
Assunto: Osvaldo Lopes da Silva durante a entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal, em Dakar [Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco].
Data: Sexta, 15 de Março de 1968
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias
_________________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 18 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)
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