Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997)
Manuel de Lucena:
Antes da eclosão da guerra Angola - e baseando-me no depoimento que concedeu a José Freire Antunes (2) - sei que estagiou em unidades norte-americanas e esteve integrado na Divisão SHAPE. Quer falar-nos um pouco dessa experiência?
General Bettencourt Rodrigues:
Em 1952, depois de ter feito o curso de Estado Maior no Instituto de Altos Estudos Militares, o então Chefe de Estado Maior, general Barros Rodrigues, destacou-me para tirar o curso de Comando e de Estado Maior nos EUA (Kansas). Seguidamente, estagiei na 1ª Divisão de Infantaria norte-americana instalada no campo de Graffenworhr, na Alemanha Ocidental.
Passado algum tempo, constituiu-se a Divisão SHAPE, que actuou em numerosos exercícios e manobras, dentro e fora do país, Nessa unidade, fui adjunto da 3* Repartição do Quartel General durante o período de manobras de 1953 e anos seguintes.
Quando regressei a Portugal, estive durante algum tempo colocado em Santa Margarida, onde se começaram a aplicar os modelos e técnicas americanas ao Exército português: foi em Santa Margarida que nasceu o moderno Exército portuguesa.
Foi talvez em 1958 que começámos a ter a percepção de que algo iria acontecer em África, fundamentalmente devido ao exemplo da guerra da Argélia e às primeiras independências na África negra.
Por essa altura tomaram-se certas providências tendo em vista a adaptação do Exército ao tipo de inimigo que poderia ter de vir a enfrentar.
Enviaram-se alguns oficiais para a Argélia (Hernes de Oliveira, Almiro Canelhas, Franco Pinheiro, entre outros), a fim de se familiarizarem com os métodos de luta anti-guerrilha; mudaram-se os planos de instrução; no Instituto de Altos Estudos Militares, na Academia Militar e nas Escolas Práticas começou leccionar-se a teoria da «guerra subversiva»; em Lamego, foi criado o Centro de Instrução de Operações Especiais, especialmente vocacionado para a luta antissubversiva
Em 1960 - o ano da independência do Congo belga -, o coronel Almeida Fernandes, então ministro do Exército, mandou uma missão do curso de Estado-Maior a Angola. Fiz parte dessa missão - era então professor no curso Estado Maior - tendo levado comigo os alunos da parte complementar do curso, Percorremos toda a fronteira Norte de Angola em duas station wagons sem que tivéssemos dado conta de algo de anormal. Angola parecia estar perfeitamente pacificada.
Quando a grande bronca rebenta, - os massacres da UPA de 14 de Março -, eu estava lá em missão, juntamente com os generais Beleza Ferraz e Câmara, respectivamente CEMGFA e CEME. Em Buco-Zau (Cabinda), onde nos encontrávamos, chamaram-nos de urgência para a Luanda. Depois daqueles dois responsáveis terem regressado a Lisboa, na companhia do ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves, ainda lá fiquei uns dias.
Manuel de Lucena:
Qual era o propósito dessa última missão?
General Bettencourt Rodrigues:
Tratava-se de uma simples missão de rotina, tanto quanto me recordo. Simplesmente, calhou estarmos lá aquando da eclosão da guerrilha. Depois dessa ocasião, voltei repetidas vezes a Angola, uma delas com o então major Pedro Cardoso, adjunto do Secretário-Geral da Defesa Nacional, por ocasião do cerco a Carmona.
Em Novembro de 1961 teve lugar um acontecimento dramático: o desastre do Chitado, onde pereceu o general Silva Freire, então comandante da região militar de Angola. Pouco tempo depois, o general Holbeche Fino, designado para suceder a Silva Freire, telefona-me dizendo que gostaria de me levar para Angola como seu chefe de gabinete.
À minha maneira, respondi-lhe que tinha dois patrões; o general Gomes de Araújo e o general Câmara Pina; se ele se entendesse com eles, muito bem, iria para Angola, Comigo foi sempre assim: basta apresentarem-me a guia de marcha e eu vou para qualquer lado.
Luís Salgado de Matos:
Quando em Março de 1961 rebenta a «bernarda» em Angola, o dr. Salazar não quis falar com as pessoas que lá estavam?
General Bettencourt Rodrigues:
Não sei. Pela minha parte, só falei com o Costa Gomes e o Almeida Fernandes.
Luís Salgado de Matos:
Não é no regresso daquela visita que os generais Beleza Ferraz e Câmara Pina classificam os incidentes em Angola como um simples caso de polícia e depois são muito criticados?
General Bettencourt Rodrigues:
Sim, admitia-se que o general Beleza Ferraz talvez não tivesse medido bem a gravidade da situação; e daí essas declarações menos felizes.
Luís Salgado de Matos:
Ainda em relação a esse ano de 1961, como viu o golpe do general Botelho Moniz?
General Bettencourt Rodrigues:
O general Botelho Moniz era um homem muito complicado, muito fechado sobre si mesmo. Quem não segue as regras no Exército, acaba sempre por «dar gato».
Ainda hoje não sei bem o que foi a «Abrilada». Que eles queriam derrubar o dr. Salazar e o almirante Américo Tomás é um facto - e o Craveiro Lopes até já tinha a mala feita para se instalar em Belém. Agora o que sucederia depois do golpe, isso permaneceu sempre um mistério para mim.
Manuel de Lucena:
Como é que o sr. general sentiu o ambiente das Forças Armadas em Angola, em 1961? Nos escalões que contavam, é evidente.
General Bettencourt Rodrigues:
Apesar de uma certa surpresa perante a proporção que as coisas assumiram em Março de 1961, já havia um certo planeamento por parte dos responsáveis militares. O general Silva Freire, um estratega brilhante, tinha alinhavado algumas ideias para enfrentar um possível foco de subversão.
Infelizmente, no desastre do Chitado faleceram também dois chefes de Repartição do Quartel General. Escaparam, valha-nos isso, o hoje coronel Moreira Rebelo, da 1ª Repartição, e o hoje general Salazar Braga, da 2ª Repartição.
Em finais de 1961 tínhamos para resolver: a reconstituição Quartel General, as comunicações, a logística e a montagem do sistema de quadrícula. Ou seja, praticamente o essencial.
O sistema de quadrícula, de inspiração francesa, surgiu-nos como o mais adequado, até porque os massacres tinham eclodido em regiões onde não existiam guarnições militares, deixando os fazendeiros num grande isolamento.
Luís Salgado de Matos:
O general Silva Freire era um oficial da escola francesa?
General Bettencourt Rodrigues:
Sim, mas era sem dúvida o nosso melhor general, um dos mais brilhantes estrategas da sua geração. Ele teve a inteligência de perceber que era através da quadrícula que poderíamos contactar com as populações, trazê-las para o nosso lado.
Repare: a guerra dita subversiva é um conflito assimétrico; uma disputa entre dois adversários desiguais em termos de organização, recursos e implantação no terreno.
O sistema da quadrícula adaptou-sese bem às características da guerra subversiva. Era a quadrícula que integrava o médico que fornecia os cuidados de saúde básicos, o cabo que dava a instrução primária aos indígenas, o soldado que conhecia bem os musseques, a sanzala, enfim, a tropa que ia fazendo o «trabalhinho».
Quando se queria bater com força, então chamavam-se as forças de intervenção. Foram ambas indispensáveis e complementares uma da outra.
Luís Salgado de Matos:
Diz-se que a quadrícula deixou de combater em 1965.
General Bettencourt Rodrigues:
Não tenho essa ideia. Sinceramente. Quando voltei a Angola em 1971 (a minha missão com o general Holbeche Fino terminou em 1964), para chefiar a Zona Militar Leste, combatia-se com determinação. Tanto assim que ainda nesse ano voltou a ser possível circular à vontade nessa região.
Manuel de Lucena:
Entre 1961 e 1964, a ideia era cooperar e pacificar, por um lado, e bater quando necessário, por outro?
General Bettencourt Rodrigues:
A ideia do apaziguamento era primordial. Era a razão de ser da nossa guerra. Nunca se perseguiu uma estratégia de aniquilamento do inimigo. O nosso lema era «a conquista pelas mentes».
Luís Salgado de Matos:
Voltando um pouco atrás. O general Beleza Ferraz tinha ou não razão quando dizia que a situação em Angola se pacificava num ápice? Porque em 1962 as coisas estavam aparentemente controladas...
General Bettencourt Rodrigues:
Não é tanto assim. Aquela gente era determinada, batia-se bem, tinha armamento, apoios internacionais.
Manuel de Lucena:
A guerrilha era então vista como um inimigo a longo prazo?
General Bettencourt Rodrigues:
Era impossível liquidá-la de uma só vez. Repare: qual é a finalidade da guerra subversiva? Substituir uma autoridade por outra, naquele caso, portugueses por angolanos.
Nesse aspecto, a subversão falhou: foi o 25 de Abril que nos derrubou.
Como a finalidade era aquela, não podia haver soluções de compromisso. Como é que se faz um cessar-fogo no âmbito de uma guerra subversiva? Nunca ninguém mo soube explicar até hoje.
Utilizando uma imagem conhecida: uma mulher está grávida ou não; não pode estar apenas um bocadinho grávida…
Manuel de Lucena:
O que o sr. general pretende dizer é que na guerra subversiva o compromisso é sempre o prelúdio da derrota de um dos lados. É isso?
General Bettencourt Rodrigues:
Eu vou mais longe: qualquer compromisso equivale sempre a uma derrota incondicional.
À guerrilha nunca interessam partilhas territoriais, soluções intermédias. É a vitória total ou nada.
Manuel de Lucena:
E em relação ao compromisso, quando é que se percebe que um dos lados se está a precipitar no abismo?
General Bettencourt Rodrigues:
Veja esta hipótese: o general Spínola chegava a um entendimento com o Amílcar Cabral e conseguia chamá-lo para o Governo, oferecendo-lhe o cargo de secretário-geral ou coisa que o valha. Neste caso, quem vencia era o general Spínola porque o Governo, a autoridade, mantinha-se portuguesa.
Luís Salgado de Matos:
A esse respeito tenho uma espécie de teoria sentimental sobre a descolonização portuguesa. Ganhámos a guerra militarmente - com a possível excepção Guiné - mas o pais decidiu que se retirava, que não valia a pena continuar em África.
Manuel de Lucena:
Depois do trabalho com o general Holbeche Fino, entre 1961 e 1964, e até voltar a Angola, por onde andou o sr. general?
General Bettencourt Rodrigues:
Estive três anos em Londres como adido militar e depois fui ministro do Exército, já com o professor Marcelo Caetano. Em 1971 fui então nomeado Comandante da Zona Militar Leste.
Manuel de Lucena:
Como surgiu essa sua última nomeação?
General Bettencourt Rodrigues: Creio que foi o general Costa Gomes, meu grande amigo, que me propôs.
Luís Salgado de Matos:
Com quem tinha grandes afinidades tácticas, segundo julgo saber…
General Bettencourt Rodrigues:
Direi que partilhávamos de uma certa unidade de vistas. Em 1970-71 a situação em Angola apresentava sinais de deterioração. A subversão alastrou do Norte até ao Leste, à Lunda, ao Mochico e, o que era verdadeiramente preocupante, começara a ameaçar Nova Lisboa, o centro nevrálgico de Angola.
Nessa altura, o general Costa Gomes decidiu remodelar o dispositivo e criar a Zona Militar Leste, que abrangia os distritos do Bié, Lunda, Mochico e Cuando Cubango. Essa sua iniciativa coincidiu com uma viagem do general Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa a Angola.
Em conversa, o general Costa Gomes sugeriu o meu nome para a chefia do novo comando, tendo obtido a anuência do ministro.
Manuel de Lucena:
Entretanto, falou também com o professor Marcelo Caetano?
General Bettencourt Rodrigues:
Exactamente. De resto, eu sempre estive muito à vontade com o professor Marcelo. Tinha sido seu ministro, conhecíamo-nos bem... Ele até dizia que eu usava uma linguagem muito pitoresca...
Luís Salgado de Matos:
O professor Marcelo alguma vez se confessou consigo sobre os contados secretos com o PAIGC?
General Bettencourt Rodrigues:
Não acredite nisso... Eu não duvido que o Villas-Boas tenha ido a Londres, mas foi só ver o que é que os tipos queriam, mais nada. Havia um toque do Foreign Office e não se podia dizer que não.
Manuel de Lucena:
Quando falou com o professor Marcelo antes de ir para o Leste, havia mais alguma coisa na manga, ou era apenas uma conversa normal entre o Presidente do Conselho e um antigo ministro que ia desempenhar uma importante missão militar?
General Bettencourt Rodrigues:
Prefiro essa segunda hipótese. Para ser sincero, a conversa foi até relativamente inócua. Discutimos a delicadeza da situação militar, particularmente dramática à volta de Nova Lisboa; falámos das acções que se poderiam desenvolver junto das populações.
Este último desiderato era, não me canso de sublinhá-lo, muito importante para nós. Nisso, o dr. Salazar e o prof. Marcelo não eram muito diferentes.
Nas três frentes em que estivemos envolvidos, não arrasámos nada, não recorremos a bombardeamentos maciços, não seguimos uma política de terra queimada.
É claro que, numa situação de conflito, há sempre uns tipos desequilibrados que podem praticar abusos.
Luís Salgado de Matos:
Na Argélia o uso da tortura em uma directiva explícita do Estado-Maior. O comando de pára-quedistas de Argel estava especificamente treinado para aterrorizar.
Manuel de Lucena:
Bem, a esse respeito há até quem fale de uma excessiva brandura por parte da tropa portuguesa. Quer comentar, sr. general?
General Bettencourt Rodrigues:
É claro que quando era preciso bater, nós batíamos. No entanto, é sempre muito difícil dosear essas coisas...
Mas fomos sempre formados para não cometer excessos.
Manuel de Lucena:
Sobre a sua acção no Leste, pode dizer-nos alguma coisa sobre os seus acordos com Jonas Savimbi?
General Bettencourt Rodrigues:
Relativamente a esse assunto, entendo que não devo falar, uma vez que a pessoa em questão ainda está viva e politicamente activa.
No entanto, esclareço que após o 25 de Abril nunca tive nada a ver nem com a UNITA, nem com o MPLA.
Manuel de Lucena:
O brigadeiro Passos Ramos, que nos prestou dois depoimentos em 1995 e 1996, levantou um pouco a ponta do véu sobre esses acordos. Disse-nos, nomeadamente, que houve um entendimento entre o Exército português e a UNITA com vista à formação de um santuário, que, naturalmente, funcionava contra o MPLA.
Disse-nos também que a UNITA não era um movimento fantoche: estava bem implantada, cobrava impostos aos madeireiros, controlava áreas muito vastas - em suma, dava-nos trabalho.
General Bettencourt Rodrigues:
A única coisa que posso dizer é que o general Costa Gomes estava dentro desse entendimento, tal como o professor Marcelo Caetano. O que não equivale a atribuir-lhes a paternidade da ideia.
Luís Salgado de Matos:
O fim do 'modus vivendi' com Savimbi ficou a dever-se à inabilidade do seu sucessor?
General Bettencourt Rodrigues:
Em certa medida. A guerra subversiva é uma guerra - como direi? - suja, pouco ortodoxa.
Se sigo com demasiada intransigência os meus princípios - e essa foi a opção meu sucessor - não estou a jogar pelas regras do jogo.
Luís Salgado de Matos:
Mas essa inflexão face à UNITA terá tido o assentimento do ministro, não?
General Bettencourt Rodrigues:
Não sei. Mas note que o Leste de Angola é um sítio remoto. Naquele conflito gozávamos de uma grande margem de autonomia.
Manuel de Lucena:
Quando estive exilado, falei uma vez com um homem do MPLA, um mestiço, Castro Lopo, que se confessou muito impressionado com as dificuldades que o movimento então experimentava na Frente Leste. Dificuldades sobretudo ao nível dos abastecimentos - vinha tudo de muito longe, da Zâmbia, por exemplo, forçando-os a longas caminhadas…
General Bettencourt Rodrigues:
Precisamente. Por outro lado, eram essas as vantagens dos terroristas na Guiné. Mas o Governo Zâmbia não regateava apoios à subversão. À semelhança, aliás, de alguns lobbys norte-americanos, como o American Comitte for Africa.
Quem tocava no Caminho de Ferro de Benguela era a UNITA, o que não convinha nada à Zâmbia, um país de hinterland com acesso ao mar bloqueado. Isso dava-nos um grande trunfo sobre o Kaunda. É por isso que chamei à guerra subversiva uma guerra suja: cada um dos lados combatia com manhas e artimanhas.
Manuel de Lucena:
Nesse sentido, o acordo com a UNITA revestía-se de um carácter eminentemente prático; quanto muito implicaria uma integração de quadros dirigentes daquele movimento na administração portuguesa. É isso?
General Bettencourt Rodrigues:
Sim, é mais ou menos isso.
Luís Salgado de Matos:
Passando agora para a Guiné (...)
(Continua em próximo poste)
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Notas dos entrevistadores:
1 José Manuel Bettencourt Rodrigues (n. 1918): Oficial de Infantaria. Ministro do Exército (1968-70). Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-73). Sucedeu a Spínola como governador da Guiné (1973-74).
(2) José Freire Antunes, A Guerra de África, 1° vo1. Lisboa; Círculo de Leitores, 1996.
(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, para efeitos de publicação neste blogue: LG)
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Nota do editor: