"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2017:
Queridos amigos,
Daniel Gouveia foi vasculhar a correspondência que enviou à sua dama e deu-lhe forma de uma soberba viagem humana, em pontos do Norte de Angola. Não enfatiza os tiroteios das emboscadas, o pavor dos fornilhos, as provações de imensas patrulhas, por todo aquele território imenso. Dá-nos a revelação, sem uma ponta de jactância, de que esteve ali a aprender e a cuidar em consonância com as suas possibilidades.
Em vez do tumulto ou da crispação, a sua narrativa é bonacheirona, todo o seu olhar é amplo por onde aquela terra o permite, pode sufragar as pitadas teóricas que levava de etnologia e etnografia.
Este livro é um testemunho de crescimento, onde não faltam fotografias prodigiosas, imagens que vão ao encontro do texto, são o rosto de todo esse processo de aprendizagem que constituiu um privilégio para muitos combatentes, o saber de experiência feito.
Um abraço do
Mário
Cartas do mato, por Daniel Gouveia (3)
Beja Santos
De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável
“Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África 1961-75”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos continuar a dar atenção a
“Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015.
O que distingue este escritor dos seus pares, é o permanente estado de espírito, o sentido da observação, a vontade de aprender, a capacidade de se deslumbrar, de com pouco fazer muito, estar atento aos problemas da sua gente e das populações. Já está em Quiximba desde Julho de 1968, em Maio do ano seguinte inicia-se a Operação Robusta, que deslocará quatro mil homens e mulheres, sustentáculo de numerosos grupos do MPLA. Vamos ficar a dever a este escritor magníficos parágrafos, é grande a expectativa que reina no povoado, desabafa na carta para a sua dama:
“Para mim a coisa terá ainda mais interesse: desiludido pelo contacto com populações que os padres, os chefes de posto, o transístor e a tropa se encarregaram de deteriorar, do ponto de vista etnográfico, vou voltar a ter matéria de estudo. Sabendo como as populações africanas são ligadas à terra onde nasceram, sabendo como em tantos pontos se fracionam e individualizam de região para região, vai-se assistir ao transplante de um grupo étnico para uma região que não é sua, onde não tem, onde a língua é diferente, como diferentes são a paisagem, o clima, os recursos. Acrescentam-se problemas políticos. Essas famílias vêm com uma acusação às costas. Serão controladas militarmente, num regime de semi-internamento, de prisão sem grades”.
Aquilo que ele chama deportação em massa acontece dias depois.
“O que a administração civil tinha preparado para os receber revelou-se insuficiente. A maior parte não coube nos abrigos rudimentares de capim. Ficaram no chão, ao relento, e de manhã as camisas dos que nem uma manta tinham podido trazer colavam-se-lhes ao corpo, completamente encharcadas do cacimbo”. Começa a adaptação, quem chega vai preparando a comida, recebeu panelas, pratos, talheres, púcaros, enxadas e duas catanas. Vai nascer vida:
“As famílias ocupam os talhões que a máquina niveladora lhes dividiu e estão a construir casa própria, de pau-a-pique e capim, antes da definitiva, de adobes. Vêem-se em cada talhão uma pequena cabana de capim, um monte de imbambas (tarecos) onde não falta, às vezes, uma bicicleta ferrugenta ou uma máquina de costura, e a família propriamente dita: o pai a afiar uma catana para cortar mais paus e mais capim, a mãe a regressar do rio com uma panela de água à cabeça, um filho nas costas e outro na barriga, os miúdos de roda do pilo, a pilar mandioca no jeito caraterístico e ancestral de espetar o rabo e encurvar os rins quando o pilão vem abaixo”. Nosso alferes faz perguntas, medita nas respostas, procura perscrutar o que virá mais adiante. A sanzala vai crescendo, as operações continuam, não se vive só com a preocupação de realojar as 1140 pessoas da dita “Operação Robusta”.
O novo destino da Unidade do nosso alferes é Marimba, três casas de comerciantes brancos, a Casa da Administração, o Armazém do Algodão (empresa COTONANG), a casa do guarda do armazém (branco), o posto da Junta Autónoma das Estradas e o Quartel. A missão da tropa é estar, patrulhar, cumprimentar o soba, nosso alferes irá comandar o destacamento de Mangando, a 50 km de Marimba. Por lá irá aparecer o padre Campos, a capelanar. Não se perde a ocasião para descrever uma brejeirice, contada pelo próprio padre Campos:
“Ouvia em confissão uma mulher. A certa altura, o filho que ela trazia às costas aparece a espreitar, por trás da cabeça dela. Encara-o com o padre, estranha-lhe o claro das feições e começa num berreiro. A mãe, sem deixar de contar os seus pecados, introduz a mão no decote, saca uma bem fornecida e avantajada mama, passa-a por debaixo do braço, mete o mamilo na boca do miúdo, que se calou depois de uns grunhidos de satisfação, continuando a confissão, imperturbável”.
A guerra de nosso alferes é agora diferente: é a guerra de informação, ambiente de fronteira, diplomacia a nível internacional, troca de salamaleques com os sobas e as rainhas nativas. É nestes termos que se pode também avaliar como se distinguiam os três teatros de operações, o que ele vai dizer era impensável na Guiné:
“Militarmente, comando uma área correspondente a metade do Algarve, com este quartel, onde está apenas o meu pelotão, e mais outro mesmo sobre a fronteira, na margem de cá do rio Cuango, num sítio chamado Tembo Aluma. Do outro lado, uma povoação no Congo-Kinshasa, da qual podemos ver as sanzalas. Um pouco mais a Sul, vê-se o quartel da UPA de Quizamba. O quartel do Tembo é ocupado por dois pelotões de tropa indígena (GE), constituindo o Grupo Especial n.º 205. São armados por nós, mais ou menos mercenários, absolutamente fiéis na medida em que têm a cabeça a prémio do lado de lá da fronteira”.
Ainda irá a Marimba, mas Mangando marcou-o profundamente, a sua capacidade de observar e ironizar continua num ponto elevado, um exemplo:
“O ‘pretoguês’ ainda é mais atrasado que o do Tomboco ou Quiximba. Nas sanzalas ninguém fala senão mahungo ou quimbundo, e os que se abalançam a articular a língua de Camões dão completos espetáculos. Habituados a que se fale com eles na segunda pessoa, respondem do mesmo modo, tratando por tu e tudo:
- Noss’Arfer vais descurpar, mas eu tens que ir embora.
O alferes Alhinho, perguntando ao seu lavadeiro porque é que a roupa não estava pronta, visto tê-la entregado no dia anterior, ouviu a seguinte resposta:
- Dormiste no Omo, noss’Arfer…
Queria ele dizer que a roupa ficara, de um dia para o outro, mergulhada no detergente OMO”.
Ficou dito atrás que comanda GE. Dedica-lhes a seguinte observação:
“É curiosa a sensação, quando lá vou e recebo as honras militares devidas, de que comando um bando de assassinos. Mas que hei de fazer? Meteram-mos na mão. Não os posso modificar na sua essência étnica, velha de séculos: um grupo de aguerridos mahungos, que ainda limam os dentes em bico para atemorizar o adversário, a quem o meu Governo deu instrução militar, armas e uniformes, é certo, mas mahungos de cabeça aos pés, para quem a guerra, quanto mais cruel, mais digna é. São ótimos soldados. Esforçados, obedientes, de uma resistência inaudita, qualquer deles excelente pisteiro”.
Vai dando notícias do estado dos movimentos de libertação, naquela época o vento soprava de feição para o lado português, naquela região, as autoridades congolesas estavam dispostas a impedir a presença da UPA, que não dava mostras de largar a fronteira.
É impossível ler estes troços de cartas sentindo tédio ou procurar analogias com o que sobre a guerra se escreveu, o sulco que se gravará nas nossas memórias é de uma prosa bonacheirona, não há travos de azedume, calhandrice, maledicência. Nosso alferes procurou sempre tirar bom partido dos processos de aculturação, a seu favor e dos outros, tratando com dignidade até as confusões do uso atrabiliária da língua portuguesa, e assim nos despedimos saudando a obra e recomendando-a de forma incondicional:
“Ao pôr do sol, o João, lavadeiro da messe e moço de recados, pede licença para entrar no quarto dos alferes, mas fica à porta respeitoso.
- Que é que queres?
- Venho buscar o Pedro Marques.
- Quem?
- O Pedro Marques, noss’Arfer…
- Mas não há cá ninguém com esse nome…
- Esse Pedro Marques aí, noss’Arfer… P’ra acender…
E apontava para o candeeiro PETROMAX que estava na mesa-de-cabeceira”.
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Nota do editor
Postes da série de:
14 de agosto de 2017 >
Guiné
61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato,
Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora,
2015 (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de agosto de 2017 >
Guiné 61/74 - P17681: Notas de leitura (989): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)