terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25431: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II)

Belmiro Tavares

2023/24


Na época em que procurávamos cativar os guineenses que viviam na miséria mais execranda, no Senegal e convencê-los a instalar-se em segurança quase total, em Binta, o chefe da ex-tabanca de Ujeque informou que, quase em frente à sua tabanca e perto de Guidage, havia um acampamento de pessoal não combatente – não tinham armas em sua posse.

O 3.º pelotão da CCaç 675, o do alf. Tavares, foi enviado àquela zona para encontrar e desativar o tal acampamento. O 3.º GComb seguiu, em viaturas, até Ujeque; ali, o pessoal apeou-se os veículos rumaram a Guidage onde permaneceriam até serem chamados.

O pessoal do 3.º pelotão, logo, se embrenhou no capim e, em breve, avistou um jovem encarrapitado num morro de bagabaga; seria um sentinela afastado. O 3.º pelotão aproximou-se, cautelosamente, do sentinela; quando já não era possível acercar-se do vigia sem serem vistos, o Tavares ordenou ao guia, Malan, que o convidasse a vir até nós. Houve troca de palavras entre os dois; logo, nas calmas, o sentinela desceu do morro e… seguiu, sem correrias, em direção ao acampamento. Um soldado perguntou ao seu alferes:
- Atiro?
- Não! – respondeu o alferes
- Ele vai avisar os outros!
- Tanto melhor! Eles debandam e não há mortos! É melhor assim!

Em breve chegámos ao acampamento… já despovoado. Havia ali panelas ao lume (faltavam toalhas e talheres nas mesas… que não vimos); o pessoal havia debandado, em segurança.

Retirámos todos os seus pertences das barracas e colocámo-los onde as chamas não chegariam. O acampamento foi destruído – não queríamos intrusos no nosso território! Mais tarde, eles voltariam ao local para recolher os seus bens não danificados.

Os nossos carregadores (milícias) vieram de mãos a abanar. Não houve pilhagem! O mais importante aconteceu: não houve mortos e aquelas pessoas não perderam os seus parcos pertences. Uns tempos mais tarde, aquele pessoal rumou a Binta, onde se instalou para iniciar uma nova vida, sob a proteção da nossa tropa – encontraram, ali, a sua “terra prometida”.

Conclusão: uma guerra sem mortos será quase inconcebível mas aconteceu, naquele mísero acampamento, entre Ujeque e a fronteira do Senegal. Há dias de sorte!

Em sentido contrário, vamos contar um caso miserável, aberrante, que ocorreu já perto de Buborim numa das primeiras vezes, em que nos aproximámos do limite oeste da nossa zona. A claridade matinal já inundava, afavelmente, a floresta densa. O silêncio era quase total! Três pelotões seguiam, paulatinamente, quase sem ruídos, rumo ao limite oeste da nossa zona. Eis que os soldados da frente avistam três homens (pessoal desarmado) que, despreocupadamente, caminhavam, estrada fora, em nossa direção. Iriam procurar fruta e hortaliça que iam crescendo nas aldeias abandonadas. Os soldados da cabeça da coluna ocultam-se entre o capim. Alguém (crê-se que apenas um combatente) dispara cruelmente: um morreu logo, outro ficou gravemente ferido e o terceiro (cremos que ileso) conseguiu fugir daquele local azarento. Alguém desobedeceu, estupidamente, às ordens do nosso benigno capitão.

O fur. mil, Oliveira, começou a tratar, desveladamente, o ferido, embora o seu estado aparentasse ser muito grave.

O nosso afoito capitão estava inconsolável! Não dizemos de “cabeça perdida” porque tal nunca aconteceu! Pior ficou quando ouviu o ferido clamar, repetidamente:
- “Quero falar com o capitão!”

Pouco depois, o nativo entregou a alma a Allah!
Nós não sabemos, com certeza, quem foi o autor dos disparos… já não interessa!

No texto anterior, falámos de uma figura catita da CCaç 675; desta vez, vamos falar de outra ou outras personagens com certo carisma e que nos acompanharam na Guiné durante dois anos muito longos – ponham longo nisso! Não há regras para tal escolha mas falaremos de muitos, certamente. Não interessa a ordem. O próximo caso será aquele a quem o fur. mil. enf. Oliveira, já falecido, também, apelidou de “homem tranquilo”. Este epíteto assentava-lhe que nem uma luva! Como devem calcular, trata-se do soldado n.º 2326, Jerónimo Justo (o seu nome completo) que pertenceu ao pelotão do nosso caríssimo amigo, alf. Santos. Era um soldado extremamente calmo, educado e bem-falante. Colocava as palavras com rara precisão. Faleceu há uns anos mas os filhos (Natália e José Luis) passaram a acompanhar-nos. Em 2022, o filho, José Luis a sua esposa, Maria de Lurdes e o filho, Tiago estiveram connosco em Famalicão e em Évora.

Devido à ausência forçada da nossa cobradora habitual, Maria Luisa Figueiredo, a nora do soldado Justo acompanhou o Tavares na cobrança e cumpriu cabalmente a sua missão. Até parecia, já, um velho elemento da CCaç 675; afinal era a primeira vez que ela se via entre a nossa rapaziada. Em setembro de 2023, repetiu a dose – agora é já um elo inquebrantável da CCaç 675.

Em 2023, a filha do soldado Justo, Natália (agora Cardoso) compareceu em Santo Tirso; trouxe o filho, Ruben e a sua namorada, futura neta do nosso companheiro. O Ruben é um “velho” conhecido. Quando o vimos pela primeira vez, ele teria quatro anos; era o companheiro do avô, já acamado. Hoje, abeira-se dos trinta e trouxe a namorada, Denise – é a mais nova aquisição da CCaç 675. Foi “obrigada” a prometer que não mais faltará às nossas confraternizações. Nós não pagamos trespasses nem ordenados chorudos! Isso acontece no futebol! Nós queremos dar e receber amor, fraternidade, amizade pura e camaradagem: estas são as nossas moedas.

Voltemos ao soldado, Justo. Cerca de um ano, após a sua morte nos ter sido anunciada – obra de um companheiro que vive na zona de Gondomar, sold. at. n.º 412, Manuel Cardoso – fomos (o Oliveira, o Moreira e o Tavares) colocar a lápide na sua sepultura, no cemitério de Gondomar. Após várias tentativas falhadas para encontrar o seu sepulcro (o cemitério era grande e disforme e uma parte encontrava-se em obra de ampliação) pedimos ajuda a um coveiro, ali presente. A sepultura do Justo estava, ali, ao lado. Ficámos aturdidos! Totalmente desconcertados! Se tivéssemos ido colocar a lápide, logo que soubemos do desenlace, tê-la-íamos entregado ao próprio… ainda vivo. O Justo tinha sido sepultado, precisamente uma semana antes da nossa ida ao cemitério. Nunca soubemos como aconteceu tal engano. Agora não interessa. Já lá vão tantos anos e… o crime (?) já prescreveu.

Estávamos os três companheiros a conversar com o coveiro, quando este anunciou que a viúva do Justo se aproximava, trazendo um braçado de flores frescas para substituir as que lá colocara na véspera.

Segundo o coveiro, ela ia, lá, diariamente. Perante esta informação, o Tavares dirigiu-se à senhora, anunciando-se. Ela ficou enormemente surpreendida por ter, à sua frente, os velhos amigos do seu marido. Ela comentou, textualmente:
- Recordo, perfeitamente, o seu nome. Quando o senhor telefonava ao meu marido, eu atendia e passava-lhe o telefone. Quando isto acontecia, ele ficava tão contente! As suas cartas eram o maior tesouro dele; ele guardava-as religiosamente, em memória dele, eu guardo-as todas com muito carinho.

Anos volvidos, a viúva do Justo acompanhada por toda a família, encontrou-se connosco, num restaurante, em Santo Tirso, onde realizámos mais uma confraternização com as gentes do norte. O fur. enf., Oliveira esteve presente, também. Esta “mini” foi organizada pelo companheiro Mário Pinto que não se poupou a esforços e nada falhou. Antes do repasto, o Tavares ligou ao nosso general, anunciando que “a ala norte da CCaç 675 está reunida”. O telefone passou de mão em mão e todos falaram com o nosso magnífico comandante.

Já é tempo de falarmos mais um pouco do nosso amigo e companheiro, Jerónimo Justo – antes que seja demasiado tarde.

Ele era, sem sombra de dúvida, o militar mais calmo da companhia; era também um dos mais cumpridores, apenas… porque sim. Nunca foi visto exaltado com quem quer que seja; qualquer desaguisado que, porventura surgisse, era resolvido no diálogo e sem qualquer irritação. A sua voz muito gutural nunca subia de tom. Não era necessário impor-lhe nada, porque ele, sabendo o que deveria ser feito, dedicava-se de alma e coração a qualquer tarefa a que o serviço obrigasse e levava os companheiros na sua cola. Para ele, o serviço era sempre “coisa séria” e ele cumpria a contento. Quer no aquartelamento quer em pleno mato ele dava nas vistas pela sua calma e serenidade. Como lhe assentava bem o epíteto “homem tranquilo” que o nosso dileto amigo fur. mil. Oliveira, (era também o nosso cronista-mor) lhe atribuiu.

A sua roupa andava sempre impecável! Ou ele tinha um ferro de engomar sabia usá-lo ou Malan Turé tratava melhor da roupa do Justo do que da dos outros. Era exemplarmente cuidadoso e apresentava-se sempre devidamente fardado.

Mesmo em pleno mato, onde podíamos ser surpreendidos com tiros, a qualquer momento, se o Justo necessitava limpar o nariz ou o suor do rosto, ele não tinha pressa: desdobrava “tranquilamente” o lenço, limpava o nariz ou o rosto sem o amarrotar; logo, o dobrava, impecavelmente, antes de o introduzir no bolso. Era caso único! Enquanto procedia a tais tarefas se, algum dia, ouviu tiros, cremos que ele não deixaria de dobrar, devidamente, o seu lenço antes de o reintroduzir no bolso; depois, responderia ao fogo dos adversários, se fosse necessário. Era quase inacreditável mas era mesmo assim!

Se se encontrava no aquartelamento, meia-hora antes do almoço ou do jantar, o Justo iniciava a lavagem cuidada da sua marmita; depois da refeição, ele procedia a nova à lavagem da mesma, que era o seu prato de todos os dias. Poderíamos dizer que era a sua imagem de marca! Nunca mudou o seu comportamento, durante aqueles dois longos anos, desde maio de 1964 a fins de abril de 1966. Foram longos para caramba! Mas ele não alterou em nada a sua maneira de ser!

Para amenizar o ambiente pesadíssimo em que vivíamos, o nosso pessoal, nos intervalos da guerra, arranjava maneira de se divertir e fazer rir os companheiros. Outras vezes, inventavam artimanhas para poupar dinheiro que, naqueles tempos, era tremendamente caro e era sempre pouco.

Aproveitamos para lembrar que, na Guiné um soldado ganhava cerca de 2.500$00 mensais; como podia deixar à família, até 60% daquele montante recebia, lá, cerca de “900 pesos” (peso era o escudo da Guiné). Este montante não era fixo; variava de acordo com o número de dias de cada mês. Um soldado ganhava mais em janeiro que em abril; para ele, o pior mês do ano era fevereiro.

Um dia falei disto com uns adolescentes. Um deles, mais perspicaz, argumentou, com certa razão e alguma ironia:
- Se bem percebi, um soldado ia para a guerra, arriscava a vida, durante 24 horas por dia e recebia, mensalmente, algo como €4.50 (quatro euros e cinquenta cêntimos).
- É verdade! Respondemos: Mas tinha cama, mesa e roupa lavada (se a lavasse), uma espingarda para se defender ou atacar os adversários e não pagava as munições que gastava; o bilhete para viajar nas viaturas militares com assentos de ripas… duras para caramba… era gratuito.
- Mesmo assim, era uma barbaridade! Se, como disse, uma cerveja custava dez escudos, se o soldado bebesse uma mísera cerveja por dia, gastava quase a totalidade do salário. E o resto? Ele teria outras necessidades!
- É verdade! Mas, antes de mais, não deves falar em “mísera cerveja”, pois tratava-se de uma garrafa de 0.70 ctl (70 centilitros) era o dobro da capacidade das de cá; por outro lado, com novecentos escudos, um soldado podia comprar trezentos maços de tabaco de qualidade acima da média. Hoje, com €4.50, tu podes comprar apenas um maço, se… não abusares na qualidade.

Podemos concluir, brincando, que Salazar não pagava tão mal quanto parece mas… enviou-nos para aquela guerra miserável de má memória. Fomos enviados para a Guiné! Este era, de longe, o pior destino. - Divertindo-nos mais um pouco. A guerra serviu, acima de tudo, para “desemburrar” os nossos jovens, principalmente, os que nasceram na província profunda, lá, onde Judas poderia perder as botas se por lá passasse, algum dia. Naquele tempo – dizia-se – “o país vivia fechado, isolado da civilização”; a maioria dos mancebos ia à tropa mas, regra geral, quedava-se, num dos quarteis do distrito.

Recordo um conterrâneo (uns quinze anos mais velho que eu) que assentou praça em Abrantes. Que absurdo! Foi parar ao fim do mundo! Durante meses, todas as mães daquela aldeia reuniam-se, à tarde, em casa da mãe daquele azarado magala e rezavam para que ele voltasse, em breve, são e salvo; consideravam que Abrantes ficaria “sete cabos de machado” para além do inferno que, só por si, já ficaria incrivelmente afastado do mundo.

Normalmente, os jovens casavam na aldeia, onde nasciam ou num qualquer lugarejo vizinho. A guerra “libertou-os”! Depois do regresso, muitos emigravam – a França era o destino da maioria. No entanto, cremos que não deveria ser necessário “inventar” uma guerra ou responder a quem a criou para abrir os olhos aos jovens.

Nós, os componentes da CCaç 675, aos quais, por sorteio, coube um capitão como não havia outro, conseguimos criar uma família com 160 elementos “dantes quebrar que torcer”, amigos de todas as horas e muito mais do que isso. Se não tivéssemos ido à guerra e, se não pertencêssemos à CCaç 675, não estaríamos, hoje, aqui, a confraternizar e honrar os nossos mortos. No entanto, será aconselhável esquecer as coisas más da vida, preservando o lado bom porque… tristezas não pagam dívidas!

Depois de tanto divagar, voltemos ao nosso tema: - os ardis dos nossos rapazes para economizar uns magros cinquenta escudos por mês e a dividir por dois, não podem ser lançados à feras.

Dois dos nossos companheiros engendraram um estratagema para poupar uns “pesos” na lavagem da roupa. Marcaram a roupa de um com uma linha e apenas um enviava a roupa dos dois para a lavadeira. Tudo correu como esperado, durante algum tempo mas, eis que a lavadeira descobre a marosca, talvez porque a roupa marcada seria de tamanho diferente da outra ou porque este militar enviava para a lavadeira mais roupa que qualquer outro. A “negrinha” (lavadeira) não era tão inexperiente como eles pensavam. Os dois bons malandros começaram a pagar cinquenta escudos cada um, como os outros, e não apenas 25$00. E há quem diga que a lavadeira “não tem esperto nos cabeça!”. Tiveram sorte porque ela não sabia, ainda, o que eram retroativos. Os “engenhocas” nem sempre são bem sucedidos.

Quem foram os espertalhões? Podem acusar-se porque não será aplicada qualquer punição. O caso há muito, já prescreveu mas teve a sua graça. Esta quase anedota “viveu”, na clandestinidade, durante mais de cinquenta anos, mas… agora, encontrou a luz do dia. Iniciou uma nova vida! Avante, valentes da Gloriosa CCaç 675!

Mudando um pouco o azimute… lembram-se do soldado n.º 2169, João Nunes do Nascimento, do 3.º pelotão? Que foi o nosso último morto em combate. Pois bem! Lá, na sua aldeia, natal, Sarzedas, às barbas de Castelo Branco, a junta de freguesia decidiu prestar uma singela mas honrosa e merecida homenagem ao jovem herói da terra, morto em combate, em defesa da Pátria, na Guiné, no dia 30 de julho de 1965. Faltavam quase nove meses para o fim da nossa comissão! O que aconteceu era impensável, naquela época. Ninguém imaginaria que tal coisa, ou algo semelhante, pudesse acontecer-nos! Mas a vida é feita de surpresas!

Lá, no meio da aldeia, existe um pequeno largo e a Junta decidiu dar a essa “praça” o nome do nosso companheiro e amigo. Alguém terá alvitrado que o tal largo seria demasiado pequeno para perpetuar a memória dum jovem que, sem regatear, deu a vida pela Pátria.

À margem daquela praça, havia uma casa que pertencera aos pais do Nascimento. Os irmãos do nosso companheiro decidiram doar o imóvel à Junta para que a praça pudesse ser alargada, adquirindo, assim, uma maior dimensão e uma aparência mais significativa. Os herdeiros prestaram assim uma significativa homenagem ao irmão, João, o nosso companheiro. É louvável a atitude dos irmãos, principalmente, porque, na província, as pessoas são muito ciosas dos seus bens, particularmente, dos que herdaram dos seus maiores. Neste caso, os irmãos esqueceram a parte material, dando prioridade ao espiritual.

Cabe aqui lembrar (ou informar) que os pais do Nascimento, na companhia de uma filha, tomaram parte em duas das primeiras cinco reuniões que tiveram lugar em Lisboa – missa na Igreja da Luz e almoço, no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Pediram desculpa e deixaram de comparecer, devido à sua idade já avançada e… às dificuldades de transporte.

Anos mais tarde, a mesma irmã, o marido e outro irmão do Nascimento tomaram parte em várias reuniões – a última das quais, em Aveiro, de triste memória pela maneira como fomos, ali, tratados e… estávamos num quartel de paraquedistas! Enorme bronca! Hoje, a irmã do Nascimento vive num asilo e o irmão já faleceu. A lápide, em memória do Nascimento foi colocada na sua sepultura pela irmã (de quem falámos) na companhia do Santo Marques, o apontador de morteiro, ferido em Caurbá e do Tavares. Certamente, esta nossa atitude terá despoletado a decisão da Junta… ou talvez não…

Sabemos que as obras de alargamento e remodelação estão em andamento mas são obras públicas e, nas pequenas freguesias do interior o dinheiro não abunda; por vezes surgem obras mais ou menos prementes e tudo se complica. Convenhamos que, em nosso modesto entendimento, a homenagem a um herói da Pátria não deveria – não poderia, em acaso algum, ser relegada para segundo plano. No entanto, sabemos que, nos tempos que correm, tudo pode acontecer. Basta mudar a cor política dos membros da junta. As justificações inócuas e um tanto estapafúrdias surgem fora de tempo e… o carro não se move. Aguardemos por melhores dias!

Falemos um pouco sobre este nosso companheiro. Como sabem, era natural de Casal das Águas de Verão um nome claramente bucólico – freguesia de Sarzedas. Um outro companheiro, o soldado n.º 2179, Francisco Lopes Mendes, chamava-lhe “Sarrazedas” – eram bons amigos e, lá na santa terrinha eram quase vizinhos; pelo menos agiam como tal. Creio que já se conheciam antes da tropa.

O Nascimento era frontal mas respeitador e educado. Estava sempre disponível para qualquer serviço dentro ou fora do aquartelamento.

Um dia o alf. Tavares “teve” de ir para o mato, comandando o 1.º pelotão, o do alferes Costa, durante uma patrulha, lá para bandas de Sanjalo, quando o alf. Foitinho comandava a CCaç 675, devido ao ferimento gravíssimo do nosso mui ilustre capitão. Enquanto deglutia uns goles de café, o Tavares transmitiu ao Costa:
- Logo, à hora determinada, tu sais com o meu pelotão para nos recolher, junto à ponte sobre o rio Caur. Tal como não quero que o teu grupo saia sem um oficial, também não gosto que tal aconteça com o meu!

O alf. Costa respondeu que, à hora prevista, já estaria melhor e, de qualquer modo, sairia com o 3.º pelotão. Assim aconteceu.

O alf. Tavares recorda que o pessoal do 1.º pelotão se comportou, naquele dia, como gente adulta; parecia que já tinham andado, longos tempos sob as ordens do Tavares. Este alferes afirma que os seus subordinados, olhando para ele e pelo movimento dos lábios e dos olhos, entendiam o que ele pretendia que se fizesse. Com os soldados do 1.º pelotão, tal não poderia acontecer, pois era a 1.ª vez que atuavam sob o seu comando. No entanto, todos se comportaram como deviam e como o Tavares pretendia… não houve falhas! A boa vontade supriu a habituação. Faltava esta nota de agradecimentos aos militares do 1.º pelotão, pelo seu comportamento exemplar, naquele dia… e não só!

Mais ou menos à hora pré-determinada, os nossos três grupos de combate encontravam-se junto à ponte atrás citada, na margem esquerda do rio. Logo, o Tavares transmitiu ao Costa, como segue:
- Toma conta dos teus soldados; eu vou juntar-me ao meus.

O Tavares subiu para uma das viaturas e, logo, o Nascimento se colocou em sentido; disciplinada e educadamente, perguntou:
- Meu alferes! Dá licença?
- Sim! - Respondeu o Tavares.

Ele começou:
- Nós temos um alferes para sair connosco para o mato! Não queremos ser comandados por outro, a não ser que o senhor, por qualquer motivo válido, esteja impedido de o fazer. Se tal voltar a acontecer, certamente, nós não sairemos para o mato com outro oficial e… seja o que Deus quiser!

O Tavares argumentou:
- Hoje, antes da saída, aconteceram coisas muito desagradáveis! Não houve tempo para vos avisar e, mesmo assim, saímos com mais de meia hora de atraso. Isto, como sabem, é sempre perigoso, porque pode comprometer a segurança do grupo.

O Nascimento pretendeu desabafar (algo estava atravessado na sua garganta) e voltou à carga:
- O nosso alf. Costa não estava em condições de ir para o mato, a comandar os seus soldados mas teve condições para passar o resto da noite e manhã a agredir os dois subordinados que apenas fizeram o mesmo que ele. Isso é que nos fez sair do sério! Conduziu-nos a esta situação muito desagradável.

O Figueiras, um algarvio ciclista, sold. Nº 2033, entrou na conversa, alegando:
- Já cá não está quem falou! Está tudo devidamente esclarecido! Creio que devemos encerrar este assunto! Se possível, devemos esquecê-lo!

Em boa verdade, aquele tema passou à história, excepto, o que aconteceu, umas horas mais tarde.

(continua)

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Nota do editor

Vd. post anterior de 22 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)

Guiné 61/74 - P25430: Meu pai meu velho meu camarada (69): Henrique Gonçalves Vaz (1922-2001), último Chefe do Estado Maior do CTIG/CCFAG, foi também um cavaleiro com classe (Luís Gonçalves Vaz) - Parte I



Cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (Barcelos, 1922- Braga, 2001)



Elvas > Setembro de 1954 > Concurso Hípico de Elvas, Capitão
Henrique Vaz


Porto > 26 de Julho de 1950 > Concurso Hípico do Porto,  Tenente Henrique Vaz

Lisboa > 17 de Março de 1947 > Concurso Hípico de Lisboa,  Alferes Henrique Vaz


Mafra > CIE > s/d > Tenente Henrique Vaz e "Rovuma"


Lisboa > s/d > Concurso Hípico de Lisboa, Federação Equestre Portuguesa, 
Alferes Henrique Vaz



Torres Novas > Escola Prática de Cavalaria > Março de 1945 > 
 Aspirante Henrique Vaz na descida das Ferrarias, montando o "Vapor"


Fotos (e legendas): © Luís Gonçalves Vaz  (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Luís Gonçalves Vaz mandou-nos, com data de 18 do corrente, 16:32, um trabalho sobre o seu pai, Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado Maior do CTIG/CCFAG, que foi também um distinto cavaleiro.  (Tem 26 referências,  no  nosso blogue,  o pai; e 77, o filho.)

Como o Luís Gonçalves Vaz, nosso tabanqueiro, também foi militar (e de cavalaria), faz todo o sentido publicar este artigo, na série "Meu pai, meu velho, meu camarada", em dois postes (*).

O Luís Filipe Beleza Gonçalves Vaz tem uma publicação com a biografia do seu pai (Barcelos, 2004, 21 pp.).

 Luís, Boa tarde:

Conforme combinado, segue em anexo o Artigo para publicação. Podes rever o Artigo e corrigires o que entenderes. Acabei por enquadrar a fase de cavaleiro do meu falecido pai, com a fase de oficial superior do Estado Maior. 

Quando faleceu, a sua farda tinha apenas os símbolos de cavalaria , não os símbolos de oficial do Estado Maior, de acordo com as suas instruções em vida ao seu filho Comandante da Marinha Portuguesa, o meu irmão comandante Gonçalves Vaz. 

Depois diz alguma coisa.

Abraço, Luís Gonçalves Vaz

Anexo - Artigo "Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado Maior do CTIG/CCFAG, foi também um cavaleiro com classe"


Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado Maior do CTIG/CCFAG, 
foi também um cavaleiro com classe

por Luís Gonçalves Vaz


1.  A carreira profissional do Coronel Henrique Gonçalves Vaz tem duas grandes etapas, a primeira como cavaleiro, enquanto oficial subalterno de Cavalaria, e a segunda como Oficial do Quadro do Corpo do Estado-Maior, tendo desempenhado funções nos Quarteis Generais da Região Militar do Norte, na Região Militar de Angola,  e no CTIG /CCFAG,   na Guiné Portuguesa.

Na primeira, como cavaleiro, virá a demonstrar ser um excelente praticante de Hipismo, talvez um dos melhores do seu tempo a nível militar. Para além de ter sido, durante cinco anos 1947-48-50-52 e 53, o 1º classificado da Arma de Cavalaria em Provas de Hipismo Regimentais, participou também em muitos concursos hípicos nacionais e internacionais onde obteve também boas classificações, principalmente com dois cavalos, o “Fiado” e o “Fantoche”, cavalos do Exército Português.

Desde alferes até capitão, de 1945 a 1957, dedica-se ao Hipismo com participação em concursos hípicos, na cidade do Porto, em Pedras Salgadas, em Espinho, em Mafra, em Elvas, em Évora e mesmo participando no concurso Hípico de Lisboa.

Neste período foi contemporâneo de grandes cavaleiros portugueses como Pimenta da Gama, Henrique Callado, Jorge Mathias, Fernando Cavaleiro, Ribeiro de Carvalho, Ivens Ferraz e mesmo o cavaleiro António de Spínola, entre muitos outros. Henrique Vaz manteve por muitos anos a prática de equitação, mesmo depois de deixar de competir em provas de hipismo com obstáculos.

Como exemplo de bons resultados em Provas Nacionais de obstáculos, poderemos apontar as seguintes (vd. imagens em baixo):

  • Um segundo prémio numa prova hípica em Mafra, no mês de setembro do ano de 1951;
  • Um terceiro e nono lugar com cavalos distintos (o "Fantoche" e o "Fiado") na prova “Omnium - 1ª série”, no Concurso Hípico de Espinho em 1949; nesta Prova o capitão Gonçalves Vaz consegue mesmo dar luta ao cavaleiro Henrique Callado;
  • Em agosto de 1952, Henrique Gonçalves Vaz disputou em Pedras Salgadas a Prova “Hotéis Pedras Salgadas”, onde concorreram 46 cavaleiros, e obteve com o “Fiado”, um prestigiado 6º lugar, à frente de um grande cavaleiro como Ivens Ferraz, cavaleiro que representou Portugal nos jogos Olímpicos.


Revista de Cavalaria, setembro de 1951



Classificação (2º lugar, prémio monetário 200$00, equivalemte hoje a c. 550 euros), para Henrique Vaz, prova "Caça", 1ª série, Escola Militar de Equitação, setembro de 1951


Como jovem oficial de cavalaria nunca deixará de praticar desportos, tendo-se dedicado também à prática de esgrima na Região Militar do Norte. Posteriormente, após concluir o Curso Geral do Estado-Maior em 1955 e o Curso Complementar do Estado-Maior em 1959 ingressa, em 1960, no Quadro do Corpo do Estado-Maior, começando a segunda fase da vida profissional onde virá a demonstrar ser um excelente e distinto oficial do Estado-Maior, como comprovam todas as suas nomeações profissionais e todos os louvores e condecorações quelhe foram concedidas.

(Continua)


Braga, 18 de abril de 2024
Luís Beleza Gonçalves Vaz
(filho do biografado)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 24 de agosto de  2022 > Guiné 61/74 - P23552: Meu pai, meu velho, meu camarada (68): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte VII

Guiné 61/74 - P25429: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (35): A Casa dos Direitos (antiga esquadra policial), no centro histórico de Bissau










Guiné-Bissau > Bissau > Casa dos Direitos, na Rua Guerra Mendes, no centro histórico da cidade, a "Bissau Velha"  > Um projeto de várias organizações da sociedade civil (oito), que lutam pela defesa e promoção dos direitos humanos

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Patrício Ribeiro:  nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente,  economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem mais de 150 referências no blogue; autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bissau".


1. Mensagem de Patricio Ribeiro;

Data - sábado, 20/04/2024 11:07

Assunto - Fostos da Amura e da Casa dos Direitos

Luís,

Umas fotos da Amura, para muitos recordar (*).

Envio também da Casa dos Direitos, onde antigamente era a 1.ª Esquadra onde muitos passaram nas masmorras... e onde hoje mais uma vez vou trabalhar.

O tempo está ótimo em Bissau, mais logo devem voltar a estar 41º de temperatura.

Abraço, Patrício


2. Comentário do editor LG:

A Casa dos Direitos tem sítio na Net (um blogue)  e página no Facebook.

Ficamos a saber que, "localizada no edifício da Primeira Esquadra / Prisão de Bissau, a Casa dos Direitos é actualmente um espaço de encontro entre vários sectores da sociedade guineense, à volta da realização de um conjunto de direitos humanos."

Ver também artigo de José Alves Jana, "7Margens", 10 de dezembro de 2022 > [Crónicas da Guiné – 2] A “Casa dos Direitos”, chão sagrado dos Direitos Humanos:

(...) "Depois da independência, na altura o partido único continuou a usar este espaço como estabelecimento prisional. Era, até então, um centro de tortura, de restrição de liberdades, de violação grosseira dos DH. E mesmo depois da “abertura democrática”, funcionou como estabelecimento prisional.

As exigências internacionais obrigaram o Estado da Guiné-Bissau a criar melhores condições prisionais. Foram criados dois centros, em Mansoa e em Bafatá. Com a transferência dos reclusos, esse grupo de organizações achou por bem fazer uma transformação deste espaço – de violação grosseira dos DH para promoção e defesa dos DH. O projeto de transformação foi financiado pela Cooperação Portuguesa [na Guiné-Bissau]. " (...)  (Gueri Lopes Gomes)
_________

Nota do editor:

Último poste da série > 21 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25421: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (34): A fortaleza da Amura

Guiné 61/74 - P25428: 20.º aniversário do nosso blogue (8): Bem hajam!, a minha palavra de gratidão para os nossos editores e colaboradores (João Crisóstomo, Nova Iorque)


O nosso amigo e camarada João Crisóstomo é membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de julho de 2010, sentando-se à sombra do nosso poilão sob o n.º 432 (somos já 886, entre vivos e mortos); tem 224 referências no nosso blogue; é o régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona; foi alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67); vive em Queens, Nova Iorque, desde 1975, mas vem cá com frequência, ao seu querido Portugal; conhecido ativista social, foi-lhe atribuido recentemente o Prémio Tágides 2023 (na categoria de "Portugal noMundo")


1.  Mensagem do João Crisóstomo,  com data de 
22/04/2024, 06:27:

O 20.º aniversário do Blogue deu azo a que me sugerissem dizer duas palavras sobre “o nosso blogue” . Mas como hei-de eu falar sobre o aniversário deste "nosso blogue"?

Há muito já que eu não conheço palavras para descrever a admiração que tenho pelo Blogue e pelo seu criador Luís Graça. E sei que a minha impressão é a da maior parte de nós. Mas é importante lembrar que uma das qualidades do Luís Graça foi saber escolher os seus assistentes / editores e ainda as “regras" que fizeram deste blogue um alvo à prova de tudo o que se pode imaginar. 

Depois a dedicação de tanta gente como o Carlos Vinhal, outro camarada de generosidade , qualidades e babagem intelectual impressionantes; o Eduardo Magalhães e o Jorge Araújo são penhor de que este blogue nunca vai perder o horizonte quase infinito, se assim me posso exprimir, que já atingiu.

Por vezes, quando posso, leio os comentários e encontro lá o que eu gostaria de dizer mas não o sei fazer. Sobre ele e sobre o blogue. Mas sei lembrar e até copiar o que outros disseram melhor do que eu seria capaz.

Por exemplo um comentário do Helder Valério que sobre este blogue disse uma vez 

(...) "Através dele fizeram-se amizades, reencontraram-se outras já julgadas perdidas, houve catarse para muitos, 'blogueterapia', para uns quantos, houve aprendizagem sobre muitos assuntos (armamento, artilharia, etc.), houve conhecimento sobre muitos casos que foram acontecendo um pouco por todo o território, enfim, quase se pode dizer que o 'nosso Blogue' é uma autêntica 'Universidade Sénior'. " (,,,)

E do Carlos Vinhal que dizia "a propósito do aniversário do Luís, é muito difícil, mesmo muito, falar dele. Eu próprio já gastei tudo o que poderia dizer dele, e disse bem pouco olhando ao que ele merece. O Luís, quiçá sem premeditar, criou um verdadeiro espólio histórico da guerra na Guiné. Contando com a colaboração de centenas de camaradas, temos na nossa página matéria para explorar, que daqui a alguns anos será um verdadeiro tesouro. Todos seremos 'culpados', com muita honra, já que cada um de nós deixou o seu naco de história." (...)

Que mais posso dizer? Sim, que Portugal e a sociedade em geral, especialmente aqueles para quem na sua vida a palavra Guiné diz alguma coisa, tem um dever de gratidão enorme para com o nosso blogue, nas pessoas do Luís Graça e seus editores, e também muitos outros como o Beja Santos que deste blogue fizeram quase uma enciclopédia . 

Bem hajam! É tudo o que posso dizer.
João Crisóstomo, Nova Iorque
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 d abril de 2024> Guiné 61/74 - P25427: 20º aniversário do nosso blogue (7): 20 anos a blogar são, pelo menos, "10 comissões de serviço na Guiné"...Obrigado a todos/as aqueles/as que nos ajudam, todos os dias, a manter vivo este espaço de partilha de memórias (e de afetos)

Guiné 61/74 - P25427: 20.º aniversário do nosso blogue (7): 20 anos a blogar são, pelo menos, "10 comissões de serviço na Guiné"... Obrigado a todos/as aqueles/as que nos ajudam, todos os dias, a manter vivo este espaço de partilha de memórias (e de afetos)

Infografia: Miguel Pessoa (2024)


20 ANOS A BLOGAR,

C. 25,5 MIL POSTES PUBLICADOS,

MAIS DE 100 MIL COMENTÁRIOS,

15 MILHÕES DE VISUALIZAÇÕES  
(c. 400 MIL NOS ÚLTIMOS 3 MESES),

C. 900 TABANQUEIROS...


Amigos e camaradas da Guiné:
não haverá hoje, dia 23/4/2024,"rancho melhorado",
mas podem mandar uma "prendinha":
não, não mandem "patacão", 
nem flores, muito menos de plástico...

Mandem um olá, um chicoração, um alfabravo,
uma foto com legenda, 
duas linhas de parabéns,
um aerograma,
uma história, 
um poema,
um "cartoon",
e até, de preferência, 
um "periquito" para se juntar aos quase 900 membros 
da Tabanca Grande
e se sentar à sombra do nosso poilão...

Também podem dizer mal...
Mas, por favor, façam a "prova de vida",
apareçam, digam, que ainda estão vivos, 
mesmo que há muito já não venham aqui!...

20 anos a blogar são, pelo menos, "10 comissões de serviço na Guiné",
a andar por aquelas bolanhas, matos e picadas
cheias de minas & armadilhas,
de "turras" emboscados apontando os RPG à vossa cabeça
ou foguetes de 122 mm ao prato de mancarrão 
com cavalas de conserva!...

20 anos a blogar, dezenas de milhares
de mensagens recebidas e expedidas,
mais de 100 mil imagens,
vários PC, de secretária e portáteis, "estafados"...
E sobretudo a oportunidade de nos conhecermos, 
convivermos, partilharmos histórias e memórias...
independentemente do que fomos (ontem), 
e do que somos (hoje), 
e do que seremos (amanhã),
sabendo dosear, com bom senso e com bom gosto, 
tolerância e "fair play",
amizade e camaradagem,
paciência e humor de caserna q. b., 
tudo aquilo que nos une e até aquilo que nos separa...

Enquanto a saúde, a lucidez, a santa paciência....
e a vontade de todos nós o permitirem,
vamos continuar a blogar, 
e a prosseguir, juntos, a caminhada pela picada da vida,
agora cada vez mais repleta de outras "minas & armadilhas".

O apelo continua a ser o mesmo de há 20 anos atrás:
não deixem que sejam os outros, os de fora,
a contar as vossas histórias!...
Temos o direito e o dever de memória,
incluindo o de explicar aos nossos filhos e netos
onde ficava a Guiné, "longe do Vietname"...

Nestes 20 anos a blogar, também há lugar para agradecimentos
a todos/as aqueles/as que nos ajudam 
a fazer todos os dias o nosso blogue,
a manter vivo este espaço 
de partilha de memórias (e de afetos),
autores, comentadores, leitores, 
colaboradores permanentes e, claro, editores.
(Feliz ou infelizmente não temos patrocinadores.)

Guiné 61/74 - P25426: Os 50 anos do 25 de Abril (11): Entrevista do nosso camarada, amadorense, cor art ref António- J. Pereira da Costa à TV Amadora: "É pá...A Guerra, pá...", vídeo c. 37')


TV Amadora > Histórias de Abril > 11 de Abril de 2024 > António José Pereira da Costa - Entre a Amadora, Guiné e Coimbra | Vídeo 36' 53''

Sinopse:

"António José Pereira da Costa é um orgulhoso amadorense cuja história de vida acaba por estar intimamente ligada à Revolução dos Cravos, não tivesse ele feito parte do Movimento que viria a pôr fim ao 'estado a que tínhamos chegado', como disse Salgueiro Maia.

"A primeira história da rubrica 'Histórias de Abril' é a do oficial do exército António José Pereira da Costa, um testemunho vivo de memória, resiliência e ação."

Fonte: TVAMADORA (com a devida vénia...)


1. Mensagem da jornalista Helena Durães:

Data - 11/04/2024, 17:51
Assunto - Testemunho António José Pereira da Costa

Boa tarde, caro Luís Graça,

Espero que se encontre bem.

A título de curiosidade, envio o resultado da minha entrevista ao António José Pereira da Costa:

https://www.tvamadora.com/programas/historias-de-abril/antonio-jose-pereira-da-costa-entre-a-amadora-guine-e-coimbra/8349

Foi hoje publicada e inicia hoje a rubrica da TV Amadora dedicada ao 25 de Abril.

Agradeço-lhe, também, pela sua ajuda e amabilidade em me facilitar este contacto. Foi precioso.

Grata pela sua atenção.

Com os melhores cumprimentos,
Helena Durães
Jornalista
Carteira de Jornalista nº 6111
TV Amadora | telem 932 799 467


2. Do estatuto editorial da TV Amadora:
  • (...) "é um órgão de comunicação local e que tem por objectivo divulgar aquilo que acontece no município da Amadoranão desvalorizando a informação de interesse geral";
  • (...)  ainda como propósito dar a conhecer a cidade e a sua história, através de trabalhos de longa duração.
  • (...) compromete-se a respeitar e a realizar o seu trabalho tendo por base os princípios deontológicos e éticos jornalísticos, assim como garantir o respeito pela boa fé dos leitores.
  • (...) compromete-se a todos estes objectivos tendo por base os princípios da liberdade editorial, da igualdade e da verdade.

3. Comentário do editor:

A sugestão do nome do Tó Zé  foi nossa, face a um pedido da TV Amadora, que chegou no passado dia 12 de fevereiro:

"(...) Sou jornalista da TV Amadora e estou a realizar uma recolha de testemunhos de quem viveu a passagem do Estado Novo para a Democracia e é de elevada relevância conhecer a história de alguns ex-combatentes da guerra colonial. Encontrei o seu contacto no blog "Luís Graça & Camaradas da Guiné".

Deste modo, venho por este meio questionar se têm conhecimento de ex-combatente e que seja da Amadora? Ou de alguém que tenha mais conhecimento acerca desta questão?

Agradeço qualquer ajuda que me possam prestar. (...)
Helena Durães (...)"

Com o acordo do próprio e da jornalista, publicitamos aqui o link com o vídeo da entrevista ao nosso camarada, cor art ref, António J. Pereia da Costa


O António José Pereira da Costa, jovem academia e hoje, cort art ref. 


4. Nado e criado na Amadora, na Av Gago Coutinho, o To Zé (como é conhecido entre os amigos) aceitou colaborar com a jornalista Helena Durães. A sua entrevista, com a duração de c. de 37 minutos é o testemunho sincero, frontal e corajoso de uma história de vida, de um homem da nossa geração, que começa na Amadora (onde nasceu e cresceu, e onde frequentou os dois primeiros ano da Academia Militar, em meados dos anos 60), antes de, "ainda menor"(sic), ter ido enviado para o teatro de operações da Guiné.

Esteve na Guiné duas vezes no tempo da guerra, como alferes (1968/69) e depois como capitão (1971/74):
  • ex-alf art, CART 1692/BART 1914 (Cacine, 1968/69);
  • ex-cap art, cmdt da Btr AAA 3434, BA 12, Bissalanca, Bissau;
  • ex-cap art, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo;
  • e ex-capt CART 3567, Mansabá, 1971/74.
É nosso grão-tabanqueiro desde 12/12/2007. Publicou um livro com as suas memórias ("A minha guerra a petróleo", Chiado Editora, 2019)... Tem cerca de 200 referências no nosso blogue.

Depois de regressar à metrópole, a vida militar confunde-se com a de muitos outros camaradas de armas. Estava em Coimbra, quando se deu o 25 de Abril. Pertenceu ao MFA. E o resto, o nosso leitor pode ouvir no visionamento do vídeo.

Em mensagem que nos mandou há dias, disse-nos: "a minha participação é demasiado modesta embora curiosa. Atenção que há no blog verdadeiros participantes no 25Abril."... Participação, "modesta", mas que ele assume publicamente, e que teve consequências na sua carreira... Irónico, acrescentou: "Participação modesta porém sabendo o suficiente para o deitar a baixo, ao regime"...


  • (...) "é um órgão de comunicação local e que tem por objectivo divulgar aquilo que acontece no município da Amadoranão desvalorizando a informação de interesse geral";
  • (...)  ainda como propósito dar a conhecer a cidade e a sua história, através de trabalhos de longa duração.
  • (...) compromete-se a respeitar e a realizar o seu trabalho tendo por base os princípios deontológicos e éticos jornalísticos, assim como garantir o respeito pela boa fé dos leitores.
  • (...) compromete-se a todos estes objectivos tendo por base os princípios da liberdade editorial, da igualdade e da verdade. (...)

5. Publicamos também, a seguir, algumas das fotos que o Tó Zé disponibiliziu, e que forma inseridas no vídeo. 


Amadora > Os putos da Av Gago Coutinho: da esquerda para a direita, (i) Eu, Tó Zé, (ii) o Zé Barros (Zé Gordo) empregado da loja do Martins na nossa rua; (iii) o Tony Levezinho, na primeira fila; (iv) o Vítor Levezinho, primo do Tony; (v) o "Fernandinho" que morava ao lado dos meus pais, creio que emigrou para o Brasil, assim como toda a família Ferreira da Silva (Oliveira); e (vi) o Fernando Levezinho (irmão gémeo do Vítor). Acrescenta o Tony: "o Fernando, meu primo (já falecido), também esteve na Guiné e o Vítor em Angola, tendo este sido condecorado por ter levantado uma mina anticarro, sozinho, embora não fosse sapador. Voluntarismo, inconsciência, ou as duas coisas"...


A Academia Militar, polo da Amadora, em meados dos anos 60, com a Reboleira, ao fundo, já crescer tentacularmente...com as construções J. Pimenta.


Instrução na Academia Militar... Coisas elementares como saber nadar não eram ensinadas aos futuros oficiais..., diz o Tó Zé em jeito de cítica à formação que recebeu


Guiné > Região de Tombali > Cacine > Cameconde > CART 1692/BART 1914 (Cacine, 1968/69)


O cap art António J. Pereira da Costa em 1972, no Xime (CART 3494)

Fotos: Cortesia de António José Pereira da Costa / TVAmadora (2024)
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de abril de  2024 > Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I)

Belmiro Tavares

2023/24

No início de 2023, divulgámos os “Retalhos I”[1] à maioria dos nossos companheiros. Em 2024, faremos nova comunicação aos nossos rapazes. Ninguém pode esquecer que “a Gloriosa” continua viva e de boa saúde.

A nossa CCaç 675 é aquela máquina! Sempre afinada… mas os seus filhos (somos nós) têm a obrigação de a alimentar. Sabemos que ela não é exigente: contenta-se com pouco! Basta um chisco de amor, de carinho, alguma dedicação e… ela rejuvenesce e está sempre de braços abertos para acalentar os seus filhos. Como bem sabeis, ela tinha, inicialmente, mais de 160 filhos; hoje somos apenas um pouco menos de cem – corrupção do tempo. Estes números até amedrontariam muita gente mas… a CCaç 675 nunca tremeu, ainda não treme nem há de tremer, nunca! Resta-nos uma consolação: os seus netos (filhos e outros familiares dos antigos combatentes) vão seguindo as peugadas dos seus antepassados. É verdade! Será – temos a certeza – um caso único! Um caso digno de estudo!

Já repararam na quantidade de pessoas (os descendentes e outros familiares dos antigos combatentes) que têm vindo a acompanhar-nos? Uns, com o devido respeito, ocupam o lugar dos pais ou avós que, obedecendo às rigorosas leis da vida, foram partindo. Filhos, irmãos, sobrinhos e netos têm vindo a tomar parte nas nossas confraternizações. É sintomático! Aquele bichinho, criado no meio de tantos sacrifícios, entre inúmeros perigos, “temperado” com água lodosa e salgada das bolanhas e com montes de pó das estradas de terra batida e das “picadas” – dizíamos – aquele animalejo não morre cedo! Por isso, nós afirmamos: a nossa CCaç 675, a menina dos nossos olhos, viverá enquanto nós quisermos. Fiquem com esta certeza: - chegada a nossa hora… nós partimos mas… ela fica!

Agora – escrevemos no princípio de 2023 surgiu mais um caso bicudo: não conseguíamos contatar a viúva do soldado n.º 2166, Eurico Leite Magalhães ou outro familiar para lhes entregar a lápide, pois ninguém, nem de noite nem de dia, atendia os telefones de que dispúnhamos. Pensou-se que ela teria ido viver com um dos seus filhos. Onde? Manuseando os nossos alfarrábios, encontrámos o telefone duma “loja de óculos” que pertencera ao nosso Magalhães e fizemos a ligação. A senhora que nos atendeu já tinha vendido a loja mas ficou com o telefone. Solicitámos-lhe, encarecidamente, que tentasse descobrir o contacto de alguém da família do nosso companheiro. Volvidos poucos dias, a senhora informou que o filho, Miguel Magalhães, era membro da direção do Maia Futsal e transmitiu-nos o telefone do clube.

Mais um caso resolvido… a contento!

Proclamamos, mais uma vez, que o povo português é extraordinário; também é único! Basta um pedido, apelando ao sentimento e todos se esforçam para ser prestáveis… sem pedir nada em troca.

Nós sabemos – muitos de vós sabem também – que o alf. Tavares correu “mundos e fundos”, procurando companheiros cujos paradeiros eram desconhecidos; sempre encontrou pessoas amáveis e prestantes que não olhavam a esforços para ajudar no que ele precisava. A única aberração foi a CRC de Guimarães que pretendia cobrar 30$00 (trinta escudos) por cada informação e um envelope selado e endereçado para enviar a resposta. Foram mandados “tocar tangos na sua rua”. Era o mínimo que se podia fazer.

Contactado o filho do nosso Magalhães, ele prometeu comparecer com a esposa e a mãe, na nossa confraternização, em Santo Tirso. Será mais um filho da CCaç 675 a tomar parte em futuras reuniões, em representação do pai. Por azar, não pôde comparecer mas veio a irmã com o marido, na companhia da mãe, a viúva.

Meus caros! Vencemos mais uma batalha mas, desta vez, os despojos são chorudos. Viva a gloriosa, CCaç 675!

Vamos citar os companheiros e os descendentes dos falecidos que compareceram na confraternização do norte, no dia 24 de setembro de 2023.

Em representação do sold. n.º 2326, Jerónimo Justo, compareceram:
- Uma filha, Natália Cardoso;
- Um filho, José Luis Justo;
- A nora, Maria de Lurdes;
- O neto, Ruben e a sua namorada, é filho da Natália;
- O neto, Tiago é filho do José Luis.

Em representação do sold. n.º 2166, Eurico Leite Magalhães, compareceram:
- A esposa, Virgínia;
- A filha, Ângela e o marido.

A doutora Teresa Mesquita e seu filho, dr. Francisco Mesquita, foram visitas frequentes durante cerca de 30 anos, sem qualquer falta, em representação de seu irmão e tio, o nosso companheiro fur. mil. Álvaro Mesquita, morto em combate. Como se lembrarão (ninguém o esquece) ele foi vítima fatal da explosão duma mina anticarro, na estrada de Bigene, entre Sansancutoto e Genicó Mandinga, no dia 28 de dezembro de 1964. Foi a primeira mina que nos fustigou… e de que maneira! Foi, entre várias, a de mais graves consequências. Este ano, por motivos aceitáveis não puderam comparecer.

A viúva e o filho do alf. Mendonça prometeram comparecer mas, à última hora, a cooperativa de Felgueiras marcou a vindima das uvas da sua quinta para aquela data. Foi pena! Mas aquele vinho é fabuloso! Há que preservá-lo!

O fur. mil Mouta e o sold. cond. n.º 2552, Baltazar (residentes em Albergaria-a-Velha e em Águeda, respetivamente) foram juntos até Santo Tirso.

O sod. 28, Martins (do morteiro) compareceu com a esposa e outro familiar.

O sold. 30, Monteiro Pinto, também do morteiro, trouxe consigo a esposa, o filho e a nora. Há alguns anos, por relevantes serviços prestados na organização duma confraternização do pessoal do norte, o Pinto foi “louvado, verbalmente” pelo alf. Tavares e, em consequência, foi promovido a “31”. Tratou-se de uma razoável progressão na carreira. A promoção, por tardia, não teve efeitos no “pré”. Provavelmente, teve-se em devida conta o facto de ele ter tentado (e conseguiu durante algum tempo) “ludibriar” a lavadeira e… mais não contamos.

O 1.º cabo corneteiro, n.º 2440, Gabriel A. Rosa trouxe consigo a esposa, um filho e dois netos. Partiram da Estrada da Beira, distrito de Coimbra e juntaram-se a nós em Santo Tirso.

O sold. n.º 412, Manuel Cardoso, não compareceu por causa do Covid; passou um mau bocado!

O alf. Tavares, na companhia da filha e do genro, partiu de Lisboa e fez “escala técnica”, em Sever do Vouga, a sua terra natal.

Por último, mas muito mais importante, o nosso sublime general, Alípio Tomé Pinto, deslocou-se, no dia 23, à região de Viseu para confraternizar com os antigos combatentes da sua companhia de Angola. No regresso de Viseu, o alf. Tavares preparou-lhe uma imprevista emboscada (se não fosse imprevista não era emboscada) mas proveitosa, na A25; foi feito prisioneiro e foi “obrigado” a jantar e a pernoitar em Sever do Vouga. Cremos que terá sido um bom castigo!

Já viram algo parecido? Um mísero alferes (na verdade ele vale por dois mas apenas em volume e peso) aprisionar um senhor general e obrigá-lo a comer e pernoitar naquele interior profundo da Beira Litoral, lá, onde o Judas talvez tenha perdido as botas?! Cremos que terá sido uma penalização de respeito! Ou terá sido um grande abuso! Na CCaç 675, até disto acontece!
Será que o abusador escapa duma valente e merecida “porrada”?!
Perdoai-lhe, Senhor, porque, por vezes, ele não sabe o faz! Será, talvez, fruto da idade!

No dia seguinte, domingo, 24 de setembro, seguiram para Santo Tirso; pelas onze horas, encontravam-se; no local de encontro.

Aproveitámos a oportunidade para entregar a lápide à família (viúva, filha e genro) do Eurico Magalhães, que faleceu, há alguns anos. A viúva brindou-nos com uma ligeira preleção cheia de carinho e agradecimento. Mais tarde, ela informou que aquela lápide não podia ser colocada na sepultura do marido; ele encontra-se num “gavetão” e ocupa o lugar cimeiro. Que iria colocá-la no jardim da sua casa.

No fim de contas, a família CCaç 675 vai rejuvenescendo a olhos vistos: uns vão partindo – por vontade de Deus! – mas outros vão entrando por amor aos familiares e por adoração à nossa CCaç 675, à qual os seus antepassados, honrosamente, pertenceram. Eles vão partindo! Mas fica a amizade férrea, pura, simples, desinteressada… eterna. Desta vez (mais uma vez) não houve missa pelos nossos falecidos, porque, em Santo Tirso, não há igrejas abertas depois das 11H00. Por outro lado, com a “chamada dos mortos” e a entrega da lápide, esquecemo-nos de rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria; que Deus e os nossos mortos nos perdoem!

O almoço foi de boa qualidade e bem servido – até parecia que estávamos a comer em Binta! Tivemos direito a uma sala só para nós, onde passámos uma boa parte da tarde, em amena cavaqueira. Cerca das 18H00, os de mais longe (o nosso general e o alf. Tavares) foram os primeiros a partir.

Unidos pelo espírito da CCaç 675, mais uma vez, cumprimos a nossa nobre missão. Todos recolheram aos seus aposentos… sãos e salvos… e sem mais emboscadas. Na verdade, a emboscada é um vício que nos ficou dos tempos de Binta mas, agora, elas são mais meigas.

Nas emboscadas que os nossos adversários nos prepararam houve apenas um morto: o saudoso fur. mil Álvaro Mesquita. Na primeira emboscada, quando vínhamos de Lenquetó, tivemos dois feridos (o 2.º sarg. Marques e o 1.º cabo Marques); em boa verdade, este não era um dia bom para os Marques. Isto ocorreu no dia 4 de julho de 1964. Não recordamos outros feridos nas emboscadas, que os nossos adversários nos prepararam. Eles, graças a Deus, não poderão dizer o mesmo.

Recordemos a significativa emboscada da serração, na estrada de Farim. Esta terá sido a emboscada mais minuciosamente preparada pelo nosso ilustre capitão e foi superiormente executada pelo alf. Santos e seus “muchachos”. Os sete combatentes que compunham o grupo tombaram: cinco morreram na estrada; um apareceu morto entre o capim a 50 metros do local e o último (era chefe) morreu ao entrar no Senegal, com um tiro no rosto e outro nas costas. É caso para dizer que era muito grave voltar as costas à célebre CCaç 675, a Gloriosa.

Não temos palavras para narrar o espírito de união existente entre nós; essa amizade, como todos vós bem sabeis, foi gerada no meio dos maiores perigos, nas bolanhas de Binta e arredores, com alguns graves acidentes pelo meio, mas… pelo que estamos a reviver e a construir… podemos afirmar que valeu a pena. A CCaç 675 continua a ser única.

Passado o verão de 2023 voltaremos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos mortos. A máquina não pode parar! Creiam que até já é um razoável “sacrifício” mas o dever a isso nos obriga!, principalmente, tendo em devida conta a nossa idade já provecta. Mas é uma satisfação enorme conviver com os descendentes dos nossos companheiros que já partiram. Todos deliram com a nossa atitude e a nossa presença benfazeja, porque se trata de um caso único, um grande amor. A nossa CCaç 675 foi e continua a ser um caso digno de estudo. Pela positiva, ela foi diferente de qualquer outra e assim continua. Acima de tudo, comove-nos o respeito, a gratidão e quase adoração dos “doridos” o que provoca em nós uma enorme satisfação do dever cumprido, uma alegria desmedida.

A verdade nua e crua é que na guerra aprendemos a matar mas o nosso mui ilustre capitão ensinou-nos algo mais e de suma importância: ensinou-nos a respeitar as vidas dos nossos adversários, principalmente, as dos que, sem armas, os acompanhavam ou a isso seriam obrigados. Para nós, matar seria uma inevitabilidade! Mas os homens da CCaç 675, ao contrário de muitos outros, não matavam desnecessariamente. Eliminávamos o adversário apenas quando não havia alternativa e, acima de tudo, se a nossa vida estava em jogo, correndo sérios riscos. Assim, a escolha não seria tão complicada quanto possa parecer. Nós não podíamos premir o gatilho por “dá cá aquela palha”. O nosso capitão, logo de início, determinou:
- Ninguém dispara sobre mulheres e crianças!
- Ninguém atira sobre homens desarmados!

Creiam que, em Binta, as regras, mesmo as internas, tinham de ser, escrupulosamente, cumpridas. Era mesmo isso que fazíamos. Todos sabíamos obedecer às ordens no nosso mui ilustre capitão.

O senhor general, Arnaldo Schulz, que foi, no nosso tempo, governador da Guiné, dizia que o nosso capitão já não era um “Pinto”; era já um galo… muito importante e… acima de tudo, duro de roer!

Pouco depois de ter sido determinado que não podíamos disparar sobre mulheres, crianças e homens desarmados, um soldado comentou com o seu alferes, seu comandante de pelotão, como segue:
- Oh meu alferes! Se nós matarmos as mulheres, as crianças, os homens desarmados e também alguns armados, em breve, a guerra acaba por falta de combatentes do outro lado – missão cumprida! Vamos para a santa terrinha!

Responde-lhe o alferes:
- Brinca com coisas sérias e verás o que te acontece! Sujeitas-te a um grande trambolhão!
- Não, meu alferes, isto é só brincadeira, entre nós!
- Creio que queres mesmo divertir-te e não pensas em transgredir. É bom que seja assim!

A conversa acabou ali.

Naqueles tempos, o mais importante era ir acordando, todos os dias, com o dedo grande do pé a mexer! Onde é que já ouvimos este dito tão interessante?! Para justificar o que atrás narrámos, acerca de poupar a vida de certas pessoas (infelizmente, ainda não foi inventada uma guerra sem mortos) vamos recordar a nossa ida (visita de cortesia) a Genicó Mancanho, na estrada de Guidage; naquele tempo – princípios de julho de 1964 – era ainda uma “picada”… de triste memória pelas terríveis dificuldades com que fomos, ali, mimoseados… até que, depois de muitos e duros sacrifícios, passou a ser estrada de… terra batida.

Esta operação ocorreu, no dia 10 de julho de 1964, poucos dias após o nosso badalado “batismo de fogo”. O cerco à aldeia foi parcial (cerca de ¾ de perímetro) para que, quem assim pretendesse, pudesse fugir em segurança… mais ou menos relativa. A parte não cercada ficou, propositadamente, voltada para o Senegal, que ficava ali perto. Fomos recebidos a tiro mas não houve mortos nem feridos em nenhuma das partes beligerantes. Os habitantes daquela pequena tabanca (aldeia) refugiaram-se no Senegal e lá viveram, miseravelmente, durante largos meses.

Anos mais tarde, já depois da independência da Guiné, aquela aldeia foi reativada; um dos casais para lá enviados (temos indicação que foram quatro) foi a nossa conhecida Dandan e o marido. Ela foi aprisionada em Mansacunda e não quis voltar ao “mato”. Chorou, copiosamente, durante o dia todo, pensando (temendo), certamente, que viria a ser comida pelos “caras pálidas”.

Há mais de trinta anos, uma africana da Guiné hospedou-se no hotel Dom Carlos, onde o alf. Tavares trabalha. Pela manhã, ela perguntou ao porteiro de serviço onde ficava a “rua não sei quê de farmácias”. Perguntaram-lhe se não seria a Rua da Sociedade Farmacêutica; eufórica, ela respondeu que sim. Explicaram-lhe onde ficava a tal rua e ela foi tomar o pequeno-almoço.

Logo, o Tavares entrou na sala e um rapaz que, estava ali, de serviço, e tinha cumprido tropa na Guiné, informou:
- Esta moça é da Guiné e sabe muito acerca da guerra.

O Tavares perguntou-lhe se podia comer, na mesma mesa. Para início de conversa, perguntou-lhe de onde era natural:
- Sou de Bissau!
- Nasceste mesmo, lá?
- Nasci no norte, perto de Farim!
- Em que tabanca?
- Genicó Mancanho, perto de Binta.
- A tua aldeia estava cercada de bananeiras, anormalmente, altas!
- Como “sabi”?
- Eu ajudei a destruí-la, porque fomos recebidos com fogo!

Ela comentou:
- É verdade! A tropa não nos matou a todos porque não quis; se a tropa fosse tão má como nos contavam, ninguém sobreviveria para contar como tudo aconteceu!

Todos fugiram, em segurança, para o Senegal. Pouco mais atarde, ela partiu com a família para Bissau. Cresceu um pouco e andou, durante anos, a carregar armamento e géneros alimentícios da Guiné Conacry para o Oio. Após a guerra, foi enviada para a Checoslováquia para tirar um curso de farmácia. Agora, veio a Lisboa para fazer um curso de atualização.

Durante a sua permanência no hotel, tomou sempre o café da manhã com o amigo, Tavares; afinal… nunca foram inimigos.

Recordemos outros casos:
- Dos trinta e nove prisioneiros que trouxemos de Lenquetó, apenas um foi abatido, porque nos conduziu, intencionalmente, à tremenda emboscada que o seu bi grupo nos preparou perto Caurbá; quando fugiu para se juntar aos seus subordinados, teria de ser baleado. Inevitável!

- O prisioneiro de Cufeu estava apavorado, temendo ser comido pelos soldados brancos, mas nada de mal lhe aconteceu.

- O padre de Gebacunda, uma povoação no norte do Oio, mesmo frente a Binta. Viveu connosco uma vida airada; pediu para ir ao Senegal para trazer as suas duas mulheres; foi e… não mais voltou! Pela aparência, ele seria mais abade que padre!

- Uma prisioneira da região Buborim viveu em liberdade total, no aquartelamento de Binta. Volvidos cerca de quinze dias, o nosso capitão perguntou-lhe se pretendia continuar em Binta ou voltar ao mato. Ela, dando uma no cravo outra na ferradura, alegou que todos a trataram bem, mas… os familiares estavam no mato e gostaria de voltar para junto deles… se o capitão de Binta autorizasse.

O nosso ilustre comandante de companhia ofereceu-lhe um saco de arroz e uns “panos”, informando:
- Os “panos” são para ti! O arroz é para a família! Diz ao pessoal que retire as abatis da via, porque o caminho é de todos! Se não obedecerem, destruiremos os vossos acampamentos e… não há mais arroz nem “panos” para ninguém!

Na verdade, eles retiraram as abatis pequenas e queimaram algumas das outras. Entenderam que a tropa de Binta deveria retirar as grandes. Se a estrada era de todos, o trabalho não deveria ser só deles.

Fizemos vários “prisioneiros” mas nenhum entrou na prisão – em Binta não havia disso – porque não era necessário. Também não eram obrigados a apresentações temporária à PSP, nem usavam pulseira eletrónica! Modernices!

(continua)

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Nota do editor

[1] - Vd. post de 7 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P25424: In Memoriam (503): Agradecimento a René Pélissier (1935-2024) que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador (Mário Beja Santos)

Fotografia oferecida por René Pélissier ao blogue, o historiador está na sua biblioteca em Orgeval, França


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Dito cabalmente por quem agora nos deixou, a única vez que este notável historiador colaborou com um blogue, foi connosco, ofereceu-nos uma meditada reflexão sobre a dimensão caleidoscópica sobre a literatura da guerra colonial. E jamais esqueci a observação que ele me fez, em jeito de admiração, quanto à singularidade dos nossos encontros de veteranos, para ele era a prova provada de que as tribulações da guerra jamais se apagam, a elas se volta nesses encontros de partilha, foi nesse convívio que diariamente todos arriscaram a vida, o encontro, segundo ele, tão mais do que a recordação dos que partiram era a lição ao vivo de quanto pesa a solidariedade e a camaradagem.

Um abraço do
Mário



Agradecimento a René Pélissier que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador

Mário Beja Santos

Acaso ou destino, no exato momento em que tive a infausta notícia do falecimento daquele que terá sido o historiador francês que mais se dedicou a investigar o império português, fundamentalmente do século XIX aos tempos da descolonização, folheava na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa o Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa de Guiné, a décadas que vão de 1840 a 1860, o início do trabalho de Pélissier na sua História da Guiné. É chocante o contraste entre a documentação oficial e a realidade que se vivia naquele momento no enclave português daquele ponto da costa ocidental africana, a França a procurar “despejar” a presença portuguesa das margens do Casamansa e os britânicos a querem apossar-se do Rio Grande de Bolola e de Bolama, dava-lhes jeito em termos de feitorias até à Serra Leoa.

Pélissier desvela o tráfico de escravos quase oficial, as sublevações de Bissau que exigiram a implantação de tropas preparadas naquela que vai ser a capital da colónia, mas aonde os Grumetes não dão descanso ao Governador da Praça. Isto para dizer ao leitor que Pélissier nos prestou um grande serviço tratando de forma rigorosa e verosímil a nossa presença, naquele também bastante circunscrita aos rios e rias da faixa litoral, as menções a Gabu só serão conhecidas em meados do século XIX.

Há um texto do notável historiador no nosso blogue, uma importante apreciação da literatura saída do punho dos militares, convido os confrades a relê-la, continua atual.[1]
Pélissier andava sempre a bater à porta das editoras pedindo-lhe livros não só referentes à literatura da guerra colonial como historiografia vária. No princípio do século ele só tinha sido publicado na Editorial Estampa: "História das Campanhas de Angola", "História de Moçambique" e esta "História da Guiné" circunscrita ao período de 1841 a 1936 (como se tivesse desenhado um arco histórico entre o término formal da abolição da escravatura e a pacificação de Canhabaque), conheceu edições posteriores ligadas à Faculdade de Letras do Porto. Era colaborador assíduo de publicações científicas.

Não me cabe fazer a laude do cientista, é trabalho para historiador avisado, que eu não sou. Mas sinto-me agradecido a Pélissier, ele distinguiu o nosso blogue, não se sentia animado a participar nas redes sociais, enviou-me cartas manuscritas e exigiu rever o que dele procurei adaptar. Há um aspeto para mim muito tocante da leitura que ele fazia da literatura da guerra e que se prende com os encontros regulares dos veteranos. Ele não escondia o seu assombro, a sua leitura, disse-me numa carta, passava por aquela camaradagem e solidariedade comuns que se prendia com as condições precárias, a tensão permanente e os medos partilhados. Tratava-se de um património que marca a existência até ao fim dos dias. Esses tais encontros podiam ser assumidos como um hino à vida, depois de tanta devastação e companhia do horror e das tribulações do quotidiano, tivesse a vida tido os êxitos que teve na existência de cada um, nada demais exaltante que estar um dia por ano com quem nos acompanhou naquele que terá sido o acompanhamento mais importante da vida de cada um. Agradeço esta lembrança a este historiador francófono cuja imponente biblioteca veio para Portugal.

René Pélissier (à direita), quando distinguido pela Universidade de Lisboa como Doutor Honoris Causa, 2022[2]

Obras de René Pélissier sobre a Guiné colonial
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Notas do editor:

[1] - Vd. posts de:

26 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)
e
28 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

[2] - Vd. post de 7 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23150: A Universidade de Lisboa, sob proposta da Faculdade de Letras, atribuiu o grau de Doutor Honoris Causa a René Pélissier como reconhecimento de mérito Académico, Científico e Profissional na área da História de Portugal

Vd. post anterior de 19 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25413: In Memoriam (502): Historiador René Pélissier (1935-2024), que dedicou vasta obra literária às antigas possessões portuguesas em África