Hoje dia 27 de Agosto de 2009, faz anos o nosso camarada Jaime Machado, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 que esteve na Guiné entre 1968 e 1970
Jaime Machado esteve presente no nosso III Encontro Nacional em Ortigosa no dia 17 de Maio de 2008, desencaminhado sabe-se lá por quem, e ficou tão apanhadinho que passados poucos dias se nos dirigiu assim:
Caro Luís Graça e demais Companheiros da Tabanca Grande:
Depois da forte emoção que senti no passado sábado, dia 17, durante o III Encontro Nacional em Monte Real, não posso adiar por mais um dia que seja a minha apresentação à tertúlia.
Apresenta-se então o ex-alf Mil Cav Jaime Machado que foi comandante do Pel Rec Daimler 2046 e que cumpriu toda a sua comissão na Guiné, em Bambadinca, entre 6 de Maio de 1968 e Março de 1970.
Junto as duas fotos da praxe e prometo dentro em breve dar mais notícias.
Recebam todos os tertulianos um forte abraço deste periquito que agora se junta a vós.
Jaime Machado
ex-Alf Mil Cav
Pel Rec Daimler 2046
Daí para cá está bastante mais apanhado, o que muito nos apraz.
Esteve presente pela segunda vez em Ortigosa, acompanhado de Maria de Fátima, como no ano passado, porque as esposas também são contagiadas por esta estirpe de vírus.
De entre a sua colaboração no Blogue, destacamos a História da Cavalaria em Bambadinca e o envio de muitas fotografias, das quais, mais à frente mostramos algumas.
Este é o meio de que utilizamos para publicamente virmos apresentar ao nosso camarada Jaime Machado as nossas felicitações pela passagem de mais este aniversário, desejando ao mesmo tempo que esta data seja a intermédia para uma longa vida junto dos seus familiares e amigos. Incondicionalmente nos juntamos à sua alegria.
Algumas das fotos marcantes da sua presença no nosso Blogue:
Guiné > Zona Leste > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel Rec Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav Jaime Machado
Bambadinca, 1968/70> Brasão do Pel Rec Daimler 2046, junto ao mastro da Bandeira
Bambadinca> Eu próprio de Oficial de Dia, em serviço no Refeitório
Fevereiro de 1970 em Bambadinca> Eu com um belo conjunto de bajudas junto à Capela
Estrago de mina na estrada Bambadinca/Xime
Fevereiro de 1970> Adeus Bambadinca> Eu à direita na LDG a caminho de Bissau
Abril de 1970> Pel Daimler 2046 no RC6, Porto, na passagem à disponibilidade
Pintura de autoria de Jaime Machado repesentando uma bajuda no Cais de Bambadinca.
Ortigosa, 2008 > Zé Teixeira e Jaime Machado em conversa animada
Ortigosa, 2008 > Jaime Machado e Maria de Fátima em conversa com camaradas
Ortigosa, 2008 > Jaime Machado e Mário Beja Santos
Ortigosa, 2009 > António Sousa Bonito e Jaime Machado
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Notas de CV:
Poste de Jaime Machado com datas de:
21 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2866: Tabanca Grande (69): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70)
21 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2867: Dando a mão à palmatória (12): O comandante do Pel Rec Daimler 2046 era o Jaime Machado e não o J. L. Vacas de Carvalho
5 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2918: História da Cavalaria em Bambadinca (1): Pel Rec Daimler 1133 (1966/68) adido ao BCAÇ 1888 e ao BART 1904 (Jaime Machado)
7 de Junho de 2008 > Guine 63/74 - P2922: Convívios (63): 40.º Convívio de ex-combatentes da Guiné que passaram por Bambadinca entre 1968/71 (Jaime Machado)
10 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2927: História da Cavalaria em Bambadinca (2): Pel Rec Daimler 2046 (1968/70) adido ao BART 1904 e ao BCAÇ 2852 (Jaime Machado)
24 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2981: Hélio Felgas, com Spínola, em Bambadinca (Jaime Machado)
30 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3001: História da Cavalaria em Bambadinca (3): Pel Rec Daimler 2206 (1970/71) adido ao BART 2917 (Jaime Machado)
24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3092: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (1): Pinturas, de Jaime Machado; As Capelas de Leça, de José Oliveira
Vd. último poste da série de 22 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4851: Parabéns a você (21): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Os Editores)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 >
Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor destas imagens...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Vista geral da povoação e aquartelamento
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O Sesimbra, o Biaia e o José Nunes, posando junto ao temível Morteiro 81
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Junto a um dos abrigos do aquartelamento
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >O Biaia, que presumimos ser um 'protegido' da tropa, quiçá a mascote da companhia (CART 1661), que - como muitos outros miúdos guineenses - cresceram dentro do arame farpado, ao longo da guerra colonial...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O José Nunes posando para a posteridade com a inofensiva (para os humanos) mas sempre mítica jibóia...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à v0lta da jibóia - I
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >Todos à volta da jiboia - II
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à volta da jibóia - III
Fotos: José Nunes (2009). Direitos reservados
1. O José Nunes (, de seu nome completo, José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970.
Fez assistências e electrificações em aquartelamentos como Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglês, Bolama e Bissum-Naga.
Esteve em Porto Gole em Março/Abril de 1968, altura em que se procedeu à electrificação do aquartelamento (foto à esquerda). Não tínhamos até agora fotos dele. Finalmente, e a nosso pedido, ele procedeu à digitalização de uma série de fotos, que iremos publicar. Hoje começamos com as suas memórias de Porto Gole.
"Nesse tempo o Comando ficava na Habitação existente, e servia de alojamento aos Oficiais e Sargentos. O restante pessoal ficava no celeiro e nos abrigos, construídos, e nos abarracamentos construídos junto da casa maior" (*).
A tabanca "estava alinhada, formando uma rua até ao cruzamento da estrada que ía pra Mansoa e para Enxalé. De frente para o Geba, junto ao monumento, a pista ficava do lado direito; no esquerdo, no pequeno vale com laranjeiras e uma horta, ficava o poço onde nos abasteciamos de água".
Na altura a CART 1661, a que pertencia o nosso camarada Abel Rei (**), "tinha pessoal em Bissá e em Enxalé"... Acrescenta o José Nunes:
"Sei que tinha um número considerável de baixas. Foi quando apareceram as primeiras minas incendiárias que fustigavam as colunas de reabastecimento a Bissá. Tenho algumas fotos lá tiradas com a malta, impecável. Em Porto Gole foi onde vi a maior jibóia na Guiné, morta quando se ía buscar lenha para fazer a comida.
"Foi aqui que tentaram envenenar toda a Companhia, deitando no poço toda o tipo de restos de vacas mortas, tripas, peles... O poço era tapado com tampo de madeira e na base do gargalo havia um buraco para enfiar a mangueira da bomba, foi por aí que introduziram tudo, nas barbas de um posto de sentinela, mas pela horta era fácil. As flagelações eram feitas do cruzamento, na altura foi construido aí um posto avançado [, um fortim], para evitar as flagelações. Durante a minha estada nunca fomos atacados". (***)
__________
Notas de L.G.
(*) Vd. postes de:
10 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4492: Memória dos lugares (30): Porto Gole, CART 1661 (1967/68) (José Nunes / Abel Rei)
22 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)
22 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)
(**) Vd. postes de:
12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)
14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)
24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)
(***) Último poste da série Memória dos lugares:
14 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4682: Memória dos lugares (34): Guiné, Sol e Sangue, de Armor Pires Mota, CCAV 488, 1963/65 (José Marques Ferreira)
Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor destas imagens...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Vista geral da povoação e aquartelamento
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O Sesimbra, o Biaia e o José Nunes, posando junto ao temível Morteiro 81
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Junto a um dos abrigos do aquartelamento
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >O Biaia, que presumimos ser um 'protegido' da tropa, quiçá a mascote da companhia (CART 1661), que - como muitos outros miúdos guineenses - cresceram dentro do arame farpado, ao longo da guerra colonial...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O José Nunes posando para a posteridade com a inofensiva (para os humanos) mas sempre mítica jibóia...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à v0lta da jibóia - I
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >Todos à volta da jiboia - II
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à volta da jibóia - III
Fotos: José Nunes (2009). Direitos reservados
1. O José Nunes (, de seu nome completo, José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970.
Fez assistências e electrificações em aquartelamentos como Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglês, Bolama e Bissum-Naga.
Esteve em Porto Gole em Março/Abril de 1968, altura em que se procedeu à electrificação do aquartelamento (foto à esquerda). Não tínhamos até agora fotos dele. Finalmente, e a nosso pedido, ele procedeu à digitalização de uma série de fotos, que iremos publicar. Hoje começamos com as suas memórias de Porto Gole.
"Nesse tempo o Comando ficava na Habitação existente, e servia de alojamento aos Oficiais e Sargentos. O restante pessoal ficava no celeiro e nos abrigos, construídos, e nos abarracamentos construídos junto da casa maior" (*).
A tabanca "estava alinhada, formando uma rua até ao cruzamento da estrada que ía pra Mansoa e para Enxalé. De frente para o Geba, junto ao monumento, a pista ficava do lado direito; no esquerdo, no pequeno vale com laranjeiras e uma horta, ficava o poço onde nos abasteciamos de água".
Na altura a CART 1661, a que pertencia o nosso camarada Abel Rei (**), "tinha pessoal em Bissá e em Enxalé"... Acrescenta o José Nunes:
"Sei que tinha um número considerável de baixas. Foi quando apareceram as primeiras minas incendiárias que fustigavam as colunas de reabastecimento a Bissá. Tenho algumas fotos lá tiradas com a malta, impecável. Em Porto Gole foi onde vi a maior jibóia na Guiné, morta quando se ía buscar lenha para fazer a comida.
"Foi aqui que tentaram envenenar toda a Companhia, deitando no poço toda o tipo de restos de vacas mortas, tripas, peles... O poço era tapado com tampo de madeira e na base do gargalo havia um buraco para enfiar a mangueira da bomba, foi por aí que introduziram tudo, nas barbas de um posto de sentinela, mas pela horta era fácil. As flagelações eram feitas do cruzamento, na altura foi construido aí um posto avançado [, um fortim], para evitar as flagelações. Durante a minha estada nunca fomos atacados". (***)
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Notas de L.G.
(*) Vd. postes de:
10 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4492: Memória dos lugares (30): Porto Gole, CART 1661 (1967/68) (José Nunes / Abel Rei)
22 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)
22 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)
(**) Vd. postes de:
12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)
14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)
24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)
(***) Último poste da série Memória dos lugares:
14 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4682: Memória dos lugares (34): Guiné, Sol e Sangue, de Armor Pires Mota, CCAV 488, 1963/65 (José Marques Ferreira)
Guiné 63/74 - P4866: Bibliografia (30): Eu e os Comandos, artigo de Mário Beja Santos na Revista Mama Sume, da Associação de Comandos
1. Texto enviado por Mário Beja Santos à Associação de Comandos que lhe havia pedido para escrever um artigo a publicar na Revista "MAMA SUME"
Eu e os Comandos
por Mário Beja Santos
Fui alferes miliciano na Guiné, onde vivi ininterruptamente entre Julho de 1968 e Agosto de 1970. Contei toda esta história da minha comissão em dois livros publicados em 2008: “Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, 1968 – 1969“ e “Diário da Guiné, O Tigre Vadio, 1969 – 1970”, ambos publicados pelo Círculo de Leitores e a Temas e Debates. Durante 17 meses vivi no regulado do Cuor, como comandante dos destacamentos de Missirá e Finete. A minha principal missão era vigiar e garantir a navegabilidade do rio Geba, indispensável para a continuação da guerra. Comandei, na circunstância, um Pelotão de Caçadores Nativos e dois Pelotões de Milícias. Protegia o rio, emboscava, patrulhava e cuidava de centenas de civis, garantindo-lhes o abastecimento, a segurança, o médico, o professor para as crianças, a correcção nas práticas da justiça, ao lado do régulo.
A segunda etapa da minha comissão foi vivida no sector de Bambadinca, intervindo na área operacional, como comandante de colunas até ao Xitole ou Xime, patrulhando, destruindo canoas do inimigo, apoiando as tabancas em autodefesa, mas fazendo igualmente um pouco de tudo, desde de levar e trazer o correio, levar e trazer doentes, garantindo a segurança dos reordenamentos, protegendo a sede do batalhão num posto avançado infecto, para não dizer desumano. Continuei a combater ao lado dos meus caçadores nativos e na companhia de tropa africana, designadamente a Companhia de Caçadores 12 (foi esse o laço que me transportou, décadas depois, para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde deposito as minhas memórias e o meu indefectível amor àquela terra)
Serve esta apresentação para dizer ao leitor que combati quase sempre com tropa regular que eu apresentei nos meus livros como “alguns dos soldados mais valentes do mundo”, gente que confiou incondicionalmente em mim, a quem confiei missões espinhosas, esgotantes, destemidas.
Os meus soldados ensinaram-me muito, quer os nativos quer os metropolitanos: a crescer entre a solidariedade e a abnegação; e a não fugir ou adiar as missões diárias dos patrulhamentos junto ao Geba, tínhamos nos ombros a responsabilidade de tantas vidas. Eu sei que o leitor considerará inacreditável o que vou dizer: no mínimo dos mínimos, fazíamos 25 km entre Missirá e Mato do Cão, ida e volta, a qualquer minuto de qualquer hora do dia. Missirá ficou praticamente destruída em Março de 1969 e quando partimos, em Novembro desse ano, deixámos um quartel reconstruído, o maior esforço de toda a minha vida. Só foi possível porque contei com dedicação dos meus soldados, que faziam reforços, colunas de reabastecimento, emboscadas nocturnas, não direi sem um queixume (na época das chuvas cheguei a ter 40 por cento dos efectivos acamados) mas com uma elevadíssima capacidade de colaboração. Falo de homens que punham luvas brancas para hastear ou arrear a bandeira portuguesa no mastro três vezes destruído, três vezes renascido, enquanto lá estivemos juntos.
Não combati com os Comandos, dei militares de carácter e de grande valentia para as suas três companhias que se formaram na Guiné:
(i) primeiro, Zacarias Saiegh, meu furriel que comandava Missirá antes de eu chegar. Mantivemos uma relação difícil, mas assente no respeito mútuo, soube em primeira mão da sua decisão em integrar-se na 1ª Companhia de Comandos Africana, que se formou em Fá, e que nos coube proteger durante meses, do lado de cá do rio Geba. Foi fuzilado em 1977, em Porto Gole, nesse estranho drama que foram os fuzilamentos de uma intentona que, enquanto não houver provas, não passou de uma vil purga;
(ii) Mamadu Camará, que quando cheguei a Missirá era o 221, e uma noite, debaixo de fogo, pressentindo que a deflagração de uma morteirada inimiga me ia atingir, atirou-se sobre o meu corpo, tendo ficado com muitos estilhaços nas costas e pernas, foi brutalmente ferido no reencontro na região do Cantanhez, veio em 1972, é cidadão português;
(iii) Cherno Suane, o meu guarda-costas, o mais querido dos meus irmãos, que viveu o inferno do Cumeré, sujeito a prisão arbitrária e às mais horríveis sevícias, entre 1977 e 1980, consegui que viesse em 1992, é também cidadão português, preenche com resignação todos os anos papelada infernal para trazer o filho mais velho, até agora a burocracia delirante é mais forte que o reencontro familiar;
(iv) Queta Baldé, o mais precioso colaborador que tive na preparação dos meus livros, nunca vi memória como a dele, fugiu para o Senegal para não ser morto, em 1974, aqui o temos entre nós, vive na Amadora, tal como o Mamadu e o Cherno subsiste entregue a tarefas humildes para ter os filhos na faculdade;
(v) e Serifo Candé, que fui visitar a Biana, no leste da Guiné, em 1991, e que não acreditou que eu não o tivesse ido buscar para o trazer para Portugal, o Serifo é o meu remorso, é bem provável que eu tenha que voltar à Guiné e trazer este homem de modos tão gentis que nunca percebeu porque é que não volta a hastear, cheio de aprumo, uma bandeira verde rubra que ele prometeu defender até à morte.
Este foi o legado que deixei aos Comandos, este legado é uma das tragédias da minha vida, continuo sem saber aonde arrecadar o sofrimento destes homens que nem sempre puderam refazer o sentido das suas existências.
Deixei para o fim uma sentida homenagem ao meu instrutor em Mafra, já na especialidade de atirador de infantaria. Era pouco mais velho do que eu, um homem seco de carnes, um olhar azul firme e decidido, com uma expressão de rectidão e confiança em tudo o que dizia e fazia. Ensinava com desvelo, era convincente e de bom trato. Tinha uma arte de comunicar, imprimindo sabor, às matérias mais áridas. Ele ficou em Mafra, eu parti para Ponta Delgada, daqui regressei para formar batalhão, fui dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português”, e os meus superiores, à cautela, lançaram-me na rendição individual, acabavam-se assim os incómodos.
Voltei a ver o já então capitão Garcia Lopes num encontro espúrio em Bissau, ele estava nos Comandos, ouviu-o vibrar na descrição de um regresso de operação com os seus soldados feridos: “Custe o que custar, um Comando traz todos os seus camaradas, feridos ou mortos, nem que necessário seja dar a vida”. Guardei esta frase, dolorosamente já tinha trazido nas espáduas o Paulo Ribeiro Semedo, compreendi perfeitamente a mensagem e os sentimentos do capitão Garcia Lopes.
Gostava muito que esta lembrança chegasse aos ouvidos deste distintíssimo oficial. Aprendi na vida que marcamos os outros com uma simples frase, a rectidão de um gesto ou um sopro de coragem.
Os Comandos, por inerência, são gente exemplar na minha vida. Espero que percebam que tenho muito orgulho nestes meus soldados que partiram para outras guerras e que continuam meus compatriotas, heróis anónimos que ganham humildemente o que as pensões não dão para uma vida decente. Tão gente exemplar como aquele capitão Garcia Lopes que aproveitou um encontro espúrio em Bissau para me recordar que a camaradagem é mais exigente nas horas más que nas boas.
[Revisão / fixação de texto: CV/LG]
Eu e os Comandos
por Mário Beja Santos
Fui alferes miliciano na Guiné, onde vivi ininterruptamente entre Julho de 1968 e Agosto de 1970. Contei toda esta história da minha comissão em dois livros publicados em 2008: “Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, 1968 – 1969“ e “Diário da Guiné, O Tigre Vadio, 1969 – 1970”, ambos publicados pelo Círculo de Leitores e a Temas e Debates. Durante 17 meses vivi no regulado do Cuor, como comandante dos destacamentos de Missirá e Finete. A minha principal missão era vigiar e garantir a navegabilidade do rio Geba, indispensável para a continuação da guerra. Comandei, na circunstância, um Pelotão de Caçadores Nativos e dois Pelotões de Milícias. Protegia o rio, emboscava, patrulhava e cuidava de centenas de civis, garantindo-lhes o abastecimento, a segurança, o médico, o professor para as crianças, a correcção nas práticas da justiça, ao lado do régulo.
A segunda etapa da minha comissão foi vivida no sector de Bambadinca, intervindo na área operacional, como comandante de colunas até ao Xitole ou Xime, patrulhando, destruindo canoas do inimigo, apoiando as tabancas em autodefesa, mas fazendo igualmente um pouco de tudo, desde de levar e trazer o correio, levar e trazer doentes, garantindo a segurança dos reordenamentos, protegendo a sede do batalhão num posto avançado infecto, para não dizer desumano. Continuei a combater ao lado dos meus caçadores nativos e na companhia de tropa africana, designadamente a Companhia de Caçadores 12 (foi esse o laço que me transportou, décadas depois, para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde deposito as minhas memórias e o meu indefectível amor àquela terra)
Serve esta apresentação para dizer ao leitor que combati quase sempre com tropa regular que eu apresentei nos meus livros como “alguns dos soldados mais valentes do mundo”, gente que confiou incondicionalmente em mim, a quem confiei missões espinhosas, esgotantes, destemidas.
Os meus soldados ensinaram-me muito, quer os nativos quer os metropolitanos: a crescer entre a solidariedade e a abnegação; e a não fugir ou adiar as missões diárias dos patrulhamentos junto ao Geba, tínhamos nos ombros a responsabilidade de tantas vidas. Eu sei que o leitor considerará inacreditável o que vou dizer: no mínimo dos mínimos, fazíamos 25 km entre Missirá e Mato do Cão, ida e volta, a qualquer minuto de qualquer hora do dia. Missirá ficou praticamente destruída em Março de 1969 e quando partimos, em Novembro desse ano, deixámos um quartel reconstruído, o maior esforço de toda a minha vida. Só foi possível porque contei com dedicação dos meus soldados, que faziam reforços, colunas de reabastecimento, emboscadas nocturnas, não direi sem um queixume (na época das chuvas cheguei a ter 40 por cento dos efectivos acamados) mas com uma elevadíssima capacidade de colaboração. Falo de homens que punham luvas brancas para hastear ou arrear a bandeira portuguesa no mastro três vezes destruído, três vezes renascido, enquanto lá estivemos juntos.
Não combati com os Comandos, dei militares de carácter e de grande valentia para as suas três companhias que se formaram na Guiné:
(i) primeiro, Zacarias Saiegh, meu furriel que comandava Missirá antes de eu chegar. Mantivemos uma relação difícil, mas assente no respeito mútuo, soube em primeira mão da sua decisão em integrar-se na 1ª Companhia de Comandos Africana, que se formou em Fá, e que nos coube proteger durante meses, do lado de cá do rio Geba. Foi fuzilado em 1977, em Porto Gole, nesse estranho drama que foram os fuzilamentos de uma intentona que, enquanto não houver provas, não passou de uma vil purga;
(ii) Mamadu Camará, que quando cheguei a Missirá era o 221, e uma noite, debaixo de fogo, pressentindo que a deflagração de uma morteirada inimiga me ia atingir, atirou-se sobre o meu corpo, tendo ficado com muitos estilhaços nas costas e pernas, foi brutalmente ferido no reencontro na região do Cantanhez, veio em 1972, é cidadão português;
(iii) Cherno Suane, o meu guarda-costas, o mais querido dos meus irmãos, que viveu o inferno do Cumeré, sujeito a prisão arbitrária e às mais horríveis sevícias, entre 1977 e 1980, consegui que viesse em 1992, é também cidadão português, preenche com resignação todos os anos papelada infernal para trazer o filho mais velho, até agora a burocracia delirante é mais forte que o reencontro familiar;
(iv) Queta Baldé, o mais precioso colaborador que tive na preparação dos meus livros, nunca vi memória como a dele, fugiu para o Senegal para não ser morto, em 1974, aqui o temos entre nós, vive na Amadora, tal como o Mamadu e o Cherno subsiste entregue a tarefas humildes para ter os filhos na faculdade;
(v) e Serifo Candé, que fui visitar a Biana, no leste da Guiné, em 1991, e que não acreditou que eu não o tivesse ido buscar para o trazer para Portugal, o Serifo é o meu remorso, é bem provável que eu tenha que voltar à Guiné e trazer este homem de modos tão gentis que nunca percebeu porque é que não volta a hastear, cheio de aprumo, uma bandeira verde rubra que ele prometeu defender até à morte.
Este foi o legado que deixei aos Comandos, este legado é uma das tragédias da minha vida, continuo sem saber aonde arrecadar o sofrimento destes homens que nem sempre puderam refazer o sentido das suas existências.
Deixei para o fim uma sentida homenagem ao meu instrutor em Mafra, já na especialidade de atirador de infantaria. Era pouco mais velho do que eu, um homem seco de carnes, um olhar azul firme e decidido, com uma expressão de rectidão e confiança em tudo o que dizia e fazia. Ensinava com desvelo, era convincente e de bom trato. Tinha uma arte de comunicar, imprimindo sabor, às matérias mais áridas. Ele ficou em Mafra, eu parti para Ponta Delgada, daqui regressei para formar batalhão, fui dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português”, e os meus superiores, à cautela, lançaram-me na rendição individual, acabavam-se assim os incómodos.
Voltei a ver o já então capitão Garcia Lopes num encontro espúrio em Bissau, ele estava nos Comandos, ouviu-o vibrar na descrição de um regresso de operação com os seus soldados feridos: “Custe o que custar, um Comando traz todos os seus camaradas, feridos ou mortos, nem que necessário seja dar a vida”. Guardei esta frase, dolorosamente já tinha trazido nas espáduas o Paulo Ribeiro Semedo, compreendi perfeitamente a mensagem e os sentimentos do capitão Garcia Lopes.
Gostava muito que esta lembrança chegasse aos ouvidos deste distintíssimo oficial. Aprendi na vida que marcamos os outros com uma simples frase, a rectidão de um gesto ou um sopro de coragem.
Os Comandos, por inerência, são gente exemplar na minha vida. Espero que percebam que tenho muito orgulho nestes meus soldados que partiram para outras guerras e que continuam meus compatriotas, heróis anónimos que ganham humildemente o que as pensões não dão para uma vida decente. Tão gente exemplar como aquele capitão Garcia Lopes que aproveitou um encontro espúrio em Bissau para me recordar que a camaradagem é mais exigente nas horas más que nas boas.
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Guiné 63/74 - P4865: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (4): Abel, o nosso Cabo Maqueiro
Mais um episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.
O cabo maqueiro
Naquele dia a manhã corria monótona e sempre igual às de tantos outros dias. Apenas o cozinheiro e o ajudante andavam de um lado para o outro atarefados com a preparação do almoço. O aquartelamento parecia deserto. As duas viaturas, o jeep e o velho Unimog, jaziam adormecidas arrumadas a um canto do telheiro de chapas de zinco. Reinava um silêncio pesado como a chapa de ouro do sol que tudo cobria.
Ainda era cedo para ir buscar água à bolanha e os soldados escondiam-se por aqui e por ali, onde houvesse uma sombra, a jogar às cartas, a dormitar ou a deambular pela aldeia, entrando nalguma casa comercial onde sempre apareciam novidades ou alguma bajuda jeitosa e sorridente para meter conversa de meia pataca.
O malandro do Furriel Coutinho também já se tinha desenfiado a pretexto de ir verificar a cerca de arame farpado lá para os lados do caminho que ia dar à pista de aviação e ninguém mais soube dele.
Dos outros dois furriéis, um estava de cama com paludismo e o restante fazia-lhe uma carinhosa (?) companhia. (Sempre suspeitámos que aquela amizade era talvez mais do que apenas isso. Pelo menos da fama não se livravam, embora o assunto nem fosse assim muito escandaloso e curiosamente bem tolerado naquele aglomerado de homens isolados do resto do mundo).
De modo que, como acontecia quase sempre, sem ter nada que fazer, nem nada com que me entreter, fui até a enfermaria ver o que é que o cabo maqueiro tinha por lá de novo.
O nosso cabo maqueiro, que aqui fazia as vezes de enfermeiro, era um rapaz muito metódico, alegre e falador. A sua presença era sempre motivo de divertimento para os colegas e de um fascínio estranho para os nativos que a ele recorriam para a possível cura das mais diversas maleitas. A todos atendia prontamente com a mesma coragem e tenacidade, quer se tratasse de curar uma dor de cabeça, como cozer um braço rasgado pela poderosa dentada da mandíbula de um burro enraivecido.
A enfermaria, pomposamente assim designada não passava de uma pequena divisão nas traseiras do refeitório dos soldados, onde mal cabia uma mesa, duas cadeiras e uma cama de ferro a servir de marquesa para os ocasionais pacientes que tanto podiam ser os militares do destacamento como os inúmeros civis que todas as manhãs, mulheres sobretudo, faziam fila com os filhos ao colo ou a reboque pela mão, na esperança de serem curados pelo doutor da tropa.
Lembro-me que uma vez, quando na companhia do Chefe de Posto de Pirada, o senhor Barbosa, um simpático velhote com tantos anos de África que mais parecia africano, fazíamos uma ronda pelas tabancas ao sul de Pirada, surgiram umas mulheres que, a chorar, lhe pediam que fosse acudir a um pobre velho que estava prestes a morrer pois já nem se mexia.
O nosso cabo lá pegou no saco dos medicamentos que trazia sempre consigo e resignado, mas sempre galhofando, dirigiu-se com as mulheres para o meio de uma das palhotas mais afastadas, enquanto eu e o Miguel, o condutor do jeep, ficávamos rodeados pela população que se ia aglomerando diante do nosso grupo composto também pelo imponente régulo da aldeia e pelo chefe de Posto, o velho e pacífico Barbosa.
Entretanto tentávamos perceber e deslindar a teia de peripécias e complicações inevitáveis sempre que o chefe de Posto queria proceder a mais um recenseamento dos jovens nativos desta região, pois como sempre, quase ninguém sabia a verdadeira idade que tinha. Regulam-se pelas fases da Lua, pelas colheitas e outros marcos que balizavam as suas vidas e não pelo nosso calendário, claro está. O velho Barbosa pacientemente, com a cabeça apoiada numa das mãos lá ia paulatinamente preenchendo os extensos mapas que a Administração lhe mandava e, que na verdade, só ele entendia.
Mal tínhamos chegado à tabanca, logo tinham aparecido cadeiras e bancos para todos, bem como uma tosca mesa que serviria de secretária. A miudagem, curiosa e irrequieta, espreitava morrendo de curiosidade por nos tocar, fugindo espavoridos quando esboçávamos a mais pequena intenção de os agarrar.
Os nitidamente mais velhos, adolescentes quase adultos, comprimiam-se receosos, num dos cantos do largo principal da aldeia, pois bem sabiam que a nossa presença só lhes poderia dizer respeito. A Administração todos os anos vinha arrebanhar os jovens que estivessem mais ou menos na idade do serviço militar e isso para eles era uma verdadeira tragédia a que no entanto se submetiam resignadamente. O branco é que mandava e o preto tinha apenas que obedecer.
Mas voltemos ao nosso cabo maqueiro, que por sinal tinha o nome de Abel Preto. O que ocasionava situações caricatas quando chamávamos por ele, usando o último nome e ele se encontrava, como de costume, na sua função, rodeados por nativos que, inocentemente, não se apercebiam que estávamos apenas a gozar com a cara deles.
Eis senão quando, surge o nosso cabo maqueiro rodeado por uma pequena multidão de mulheres velhas e novas que o traziam quase ao colo com demonstrações de grande regozijo e veneração, dançando e cantando, saudando-o efusivamente como a um milagroso homem santo. Mais atrás vinha uma jovem amparando um velhote sorridente que muito desembaraçadamente gesticulava e falava sem cessar.
O que tinha acontecido?
Muito simplesmente isto: perante um suposto enigma médico, para ele e para os seus escassíssimos conhecimentos de medicina, o nosso cabo maqueiro, optou por usar todos os medicamentos que tinha que nem eram assim tantos, resumiam-se a umas aspirinas e pomadas para alguma dor ou entorse. Podiam não ser totalmente eficazes mas mal também não fariam. Depois de despir o velhote aplicou-lhe uma valente esfrega de pomada analgésica pelas costas de cima a baixo, deixando o doente mais bem barrado que um frango pronto a entrar no forno. A seguir aplicou-lhe duas aspirinas pela goela abaixo com uma pouca de água. E, ou porque o remédio era mesmo bom, ou por que o paciente nunca tinha tido contacto com as medicinas dos brancos e estava portanto cem por cento receptivo a essas panaceias, o que de facto sucedeu é que ao fim de poucos minutos começava a dar sinais de já se poder mexer e em pouco menos de meia hora levantou-se são como um pêro, beijando as mãos do seu benfeitor, para grande espanto dele e, também de todos os assistentes, que logo ali o consideraram um verdadeiro homem santo.
A notícia espalhou-se num abrir e fechar de olhos e de todos os lados acorria gente para testemunhar a maravilha e querer também beneficiar dos milagrosos dons curativos daquele doutor que tinha vindo com a tropa. E todos traziam algo para lhe oferecer, ovos, laranjas, mandioca, nozes de cola e até galinhas vivas, pois tamanha benesse teria de ser recompensada.
Naquele fim de tarde o bom do nosso maqueiro quase que viu esgotar-se o stock de medicamentos que tinha improvisado quando lhe disse para vir comigo naquele passeio de acção psicológica para cairmos no agrado das populações.
Nos restantes dias viu-se aflito para poder contentar toda a clientela que não o largava em qualquer tabanca onde aparecêssemos.
Ganhou uma reputação tal que, creio ter posto em perigo a continuidade dos curandeiros de aldeia que, não acharam graça nenhuma a tais acontecimentos.
E nós, os que assistíamos a mais uma das prodigiosas façanhas do nosso bom cabo maqueiro apenas tivemos que paulatinamente ir dando vazão aquelas provisões que surgiam de todos os lados e que já não cabiam no jeep da Administração.
Durante vários dias os nossos pequenos-almoços foram ovos cozidos e laranjas! E para o almoço ou jantar, frango de churrasco!
Planta de Pirada
Pirada > Primeira cozinha
O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil
Recenseamento civil no regulado de Propana. O Régulo Serifo Embaló, o Chefe de Posto de Pirada, senhor Barbosa e eu, Alferes Geraldes, como convidado
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios
O cabo maqueiro
Naquele dia a manhã corria monótona e sempre igual às de tantos outros dias. Apenas o cozinheiro e o ajudante andavam de um lado para o outro atarefados com a preparação do almoço. O aquartelamento parecia deserto. As duas viaturas, o jeep e o velho Unimog, jaziam adormecidas arrumadas a um canto do telheiro de chapas de zinco. Reinava um silêncio pesado como a chapa de ouro do sol que tudo cobria.
Ainda era cedo para ir buscar água à bolanha e os soldados escondiam-se por aqui e por ali, onde houvesse uma sombra, a jogar às cartas, a dormitar ou a deambular pela aldeia, entrando nalguma casa comercial onde sempre apareciam novidades ou alguma bajuda jeitosa e sorridente para meter conversa de meia pataca.
O malandro do Furriel Coutinho também já se tinha desenfiado a pretexto de ir verificar a cerca de arame farpado lá para os lados do caminho que ia dar à pista de aviação e ninguém mais soube dele.
Dos outros dois furriéis, um estava de cama com paludismo e o restante fazia-lhe uma carinhosa (?) companhia. (Sempre suspeitámos que aquela amizade era talvez mais do que apenas isso. Pelo menos da fama não se livravam, embora o assunto nem fosse assim muito escandaloso e curiosamente bem tolerado naquele aglomerado de homens isolados do resto do mundo).
De modo que, como acontecia quase sempre, sem ter nada que fazer, nem nada com que me entreter, fui até a enfermaria ver o que é que o cabo maqueiro tinha por lá de novo.
O nosso cabo maqueiro, que aqui fazia as vezes de enfermeiro, era um rapaz muito metódico, alegre e falador. A sua presença era sempre motivo de divertimento para os colegas e de um fascínio estranho para os nativos que a ele recorriam para a possível cura das mais diversas maleitas. A todos atendia prontamente com a mesma coragem e tenacidade, quer se tratasse de curar uma dor de cabeça, como cozer um braço rasgado pela poderosa dentada da mandíbula de um burro enraivecido.
A enfermaria, pomposamente assim designada não passava de uma pequena divisão nas traseiras do refeitório dos soldados, onde mal cabia uma mesa, duas cadeiras e uma cama de ferro a servir de marquesa para os ocasionais pacientes que tanto podiam ser os militares do destacamento como os inúmeros civis que todas as manhãs, mulheres sobretudo, faziam fila com os filhos ao colo ou a reboque pela mão, na esperança de serem curados pelo doutor da tropa.
Lembro-me que uma vez, quando na companhia do Chefe de Posto de Pirada, o senhor Barbosa, um simpático velhote com tantos anos de África que mais parecia africano, fazíamos uma ronda pelas tabancas ao sul de Pirada, surgiram umas mulheres que, a chorar, lhe pediam que fosse acudir a um pobre velho que estava prestes a morrer pois já nem se mexia.
O nosso cabo lá pegou no saco dos medicamentos que trazia sempre consigo e resignado, mas sempre galhofando, dirigiu-se com as mulheres para o meio de uma das palhotas mais afastadas, enquanto eu e o Miguel, o condutor do jeep, ficávamos rodeados pela população que se ia aglomerando diante do nosso grupo composto também pelo imponente régulo da aldeia e pelo chefe de Posto, o velho e pacífico Barbosa.
Entretanto tentávamos perceber e deslindar a teia de peripécias e complicações inevitáveis sempre que o chefe de Posto queria proceder a mais um recenseamento dos jovens nativos desta região, pois como sempre, quase ninguém sabia a verdadeira idade que tinha. Regulam-se pelas fases da Lua, pelas colheitas e outros marcos que balizavam as suas vidas e não pelo nosso calendário, claro está. O velho Barbosa pacientemente, com a cabeça apoiada numa das mãos lá ia paulatinamente preenchendo os extensos mapas que a Administração lhe mandava e, que na verdade, só ele entendia.
Mal tínhamos chegado à tabanca, logo tinham aparecido cadeiras e bancos para todos, bem como uma tosca mesa que serviria de secretária. A miudagem, curiosa e irrequieta, espreitava morrendo de curiosidade por nos tocar, fugindo espavoridos quando esboçávamos a mais pequena intenção de os agarrar.
Os nitidamente mais velhos, adolescentes quase adultos, comprimiam-se receosos, num dos cantos do largo principal da aldeia, pois bem sabiam que a nossa presença só lhes poderia dizer respeito. A Administração todos os anos vinha arrebanhar os jovens que estivessem mais ou menos na idade do serviço militar e isso para eles era uma verdadeira tragédia a que no entanto se submetiam resignadamente. O branco é que mandava e o preto tinha apenas que obedecer.
Mas voltemos ao nosso cabo maqueiro, que por sinal tinha o nome de Abel Preto. O que ocasionava situações caricatas quando chamávamos por ele, usando o último nome e ele se encontrava, como de costume, na sua função, rodeados por nativos que, inocentemente, não se apercebiam que estávamos apenas a gozar com a cara deles.
Eis senão quando, surge o nosso cabo maqueiro rodeado por uma pequena multidão de mulheres velhas e novas que o traziam quase ao colo com demonstrações de grande regozijo e veneração, dançando e cantando, saudando-o efusivamente como a um milagroso homem santo. Mais atrás vinha uma jovem amparando um velhote sorridente que muito desembaraçadamente gesticulava e falava sem cessar.
O que tinha acontecido?
Muito simplesmente isto: perante um suposto enigma médico, para ele e para os seus escassíssimos conhecimentos de medicina, o nosso cabo maqueiro, optou por usar todos os medicamentos que tinha que nem eram assim tantos, resumiam-se a umas aspirinas e pomadas para alguma dor ou entorse. Podiam não ser totalmente eficazes mas mal também não fariam. Depois de despir o velhote aplicou-lhe uma valente esfrega de pomada analgésica pelas costas de cima a baixo, deixando o doente mais bem barrado que um frango pronto a entrar no forno. A seguir aplicou-lhe duas aspirinas pela goela abaixo com uma pouca de água. E, ou porque o remédio era mesmo bom, ou por que o paciente nunca tinha tido contacto com as medicinas dos brancos e estava portanto cem por cento receptivo a essas panaceias, o que de facto sucedeu é que ao fim de poucos minutos começava a dar sinais de já se poder mexer e em pouco menos de meia hora levantou-se são como um pêro, beijando as mãos do seu benfeitor, para grande espanto dele e, também de todos os assistentes, que logo ali o consideraram um verdadeiro homem santo.
A notícia espalhou-se num abrir e fechar de olhos e de todos os lados acorria gente para testemunhar a maravilha e querer também beneficiar dos milagrosos dons curativos daquele doutor que tinha vindo com a tropa. E todos traziam algo para lhe oferecer, ovos, laranjas, mandioca, nozes de cola e até galinhas vivas, pois tamanha benesse teria de ser recompensada.
Naquele fim de tarde o bom do nosso maqueiro quase que viu esgotar-se o stock de medicamentos que tinha improvisado quando lhe disse para vir comigo naquele passeio de acção psicológica para cairmos no agrado das populações.
Nos restantes dias viu-se aflito para poder contentar toda a clientela que não o largava em qualquer tabanca onde aparecêssemos.
Ganhou uma reputação tal que, creio ter posto em perigo a continuidade dos curandeiros de aldeia que, não acharam graça nenhuma a tais acontecimentos.
E nós, os que assistíamos a mais uma das prodigiosas façanhas do nosso bom cabo maqueiro apenas tivemos que paulatinamente ir dando vazão aquelas provisões que surgiam de todos os lados e que já não cabiam no jeep da Administração.
Durante vários dias os nossos pequenos-almoços foram ovos cozidos e laranjas! E para o almoço ou jantar, frango de churrasco!
Planta de Pirada
Pirada > Primeira cozinha
O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil
Recenseamento civil no regulado de Propana. O Régulo Serifo Embaló, o Chefe de Posto de Pirada, senhor Barbosa e eu, Alferes Geraldes, como convidado
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios
Guiné 63/74 - P4864: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (14): "A gastronomia guineense em 1969/71 e na actualidade"
1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 14ª estória:
Camaradas,
Ao vasculhar os meus apontamentos dei com um texto, que me fez lembrar os sítios e gastronomia que na época, 1969/71, existia em Bissau.
Só de lê-lo faz-me crescer a água na boca!
Como profissional de hotelaria, não poderia deixar de tecer alguns comentários à deliciosa e variada gastronomia guineense nos dias de hoje.
Gastronomia esta que recomendo principalmente aos apreciadores de bons gostos e paladares africanos.
"A GASTRONOMIA GUINEENSE EM TEMPO DE GUERRA"
Em Bissau, local onde só estive de passagem,
esporadicamente, e quando fui hospitalizado em sequência de um ferimento, despertou-me a atenção para o roteiro gastronómico, ou melhor dizendo, locais onde se comesse bem.
A gastronomia da Guiné, na altura, não se podia dizer que despertava o melhor sentido do sabor aos que procuravam uma lauta ou gostosa refeição.
Os melhores restaurantes da época em Bissau, estavam condicionados ao abastecimento de produtos, para a confecção dos típicos pratos guineenses. Resumindo-se basicamente à oferta das célebres ostras, frango à guinéu, piche-pache de ostras, moqueca de peixe e chabéu de galinha.
Para complementarem a sua oferta na Ementa ou Carta, sugeriam pratos de origem portuguesa, onde poderíamos encontrar sabores em conformidade com as nossas raízes.
O restaurante “SOLAR DOS 10”, um dos mais conhecidos, senão o mais famoso, tinha uma Carta onde sobressaíam as lulas grelhadas com piri-piri, e o famoso bife à Solar dos 10.
No “SOLMAR”, além das ostras, serviam um bom bitoque e omoletes de gambas que eram um regalo.
No “PELICANO”, o ex-líbris, era a francesinha que, para a época, era agradável.
Na estrada, entre o QG e Bissau, a seguir à entrada do Pilão, do lado esquerdo, havia um restaurante pequeno que servia um Piche-Pache de Ostras e um Chabéu de Galinha, que era de comer e chorar por mais.
Junto ao Forte de Amura, existia uma tasquinha que servia uns pastéis de bacalhau e vinho verde, que eram um primor.
A Moqueca de Peixe, para os apreciadores, encontrava-se nos restaurantes dos naturais da Guiné, localizados na zona do Pilão.
O Frango à Guineense, que consistia num frango previamente temperado com sal e limão e depois grelhado, com muito piri-piri, coisa comum em todos os restaurantes.
Na época a que me refiro, proliferava o mercado negro de géneros alimentícios em Bissau, o que condicionava a boa gastronomia e a elevava para preços demasiado altos, pouco acessíveis à fraca bolsa dos militares.
"A GASTRONOMIA GUINEENSE ACTUAL"
A actual gastronomia tradicional guineense é caracterizada por paladares intensos e apimentados, onde o limão, a malagueta e o jindungo são condimentos indispensáveis.
O arroz (bianda), é a base principal da alimentação popular, ao qual depois de cozinhado se adiciona o mafé, nome dado aos caldos geralmente feitos com peixe, marisco, galinha ou carne.
O chabéu e o óleo de palma são gorduras vegetais de eleição utilizados por todos os guineenses. A mancarra é outra gordura oleaginosa empregue frequentemente em molhos.
Os legumes mais conhecidos são a baquitche, a candja e o djagatú, muito utilizados para acompanhar o arroz e o mafé.
Saborear o caldo mancarra de chabéu, galinha de terra à Cafreal, bica grelhada, futi, sigá, acompanhados de vinhos de palma, vinho de cajú, refresco de fole, veledé, cabaceira, tambarina, mandiple e miséria, entre outros, são autênticos prazeres gastronómicos da Guiné.
Há ainda uma riqueza alimentar natural naquele país que é constituída pelo famoso marisco e peixe da sua costa marítima.
Toda esta excelente e deliciosa cozinha guineense, hoje, pode-se encontrar em qualquer restaurante da Guiné, bem como em Portugal, em alguns estabelecimentos nas zonas onde se concentram as habitações dos naturais daquela terra.
Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
Imagens: Wikipédia, a enciclopédia livre (2009). Direitos reservados.
____________
Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)
Cristina's History / A história de Cristina > Uma exposição do fotógrafo Mikael Levin, primo do Pepito, patente no Museu Colecção Berardo / Centro Cultural de Belém, em Lisboa, de 31 de Agosto a 8 de Novembro de 2009.
Imagens da exposição, que nos foram gentilmente enviadas pelo Pepito e que fazem parte do catálogo da exposição: de cima para baixo: (i) Algures, na cidade de Zgierz, na Polónia central, donde era originário o bisavô materno do Pepito (e trisavô da sua filha Cristina), Isuchaar Szwarc, morto nas vésperas da II Guerra Mundial (foto de 2005, sem título); (ii) A casa da avó materna da Cristina, em Lisboa, cidade onde nasceu em 1915, filha de um engenheiro de minas polaco, judeu, Samuel Szwarc, formado em Paris, na École Nationale des Mines, e que se fixou em Portugal com a I Guerra Mundial; a Clara Schwarz viveu em Bissau desde 1947 até 1966, tendo sido professora no Liceu Honório Barreto (foto de 2004, sem título); (iii) Um recanto da cidade de Bissau, onde nasceu a Cristina, em 1973, filha de Carlos Schwarz e de Isabel Levy Ribeiro, ambos engenheiros agrónomos, co-fundadores da AD-Acção para o Desenvolvimento e membros da nossa Tabanca Grande (foto de 2003, sem título).
Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)
1. Mensagem do nosso amigo Pepito, co-fundador e actual director executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, e que está em Portugal a passar férias na sua casa de São Martinho do Porto (estivémos juntos no dia 15, para mais uma memorável tarde convívio entre as nossas duas famílias) (*):
Caros(as) Amigos(as):
Tenho o prazer de vos convidar a participar no próximo dia 31 de Agosto (2ª feira) pelas 19h30 no Centro Cultural de Belém (Museu Colecção Berardo) à inauguração da Exposição CRISTINA’S HISTORY, da autoria do meu primo MIKAEL LEVIN.
Trata-se da história da minha filha mais velha, Cristina Silva (Pepas), desde a Polónia, Portugal e Guiné-Bissau.
Isuchaar, o trisavô da Cristina, deixa a Polónia durante a Primeira Guerra Mundial. A avó Clara nasceu em Lisboa e foi em 1947 para a Guiné, tendo a Cristina nascido em 1973 (**). O fotógrafo Mikael Levin (nascido em 1954, em Nova York) fez o quadro fotográfico da peregrinação desta parte da sua família.
Mais informaçáo disponível na página de Mikael Levin
A exposição terminará no dia 8 de Novembro de 2009.
Um abraço
Carlos Schwarz
(Pepito)
São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > Imagens da família Schwarz, em férias: em cima, a Clara, a jovem senhora de 94 anos, a sua neta Catarina (irmã da Cristina), a Isabel Levy Ribeiroe o seú marido, Carlos Silva Schwarz, Pepito para os amigos... Nesse dia, almoçámos uma deliciosa cachupa, confeccionada pela Isabel, que é de nacionalidade portuguesa, bem com os filhos (há ainda o Ivan, de férias no Egipto)
Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
2. Comentário de L.G.:
Infelizmente, para meu desgosto, não poderei estar presente na inauguração da exposição, no dia 31 de Agosto, por me encontrar ainda de férias, no Norte. Mas de certo que haverá gente do nosso blogue, nomeadamente a malta da área metropolitana de Lisboa, que quererá (e poderá) estar presente, aceitando o convite pessoal do nosso querido amigo Pepito. e partilhando com ele o privilégio de conhecer esta saga de quatro gerações que vai da segunda metade do Século XIX até aos nossos dias, e que passa pela Polónia, Portugal e Guiné-Bissau. Uma história de reconstrução de memória(s), de procura de raízes, de busca de identidade, um exemplo de capacidade de adaptação, de tenacidade, de coragem,
Segundo li na sua página pessoal, o Mikael Levin, primo da Cristina e do Pepito, nasceu em 1954, em Nova Iorque. Tem a dupla nacionalidade francesa e americana. Cresceu em França e nos Estados Unidos da América, mas também viveu em Israel.
Como ele próprio se apresenta, Mikael Levin é um fotógrafo cujo enfoque principal são "as questões de tempo e lugar de identidade e memória". Está representado em importantes colecções de grandes museus dos EUA e da Europa, tais como: Whitney Museum of American Art, Metropolitan Museum of Art, International Center of Photography, Museum of Modern Art, em Nova Iorque; o Centre Pompidou e a Bibliothèque Nationale, em Paris... E ainda em: o Museu de Israel (Jerusalém), o Moderna Muset (Estocolmo), o Victoria and Albert Museum (Londres) e, por fim, o Museu Judaico de Berlim.
A História de Cristina (em inglês, Cristina's History) é a história de 4 gerações de Schwarz. "Conheci Cristina da Silva Schwarz na Guiné-Bissau em 2003" - conta o autor, na sua página. Ele e Cristina têm,afinal, em comum um antepassado judeu, um homem estudioso e culto, que viveu em Zgierz, na Polónia central. Ao longo da sua vida, Isuchaar Szwarc "viu sua pequena cidade medieval transformada pela industrialização". Julgo que morreu na véspera da II Guerra Mundial, quando o terror nazi já alastrava pela Europa. Ele e grande da sua família não sobreviveram ao holocausto.
Samuel, o filho mais velho de Isuchaar, instalara-se em Lisboa com a I Guerra Mundial. Tinha-se casado com uma jovem russa, de Odessa (hoje, na Ucrânia). Samuel Schwarz (1880-1953) (foto à esquerda, cortesia de Inácio Steinhardt) será um engenheiro de minas, de sucesso, mas também ficará conhecido pela sua erudição, e pelo seu interesse pela história e cultura dos judeus sefarditas (que viviam na Península Ibérica). Foi ele que identificou (e salvou do abandmno e esquecimento) a comunidade cripto-judaica de Belmonte (***).
Foi também ele quem descobriu, comprou e doou ao Estado Português a antiga sinagoga de Tomar... (e a que os tomarenses e os demais portugueses, infelizmente, não parecem dar a devida importância, contrariamente ao que se passa com a sinagoga de Castelo de Vide, cujo notável núcleo museológico acabo de visitar, esta semana).
A filha (única) de Samuel, Clara Schwarz, casada com o advogado e escritor, de origem caboverdiana, Artur Augusto Silva (****), fixou-se em Bissau em 1947. "Lá, ela e o marido tiveram um papel de destaque no movimento anti-colonial", diz-nos o fotógrafo... Formada em letras pela Universidade de Lisboa, Clara Schwarz pertenceu ao núcleo dos fundadores e dos primeiros professores do Liceu Honório Barreto, ao tempo do Governador-Geral da Guiné, Sarmento Rodrigues (1946/49), que tinha duas filhas que também foram colegas (se bem percebi...) da Clara.
Por ela e por outros professores portugueses passou a formação da elite guineense e, portanto, de boa parte dos dirigentes do PAIGC. Clara foi professora de português. Disse-me há dias que "foi o melhor tempo" da sua vida... O Pepito, o mais novo de três filhos, todos rapazes, foi o único que nasceu na Guiné-Bissau.
Foto à esquerda: o antigo liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N'Krumah (cortesia do bogue com o mesmo nome).
Por sua vez, "desde a independência da Guiné-Bissau, Carlos, seu filho mais novo, tem dedicado a sua vida ao desenvolvimento agrícola deste país empobrecido", diz-nos o fotógrafo Mikael Levin... Cristina, filha de Carlos (Pepito, para todo o mundo e não só os amigos), nasceu em Bissau, em 1973. É portuguesa, casada, tem uma filha, é bióloga, com trabalho de investigação na Guiné-Bissau.
Castelo Vide > 21 de Agosto de 2009 > Sinagoga Museu > Vista parcial do painel com os nomes dos castelo-videnses, vítimas da Santa Inquisição. Não se sabe a data da sua construção. No início do Séc. XIV já havia uma judiaria em Castelo de Vide. O edifício foi adaptado para residência no Séc XVII. Foi reconstruído na sua traça primitiva em 1972. Recentemente foi criado o Núcleo Museológico da Sinagoga de Castelo Vide, que deve muito ao trabalho da arquitecta e arqueóloga Susana Bicho. É hoje uma das principais turísticas daquela bela terra do Alto Alentejo. Parabéns ao município e à comunidade de Castelo de Vide pelo belíssimo trabalho feito de preservação e divulgação da memória das suas gentes.
Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
Vídeo (4' 04'' ) : © Luís Graça (2009). Direitos reservados
Acrescenta o autor:
"Eu sempre tinha ouvido falar deste ramo bem sucedido da minha família. Ocorreu-me que as suas vidas eram a personificação da crença positivista da modernidade em matéria de mobilidade e de progresso. As famílias judias são muitas vezes caracterizadas por padrões de errância e migração, padrões de vida que mais tarde vieram a caracterizar a população mundial em geral"...
Embora as imagens do fotógrafo sejam específicas, a sua intenção "é ir além das identificações estreitas de uma determinada comunidade. É a tensão entre o local eo global que me interessa. A condição de multiplicidade, de deambulação e de exílio, tal como mostra esta história, sugere alguns princípios para uma fundamentação alternativa de identidade cultural, com base em padrões comuns de experiência"...
Sobre a exposição, diz-nos o autor que "é apresentada como uma instalação composta por três projecções digitais (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Nas salas sobre a Polónia e a Guiné-Bissau, dois projectores estão montados, de costas um para o outro, sobre um pivô central. As imagens de vídeo giram em torno da sala (como as vigas de uma casa de luz), com alongamento e flexão nas paredes à medida que são distorcidas pela forma da sala. Na sala de Lisboa, três projectores de vídeo projectam as imagens em paredes alternadas. Uma voz off narra a história. O ciclo de cada sala dura aproximadamente 15 minutos e consiste em cerca de 60 imagens".
Há um catálogo da exposição, com 160 imagens a preto e branco e texto em Francês, Inglês e Português, composto por três partes (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Autores do texto: Jean-François Chevrier, historiador de arte e curador independente; Jonathan Boyarin, professor de estudos judaicos modernos; e Carlos Schwarz da Silva, primo do Mikael Levin. (O notável texto do Pepito, A sombra do pau, já foi publicado no nosso blogue) (*****).
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Notas de L.G.:
(*) Último poste desta série > 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4836: Agenda cultural (23): Exposição evocativa da participação dos jovens do Seixal, Lourinhã, na guerra colonial (Luís Graça)
(**) Vd. poste de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2977: Recortes de imprensa (6): a cidadã portuguesa, Cristina Silva, expulsa da Embaixada de Portugal em Bissau no 10 de Junho
(***) Sobre Samuel Schwarz, há uma nota biográfica na página pessoal do antigo jornalista português, correspondente, em Israel, de vários jornais, da rádios, da RTP e da agência noticiosa ANOP (hoje, Lusa), Inácio Steinhardt (n. 1933, Lisboa, de origem judaica, a viver em Israel desde 1976), que tomo a liberdade de transcrever parcialmente, com a devida vénia e as minhas saudações bloguísticas ao autor (de quem ainda me lembro perfeitamente):
Completam-se este ano [, 2005,] 90 anos desde a chegada a Portugal do engenheiro judeu polaco Samuel Schwarz.
Foi Schwarz quem descobriu e revelou a todo o mundo judaico a existência de uma comunidade secreta cripto-judaica, em Belmonte.
Nascido em Zgierg, na Polónia, em 1880, Samuel Schwarz era filho de um erudito hebraísta, que tomou parte como delegado, no 1º. Congresso Sionista, convocado por Teodor Herzl.
Com a idade de 18 anos, Samuel deixou a casa dos pais para ir estudar engenharia mineira em Paris. Trabalhou depois na Espanha, na Suíça, na Costa do Marfim e na Rússia, onde conheceu sua futura esposa e se casou.
No princípio da 1.ª guerra mundial, o casal foi viver para Orense, em Espanha, e em 1915 estabeleceram-se definitivamente em Portugal.
O seu primeiro trabalho profissional foi nas minas de estanho de Belmonte. Aí, quando comprava aprovisionamentos para o seu escritório, um comerciante local aconselhou-o confidencialmente a que deixasse de comprar na loja de um seu concorrente.
- Basta que lhe diga que ele é judeu.
Vindo da Polónia, onde existia uma vida judaica pujante, para Portugal, onde a comunidade judaica reconhecida não excedia algumas centenas de membros, a confidência do comerciante de Belmonte causou-lhe obviamente enorme surpresa.
O problema imediato foi que, tanto como os vizinhos cristãos apontavam a dedo os habitantes "cristãos-novos" de Belmonte, estes escondiam as suas práticas religiosas e negavam veementemente serem judeus.
Schwarz necessitou de muita paciência, muitos conhecimentos da liturgia judaica, e de muito poder de persuasão, para ser reconhecido pelos cristãos-novos de Belmonte como seu correligionário.
Revelou então a sua descoberta em inúmeros artigos e entrevistas na imprensa judaica de todo o Mundo, que, por sua vez, deram lugar a visitas de individualidades importantes e novos relatos em livros e jornais. Excelente poliglota, Schwarz dominava nove línguas.
A sua principal obra "Cristãos-Novos em Portugal no Século XX" foi publicada em 1925, como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, de que era membro.
Este livro é considerado ainda hoje um clássico e fonte primária de todos os investigadores da história dos cripto-judeus em Portugal moderno.(...)
Samuel Schwarz foi também um investigador emérito da cultura judaica em Portugal. Entre os trabalhos que publicou, encontra-se a revelação de um documento hebraico, até então inédito, sobre a conquista de Lisboa aos Mouros, vista pelos habitantes judeus de dentro da cidade.
Devem-se-lhe também estudos importantes sobre a localização das judiarias medievais de Lisboa, e uma história da Moderna Comunidade Israelita de Lisboa.
Foi Samuel Schwarz que identificou em Tomar um edifício, que servia de armazém de batatas, e anteriormente de prisão, como tendo sido originalmente uma sinagoga do século XV.
Schwarz adquiriu e recuperou o edifício a suas custas, reuniu nele a maioria das inscrições hebraicas encontradas em território português. Ofereceu-o depois para o acervo cultural português, sob o nome de Museu Abraão Zacuto.
Actualmente a "Sinagoga de Tomar" é um importante atractivo turístico da cidade.
Samuel Schwarz faleceu em Lisboa em 1953.
Este ano foi inaugurado em Belmonte - cuja comunidade cripto-judaica regressou entretanto ao judaísmo normativo - um Museu Judaico, que esclarece aos turistas e visitantes nacionais a história incrível daquela comunidade.
Lamentavelmente, os responsáveis por aquele espaço museológico parece terem esquecido dedicar um sector do museu à figura e história de Samuel Schwarz, a cuja descoberta e obra de investigação Belmonte ficou a dever a divulgação no mundo da sua comunidade judaica.
É uma lacuna imperdoável, que os responsáveis certamente quererão reparar, na altura em que se comemora o 80.º aniversário da chegada de Samuel Schwarz a Belmonte.
In: Blogue Ao Correr da Pena > 31 de Agosto de 2005 > Samuel Schwarz
(****) Vd. postes de:
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!
20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)
(****) Vd. poste de 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)
É um texto que eu conselho vivamente a ler e reler, em especial aos amigos da Guiné e do povo guineense, e a todos os homens de boa vontade... Aqui vai apenas a última parte:
(...) 4. RENASCER SEMPRE
Em 1948, um ano antes de eu nascer, o meu pai [, Artur Augusto da Silva,] regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e onde, tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.
Com a minha mãe Clara [Schwarz] e meus irmãos Henrique e João, volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.
Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.
No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.
Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha, e logo a seguir com o Ivan, nascido em 1975, e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.
Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer.
(...)
Imagens da exposição, que nos foram gentilmente enviadas pelo Pepito e que fazem parte do catálogo da exposição: de cima para baixo: (i) Algures, na cidade de Zgierz, na Polónia central, donde era originário o bisavô materno do Pepito (e trisavô da sua filha Cristina), Isuchaar Szwarc, morto nas vésperas da II Guerra Mundial (foto de 2005, sem título); (ii) A casa da avó materna da Cristina, em Lisboa, cidade onde nasceu em 1915, filha de um engenheiro de minas polaco, judeu, Samuel Szwarc, formado em Paris, na École Nationale des Mines, e que se fixou em Portugal com a I Guerra Mundial; a Clara Schwarz viveu em Bissau desde 1947 até 1966, tendo sido professora no Liceu Honório Barreto (foto de 2004, sem título); (iii) Um recanto da cidade de Bissau, onde nasceu a Cristina, em 1973, filha de Carlos Schwarz e de Isabel Levy Ribeiro, ambos engenheiros agrónomos, co-fundadores da AD-Acção para o Desenvolvimento e membros da nossa Tabanca Grande (foto de 2003, sem título).
Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)
1. Mensagem do nosso amigo Pepito, co-fundador e actual director executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, e que está em Portugal a passar férias na sua casa de São Martinho do Porto (estivémos juntos no dia 15, para mais uma memorável tarde convívio entre as nossas duas famílias) (*):
Caros(as) Amigos(as):
Tenho o prazer de vos convidar a participar no próximo dia 31 de Agosto (2ª feira) pelas 19h30 no Centro Cultural de Belém (Museu Colecção Berardo) à inauguração da Exposição CRISTINA’S HISTORY, da autoria do meu primo MIKAEL LEVIN.
Trata-se da história da minha filha mais velha, Cristina Silva (Pepas), desde a Polónia, Portugal e Guiné-Bissau.
Isuchaar, o trisavô da Cristina, deixa a Polónia durante a Primeira Guerra Mundial. A avó Clara nasceu em Lisboa e foi em 1947 para a Guiné, tendo a Cristina nascido em 1973 (**). O fotógrafo Mikael Levin (nascido em 1954, em Nova York) fez o quadro fotográfico da peregrinação desta parte da sua família.
Mais informaçáo disponível na página de Mikael Levin
A exposição terminará no dia 8 de Novembro de 2009.
Um abraço
Carlos Schwarz
(Pepito)
São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > Imagens da família Schwarz, em férias: em cima, a Clara, a jovem senhora de 94 anos, a sua neta Catarina (irmã da Cristina), a Isabel Levy Ribeiroe o seú marido, Carlos Silva Schwarz, Pepito para os amigos... Nesse dia, almoçámos uma deliciosa cachupa, confeccionada pela Isabel, que é de nacionalidade portuguesa, bem com os filhos (há ainda o Ivan, de férias no Egipto)
Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
2. Comentário de L.G.:
Infelizmente, para meu desgosto, não poderei estar presente na inauguração da exposição, no dia 31 de Agosto, por me encontrar ainda de férias, no Norte. Mas de certo que haverá gente do nosso blogue, nomeadamente a malta da área metropolitana de Lisboa, que quererá (e poderá) estar presente, aceitando o convite pessoal do nosso querido amigo Pepito. e partilhando com ele o privilégio de conhecer esta saga de quatro gerações que vai da segunda metade do Século XIX até aos nossos dias, e que passa pela Polónia, Portugal e Guiné-Bissau. Uma história de reconstrução de memória(s), de procura de raízes, de busca de identidade, um exemplo de capacidade de adaptação, de tenacidade, de coragem,
Segundo li na sua página pessoal, o Mikael Levin, primo da Cristina e do Pepito, nasceu em 1954, em Nova Iorque. Tem a dupla nacionalidade francesa e americana. Cresceu em França e nos Estados Unidos da América, mas também viveu em Israel.
Como ele próprio se apresenta, Mikael Levin é um fotógrafo cujo enfoque principal são "as questões de tempo e lugar de identidade e memória". Está representado em importantes colecções de grandes museus dos EUA e da Europa, tais como: Whitney Museum of American Art, Metropolitan Museum of Art, International Center of Photography, Museum of Modern Art, em Nova Iorque; o Centre Pompidou e a Bibliothèque Nationale, em Paris... E ainda em: o Museu de Israel (Jerusalém), o Moderna Muset (Estocolmo), o Victoria and Albert Museum (Londres) e, por fim, o Museu Judaico de Berlim.
A História de Cristina (em inglês, Cristina's History) é a história de 4 gerações de Schwarz. "Conheci Cristina da Silva Schwarz na Guiné-Bissau em 2003" - conta o autor, na sua página. Ele e Cristina têm,afinal, em comum um antepassado judeu, um homem estudioso e culto, que viveu em Zgierz, na Polónia central. Ao longo da sua vida, Isuchaar Szwarc "viu sua pequena cidade medieval transformada pela industrialização". Julgo que morreu na véspera da II Guerra Mundial, quando o terror nazi já alastrava pela Europa. Ele e grande da sua família não sobreviveram ao holocausto.
Samuel, o filho mais velho de Isuchaar, instalara-se em Lisboa com a I Guerra Mundial. Tinha-se casado com uma jovem russa, de Odessa (hoje, na Ucrânia). Samuel Schwarz (1880-1953) (foto à esquerda, cortesia de Inácio Steinhardt) será um engenheiro de minas, de sucesso, mas também ficará conhecido pela sua erudição, e pelo seu interesse pela história e cultura dos judeus sefarditas (que viviam na Península Ibérica). Foi ele que identificou (e salvou do abandmno e esquecimento) a comunidade cripto-judaica de Belmonte (***).
Foi também ele quem descobriu, comprou e doou ao Estado Português a antiga sinagoga de Tomar... (e a que os tomarenses e os demais portugueses, infelizmente, não parecem dar a devida importância, contrariamente ao que se passa com a sinagoga de Castelo de Vide, cujo notável núcleo museológico acabo de visitar, esta semana).
A filha (única) de Samuel, Clara Schwarz, casada com o advogado e escritor, de origem caboverdiana, Artur Augusto Silva (****), fixou-se em Bissau em 1947. "Lá, ela e o marido tiveram um papel de destaque no movimento anti-colonial", diz-nos o fotógrafo... Formada em letras pela Universidade de Lisboa, Clara Schwarz pertenceu ao núcleo dos fundadores e dos primeiros professores do Liceu Honório Barreto, ao tempo do Governador-Geral da Guiné, Sarmento Rodrigues (1946/49), que tinha duas filhas que também foram colegas (se bem percebi...) da Clara.
Por ela e por outros professores portugueses passou a formação da elite guineense e, portanto, de boa parte dos dirigentes do PAIGC. Clara foi professora de português. Disse-me há dias que "foi o melhor tempo" da sua vida... O Pepito, o mais novo de três filhos, todos rapazes, foi o único que nasceu na Guiné-Bissau.
Foto à esquerda: o antigo liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N'Krumah (cortesia do bogue com o mesmo nome).
Por sua vez, "desde a independência da Guiné-Bissau, Carlos, seu filho mais novo, tem dedicado a sua vida ao desenvolvimento agrícola deste país empobrecido", diz-nos o fotógrafo Mikael Levin... Cristina, filha de Carlos (Pepito, para todo o mundo e não só os amigos), nasceu em Bissau, em 1973. É portuguesa, casada, tem uma filha, é bióloga, com trabalho de investigação na Guiné-Bissau.
Castelo Vide > 21 de Agosto de 2009 > Sinagoga Museu > Vista parcial do painel com os nomes dos castelo-videnses, vítimas da Santa Inquisição. Não se sabe a data da sua construção. No início do Séc. XIV já havia uma judiaria em Castelo de Vide. O edifício foi adaptado para residência no Séc XVII. Foi reconstruído na sua traça primitiva em 1972. Recentemente foi criado o Núcleo Museológico da Sinagoga de Castelo Vide, que deve muito ao trabalho da arquitecta e arqueóloga Susana Bicho. É hoje uma das principais turísticas daquela bela terra do Alto Alentejo. Parabéns ao município e à comunidade de Castelo de Vide pelo belíssimo trabalho feito de preservação e divulgação da memória das suas gentes.
Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > A Joana Graça e a Clara Schwarz, divertidíssimas, a praticar o 'seu' russo... Uma tarde divertidíssima, a que não faltou a música klezmer (género musical cultivada pelos judeus das regiões balcânicas desde o Séc. XV, através do violino do João Graça (do grupo musical Melech Mechaya)
Vídeo (4' 04'' ) : © Luís Graça (2009). Direitos reservados
Acrescenta o autor:
"Eu sempre tinha ouvido falar deste ramo bem sucedido da minha família. Ocorreu-me que as suas vidas eram a personificação da crença positivista da modernidade em matéria de mobilidade e de progresso. As famílias judias são muitas vezes caracterizadas por padrões de errância e migração, padrões de vida que mais tarde vieram a caracterizar a população mundial em geral"...
Embora as imagens do fotógrafo sejam específicas, a sua intenção "é ir além das identificações estreitas de uma determinada comunidade. É a tensão entre o local eo global que me interessa. A condição de multiplicidade, de deambulação e de exílio, tal como mostra esta história, sugere alguns princípios para uma fundamentação alternativa de identidade cultural, com base em padrões comuns de experiência"...
Sobre a exposição, diz-nos o autor que "é apresentada como uma instalação composta por três projecções digitais (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Nas salas sobre a Polónia e a Guiné-Bissau, dois projectores estão montados, de costas um para o outro, sobre um pivô central. As imagens de vídeo giram em torno da sala (como as vigas de uma casa de luz), com alongamento e flexão nas paredes à medida que são distorcidas pela forma da sala. Na sala de Lisboa, três projectores de vídeo projectam as imagens em paredes alternadas. Uma voz off narra a história. O ciclo de cada sala dura aproximadamente 15 minutos e consiste em cerca de 60 imagens".
Há um catálogo da exposição, com 160 imagens a preto e branco e texto em Francês, Inglês e Português, composto por três partes (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Autores do texto: Jean-François Chevrier, historiador de arte e curador independente; Jonathan Boyarin, professor de estudos judaicos modernos; e Carlos Schwarz da Silva, primo do Mikael Levin. (O notável texto do Pepito, A sombra do pau, já foi publicado no nosso blogue) (*****).
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Notas de L.G.:
(*) Último poste desta série > 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4836: Agenda cultural (23): Exposição evocativa da participação dos jovens do Seixal, Lourinhã, na guerra colonial (Luís Graça)
(**) Vd. poste de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2977: Recortes de imprensa (6): a cidadã portuguesa, Cristina Silva, expulsa da Embaixada de Portugal em Bissau no 10 de Junho
(***) Sobre Samuel Schwarz, há uma nota biográfica na página pessoal do antigo jornalista português, correspondente, em Israel, de vários jornais, da rádios, da RTP e da agência noticiosa ANOP (hoje, Lusa), Inácio Steinhardt (n. 1933, Lisboa, de origem judaica, a viver em Israel desde 1976), que tomo a liberdade de transcrever parcialmente, com a devida vénia e as minhas saudações bloguísticas ao autor (de quem ainda me lembro perfeitamente):
Completam-se este ano [, 2005,] 90 anos desde a chegada a Portugal do engenheiro judeu polaco Samuel Schwarz.
Foi Schwarz quem descobriu e revelou a todo o mundo judaico a existência de uma comunidade secreta cripto-judaica, em Belmonte.
Nascido em Zgierg, na Polónia, em 1880, Samuel Schwarz era filho de um erudito hebraísta, que tomou parte como delegado, no 1º. Congresso Sionista, convocado por Teodor Herzl.
Com a idade de 18 anos, Samuel deixou a casa dos pais para ir estudar engenharia mineira em Paris. Trabalhou depois na Espanha, na Suíça, na Costa do Marfim e na Rússia, onde conheceu sua futura esposa e se casou.
No princípio da 1.ª guerra mundial, o casal foi viver para Orense, em Espanha, e em 1915 estabeleceram-se definitivamente em Portugal.
O seu primeiro trabalho profissional foi nas minas de estanho de Belmonte. Aí, quando comprava aprovisionamentos para o seu escritório, um comerciante local aconselhou-o confidencialmente a que deixasse de comprar na loja de um seu concorrente.
- Basta que lhe diga que ele é judeu.
Vindo da Polónia, onde existia uma vida judaica pujante, para Portugal, onde a comunidade judaica reconhecida não excedia algumas centenas de membros, a confidência do comerciante de Belmonte causou-lhe obviamente enorme surpresa.
O problema imediato foi que, tanto como os vizinhos cristãos apontavam a dedo os habitantes "cristãos-novos" de Belmonte, estes escondiam as suas práticas religiosas e negavam veementemente serem judeus.
Schwarz necessitou de muita paciência, muitos conhecimentos da liturgia judaica, e de muito poder de persuasão, para ser reconhecido pelos cristãos-novos de Belmonte como seu correligionário.
Revelou então a sua descoberta em inúmeros artigos e entrevistas na imprensa judaica de todo o Mundo, que, por sua vez, deram lugar a visitas de individualidades importantes e novos relatos em livros e jornais. Excelente poliglota, Schwarz dominava nove línguas.
A sua principal obra "Cristãos-Novos em Portugal no Século XX" foi publicada em 1925, como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, de que era membro.
Este livro é considerado ainda hoje um clássico e fonte primária de todos os investigadores da história dos cripto-judeus em Portugal moderno.(...)
Samuel Schwarz foi também um investigador emérito da cultura judaica em Portugal. Entre os trabalhos que publicou, encontra-se a revelação de um documento hebraico, até então inédito, sobre a conquista de Lisboa aos Mouros, vista pelos habitantes judeus de dentro da cidade.
Devem-se-lhe também estudos importantes sobre a localização das judiarias medievais de Lisboa, e uma história da Moderna Comunidade Israelita de Lisboa.
Foi Samuel Schwarz que identificou em Tomar um edifício, que servia de armazém de batatas, e anteriormente de prisão, como tendo sido originalmente uma sinagoga do século XV.
Schwarz adquiriu e recuperou o edifício a suas custas, reuniu nele a maioria das inscrições hebraicas encontradas em território português. Ofereceu-o depois para o acervo cultural português, sob o nome de Museu Abraão Zacuto.
Actualmente a "Sinagoga de Tomar" é um importante atractivo turístico da cidade.
Samuel Schwarz faleceu em Lisboa em 1953.
Este ano foi inaugurado em Belmonte - cuja comunidade cripto-judaica regressou entretanto ao judaísmo normativo - um Museu Judaico, que esclarece aos turistas e visitantes nacionais a história incrível daquela comunidade.
Lamentavelmente, os responsáveis por aquele espaço museológico parece terem esquecido dedicar um sector do museu à figura e história de Samuel Schwarz, a cuja descoberta e obra de investigação Belmonte ficou a dever a divulgação no mundo da sua comunidade judaica.
É uma lacuna imperdoável, que os responsáveis certamente quererão reparar, na altura em que se comemora o 80.º aniversário da chegada de Samuel Schwarz a Belmonte.
In: Blogue Ao Correr da Pena > 31 de Agosto de 2005 > Samuel Schwarz
(****) Vd. postes de:
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!
20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)
(****) Vd. poste de 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)
É um texto que eu conselho vivamente a ler e reler, em especial aos amigos da Guiné e do povo guineense, e a todos os homens de boa vontade... Aqui vai apenas a última parte:
(...) 4. RENASCER SEMPRE
Em 1948, um ano antes de eu nascer, o meu pai [, Artur Augusto da Silva,] regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e onde, tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.
Com a minha mãe Clara [Schwarz] e meus irmãos Henrique e João, volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.
Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.
No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.
Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha, e logo a seguir com o Ivan, nascido em 1975, e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.
Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer.
(...)
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