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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7451: O Nosso Livro de Visitas (104): Camaradas da Guiné (Domingos Santos)


1. O nosso Camarada-de-armas Domingos Santos, da CCAÇ 1684 do BCAÇ 1912 - Susana e Varela -, MAI67 a MAI69, enviou ao nosso Camarada Luís Graça, em 15 de Dezembro de 2010, a seguinte mensagem.
Camaradas da Guiné
É com enorme alegria que ao ver camaradas da Tabanca Grande a relatar episódios passados na Guiné, e em especial em Susana e Varela que foi onde estive, já lá vão uns bons quarenta e três anos, pois estou a falar nos anos de 67-69.
Como ao longo destes últimos anos não tive grande tempo para aprender esta nova tecnologia dos computadores, agora como reformado arranjei esse tempo para aprender e assim pesquisar coisas bastante interessantes.
Vi aqui também que o camarada Pepito também passou por Susana e Varela, pois vi fotos do quartel lá de Susana enviadas penso eu por ele e também artigos onde fala dos Felupes e seus costumes.
É sempre bom haver alguém que fale destes acontecimentos, para que fique para os nossos netos relatos do que nós passamos na guerra de África.
Também tenho imensos casos passados na minha permanência na Guiné, que um dia relatarei, mas só quando dominar melhor esta tecnologia.
Um grande abraço para todos os camaradas, em especial os que passaram por Guiné.
Do Camarada Combatente
Domingos Santos
2. Gostávamos de transmitir ao Domingos Santos que já mandaram mensagens para o blogue os seguintes Camaradas e familiares de Camaradas nossos do BCAÇ 1912:

- O nosso camarada Júlio César Ferreira (ex-1º Cabo, CCAÇ 2659/BCAÇ 2905, Guiné 1970/71), em 9 de Março de 2010, procurou saber notícias do ex-1º Cabo Manuel Silva Ferreira da CCAÇ 1684;
- A amiga Lídia Gonçalves (filha de José Manuel Costa Gonçalves. Ex-1º Cabo Mecânico Auto Rodas da CCAÇ 1685 - Os insaciáveis), procurou notícias de seu pai falecido em 12 de Agosto de 2009;
- O nosso Camarada Aires Ferreira (ex-Alf Mil da CCAÇ 1686);
- O nosso Camarada Mário de Oliveira (que foi Alf Mil Capelão) e é conhecido como o Padre Mário da Lixa;
- O amigo Sérgio Nunes Rodrigues de Oliveira, filho do nosso Camarada Reinaldo de Oliveira Pereira (ex-Sold Condutor da CCAÇ 1686), em busca de Camaradas de seu pai.
3. Resta-nos, em nome do nosso Camarada Luís Graça, Editores e demais tertulianos desta Tabanca Grande, enviar ao Domingos Santos o habitual convite para se juntar às nossas fileiras, enviando-nos pelo menos um texto contando-nos um episódio e fotos do seu tempo de comissão.
Emblemas de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Todos os direitos reservados

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quinta-feira, 25 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6046: Em busca de... (121): Camaradas do ex-1.º Cabo Manuel Silva Ferreira, CCAÇ 1684/BCAÇ 1912, Guiné 1969/71 (Júlio César)



1. Mensagem do nosso camarada Júlio César Ferreira, ex-1.º Cabo, CCAÇ 2659/BCAÇ 2905, Guiné 1970/71, com data de 9 de Março de 2010:

Caros amigos

A filha de um camarada nosso, pediu-me para tentar encontrar antigos camaradas de guerra do seu pai.

O seu nome é:

Manuel Silva Ferreira
ex-1.º Cabo da CCaç 1684
Guiné desde 15.4.67 até 14.5.69


Todos as informações são bem-vindas

Um Alfa Bravo
Júlio César Ferreira
CCaç 2659
BCaç 2905


Nota de CV:

A CCAÇ 1684 era uma companhia operacional do BCAÇ 1912 que embarcou para a Guiné em Abril de 1967 e regressou em Maio de 1969.

Esteve no sub-sector de S. Domingos com pelotões destacados em Varela e S. Domingos. Nos últimos meses de comissão ainda esteve colocada em Mansoa.

Pede-se a quem souber de camaradas desta Companhia ou Batalhão, o favor de contactar o nosso camarada Júlio César.

Na página do nosso camarada Jorge Santos encontrei um pedido de contacto de um camarada da CCS/BCAÇ 1912, José Cachochas, com os telefones 253 270 865 e 961 662 942.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6007: Em busca de... (120): Fotos que documentem Unidades mobilizadas pelo BII 18 (José Grave)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4839: O Nosso Livro de Visitas (67): Lídia Gonçalves, filha do nosso camarada José Manuel Costa Gonçalves

1. Mensagem de Lídia Mateus, filha de um nosso camarada falecido recentemente, com data de 12 de Agosto de 2009:

O meu nome é Lídia Gonçalves, sou filha de um camarada vosso, que esteve na Guiné-Bissau nos anos de 1967/69.

O seu nome era José Manuel Costa Gonçalves. Era cabo mecânico auto rodas (acho que era assim a denominação). Fazia parte da CCaç 1685 (Os insaciáveis).

Gostaria que, a título póstumo, (o mesmo faleceu no passado dia 25/07/2009), publicassem as fotografias que irei enviar mais tarde. O meu pai sempre que falava da Guiné e do tempo que lá passou, ficava com um brilhozinho nos olhos.

Gostava de contar como tinha recebido um louvor do seu comandante por ter conseguido fazer omeletes sem ovos, tendo a frota de carros sempre pronta a funcionar, e orgulhava-se em exibir a sua caderneta militar. Também gostava de contar como dava de comer a tanta gente que não tinha o que comer! (Sempre foi amigo do conhecido e do desconhecido!).

Lembro-me que cresci a ouvir contar histórias de África, de tal modo minucioso, que me via a mim, naqueles locais que o meu pai contava e descrevia.
Só lamento não ter descoberto a Tabanca mais cedo, para que ele também pudesse partilhar convosco desta tertúlia.

Obrigado por ajudarem a manter viva a história de Portugal, sem preconceitos de qualquer tipo!

Um grande bem haja a todos!


2. Comentário de CV:

Cara amiga Lídia
Muito obrigado por se ter dirigido a nós e pelas palavras enviadas que adivinhamos serem sentidas.

Lamentamos profundamente a morte recente do senhor seu pai e mais ainda por ser nosso camarada. Mais um pedaço de nós que a inexorável lei da morte não poupou. Aceite os nossos mais sentidos pêsames, extensívos a toda a família.

Com respeito às fotos e estórias de seu pai, estamos abertos a recebê-las e publicá-las. Temos pena que não possamos considerar o seu pai como nosso tertuliano, mas se quiser, pode a Lídia ficar a pertencer ao grupo dos nossos amigos já que é filha de um dos nossos camaradas. Como diz o nosso tertuliano José Martins, os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são.

Fica então combinado que mandará as fotos de seu pai quando entender para nós darmos notícia no nosso Blogue.

Em nome dos tertulianos, ex-combatentes da Guiné, envio-lhe um beijinho.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4695: O Nosso Livro de Visitas (66): Manuel Seixas da CCAÇ 1422/BCAÇ 1858 (K3/Saliquinhedim, 1965/67)

terça-feira, 19 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4380: Bibliografia de uma guerra (45): Entre o Paraíso e o Inferno, de Abel de Jesus Carreira Rei (CART 1661, 1967/68)


Folha de rosto da página na Net do Abel de Jesus Carreira Rei, autor do livro Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné. O autor nasceu na Marinha Grande, em 1945.


1. Mensagem de Abel Rei (*), ex-combatente da Guiné, CART 1661/BCAÇ 1912, 1967/68, com data de 3 de Janeiro de 2009:

Assunto: Início de contacto(s) sobre o tema "Livro - Entre o Paraíso e o Inferno", Diário escrito na Guiné entre princípios de 67 e fins de 68.

Meu caro amigo ex-combatente da Guiné:

Em primeiro lugar, quero pedir licença pela minha intromissão no seu blogue, e dizer-lhe que só agora dei início aos conhecimentos e navegação pela Internet, tendo desde logo o prazer de ver o vosso trabalho, que felicito e desejo uma boa continuação, oferecendo desde já os meus préstimos, se isso for necessário.

Receba os meus agradecimentos, pelo interesse demonstrado em registar e divulgar alguns dos pormenores do meu Diário sobre minha passagem pela Guiné, que segundo me apercebi, o amigo e camarada, só teve conhecimento dele através do Portal da Cidade da Marinha Grande.


Então passo a apresentar-me:

(i) Fui para a Guiné integrado na CART 1661/BCAÇ 1912.

(ii) Esta Companhia foi render, no Enxalé, a CCAÇ 1439, em princípios de 1967.

(iii) Fizemos o nosso percurso por Fá, Enxalé, Missirá, Porto Gole e Bissá, tendo-nos juntado ao Pel Caç Nat 54, os quais fui encontrar, fazendo parte duma secção do 4.º Pelotão da nossa Companhia, em Porto Gole, criando alguns laços de amizade com o seu comandante, Alf Mil Marchant, Fur Mil Viegas, entre outros do Continente, assim como com os próprios combatentes nativos, a quem, sobretudo àqueles que foram mortos ou feridos, faço referência no meu Diário.

(iv) Estive até ao ano de 2007 na Direcção do Núcleo da Marinha Grande da Liga dos Combatentes, exercendo o cargo de Tesoureiro, que abandonei por motivos de saúde.

Sendo o autor e editor, ainda não esgotei a edição do meu Livro, pelo que me vou apoiando nalguns amigos e Direcções doutros Núcleos de Combatentes, para promover a venda do mesmo, pelo que tomo a liberdade, se isso me for permitido, de lançar nesta página a sua publicidade! (Custo de cada unidade: 10,00€+1,50€ p/ portes de envio).

Também posso enviar à cobrança.

Saudações de ex-combatente
Abel Rei


2. No dia 17 de Maio, Luís Graça enviava ao Abel a seguinte mensagem:

Abel:

Até que enfim, que te encontro!... Ao fim de quase quatro anos... Por lapso, só agora dei conta da tua mensagem, que enviaste para o meu endereço pessoal... Já lá vão quase quatro meses e meio... Nesse lapso de tempo, já deves ter vendido o resto dos exemplares do teu livro... Olha, eu gostaria de o adquirir. Podes mandá-lo à cobrança para o meu endereço.

Parabéns pelo teu trabalho. Na altura gostei da tua escrita singela, espontânea... Andei também pelos mesmos lugares que tu (só não fui a Bissá). Há aqui outros camaradas (ligados ao Pel Caç Nat 52 e ao 63) que irão gostar de ler o teu livro...

Desde já convido-te a aderir formalmente a nossa Tabanca Grande, e a intervir, com fotos e textos... Para já vamos apresentar o teu livro, na série Bibliografia de uma Guerra.

Boa sorte, bom trabalho, boa saúde...
Luís Graça
__________

Notas de CV:

(*) Sobre Abel Rei ver postes de:

1 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - X: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa

30 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXV: CCART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68)

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

Vd. último poste da série de 12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4330: Bibliografia de uma guerra (44): Memórias de um Prisioneiro de Guerra, de António Júlio Rosa (M. Beja Santos)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3372: Unidades que passaram por Mansoa, de Maio de 1969 a Fevereiro de 1971 (César Dias)

1. Há tempos (já lá vai mais de ano e meio..), o César Dias lembrou-se de nos mandar estes elementos informativos sobre as unidades que compunham o sector de Mansoa no seu tempo, o período em que estiveram no sector e as respectivas baixas (mortos e feridos graves, evacuados para Lisboa ou para Bissau). Ai ficam, uma vez que podem ser úteis a muitos camaradas nossos. Obrigado, Césra. Como vès, na nossa Tabanca Grande, nada se perde, tudo se transforma...

Recorde-se que o César Vieira Dias foi Furriel Miliciano Sapador, na CCS do BCAÇ 2885, um batalhão que esteve em Mansoa e Mansabá desde Maio de 1969 a Março de 1971 .



Unidades que passaram pelo sector de Mansoa no período de 8 de Maio de 1969 a 15 de Fevereiro de 1971

por César Dias


(i) BCAÇ 2885 substitui o BCAÇ 1912 em 14 de Maio de 1969

Composição do Batalhão

CCS - Não teve mortos em combate; 6 Evacuados para Lisboa: 21 evacuados para o HM 241 (Bissau)
CCAÇ 2587 > 1 morto; evacudos: 10 (Lisboa) + 26 (HM 241)
CCAÇ 2588 > 7 mortos; evacuados: 14 (Lisboa) + 31 (HM 241)
CCAÇ 2589 > 6 mortos; evacuados: 8 (Lis) + 21 (HM 241)


(ii) Outras Forças adstritas ao Batalhão


CART 2411 nos destacamentos de Porto Gole, Bissá e Enxalé até 15-03-1970 > Não teve mortos; Evacuados: 5 (Lisboa) + 14 (HM 241)

CCAÇ 2403 em Mansabá, desde 10-69 a 21-04-1970 > 2 mortos e 3 evacuados: 1 (Lisboa) + 2 (HM 241)

CART 2732 em Mansabá desde 21-04-1970 até 11-11-70 para COP6 > 1 morto; 5 feridos (evacuados para Lisboa); mais 6 (HM 241).

CCAÇ 15 em Mansoa desde 4-03-1970 > Evacuados: 4 (Lisboa) + 15 (HM 241)

CCAÇ 17 em Mansabá 17-10-1970 (sem baixas)

PEL CAÇ NAT 54 no destacamento de Porto Gole e Enxalé até 26-10-69 : 1 ferido (HM 241)

PEL CAÇ NAT 57 no destacamento de Cutia até 28-01-70 sendo rendido pelo PEL CAÇ NAT 61 > 1 ferido (HM 241)

PEL CAÇ NAT 58 no destacamento de Infandre desde 16-11-69: 6 mortos; 2 feridos evacuados para Lisboa e 1 para o HM 241

PEL CAÇ NAT 61 em Mansabá até 28-01-70: 8 feridos (HM 241)

PEL CAÇ NAT 62 no destacamento de Braia, extinto em 16-11-69 e substituído pelo
PEL CAÇ NAT 58: sem baixas

PEL MORT 2172 > feridos graves: 1 (LIsboa) + 1 (HM 241)

11º PEL ART 8,8 em Mansoa: sem baixas

PEL MORT 2004: 2 feridos evacuados para o HM 241

- 1 secção em Mansoa
- 1 Esq em Cutía
- 2 Homens em cada destacamento: Bindoro, Infandre, Rossum, Bissá, Porto Gole, Enxalé, Jugudul, Braia e Uaque

21º Pel Art /ga 7: 1 ferido evacuado para Lisboa

2 Auto Metr / Pel AM 2048 em Mansoa e Mansabá > Feridos evacuados: 1 (Lisboa) + 2 (HM 241)

PEL MILÍCIA 155 depois 250, em Mansoa: 1 morto; 1 ferido grave (HM 241)

PEL MILÍCIA 156 depois 251, em Mansoa: 1 morto; 1 ferido grave (HM 241)

PEL MILÍCIA 159 depois 253, em Mansabá: 1 morto, 1 ferido grave /HM 241)

GRUPO DE CAÇADORES BALANTAS, este grupo foi transformado em PEL MILÍCIA 186 depois 252 em 1-12-69: Mortos: 5; feridos evacuados: 1 (Lisboa) + 2 (HM 241)

PEL SOLDADOS BALANTAS, sem Quadros (esteve 2 meses em Mansoa, voltando depois para Bolama): sem baixas.

28º PEL ART 14, substitui o 11º PEL ART 10,5 indo este para Bissorã para o BCAÇ2861 em 19-07-70: sem baixas

1 PEL AML PANHARD com 3 viaturas, em Mansabá: sem baixas

(iii) Outras unidades:

COP6 em Mansabá

CCAÇ 15, a 2 grupos de combate

PEL SAP da CCS do BCAÇ2885 em 21-11-70 até 09-02-71

13º PEL ART, substitui o 21º PEL ART que foi para Olossato em 21-11-70

BCAÇ 3832, substitui o BCAÇ2885 que em 15-02-71 ruma ao Cumeré a aguardar transporte para Lisboa.

Guiné 63/74 - P3371: Bibliografia de uma guerra (35): Desertor ou Patriota, de David Costa: da brincadeira ao pesadelo... (V. Briote)



Título > Desertor ou Patriota
Autor > David Costa
Editora >
Ausência
Local > Vila Nova de Gaia
Ano> 2004
Nº pp > 160
Preço > 12 €


A extraordinária aventura de um soldado raso


David Costa nasceu na freguesia de Fânzeres, concelho de Gondomar, a 12 de Dezembro de 1945. Incorporado em Julho de 1966, casado à pressa para ver se se livrava da mobilização, nem com um filho recém-nascido e outro a caminho escapou. Como ele diz a certa altura, só os cegos e os paralíticos podiam ter alguma esperança.

Tudo começou em Fevereiro de 1967. No cais da Rocha Conde de Óbidos ouviu a prelecção habitual:
- Soldados de Portugal! É grande a vossa honra, pois a Pátria chama-vos a defender aquelas terras tão orgulhosamente portuguesas.

Embarcou no Uíge num daqueles dias frios para cinco dias depois respirar o ar quente de Bissau. Nem deu tempo para dar uma volta pela cidade. Encaixotados nas viaturas, lá rumaram, ele e os camaradas, a caminho de Mansoa.

Um tipo cheio de sorte. Ainda em Lisboa deram-lhe a notícia:
- O teu serviço vai ser trabalhar na secretaria, incorporado na CART 1660.

Em Mansoa encontrou-se com os velhinhos do BCAÇ 1912, que não deixaram passar a oportunidade de praxar a periquitada:
- A vossa chegada não tarda vai ser condignamente festejada...Não vai faltar molho! - E, de facto, assim aconteceu.

Numa daquelas noites, a gozar o cinema ao ar livre, aí vai aço, tugas de um raio! “Corríamos inseguros à procura de qualquer coisa que nos abrigasse”, remata o infeliz amanuense condutor que, afinal, estava a ver que também sobrava alguma coisa para ele.

Uma brincadeira de mau gosto, que lhe saiu cara

Mas nessa noite como em outras que se seguiram estava longe de adivinhar o que, dezenas de anos depois, chamou “a extraordinária aventura que eu vivi”.

Foi no fatídico dia 17 de Maio de 1967 que começou a odisseia do David. Brincalhão, cheio de arte e manha, era o encarregado do transporte do correio, o que o levava a Bissau sempre que havia avião.

“Tudo não passou de uma simples brincadeira com uma carta mal fechada, da qual caíra uma foto de uma linda rapariga. Com essa fotografia, destinada ao Floriano, resolvi fazer umas graças, exibindo-a como troféu de grande conquistador que eu era. Brincadeira de mau gosto, certamente, imperdoável também, com certeza, mas que me saiu tão cara!...”

Condenado pelos camaradas que lhe viraram as costas, resolveu ir dar uma volta pela povoação.

Foi andando, diz ele, a matutar, acabrunhado, andando até dar por ela que era noite e já estava fora de Mansoa e sem sequer vislumbrar qualquer referência. Em pânico, desorientado, meteu-se pelo mato, andou para trás e para a frente e para os lados possivelmente, até que pela madrugada viu um holofote a girar. Era um destacamento das NT que ele não fazia ideia qual fosse.

Entra, não entra, arrisca a entrar por baixo do arame farpado, a desaparecer pelo chão, quando lhe vem à cabeça a ideia de poder ser visto à distância por alguma sentinela que, certamente, não o identificaria e, o mais certo, pensou para ele, fura-me todo.

Escapa-se do aquartelamento (ao longo de toda a história vê-se que conjuga o verbo escapar de trás para a frente) e decidiu internar-se no mato ao encontro, não sabia ainda, de uma pequena coluna da guerrilha.

Estava ele a dizer “Tem calma David!”, quando uns vultos estacam à frente dele. Curvados, observam-lhe a cara, murmuram entre eles, até que um se chega à frente de um David a tremer por todos os lados.
- Que andas aqui a fazer fora do quartel?
- Fugi, ontem à noite - saiu-lhe pela boca, sem pensar, diz ele.

Apanhado pelo PAIGC, levado para o Morés e, depois, para o Senegal

Começa assim a odisseia do soldado raso David Costa. Levado pelo Comandante Alexandre Dias Correia e mais seis elementos bem armados e equipados com fato camuflado, dirige-se à mata de Morés. Sempre bem tratado pela guerrilha e pela população, conhece José Landim, que se apresenta como chefe militar da base de Morés.

Depois foi a viagem por trilhos, bolanhas e ribeiros, em direcção ao Senegal. No trajecto ainda conheceu em Iracunda, bem perto do Olossato, o Aristides Pereira, futuro Presidente da República de Cabo Verde que, contente pela deserção do soldado, o abraçou e tratou com muita simpatia. Foi aí que assistiu a uma sessão política, que o deixou boquiaberto. Acarinhado por todos, rumou novamente em direcção à linha de fronteira, conduzido pelo Comandante Alexandre Correia e pelos seus homens. Dois ou três dias depois chegaram.

Antes de embarcar numa camioneta que o aguardava, chorou abraçado ao Comandante, que à despedida lhe disse:
-Vai em paz e que Deus te acompanhe. Obrigado por seres dos nossos…

Em Ziguinchor teve honras de ser recebido por Luís Cabral e pelo Mário Pádua, um médico português que desertara do Exército Português em Angola e tratava agora dos feridos e doentes do PAIGC.

Levaram-no a um alfaiate, tirou medidas para um fato, comprou camisas e sapatos, fumou Craven-A e Rothelmans, parecia-lhe tudo surreal, diz ele.

Numa noite, após jantar com Luís Cabral, duas senhoras e o Mário Pádua, este entrou-lhe no quarto e perguntou-lhe a quem queria dar notícias.

Que pergunta! O David não parava de pensar na sua jovem mulher. Então, o Pádua passou-lhe para as mãos uma carta escrita e uma folha de papel de avião em branco com o respectivo envelope.

“Quando me deixou só, comecei a ler aquela folha e fiquei muito desanimado. À medida que a ia lendo, ia perdendo a vontade de continuar. Não entendia nada de política, mas qualquer um perceberia que aquela carta era uma condenação. Eu ia dizer à minha mulher para não se preocupar comigo. Que estava muitíssimo bem e não me faltava nada. Que tivesse confiança, pois mais tarde ou mais cedo iria ter comigo, onde quer que eu estivesse. E pelo meio destas mensagens cheias de esperança dizia-se que quem tinha a culpa de tudo era Salazar…Que Salazar e Tomás eram doidos e o Cardeal Cerejeira também. Mesmo ignorante, logo percebi que jamais voltaria a Portugal sem problemas gravíssimos…”, escreve o David no seu livro.

Fez o que lhe sugeriram, copiou com a sua letra a folha que o Pádua lhe entregara.

Depois o David continua a contar as atribulações que diz ter passado. Deram-lhe uma espécie de dinheiro de bolso e deixavam-no passear sozinho. Dias depois, diz ter escrito uma carta para a mulher contando a sua própria versão e pedindo que fizesse a entrega da carta no QG, no Porto.

A aventura no Senegal continua em Dakar para onde foi levado e conhece na sede do PAIGC um tal José Augusto, natural de Braga, ex-apontador de morteiro de uma unidade militar portuguesa, que desertara em tempos e que vivia no Senegal com a mulher e a avó.

Da Gâmbia até Bissau: o início de outro pesadelo, incluo a célebre chapada de Spínola

A odisseia do David no Senegal acaba num Convento em Dakar, levado por um padre que o encontrara desanimado numa igreja. Não falta nesta história uma freira, jovem e bonita… Foi, aliás, através das freiras que obteve um passaporte e foi levado para Bathurst, Gâmbia, de onde depois de ter enviado um telegrama ao Comando Chefe das FA em Bissau, regressou numa avioneta civil à Guiné.

Bom, depois começou outra história. Prisão, interrogatórios, julgamento, condenação por deserção, chapada de Spínola...

Ironia ou não, o David regressou em 20 de Junho de 1971 no mesmo navio que, em Fevereiro de 1967, o transportara para a Guiné...Passou à disponibilidade em 29 de Agosto de 1971.
__________

Nota de vb:

(*) Sobre Dr. Mário Pádua, vd. o filme-documentário As Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes:


AS DUAS FACES DA GUERRA

DIANA ANDRINGA E FLORA GOMES

DOCLISBOA 2007 - INVESTIGAÇÕES

Luta de libertação para uns, guerra de África para outros: o conflito que, entre 1963 e 1974, opôs o PAIGC às tropas portuguesas é visto, desde logo, de perspectivas diferentes por guineenses e portugueses. Mas não são essas as únicas “duas faces” desta guerra: mais curioso é que, para lá do conflito, houve sempre cumplicidade: “Não fazemos a guerra contra o povo português, mas contra o colonialismo”, disse Amílcar Cabral, e a verdade é que muitos portugueses estavam do lado do PAIGC. Não por acaso, foi na Guiné que cresceu o Movimento dos Capitães que levaria ao 25 de Abril. De novo duas faces: a guerra termina com uma dupla vitória, a independência da Guiné, a democracia para Portugal. É esta “aventura a dois” que é contada pelas vozes dos que a viveram.

EXTRAS

Capítulos
Diana Andringa, Flora Gomes Filmografias
Legendas: Inglês

Chico Bá Paulo de Jesus Filinto de Barros Agnelo Lourenço Fernandes Sulei Balde Carlos Sambú Amílcar Domingues António Iria Revez Teresa Barbosa António Lobato Manecas Santos Osvaldo Lopes da Silva João Marques Dinis Vasco Lourenço Pedro Pires Ansumane Sambú António Marques Lopes Lassana Njai Alfredo Santi Mário Pádua Manuel Boal Maria da Luz (Lilica) Boal Fernando Baginha Amélia Araújo Leonel Martins Pedro Gomes José Mendes Sentieiro Mbana Cabra Manuel Monge Agnelo Dantas Dalme Embunde Féfé Gomes Cofre Assana Silá Alexandre Coutinho e Lima Mamadi Danso e Assana Silá Dauda Cassamá Aladje Salifo Camará Isabel Coutinho e Lima Manuel Batoréo

Argumento e Realização: Diana Andringa e Flora Gomes; Imagem: João Ribeiro; Som: Armanda Carvalh; Montagem: Bruno Cabral; Produtor: Luís Correia; Produção: Lx Filmes.

Portugal, 2007, 105’, P/B e Cor, Betacam Digital, som 2.0, formato 4:3, Português e Crioulo

© Lx Filmes 2007
(P) Midas Filmes 2007

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1946: Estórias de Mansoa (2): um capelão (o padre Mário da Lixa) em apuros na estrada de Cutia (Aires Ferreira)




Guiné > Região do Óio > Mansoa > Cutia > Destacamento de Cutia > c. 1970 > Foto enviada, salvo erro, pelo César Vieira Dias, Ex Furriel Miliciano Sapador, CCS / BCAÇ 2885, um batalhão que esteve em Mansoa e Mansabá desde Maio de 1969 a Março de 1971 (se for outro o dono da foto, que reclame).


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Texto do Aires Ferreira, ex-Alf Mil, CCAÇ 1686 / BCAÇ 1912, Mansoa, 1967/69)(1):

Missa em Cutia, por Aires Ferreira

Cutia era um destacamento que tinha um grupo de combate e ficava entre Mansoa e Mansabá e entre o Morés e o Sara - Sarauol [vd. carta de Mambonco].


O Batalhão tinha um Capelão que, um certo Domingo, lá para o fim de 67, resolveu ir celebrar missa a Cutia. Para isso, arranjou uma escolta de voluntários que, comandados pelo furriel S. S., lá foram, com 2 Unimogs e o jipe do capelão.

A missa foi celebrada e, no regresso, um dos Unimogs despistou-se e uma grande parte do pessoal da escolta ficou com ferimentos muito graves, tendo os restantes seguido até Mansoa para pedir auxílio.

Nesse Domingo, eu estava de Oficial de Dia ao quartel de Mansoa e desconhecia totalmente este assunto. Cerca da hora de almoço, passava junto à porta de armas, encontrei o Tenente-Coronel, o Comandante do Batalhão, que me disse:

- Alferes Ferreira, o seu grupo está todo destroçado na estrada de Cutia, o que está aqui a fazer? Vá já para lá.

- Não posso, estou de serviço - disse eu e apontei a braçadeira.

- Dê cá, eu fico com ela. O piquete vai já atrás de si com a ambulância.

Assim foi. Lá fui, munido da pistola Walther, com um condutor que por ali apareceu e chegámos depressa. A cena era trágica. Havia 5 ou 6 militares gravemente feridos e deitados na berma. O único militar que ali estava capaz de dar uns tiros para defender o local, se o IN por ali aparecesse, era … o Capelão, que, de joelhos, na estrada, junto ao jipe, fazia as suas orações, de G3 ao lado.

Logo de seguida chegou o necessário auxílio e todos os feridos foram evacuados e tratados.O Alferes Capelão que faz parte desta história era… o Padre Mário Pais de Oliveira (2), bem conhecido desta Tertúlia e a quem envio um grande abraço.

Aires Ferreira

2. Comentário do editor do blogue:

Esta cena, trágico-cómica, repetiu-se infelizmente muitas vezes na Guiné, devido à frequência de acidentes, graves, com viaturas. A estória tem algo de heróico, insólito e ao mesmo tempo delicioso: estou a imaginar a angústia do capelão, o único homem do grupo em condições de se defender de um eventual da guerrilha, fazendo lembrar os nossos primeiros missionários, a cruz numa mão e a espada noutra, prontos para o martírio (ou o massacre).

Trata-se de um estória que eu recuperei de um poste do Aires Ferreira (1). Quis dar-lhe mais visibilidade e mas ao mesmo tempo fazer também uma singela homenagem aso nossos capelães militares. Muitos camaradas nossos devem-lhes uma palavra de gratidão pelo conforto espiritual e moral que, na missa, na confissão ou na simples conversa de caserna, na dor e na alegria, receberam destes homens, em terras da Guiné.

É uma homenagem a todos eles, independentemente das posições político-ideológicas que tomaram(ou não) perante a guerra, na altura ou mais tarde... A sua tarefa não era fácil, estando o seu múnus espiritual fortemente condicionado pelo seu enquadramento institucional (nem mais nem menos dois pesos pesados, a Igreja Católica e as Forças Armadas, com a PIDE/DGS sempre perto, a vigiar e a zelar pelo "bem da Nação")...

De dois desses homens já aqui falámos, com mais afecto e carinho: o Mário de Oliveira e o Arsénio Puim (3)... Mas a nossa Tabanca Grande está aberta e pronta a acolher o testemunho de outros capelães que queiram aparecer... e até dos sacristães (que os havia em cada CCS de cada batalhão). Ao que parece, só os cangalheiros que vinham expressamente de Bissau para fazer o seu trabalho.

O Rui Felício, (ex-Alf Mil, CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852, 1968/70), é o autor da primeira Estória de Mansoa, série que gostaríamos que tivésse continuidade (4). (LG).

_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)

(2) Até à entrada do Aires Ferreira, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio.... Conheci o Mário de Oliveira, em Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, onde em tempos tinha sido pároco (creio que depois de vir da Guiné, donde fui expulso de capelão militar). Conheci-o no dia do meu casamento, civil, em casa dos meus sogros, em Agosto de 1976. Ele era e é amigo da minha mulher. Passou a ser também meu amigo.

Curiosamente o Nuno Rubim - segundo me confidenciou - encontrou-o há tempos, na Feira do Livro de Lisboa, no stand da sua editora, Campo das Letras (Porto) a a atender os seus leitores e a autografar o seu último livro (Salmos V ersão Século XXI). O Nuno (que se considera, ele próprio, agnóstico) apresentiu-se e ficou a falar com ele pela tarde dentro. Ficou fascinado pela sua personalidade e inclusive foi jantar com ele. No fibnal pediu-lhe para escrever, para o nosso blogue, um texto sobre a organização da assistência religiosa às NT, na Guiné. O Mário prometeu-lhe que sim... Ficamos aguardar com muito interesse e expectativa.

Vd. posts de:

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

8 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1825: Mário de Oliveira, na Feira do Livro de Lisboa, dia 9 de Junho de 2007

(3) Sobre o ex-Alf Mil Capelão Puim, da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), vd. posts:

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

(4) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1825: Mário de Oliveira, na Feira do Livro de Lisboa, dia 9 de Junho de 2007


Guiné > Mansoa > BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)


Texto do nosso camarada Mário de Oliveira, que foi alferes miliciano capelão no BCAÇ 1912(Mansoa, 1967/68). O Mário de Oliveira - que virá a ser conhecido mais tarde como o Padre Mário da Lixa - recebeu ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968, ao fim de 4 meses de comissão. Para quem o quiser conhecer pessoalmente, ele estará amanhã na Feira do Livro de Lisboa, a autografar o seu último livro. Aqui fica uma mensagem que nos mandou há dias e que só hoje, infelizmente, foi possível pôr no blogue:

Companheiras / Companheiros

O meu abraço e a minha paz.

Venho comunicar-vos que no dia 7 deste mês de Junho, a partir das 16 horas, estarei na Feira do Livro do Porto. E no dia 9 deste mesmo mês de Junho, a partir das 16 horas estarei na Feira do Livro de Lisboa.

Numa e noutra Feira, começo por apresentar, no espaço reservado para esse tipo de eventos, o meu novo livro SALMOS VERSÃO SÉCULO XXI, editado pela Campo das Letras. E depois prosseguirei no Stand da Editora Campo das Letras a acolher as leitoras, os leitores que quiserem proporcionar-me essa alegria e essa festa.

E a quem o desejar, também autografarei os meus livros que estarão lá venda a preços mais reduzidos. A apresentação do livro no Porto será feita pelo meu amigo Padre Anselmo Borges, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra e conta também com a presença do actor Júlio Cardoso, da Companhia de Teatro Seiva Trupe, que dirá alguns dos 50 salmos do livro. Espero lá por si. Apareça e leve consigo outras amigas, outros amigos também.


Vosso companheiro e irmão
Mário, presbítero da Igreja do Porto

___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1139: A fantástica estória do soldado Fernandes, da CCAÇ 1686, Mansoa (Aires Ferreira)


Guiné > Região do Oio > Mansoa > Jugudul > 1969 > O Alf Mil Aires Ferreira, em Jugudul, a 4 Km de Mansoa, na estrada Bissau-Bafatá. A placa quilométrica assinalava as distâncias para os principais povoações, a leste de Mansoa/Jugudul: Bindoro: 10 km; Porto Gole: 25 km; Enxalé: 47 km; Bambadinca: 62 km; Bafatá: 90km... O troço estava interdito pelo menos até Porto Gole...

Fotos: © Aires Ferreira (2006)

Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969) (1)



A estranha estória do soldado Fernandes

Camaradas Luís Graça e Beja Santos, a demora na resposta a este assunto, é apenas devida à minha ausência lá para os lados de Ourém/Leiria por motivos profissionais e de, por lá, não ter acesso à Internet. Aqui ficam as minhas desculpas.

O soldado Fernandes pertenceu à CCAÇ 1686 e o Comandante do seu Grupo de Combate foi o Alf Moreira, que por certo se lembrará destas histórias, muito melhor do que eu.

Lá para o fim de 68, quando a Companhia já tinha uns 18 meses de comissão, a sua actividade operacional foi seriamente reduzida, não só porque estava esgotada, mas também porque houve necessidade de assegurar a ocupação dos destacamentos próximos, que pertenciam ao sector.

O soldado Fernandes - que designarei por Atleta, porque era assim que era conhecido - não era homem dado a grandes meditações e não se enquadrava bem na vida algo sedentária da tropa em quadrícula.

Habituado que estava a uma intensa actividade operacional, passou a organizar, ele mesmo, os seus patrulhamentos, sem dar conhecimento a ninguém. Não sei por quantas vezes se ausentou, talvez umas três ou quatro. Andava sempre com a sua G3 e regressava sempre passados uns dias, como se não tivesse acontecido nada. Não falava no assunto e às perguntas que lhe faziam, respondia sistematicamente com um sorriso envergonhado e um encolher de ombros.

Certo dia, chegou ao Batalhão uma informação dizendo que andava ali na zona um cubano
que assediava tudo o que fosse bajuda ou mulher grande. O Atleta é algarvio e muito moreno.
Quando alguém contou isto na messe, houve gargalhada geral e a exclamação:
- O Atleta!!!

Ninguém apresentou queixa e o assunto morreu.

Passados uns tempos, o Atleta desapareceu de novo e acho que ninguém deu importância ao caso, uma vez que já era quase habitual e era convicção geral que ele voltaria, como sempre fez.

Só que desta vez, apareceu sim, mas passado um mês, ou talvez um mês e meio, e em Mansoa nunca se soube por onde tinha andado ou o que lhe tinha acontecido.

Foi passados 38 anos que através dum Post do Camarada Beja Santos (2), fiquei a saber que o Atleta foi parar ao Destacamento de Missirá e devolvido a Mansoa num DO !

Missirá dista de Mansoa uns bons 60 km, pela estrada Mansoa - Porto Gole - Enxalé - Missirá que, pelo menos no troço Mansoa - Porto Gole, estava interdita, só se passando por lá com uma Companhia e com muita atenção.

Esta estrada passava perto da base do Locher/Changalana,que foi destruída várias vezes e sempre reconstruída nas proximidades. Proporcionou-nos magníficos combates, nos quais participou o Atleta, pelo que conhecia bem esta zona e não acredito que se fosse meter sozinho neste vespeiro.

Aquela história que ele contou, do banho na bolanha, captura pelo IN e fuga, não é verosímil, porque em Mansoa não havia necessidade disso, não havia bolanha onde tomar banho e portanto não havia esse hábito.

Por outro lado, era nossa convicção que se o IN o quisesse apanhar à mão, há muito que o teria feito.

Há que considerar uma outra hipótese, que nos pareceu na altura a mais viável. Por aqueles dias esteve atracada no Rio Mansoa, junto à ponte, uma LDM e claro está, o nosso Atleta não se privou de ir confraternizar com a tripulação e certamente arranjar boleia para qualquer sítio, talvez clandestinamente. Acho que esta é a hipótese mais plausível, ir por via fluvial até lá para os lados de Porto Gole ou Enxalé, que ele conhecia duma operação que fizemos à zona de Mato Cão e daí, então sim, ir a pé até Missirá.

O seu regresso a Mansoa foi muito discreto, nunca soubemos por onde tinha andado e o
Comando do Batalhão optou por silenciar o caso porque de facto não servia de nada punir este soldado, que não devia ter sido mobilizado para a Guiné.

Apesar do susto que apanhou e da fome que terá passado, esta não foi a sua última aventura. Houve mais. Sobreviveu, vive no Algarve e em Abril [de 2007], no nosso próximo almoço de confraternização, lá estará seja onde for, em bom convívio com os seus ex-camaradas.

Um abraço a todos os camaradas da Tertúlia.
Aires Ferreira
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)

(2) Vd. posts:

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1103: Breve historial do BCAÇ 1911 e do BCAÇ 1912 (A. Santos)

Oportuno texto (didático) do A. Santos, fazendo a distinção entre os BCAÇ 1911 e 1912 (1):

Luís e Camaradas:

Vamos lá arrumar a casa em relação ao BCAÇ 1911.

Este Batalhão foi mobilizado pelo RI 15, Tomar, e chegou a Bissau em e de Maio de 1967. O CMDT foi o Ten-Cor Álvaro Romão Duarte, as suas companhias operacionais foram as CCAÇ 1681, 1682 e 1683, cujos CMDTS foram por ordem os Capitães de Inf Manuel Francisco da Silva e Renato Vieira de Sousa e o Cap Mil Cav José Manuel Pontífice Maricoto Monteiro.
Divisa: Coragem e Humanidade.

De início este Batalhão ficou em Bissau até 17 de Agosto de 1967, às ordens do Com-Chefe, para reforço temporário de outros Batalhões. Nesta data seguiu para o Sector O1-A, com sede em Teixeira Pinto, e subsectores em Cacheu, Có, Jolmete.

Em 24 de Junho de 1968 regressou ao sector de Bissau, e subsectores de Brá, Nhacra e Quinhámel onde rendeu o BCAÇ 2834, ficando de novo às ordens do Com-Chefe. A 13 de Maio de 1969 foi rendido pelo BCAÇ 2884, tendo embarcado de regresso à Metrópole em 16 de Maio de 1969.

Quanto ao BCAÇ 1912:

Este Batalhão foi mobilizado pelo RI 16, Évora, e chegou a Bissau em 14 de Abril de 1967, sendo seu CMDT o Ten-Cor Artur Pereira Rodrigues. As suas companhias operacionais foram as CCAÇ 1684, 1685 e 1686, comandadas respectivamente pelos Capitães de Inf Antonio Feliciano Mota da Camâra Soares Tavares, Alcino de Jesus Raiano e José de Matos Correia Barradas (este último miliciano).

Divisa: Valentes e Destemidos.

Em 19 de Abril de 1967, seguiu para o Sector O3-A, com sede em Mansoa e subsectores de Jugudul e Cutia. Em 01 de Julho de 1967 ainda o de Enxalé, então retirado à área do BCAÇ 1888.

A CCAÇ 1684 esteve em Bissau às ordens do Com-Chefe, deslocando-se sucessivamente para Ingoré, S. Domingos, Susana. Em 2 de Abril de 1969 substituiu a CCAÇ 2315 em Mansoa. Foi rendida pela CCAÇ 2589 e regressou a Bissau para embarque.

A CCAÇ 1685 seguiu para Fá-Mandinga, ficando como unidade de intervenção e reserva do Com-Chefe, como reforço de diversos Batalhões na Zona Leste. Em 19 de Setembro de 1967 rendeu a CCAÇ 1501, assumindo o subsector de Fajonquito. Regressou a Mansoa para o seu Batalhão em 1 de Agosto de 1968. Foi rendida pela CCAÇ 2587 e regressou a Bissau para embarque.

A CCAÇ 1686 seguiu para Mansoa, teve pessoal destacado em Cutia, Ponte do Rio Braia, Jugudul, Uaque e Bindoro. Em 14 de Maio de 1969 foi rendida pela CCAÇ 2587 e regressou a Bissau para embarque.

Este Batalhão embarcou de regresso no dia 16 de maio de 1969.


UM ALFA BRAVO

António Santos

Ex-Sold Trms Pel Mort 4574 /72
(Nova Lamego, 1972/74)
___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Setembro e 2006 > Guiné 63/74 - P1074: O Paulo Raposo, o Padre Mário e o Batalhão de Caçadores 1912, Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686)

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)

Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912 - CCAÇ 1686, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969)


O soldado desconhecido de Mansoa


Como o Mundo é pequeno!!

Quem diria, Caro Dr. Beja Santos, que o soldado Fernandes tinha ido parar ao seu querido destacamento de Missirá!! ! (1)

O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.

Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.

Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.

Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.

É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias.

Sobre a ida até Bambadinca e outras aventuras, escreverei noutro dia. Por hoje chega. A velhice de Mansoa cá continua sentada.

O próximo Post que enviar, incluirá uma estória do Paulo Raposo (2) que terá por título A Geladeira. Ele que se cuide.

Um abraço.
Aires Ferreira
___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

(...) "Estávamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusive tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?" (...)

(2) Recebemos ontem um e-mail do Paulo Raposo, sobre o "soldado desconhecido de Mansoa", que rezava assim:

Olá, rapaziada!

Não tenho ideia deste assunto.

A nossa CCAÇ 2405, a Gloriosa, "se tivéssemos estado mais tempo na Guiné, tínhamos acabado com a guerra", era limpinho.

Esteve em Mansoa de Agosto a Dezembro de 1968. O BCAÇ 1911 ainda ficou por lá, julgo que sentados.

No entanto vou pedir ao meu cripto para mandar um rádio, cifrado, a pedir informações ao Felício (Barão de Montanelas) e ao David (Visconde de Vale de Cavalos), pois talvez saibam de alguma coisa, que duvido, pois a esclerose deles é do tamanho da minha.

Um quebra-costelas do Almançor

Guiné 63/74 - P1074: O Paulo Raposo, o Padre Mário e o Batalhão de Caçadores 1912, Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686)

Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969)



Foto: © Aires Ferreira (2006)

Caro Luís Graça e Camaradas da Tertúlia:


Sou muito periquito por aqui. Solicitei a minha inscrição no Post 1002 (1) e não voltei a intervir. Não sei se por causa das férias, se por ter diminuído o entusiasmo inicial.

Enfim, seja como for, cá estou de novo e começo por fazer duas pequenas observações:

(i) A primeira é para o Paulo Raposo que se refere sempre ao Batalhão de Mansoa como sendo o 1911, o que não é verdade. O 1911 fez a viagem connosco no UIGE e fez a sua comissão em Bula. (Salvo erro).

O Batalhão de Mansoa foi o 1912, desde 13 de Maio de 1967 até 13 de Maio de 1969. O seu a seu dono.

(ii) A segunda é para o Luís Graça e reza assim: Não foi o 1912 que expulsou o Padre Mário (2) do seu seio. Penso que nem tinha autoridade para o fazer. O que aconteceu, foi que o Padre Mário politizou fortemente as homilias das missas dominicais na Igreja Paroquial de Mansoa e isso criou problemas ao Comando do Batalhão. Além disso, a PIDE tinha em Mansoa um funcionário com escritório aberto.

Sei que o Comando foi por várias vezes chamado a Bissau e por fim o Padre Mário saiu de Mansoa.

Estávamos em 1967, éramos todos muito jovens e acho que faltou uma pitadinha de bom senso ao Padre Mário, para levar a água ao seu moinho. Ele que me perdoe, mas foi o que pensei na altura.


Aires Ferreira


___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)


(2) Eu tinha escrito o seguinte: "Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante [na nossa tertúlia] do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio"... Vd. outros posts sobre o Padre Mário, capelão do BCAÇ 1912 por 4 meses...

Vd. posts de:27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1002: Tabanca Grande: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)


Guiné > Mansoa > CCS do BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > Um periquito em Mansoa... Também o Paulo Raposo passou por Mansoa, nos primeiros meses da sua comissão, devendo ter conhecido e privado com o Aires Ferreira. Era Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, unidade que foi depois colocada na Zona Leste, Sector L1 - Bambadinca, em Galomaro e Dulombi.

Foto: © Paulo Raposo (2006)



1. Temos aqui mais um ‘recruta’: o Aires Ferreira, que pede autorização para fazer parte da nossa caserna, a maior caserna virtual da Net - pelo menos, em português (esta nossa mania de querermos ser os maiores…). Há aqui uma surpresa, no final, para um tertuliano muito especial… Quanto ao Aires: É, pá, entra cá dentro, que lá fora está uma brasa… L.G.

2. Mensagem do Aires Ferreira:


Caro Luís Graça

Cá vim parar. Era inevitável. Há uns tempos, através de um qualquer link, descobri este notável blogue e desde então tenho lido com emoção tudo o que aqui se escreve, embora na situação de desenfiado.

Hoje, resolvi deixar essa situação, pelo que solicito a necessária autorização para me alistar na Tertúlia.

Sou um escrupuloso respeitador das NEPS (lembram-se ?) e, sendo assim, aqui vai a minha apresentação:

Aires Ferreira
Alferes Miliciano de Infantaria - Minas e Armadilhas
BCAÇ 1912 - CCAÇ 1686
Mansoa, 13 de Abril de 1967 a 13 de Maio de 1969

Para apoio a esta petição, parece-me adequada a seguinte história, que tem algo de dramático e que vou contar com o máximo respeito por todos os intervenientes.

MISSA EM CUTIA

Cutia era um destacamento que tinha um grupo de combate e ficava entre Mansoa e Mansabá e entre o Morés e o Sara - Sarauol [vd. carta de Mamboncó].

O Batalhão tinha um Capelão que, um certo Domingo, lá para o fim de 67, resolveu ir celebrar Missa a Cutia. Para isso, arranjou uma escolta de voluntários que, comandados pelo furriel S.S., lá foram, com 2 Unimogs e o jipe do capelão.

A missa foi celebrada e no regresso, um dos Unimogs despistou-se e uma grande parte do pessoal da escolta ficou com ferimentos muito graves, tendo os restantes seguido até Mansoa para pedir auxílio.

Nesse Domingo eu estava de Oficial de Dia ao quartel de Mansoa e desconhecia totalmente este assunto. Cerca da hora de almoço, passava junto à porta de armas, encontrei o Ten. Cor. , o Comandante do Batalhão, que me disse:
- Alferes Ferreira, o seu grupo está todo destroçado na estrada de Cutia, o que está aqui a fazer? Vá já para lá.
- Não posso, estou de serviço - disse eu e apontei a braçadeira.
- Dê cá, eu fico com ela. O piquete vai já atrás de si com a ambulância.

Assim foi. Lá fui, munido da pistola Walther, com um condutor que por ali apareceu e chegámos depressa. A cena era trágica. Havia 5 ou 6 militares gravemente feridos e deitados na berma. O único militar que ali estava capaz de dar uns tiros para defender o local, se o IN por ali aparecesse, era … o Capelão, que de joelhos na estrada, junto ao jipe, fazia as suas orações, de G3 ao lado.

Logo de seguida chegou o necessário auxílio e todos os feridos foram evacuados e tratados.

O Alferes Capelão que faz parte desta história era… o Padre Mário Pais de Oliveira (1), bem conhecido desta Tertúlia e a quem envio um grande abraço.

Se o meu alistamento for autorizado, prometo que envio as necessárias fotos, que não seguem já porque não sei fazer essa operação (por enquanto).

Cumprimentos
Aires Ferreira

_____________

Nota de L.G.

(1) Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio.... Vd. posts de:

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

segunda-feira, 27 de junho de 2005

Guiné 61/71 - P85: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa, CCS/BCAÇ 1912, de novembro de 1967 a março de 1968 (Padre Mário da Lixa)

Testemunho do Padre Mário da Lixa (1937-2022) sobre a sua experiência como capelão militar na Guiné. 

Originalmente publicámos apenas alguns extractos de um questionários, de 32 perguntas, sobre a sua "história de vida", a que o Padre Mário respondeu, e que são da responsabilidade de uma mestranda da Universidade do Porto (Julho de 2004). 

Estas respostas foram inseridas pelo próprio no seu Diário Aberto (vd. entrada de 14 de julho de 2004)  (http://padremariodemacieira.com.sapo.pt/diario.htm) (não disponível, mas recuperado pelo Arquivo.pt: 

https://arquivo.pt/wayback/20041009183135/http://padremariodemacieira.com.sapo.pt:80/diario.htm

Tomo a liberdade de transcrever, na íntegra (para mais que ele agora nos deixpu, em 2022), as perguntas e as respostas, dado o seu grande interesse para se perceber melhor o difícil papel de um capelão militar católico em contexto de guerra, mas também a sua contestação do poder religioso, político e militar em vigor até ao 25 de Abril de 1974. A sua página, alojada no Sapo,  foi descontinuada em finis de 2012, se não erramos. 

O Padre Mário da Lixa foi capelão militar em Mansoa, de novembro de 1967 a março  de 1968, como alferes graduado, CCS/BCAÇ 1912. Poucos tiveram a sua coerência e a sua coragem. Foi expulso em 8/3/1968.


Diário Aberto > 2004 Julho 14


Acabei agora de responder por escrito a um questionário da responsabilidade de uma jovem professora do ensino secundário, natural desta freguesia de Macieira da Lixa, que anda às voltas com a sua tese de mestrado, na Universidade do Porto

Quando teve que escolher um assunto/tema para a sua tese, Joana, surpreendentemente, escolheu o "caso do Padre Mário de Macieira da Lixa". O orientador terá ficado entusiasmado com a ideia e ela avançou. Para a sua concretização, contactou-me pela primeira vez há mais de um ano, por ocasião de uma das minhas frequentes deslocações a esta freguesia do concelho de Felgueiras, com o objectivo de dar apoio teológico e bíblico à pequenina Comunidade Cristã de Base existente na freguesia, e cujos encontros costumam acontecer na casa que é simultaneamente Casa da Comunidade e casa de Maria Laura, sua presbítera não-ordenada, e dos seus dois filhos ainda solteiros. 

Joana pôs-me o problema e eu disse-lhe a única coisa que poderia dizer: se é assim que quer, aqui me tem disponível para a acompanhar nesse trabalho e para responder a todas as questões que entender colocar-me, na minha qualidade de pároco de Macieira, a essa data. Desde então para cá, os contactos não têm sido muitos. Mas há uns tempos atrás, já eu tinha começado de novo a residir nesta freguesia, Joana fez-me chegar, por intermédio da sua mãe e do seu pai, um questionário com 32 perguntas, devidamente formuladas por escrito. 

Num rápido olhar em diagonal sobre elas, pareceu-me que algumas das perguntas respiravam um certo ambiente pidesco, o que me surpreendeu desagradavelmente. Cheguei até a pensar não responder ao questionário. Li depois as perguntas com mais atenção e decidi responder. São essas perguntas, da responsabilidade da Joana, e as minhas respostas a cada uma delas que faço questão de partilhar aqui com as leitoras, os leitores deste DIÁRIO ABERTO, precisamente, na véspera da minha partida para um período de 15 dias de férias à beira-mar. Leiam e tirem as vossas conclusões.

Neste momento, desconheço por completo qual irá ser a dimensão do trabalho a que a jovem professora Joana decidiu meter mãos e que é da sua inteira responsabilidade. Da minha parte, ficam estas respostas às perguntas que nos transportam para os tempos em que o fascismo e a sua PIDE, já disfarçada de DGS (Direcção Geral de Segurança), continuavam por aí à solta em todo o país e durante os quais eu, na minha qualidade de pároco de Macieira da Lixa, entre Outubro de 1969 e Fevereiro de 1974, inopinadamente me vi chamado a testemunhar, na minha fraqueza, mas com surpreendente audácia, o Evangelho libertador e salvador de Jesus. 

As perguntas estão numeradas, mas encimadas por uma pergunta geral que parece ficar como título da tese. É a esta pergunta geral de abertura que começo por responder, sucintamente, já se vê. Seguem-se depois todas as outras perguntas e as minhas respostas. Eis.

O que leva o padre Mário a reagir contra a ordem social existente, na qual se encontra integrada a Igreja católica?

R. Na ordem social, sem ser da ordem social. É assim que me vejo como padre/presbítero da Igreja católica. Ao contrário do que nos querem convencer, nenhuma ordem social dominante vem directamente de Deus. Toda e qualquer ordem social é obra humana, como tal, imperfeita e, por isso, susceptível de ser criticada, melhorada ou mesmo substituída. A Igreja está integrada na ordem social? Sempre deverá estar nela, mas sem ser dela. Se se identifica com ela, logo perde a sua capacidade profética. E torna-se como o sal da terra que perde a sua força e para nada mais serve do que para ser lançado fora e ser pisado pelos seres humanos. Quando critico a Igreja (a minha crítica é sempre uma auto-crítica, porque também eu sou igreja!), é ainda por amor que o faço. Para ajudar a Igreja a ser e a manter-se fiel ao Evangelho de Jesus e ao Espírito Santo. De modo que a Igreja esteja na ordem social, mas sem ser da ordem social. Sei que esta postura dialéctica é historicamente difícil, mas não é impossível. Se todas, todos os que somos Igreja ajudarmos, conseguiremos. E a Humanidade no seu conjunto só tem a beneficiar com esta nossa fidelidade. Quando este equilíbrio dialéctico se rompe, a Igreja deixa de ser fecundamente profética e toda a Humanidade fica prejudicada. Esses são os períodos mais inumanos e mais deprimentes da História da Humanidade. Como manifestamente sucedeu em Portugal, no longo reinado do ditador Salazar, a que, para cúmulo, ainda se juntou toda aquela mentira orquestrada da senhora de Fátima e das suas patéticas e estupidificantes “aparições”.

1. Qual a origem social do padre Mário?

R. Como costumo dizer e até cantar, felizmente, nasci do lado dos pobres, precisamente, aquele que eu tenho como o lado certo da vida, pelo menos, enquanto continuar a haver na sociedade dois lados para se nascer, o dos ricos e o dos pobres. O meu pai, ti David, era operário numa fábrica de serração de madeira; a minha mãe, ti Maria do Grilo, era jornaleira nos campos de D. Maria Pinto. Desde cedo, me dei conta desta realidade que condiciona à partida quem vem a este mundo. Mais tarde, quando já adulto, continuei a manter-me do lado dos pobres, mas então por opção pessoal. E é ainda deste lado que continuo a estar, hoje, aos 67 anos de idade. Com manifesta alegria. Daqui, posso continuar a anunciar o Evangelho de Jesus aos pobres, o qual nos quer fazer a todas, todos – pobres e ricos – irmãs, irmãos uns dos outros, onde a riqueza produzida esteja ao serviço das pessoas, segundo as necessidades reais de cada uma.

2. Quando se decidiu pelo sacerdócio, o que teve “peso” nessa sua opção?

R. Já pelos sete/oito anos de idade, a quem me perguntava o que eu queria ser quando fosse grande, respondia sem hesitar que queria ser padre. Tinha um tio padre e o meu irmão mais velho frequentava o seminário. Pelos oito anos, lá estava eu a ajudar à missa (em latim!) todas as manhãs, na igreja paroquial de Lourosa, minha terra natal. Mas o que mais terá “pesado” em mim, à medida que crescia em anos e em entendimento, é que eu queria ser um padre diferente dos poucos que então conhecia. Queria ser padre para as pessoas e com as pessoas, em lugar de um credenciado funcionário eclesiástico que faz aquelas coisas todas na igreja e depois não quer saber das pessoas para nada, nomeadamente, das mais pobres e humilhadas. Mais tarde, vim a perceber que esta minha maneira de encarar as coisas configurava o que em Igreja costumamos chamar “vocação”. E a verdade é que ainda hoje continuo a sentir que a minha “vocação” tem muito de semelhante com a do jovem Samuel bíblico, ao tempo do sacerdote Eli (cf. 1º Livro de Samuel, 3).

3. Que expectativa tinha relativamente à formação que o seminário lhe iria transmitir?

R. Nenhuma em especial. Nunca tinha estado lá, por isso, não imaginava como seria. Quando muito, teria a expectativa de que me preparasse para a missão eclesial de Evangelizar os pobres, missão essa que, para mim, já nessa altura, tinha tudo a ver com a felicidade e a salvação das pessoas de carne e osso, a partir do nosso aqui e agora.

4. Correspondeu às suas expectativas ou foi um “instrumento claustrofóbico”?


R. Em termos globais, a formação que o seminário me proporcionou ficou como os alicerces sobre os quais, ao longo dos anos, pude sucessivamente plantar e desenvolver a nova formação que em cada circunstância me era mais oportuna e necessária. Aliás, devo sublinhar que, até hoje, depois que concluí o curso no seminário, nunca mais deixei de estudar, exactamente, como não deixei de comer e de meditar a Palavra de Deus. A minha vida em missão tem sido uma actualização contínua, de modo que o meu “dizer” e o meu “fazer” possam corresponder às expectativas culturais das pessoas concretas com quem vivo e com quem partilho a minha vida de padre/presbítero. O que houve de clausura no seminário – e houve muita, como então ainda estava no hábito eclesiástico, o que, felizmente, hoje já não acontece – acabou por redundar em mais e mais fome de abertura ao mundo e à Humanidade, depois que, aos 25 anos de idade, aconteceu a ordenação e me vi presbítero da Igreja e na Igreja, mas para melhor servir libertadoramente a Humanidade.

5. O comportamento que o padre Mário teve no seminário foi de subserviência?

R. De modo nenhum! Foi de correspondência ao muito que faziam por mim. Os anos de seminário foram anos de intenso trabalho, de intensa alegria, de crescente espiritualidade, de crescente maturidade, de grande companheirismo e de entre-ajuda. Pratiquei entusiasticamente quase todos os desportos que havia para praticar, com destaque para o voleibol, o futebol, o ping-pong, o hóquei em patins. E, que me lembre, nunca falhei uma aula de educação física, das duas que tínhamos por semana. Foram, por isso, doze anos cheiinhos como um ovo que ficaram como base do padre/presbítero feliz e realizado que tenho sido, nas circunstâncias concretas, as mais inesperadas e desafiadoras, em que a vida me tem colocado.


6. Essa postura foi uma estratégia sua ou considera-a como uma castração?

R. Quem pode falar em castração na minha vida, a começar pelos 12 anos de seminário? Sem os doze anos de seminário, nunca eu me teria desenvolvido em todas as dimensões, física, cultural, educacional, espiritual, ética, afectiva. São eles que estão na base do adulto e do padre criador e responsável que tenho conseguido ser desde então para cá na Igreja católica, tanto dentro das estruturas paroquiais, quando as tive, como fora delas, nos fecundos e libertadores ambientes das pequenas Comunidades Cristãs de Base, nos quais me mantenho há muitos anos.

 
7. Em que consistiam as críticas que o padre Mário fazia, na carta que escreveu ao Bispo, quando terminou o curso de capelão militar?

R. Eram tudo coisas muito simples, mas também muito concretas. Lamentava que, durante as cinco semanas que durou o curso de capelães militares, não nos tivesse sido dada mais regularmente a palavra (e éramos 50 padres, oriundos das diferentes dioceses do país, Açores e Madeira incluídos); que, concretamente, nas aulas de deontologia militar, dadas pelo próprio Bispo castrense, o ambiente fosse tão autoritário, tão de cima para baixo, sem hipótese para debate aberto e franco. E levantava sérias dúvidas sobre a moralidade da guerra colonial em que me via incorporado à força como capelão militar.

Recordo, ainda hoje, que, depois dessa carta, cheguei a pensar – se calhar, ingenuamente – que o Bispo castrense ainda seria capaz de me dispensar do serviço de capelão na Guiné-Bissau. Tal não aconteceu, evidentemente. Mas nunca esquecerei que, no dia do embarque, quando os vários capelães que rumávamos para aquela “província ultramarina” nos fomos despedir dele, o Bispo castrense teve o cuidado de se me dirigir pessoalmente, entre todos os outros, para confirmar se eu é que era o padre Mário. Sinal inequívoco de que a minha carta o tinha marcado.


8. Que serviços se faziam na Guiné-Bissau, por interesse e egoísmo, tendo em vista louvores e promoções? A quem se referia concretamente?

R. Na guerra colonial, vivi integrado no Batalhão 1912, sedeado em Mansoa. Era o único padre capelão. Havia outro padre em Mansoa, mas na igreja da Missão, com quem sempre dialoguei, durante os quatro meses que lá vivi e actuei. Mas como capelão militar era o único padre no Batalhão.

Enquanto não me expulsaram, pude privar de perto com as diversas chefias militares e com as centenas de soldados “rasos” que davam corpo ao Batalhão. Encontrei homens que estavam na guerra com convicção. A tese oficial do Regime sobre a guerra estava bem interiorizada neles. E eram generosos, à sua maneira, na entrega de si mesmos àquela causa, sem se aperceberem que era uma causa perdida. Mas havia também os que se aproveitavam da guerra, com sucessivas comissões, bem remuneradas, e quase sempre longe dos perigos das frentes de combate. Dizê-lo, não é novidade para ninguém. E havia os oficiais milicianos que, duma maneira geral, estavam na guerra contrariados e cuja preocupação maior era poderem regressar à sua família e à sua terra sãos e salvos.


9. A sua participação, forçada, como capelão militar na Guiné-Bissau, mudou a sua forma de pensar relativamente à política colonial seguida pelo Estado Novo?

R. Posso dizer que acabou por me abrir muito mais os olhos do corpo e, consequentemente, também da consciência. Em Mansoa, nos quatro meses em que fui capelão militar, pude aperceber-me de toda a iniquidade – “pecado organizado”, chamava-lhe então Sophia de Mello Breyner Andresen – que era a Guerra Colonial.

Experimentei na própria carne o que era estar integrado num corpo militar organizado de um Estado europeu que ocupava brutalmente a mátria/pátria de um povo africano, como se fosse a nossa própria mátria/pátria. Nunca mais esquecerei aqueles olhares das mulheres guineenses que viviam do outro lado do arame farpado que protegia as instalações do nosso Batalhão. Eram olhares que, no seu gritante silêncio, me/nos expulsavam do seu país ocupado. Nunca mais esquecerei as condições inumanas das prisões improvisadas em que o Batalhão mantinha enjaulados, durante dias, semanas, meses, num reduzidíssimo espaço e o mesmo para todos, dezenas de membros da população civil – mulheres e homens de todas as idades – a pretexto de que eram colaboradores dos “turras”. Eram condições muito abaixo de cão!

Nunca esquecerei as torturas infligidas aos apanhados em combate, para os fazer falar e trair os seus companheiros de luta de libertação. E tudo em nome da defesa da Pátria, de Deus, da Civilização Cristã Ocidental!...

Desde logo me demarquei de toda aquela ignomínia e injustiça. E de toda aquela mentira orquestrada que pretendia convencer-nos de que estávamos ali a defender “as nossas províncias ultramarinas”. Como padre, era naquele Batalhão o rosto mais visível da Igreja e, com pedagogia e crescente desassombro, passei a questionar as consciências dos soldados. As minhas homilias, na missa dominical, eram feitas de muitas perguntas, dirigidas especialmente à consciência dos militares que se assumiam como católicos, a começar pelo meu comandante do Batalhão. Levei, deste modo não-violento, a paz à guerra. E a guerra não me suportou por muito tempo. Quando percebeu que eu não era padre/presbítero do género de se deixar amedrontar com as suas ameaças, avançou rapidamente para a decisão mais extrema: expulsou-me de capelão militar, sem qualquer processo no Tribunal Militar!

O comandante, assumidamente católico, preferiu assim ficar sem capelão no Batalhão até ao final da comissão, a deixar-se interpelar mais profundamente pelo Evangelho da Paz que eu, na minha fraqueza, qual David contra Golias, me vi ali desassombradamente a anunciar. Nesse dia em que me expulsaram – 8 de Março de 1968 – não tive mais dúvidas que aquela Guerra era intrinsecamente perversa e imoral, como tal, uma causa completamente perdida para o Regime que estupidamente a desencadeou.

10. O que é que o padre Mário sentiu quando o seu chefe religioso lhe disse para não pregar a doutrina social da Igreja em Bissau?

R. Olhei-o de alto abaixo, estupefacto. Nem queria acreditar no que os meus ouvidos ouviam. Apesar de ser o meu chefe militar – eu era um simples alferes capelão compulsivamente recrutado para aquela comissão de serviço e ele um tenente-coronel que fazia parte dos quadros do Serviço de Capelães militares portugueses – resisti-lhe com firmeza e alegria em nome do Evangelho. Fiz tudo para o evangelizar naquele momento. Mas em vão. Ele estava demasiado identificado com os interesses ideológicos do Regime que fazia a guerra e parecia nem sequer entender as minhas palavras. O Evangelho da Paz que eu tinha anunciado ao Batalhão e que defendia agora ali diante dele, deveria soar-lhe a “loucura” e a “escândalo”. Nem toda a força da minha amizade presbiteral e da minha ternura fraterna o demoveram da sua posição ideológica.

E a verdade é que dos seus lábios ouvi de imediato a sentença: “Ai é assim que continuas a pensar? Então vais receber uma guia de marcha para Lisboa e lá vamos ver o que te havemos de fazer!” E assim foi. Poucos dias depois, chegou, via rádio, a guia de marcha, com viagem marcada para o avião da TAP, com a ordem expressa de eu trajar à civil, tal como os demais militares que viajavam no mesmo avião, para não dar a perceber, à chegada ao aeroporto de Lisboa, que o nosso país estava em guerra!


11. Como via a posição da sua Igreja relativamente à questão colonial?

R. Depois do que me aconteceu, como capelão militar, devo confessar que fiquei evangelicamente escandalizado. Ninguém da hierarquia militar da Capelania, a começar no capitão capelão, chefe da Capelania no Quartel General em Bissau e a acabar no Bispo castrense, em Lisboa, alguma vez me disse que o Evangelho da Paz que eu havia anunciado e por causa do qual acabei expulso do Exército, estava errado. Felizmente, nenhum deles foi tão longe. Todos reconheciam que eu estava certo, que o Evangelho de Jesus é por aí que avança. Mas discordavam da oportunidade de o anunciar naquelas circunstâncias. E recusaram-me toda e qualquer solidariedade, tanto pessoal, como institucional. Em vez disso, todos meteram o rabo entre as pernas e pactuaram com o Regime.

Esta sua postura – não esquecer que eram todos chefes da Capelania, a cujos quadros pertenciam – só foi possível porque reproduzia a postura de toda a hierarquia católica, salvo uma ou outra excepção que nunca se terá tornado visível até então. Era, por isso, uma posição evangelicamente indefensável, criminosa, contra a Paz e contra a Humanidade. Foi o que tentei dizer, na altura, tanto ao Bispo castrense, como ao Administrador Apostólico da Diocese do Porto, a cujo território regressei, depois de, em Lisboa, me terem passado à disponibilidade. Infelizmente, não me quiseram ouvir. Pelo contrário, o Bispo castrense ainda foi capaz de me classificar, em carta que escreveu ao Administrador Apostólico da Diocese do Porto, como “padre irrecuperável”.


12. Considerava a Igreja conivente com o regime de opressão imposto ao país? Na sua opinião qual a atitude que a Igreja deveria ter tomado?

R. Acho que o que me aconteceu na Guiné-Bissau foi a “minha Estrada de Damasco”. A partir daí, tornei-me no padre/presbítero que ainda hoje sou. Digamos que perdi a ingenuidade. Podia ter perdido a Fé. Podia ter batido com a porta e saído da Igreja. Mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, vi-me até a crescer na Fé, cada vez mais centrada, desde então, na pessoa de Jesus, simultaneamente, histórico e Ressuscitado.

E experimentei um amor ainda maior à Igreja, mas agora, um amor vivido de forma adulta, fecundamente lúcido e crítico, numa liberdade de filho de Deus que nunca mais se deixou amarrar por quaisquer interesses ideológicos e corporativos/eclesiásticos, venham eles de onde vierem. Assim transformado, é claro que não podia deixar de considerar a Igreja hierárquica da altura não só conivente com o Regime, mas unha e carne com ele. Sofri com esta postura e carreguei também com esta “cruz”, uma vez que nunca saí da Igreja. Demarquei-me, isso sim, dessa postura institucional. E, com isso, mostrei ao país e ao mundo outra forma histórica, bem mais humana e solidária, de se ser Igreja.

Felizmente, nunca estive sozinho nesta postura. Havia então – e há – uma Igreja outra, no interior da mesma Igreja católica mais tradicional, que vivia humildemente atenta aos sinais dos tempos e se deixava guiar pelo Espírito Santo que soprava forte dessas bandas; que era fraternalmente solidária com as inúmeras vítimas do Regime, nomeadamente, com os presos políticos e suas famílias; que promovia a Paz contra a guerra colonial; que denunciava no estrangeiro os crimes do Regime, para assim apressar o seu fim; e que apostava tudo no esclarecimento e na consciencialização das populações, tanto no espaço do território nacional, como entre os milhões de emigrantes em França, Alemanha e outros países da Europa e do resto do mundo. Com estas irmãs, estes irmãos de Fé, sentia-me e sinto-me sempre em casa!

As restantes perguntas e resppostas (inseridas na revisão do poste em 19 de maio de 2023) (LG)


13. Como reage a Igreja quando o padre Mário diz que ela é infiel à sua missão, entrando no jogo de interesses dos ricos, quando fala na riqueza em que os Bispos vivem à custa da exploração do povo?

R. Comigo, concretamente, a hierarquia da Igreja não tem qualquer reacção especial. Creio que prefere dar publicamente a impressão de que eu nem sequer existo. Mas eu sei que ela continua muito atenta ao que eu digo e ao que eu faço, e deixa-se interpelar pelas minhas palavras e pelos meus actos. Claro que não o apregoa aos quatro ventos. Nem mo diz ao ouvido. Mas tem tido muito em conta o que eu digo nas televisões, e o que eu escrevo, quer no Jornal Fraternizar, quer nos livros que ultimamente tenho publicado. 

Hoje, felizmente, os bispos já não são como eram no anterior Regime. O 25 de Abril obrigou a sociedade portuguesa a mudar radicalmente. E os bispos da nossa Igreja católica vivem e respiram neste novo tempo. Tem-lhes custado os olhos da cara adaptar-se a estes novos tempos que não sacralizam lugares nem pessoas, e exigem mais proximidade nas relações entre todas as pessoas, sem aquelas distâncias hierárquicas que o anterior Regime impunha. Mas não há dúvidas de que hoje os nossos bispos são-no de maneira muito diferente do que eram antigamente. São bispos muito mais despojados da riqueza, muito mais sem-cerimónias, muito mais próximos das outras pessoas, conduzem o seu próprio carro, atendem pessoalmente o telemóvel, enviam os seus e-mails, viajam na Internet, numa palavra, são mais como as outras pessoas. 

Precisam ainda duma coisa: perder aquele ar de quem tem a última palavra na Igreja. E, se quiserem ter a última palavra, então que seja para dizer ao resto da Igreja por que pessoas e acontecimentos é que o Espírito Santo está a passar, de modo que toda ela, a começar por eles, corra a abrir-se a Ele e se deixe conduzir por Ele. Precisamos, como de pão para a boca, de Bispos profetas que obedeçam ao Espírito Santo de Deus; dispensamos os Bispos-empresários que presidem às respectivas Igrejas locais, como se cada uma delas fosse a sucursal duma multinacional de religião, cuja sede está em Roma. Tomem estas minhas palavras como uma salutar caricatura. Mas não deixem de reflectir nelas. São ditas com muito amor.

14. Como reage o poder político aos ataques veementes que o padre Mário lhe faz?

R. Provavelmente, faz orelhas moucas. Pelo menos, a mim, pessoalmente, nunca me chega qualquer reacção da parte do poder político às minhas salutares críticas. De resto, eu não represento para os políticos do poder qualquer perigo, dado que não sou nem quero ser concorrente aos lugares que eles ocupam e que não querem perder de modo nenhum. Sou um simples padre/presbítero da Igreja católica que recusa todo o poder, a começar pelo poder eclesiástico.

 Felizmente, vivo sem paróquia – sabem que ser pároco é poder?! – e não tenho nenhum dos privilégios que a Concordata católico-fascista agora reciclada reconhece aos clérigos párocos. A minha força é apenas a da palavra e da palavra tecida de verdade, por isso, sempre politicamente incorrecta. Mas nos tempos que correm, e dentro da presente Ordem mundial que retém a verdade cativa na injustiça, a minha força acaba por ser muito pouca ou nenhuma. Não represento um perigo real para ninguém. Sou assim como um menino, cuja alegria maior é poder partilhar a mesa com quem é desprezado pelo mundo, e que o que eu mais quero é acabar com a pobreza no mundo. Mas tudo isto sem armas. Sem violência. Apenas com a força da palavra. E o testemunho da própria vida.

15. Quando foi preso era importante para si que o Bispo não se remetesse ao silêncio? Porquê?

R. Era importante, antes de mais, pelo próprio Bispo. E pela Igreja que nele tem maior visibilidade. Se era o anúncio do Evangelho de Jesus que estava em causa com a minha prisão política – e era, como ficou provado no Tribunal – teria sido um contra-testemunho e um contra-sinal muito grande, se o Bispo se tivesse remetido ao silêncio. Já os profetas bíblicos criticavam sem contemplações os pastores (entenda-se, os sacerdotes e outros dirigentes) do seu tempo que se comportavam como “cães mudos” diante dos crimes cometidos contra o povo. A expressão “cães mudos” é forte, mas é dos profetas bíblicos! Felizmente, o Bispo D. António não se remeteu ao silêncio, pelo menos, por ocasião da primeira prisão que sofri. 

Tenho que reconhecer que, nessa altura, o Bispo D. António foi fraternalmente exemplar. Inclusive, aceitou ir ao Tribunal Plenário do Porto testemunhar em meu favor e em favor da missão eclesial por causa da qual eu havia sido preso e estava a ser julgado. O Tribunal absolveu-me. Mesmo assim, os cerca de sete meses de prisão política preventiva que sofri ninguém mos tirou! Aquando da 2.ª prisão política, o Bispo D. António manteve-se afastado de tudo. Nem sequer me visitou na prisão. Outros da Igreja do Porto o fizeram, inclusive, o Bispo auxiliar da Diocese, D. Domingos de Pinho Brandão, por mais de uma vez. Entre a primeira e a segunda prisão, o Bispo D. António demarcou-se de mim e da forma como eu conduzia a pastoral na paróquia. Aliás, depois do primeiro julgamento, ele chegou a sugerir-me que renunciasse à paróquia e fosse fazer um doutoramento lá fora por conta da Diocese. Eu é que não aceitei. Disse-lhe que só iria se ele me garantisse que esse doutoramento era do interesse da Igreja do Porto. Vai daí, quando voltei a ser preso, já não pude contar com a solidariedade do Bispo D. António. O que é difícil de compreender, já que a acusação era praticamente a mesma da primeira vez. Mas o Bispo entendeu manter-se distante de tudo. “Non bis in idem”, diz um provérbio latino. Duas vezes na mesma coisa, não. Era demais para o Bispo do Porto. A Igreja e o Regime regiam-se – e ainda se regem! – por uma Concordata. E o meu comportamento como pároco ameaçava pôr em causa a própria Concordata. Tive então que ser sacrificado, para que a Concordata pudesse manter-se. Foi o que na altura me deram a entender por meias palavras. Tentei compreender e suportar. 

Afinal, outros antes de mim já tinham sido também sacrificados, ainda que noutras circunstâncias. Mas, é claro que não concordei com essa maneira da Igreja hierárquica fazer as coisas. E disse-o, firme e fraternalmente, ao Bispo. De nada valeu. O facto importante a reter em tudo isto é que o Tribunal Plenário, depois de trinta e três audiências e de onze meses de prisão política preventiva, voltou a dar-me razão, como da primeira vez. Mesmo assim, não pude regressar à paróquia de Macieira da Lixa, por imposição do Bispo D. António. E, desde então, nunca mais me foi atribuída qualquer responsabilidade pastoral oficial, por parte da Diocese do Porto. Também aqui, mais vale que um padre fique marginalizado o resto da vida, do que pôr em perigo a Concordata entre a Santa Sé e o Estado português. Tudo suportei e suporto. Sempre na esperança de, com esta minha atitude, dar visibilidade, na minha própria carne, à via do Evangelho de Jesus contra a via do poder e dos privilégios que o poder costuma garantir a quem com ele faz aliança. Pena é que a hierarquia maior da Igreja continue a experimentar tanta dificuldade em avançar também por esta via do Evangelho de Jesus. Ao não fazê-lo, ganha em privilégios o que perde em profecia. E quem sai gravemente prejudicada é a Humanidade. E a própria Igreja, evidentemente.

16. O que pretendia o padre Mário dizer ao Bispo quando recebesse autorização para lhe escrever?

R. Pretendia saudá-lo, desde a Cadeia de Caxias, com todo o meu afecto fraternal e eclesial. E testemunhar-lhe que me sentia interiormente animado, apesar das prisões. Pretendia também dizer-lhe que confiava nele e que contava com a sua solidariedade e a solidariedade de toda a Igreja do Porto. E ainda convidá-lo à alegria no Espírito Santo, porque a causa do Evangelho de Jesus haveria de sair fortalecida com as minhas prisões, como aconteceu no início, com as prisões de S. Paulo. E que não se afligisse, porque, com as minhas prisões por causa do Evangelho, o nome de Deus era muito mais glorificado no país e no mundo.

17. Teve de ter autorização do Director Geral de Segurança para escrever as cartas, e sabendo que estas eram sujeitas à censura, disse sempre aquilo que pretendia?

R. É verdade. Tive que pedir por escrito autorização para escrever. Todas as cartas que escrevesse tinham que ser entregues abertas, para passarem pelos serviços de censura da Cadeia política. Mesmo assim, não deixei nunca de me comportar como um homem interiormente livre. Sempre escrevi o que tinha em mente escrever. Sem auto-censura. Apenas cuidava em utilizar um estilo que “despistasse” o censor. Nunca me assustei. A sensação que já então tinha era que, ali, os verdadeiros prisioneiros eram os meus carrascos e que homens livres éramos eu e as centenas de outros companheiros que eles prepotentemente retinham atrás das grades.

18. Foram muitas as cartas que não passaram na censura?

R. Não foram muitas. Mas tive várias cartas que não chegaram nunca aos destinatários. E que não me foram devolvidas. Tenho uma explicação para este facto: as cartas que eu escrevia eram cartas com muita reflexão teológica e análise pastoral. O censor deveria ter dificuldade em entender esses conteúdos e não tinha outro remédio senão deixar passar. Deveria pensar lá para ele que a reflexão teológica nunca seria subversão nem estaria na origem de qualquer revolução. E nisso se enganou. Porque a teologia que eu já então reflectia era a teologia da libertação. E não há nada politicamente mais subversivo e revolucionário do que essa teologia!

19. As suas ideias eram consideradas subversivas pelo poder político e por muitos elementos da Igreja católica, como por exemplo Amadeu C. Vasconcelos. Concorda?

R. É verdade. E havia algum mal nisso? A subversão não é o pão que alimenta a vida dos povos? Pode haver saúde social sem subversão? O Evangelho de Jesus e a Palavra de Deus em geral não são fecunda subversão? O poder político então vigente não gostava? Era um problema dele. Eu é que, como padre/presbítero da Igreja católica, não podia nem posso deixar de anunciar o Evangelho de Jesus. E o Evangelho será sempre subversivo. Aliás, foi o que eu disse ao meu comandante de Batalhão, antes de ter sido expulso de capelão militar, em Mansoa: Se o Evangelho da Paz que eu aqui anuncio vai contra a letra da Constituição Portuguesa, mudem a Constituição, que eu não posso mudar o Evangelho! E a verdade é que, poucos anos depois, mudaram a Constituição! Muitos elementos da Igreja católica da altura também consideravam subversivas as minhas ideias? E admiram-se com isso? Então não sabemos que muitos dos nossos católicos, das nossas católicas são-no apenas por herança, por terem nascido num país de tradição católica? Ou porque os pais e as mães também o foram? Quantas, quantos é que o são, por lhes ter sido anunciado Jesus, o Cristo, e elas, eles lhe terem dado a sua adesão pessoal? E não é também verdade que há muitas católicas, muitos católicos que não chegam nunca a ser cristãs, cristãos como Jesus de Nazaré o foi? Então por que havemos de achar estranho que haja comportamentos e reacções como os que se referem na pergunta, mesmo por parte de “muitos católicos”? Ou será crime na Igreja sermos cristãos ao jeito de Jesus de Nazaré? 

É claro que aquilo que a pergunta refere como “as minhas ideias” era muito mais que isso: era, é, o meu jeito de ser cristão, de ser padre/presbítero da Igreja católica, em coerência com o Evangelho de Jesus. Felizmente, já então eu procurava ser discípulo de Jesus, o Cristo, e não do senhor Amadeu C. de Vasconcelos, que ia propositadamente do Porto a Macieira da Lixa espiar a minha liberdade de filho de Deus (nunca teve coragem de se encontrar comigo cara a cara!), para depois escrever cobras e lagartos contra mim num semanário católico que lhe dava guarida e não sei se também lhe pagava para isso.

20. Que comentário faz quando Vasconcelos diz que as suas pregações são “doutrina de autodestruição”?

R. O essencial do que então preguei está publicado em vários livros, nomeadamente, “Evangelizar os pobres”, “Chicote no Templo”, “Encontro”, “Maria de Nazaré”. Ainda hoje, o conteúdo dessas pregações pode ser analisado por teólogos e outros peritos. Aliás, o livro “Maria de Nazaré” foi violentamente acusado pelo senhor Amadeu C. de Vasconcelos e seus companheiros católicos tradicionalistas como um livro cheio de heresias, contra o qual pediram a condenação formal do Bispo D. António. A pressão foi tanta e tão violenta, que o Bispo D. António houve por bem nomear uma comissão de peritos em várias áreas, com o encargo de analisarem o referido livro e emitirem o seu parecer oficial. Assim se fez. E, no final, a comissão de peritos não só não encontrou nenhuma heresia no livro, como até realçou que encontrou nele conteúdos teológicos inovadores e apresentados numa linguagem também ela inovadora. Mesmo assim, pensam que o senhor Amadeu C. de Vasconcelos e o seu grupo deram a mão à palmatória e passaram a ter respeito por mim? Ficaram ainda mais assanhados! Com irmãos na fé deste jaez, que se pode fazer, para lá de sofrermos com paciência e com tolerância os seus ataques e perdoarmos-lhes incondicionalmente, apesar de termos a certeza que eles sabem bem o que fazem e dizem?

21. Acusam-no de utilizar “uma táctica de sabor marxista”, de “pregar um amor e despertar o ódio, uma fraternidade que é divisão, uma paz que é indisciplina e revolta”.Comente estas acusações.

R. Não estranho. Ao tempo do anterior Regime, todas as vozes que não dissessem “ámen” com ele, só podiam ser comunistas! Até o Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes foi acusado de “Bispo vermelho”! E o que não disseram/escreveram contra o Papa Paulo VI, por ele ter recebido os três líderes dos Movimentos de Guerrilha que lutavam pela autonomia e independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau? E o Bispo D. Manuel Martins, mesmo depois do 25 de Abril 74, não foi sucessivamente acusado de ser também “Bispo vermelho”? O mesmo sucedeu com o Bispo de Olinda e Recife, no Brasil, D. Hélder Câmara que chegou a defender-se assim das graves acusações que lhe faziam: “Se eu der muitas esmolas aos pobres, dizem que eu sou um santo; mas se eu perguntar por que há pobres, chamam-me comunista”. 
Portanto, se também a mim me acusam de coisas idênticas, então só posso concluir que sempre tenho andado em boas companhias! 

Mas, a este propósito, faço aqui uma revelação pessoal: Até ter sido preso pela primeira vez pela PIDE em finais de Julho de 1970, nunca tinha lido uma única obra de Karl Marx, nem de Lenine! Conhecia algumas frases de um e de outro, mas por as ter lido em livros de Teologia da Libertação. E, mesmo estes, só comecei a estudá-los verdadeiramente, depois de ter sido preso na Cadeia política de Caxias. Por mais estranho que pareça, os livros de teólogos da libertação entraram em Caxias, sem nenhum obstáculo dos censores da PIDE. Eles eram tão analfabetos em teologia, que não se aperceberam do que estavam a deixar passar para mim. Faço ainda uma outra revelação: Durante as prisões, os primeiros a surpreenderem-se comigo e com as minhas ideias foram os outros presos políticos, todos marxistas assumidos, com quem tive o privilégio e a graça de partilhar as mesmas celas. Surpreendiam-se por eu nunca ter lido nenhuma obra de Marx, nem de Lenine e, no entanto, participar em pé de igualdade com eles nos acalorados debates políticos que promovíamos com muita frequência no interior das respectivas celas. Como é que isso era possível? Respondo como lhes respondi a eles: A minha formação não era, nem é marxista, mas bíblica, com destaque para os livros dos grandes profetas bíblicos, dos Salmos, do Êxodo e dos Evangelhos, precisamente, onde Karl Marx, judeu e profundo conhecedor da Bíblia, também tinha ido beber a sua inspiração. A dialéctica e a luta pela justiça; a luta contra a exploração e o amor libertador aos pobres estão presentes praticamente em cada versículo destes livros da Bíblia que eu nunca deixei de ler/estudar/escutar/meditar. Infelizmente, os nossos católicos tradicionalistas, entre os quais se incluem esses que me acusaram e acusam de “marxista”/”comunista”, podem perceber muito de devoções a santas e a santos, a senhoras de Fátima e quejandas, mas percebem muito pouco ou nada de Bíblia e de Teologia da Libertação. São também capazes de estar sempre com o nome de Deus na boca, mas nunca aceitaram fazer-se discípulos de Jesus crucificado/ressuscitado. Só isso explica este tipo de calúnias que me levantam e que difundem contra mim.

22. Quando o padre Mário, no 3.º Encontro que organizou em Macieira da Lixa, disse “… quem se deixar ficar parado sem reagir contra esta situação degradante é como um capacho em que os ricos limpam os pés.”, não achava que estas palavras podiam fomentar o ódio e incitar o povo à revolta?

R. Não sei onde foram buscar essa citação que aqui me atribuem. Se foi a alguma crónica de Amadeu C. de Vasconcelos, ou a alguma acusação que a PIDE me fez, é preciso desconfiar do seu teor, porque pode ter sido distorcida, com o objectivo de, já naquela altura, colocarem as pessoas contra mim. Com esta ressalva inicial, respondo então à pergunta, e faço-o com os mesmos termos com que sempre respondi a perguntas quase iguais (mas que triste coincidência!) que a PIDE me fez, durante os sucessivos interrogatórios a que me sujeitou, quer antes de me prender pela primeira vez (ao todo, cinco interrogatórios!), quer já depois de me ter à sua inteira disposição na Cadeia, durante o período que precedia a entrega do processo ao Tribunal para o respectivo despacho de pronúncia. Eis o que respondo: Estas palavras que me atribuem, se tiverem sido ditas tal e qual por mim – o que sinceramente duvido – de modo algum “podiam fomentar o ódio e incitar o povo à revolta”, porque ódio é um sentimento que eu nunca cultivei, não cultivo, nem jamais cultivarei, e que desconheço por completo na minha prática de vida. Já então era notório que eu amava todas as pessoas, inclusive aquelas que faziam gala de se perfilarem como meus inimigos e que, sem quaisquer escrúpulos, me caluniavam e perseguiam. Ora, estas e quaisquer outras palavras que eu, enquanto pároco, tenha dito, sempre teriam que ser confrontadas – e eram – com a minha prática individual e pastoral. Então, como se pode pensar em ódio, ao ler estas palavras, quando toda a minha prática, como pároco, era de manifesto amor fraternal universal e de solidariedade incondicional com todas as pessoas? Tais palavras e outras semelhantes só podiam despertar no povo em geral e em cada pessoa concreta, em especial, que as escutassem, o sentimento de dignidade humana, de modo a abandonarmos a tradicional postura de resignação e de conformismo que o Regime e os seus mentores promoviam por todos os meios – até por meio de certas catequeses eclesiásticas – a fim de passarmos corajosamente a assumir posturas humanas de dignidade, bem mais conformes à nossa condição de filhas, filhos de Deus.

Aliás, se há alguém que, em qualquer tempo e lugar, pode fomentar o ódio e incitar o povo à revolta é precisamente quem, na sua crueldade e inumanidade, é capaz de explorar sem dó nem piedade indivíduos e povos, e reduzi-los à condição de capacho. Infelizmente, assim tem acontecido ao longo da História. Mas, por favor, respeitem muito as vítimas de todos os fascismos, de todas as ditaduras, de todas as tiranias, de todos os impérios. E não queiram nunca cometer a injustiça de acusar os que trabalham pela sua libertação e dignificação, de serem fomentadores de ódio e de incitadores à revolta. Seria o crime dos crimes, a mentira das mentiras. Algo que o Evangelho de Jesus classifica como pecado sem perdão, ou “pecado contra o Espírito Santo”!

23. Tinha consciência de que essas palavras poderiam ser consideradas propaganda subversiva e que poderia ser preso?

R. Tinha consciência de que todas as palavras vigorosas e lúcidas que então proferi, sempre em contextos de celebração litúrgica ou paralitúrgica, embora fossem uma oportuna actualização, para as circunstâncias que eram então as nossas no país e no mundo, das vigorosas e lúcidas palavras genuinamente evangélicas – até o Tribunal Plenário deu isto como provado e elogiou o meu trabalho! – poderiam, mesmo assim, ser mal interpretadas, mas apenas por parte de quem, já então, estivesse mal intencionado, ao ouvi-las. Como veio a suceder, de forma notoriamente escandalosa, por exemplo, com o Prof. Torquato de Sousa Soares, de Vila Meã, que, no último domingo antes de eu ter sido preso pela segunda vez, veio propositadamente à Missa a Macieira da Lixa, com a expressa missão de ouvir a homilia desse domingo, e depois escrever uma carta pessoal à PIDE, com cópia para o então Presidente do Conselho, Prof. Marcelo Caetano, a atribuir-me afirmações politicamente subversivas que eu não proferi e intenções criminosamente políticas que eu de modo algum tinha. Infelizmente, tudo veio a acontecer como o previsto, conforme vim depois a ser sabedor, quando, mais tarde, o meu advogado teve acesso ao processo e aquele mesmo Professor amarantino da Universidade de Coimbra, já jubilado, veio também a confirmar perante o Tribunal Plenário do Porto, aonde foi chamado a depor pelo meu advogado, Dr. José da Silva.

 O pior é que, nessa mesma semana e em relação directa com essa caluniosa denúncia, lá voltei a ser preso pela PIDE e levado de imediato para Caxias, onde permaneci longos onze meses, sem qualquer caução, até que o Tribunal Plenário do Porto, no termo do julgamento, me restituiu à liberdade, em Fevereiro de 1974. E hoje – ironia das ironias! – todos estes anos depois, ainda tenho que estar aqui a responder a perguntas deste teor, por parte de quem – desculpem que o diga – parece interessado em branquear o Regime fascista de Salazar-Caetano, nem que para isso tenha que incriminar as suas vítimas. Haja modos e dignidade, senhoras, senhores!

24. Que comentário faz a esta afirmação? “O que se passa em Portugal é uma imitação de conhecidos agitadores de desmandos no estrangeiro a que se acrescentam outros problemas nacionais muito sérios”.

R. Mas que hei-de comentar? A afirmação não é minha. Tão pouco sei de quem é. Acho que não tem nada a ver com o que pessoalmente vivi nesse período tão densamente evangélico que tive a graça de protagonizar em Macieira da Lixa, na minha condição de pároco da Igreja católica que está no Porto. A única coisa que posso acrescentar é que é uma afirmação que fica com quem a proferiu. No que a mim diz respeito e ao meu ministério pastoral, é uma afirmação completamente despropositada!

25. Actualmente não considera que as acusações que fez ao poder político e religioso foram muito fortes?

R. Não fiz acusações ao poder político. Fiz denúncias proféticas objectivas, oportunas, verdadeiras, num estilo por vezes contundente, como é próprio do estilo profético (se dúvidas houver, basta confrontar com o estilo utilizado pelos grandes profetas da Bíblia e actualizar para o Aqui e Agora da década de setenta em Portugal). O mais curioso é que o próprio Tribunal Plenário que poderia ter-me condenado, foi o primeiro a reconhecer, nos dois julgamentos a que fui sujeito, que todas essas afirmações se enquadravam no âmbito da minha missão eclesial de pároco de Macieira da Lixa. Foram fortes? Direi que foram fecundamente apropriadas à situação de sofrimento e de opressão generalizada que as populações do nosso país então padeciam. E essa situação era, humana e evangelicamente, intolerável. Não a denunciar com vigor e lucidez, teria sido traição ao meu ministério presbiteral e perfaria uma cumplicidade, de que hoje só teria de me envergonhar!

26. E no que diz respeito ao povo não receava, dado a maioria da população ser analfabeta ou ter uma baixa escolaridade, ser mal interpretado e ferir susceptibilidades?

R. De modo algum. Eu, como pároco, não vivia numa redoma, longe do povo. Pelo contrário, vivia fraternalmente com o povo. Era seu companheiro de todas as horas. O povo podia ser analfabeto – contra o seu analfabetismo escolar, eu próprio ministrei na casa paroquial sessões regulares de alfabetização, segundo a metodologia de Paulo Freire – mas não era inculto! Sabia muito bem distinguir o que era opressão e o que era liberdade. E depressa começou a perceber que o Evangelho de Jesus que eu lhe anunciava é sempre para a liberdade que nos liberta! (cf. Carta aos Gálatas 5, 1). Houve alturas em que o povo se escandalizou, mas não comigo nem com as minhas pregações. Escandalizou-se com alguns párocos das redondezas, meus irmãos na Fé e no presbiterado, que chegaram a orquestrar campanhas de difamação contra mim junto dele e junto do Bispo da Diocese. Escandalizou-se com a PIDE e com os seus comportamentos de espionagem. Escandalizou-se com uma manifestação pró-nacionalista e pró-Guerra Colonial que um grupo de católicos fundamentalistas do Porto veio organizar, sem qualquer aviso prévio e sem qualquer licença da paróquia, num domingo, no final da Missa das 11 horas, em pleno adro da igreja paroquial. Com as minhas palavras, com as minhas homilias, não se escandalizou. Ainda hoje – estou de novo a morar com ele como um deles, por isso sem qualquer poder sobre ele – oiço muitos sobreviventes de então a testemunhar com alegria: Tudo quanto então nos anunciou veio depois a acontecer! E, se alguma coisa lamentam é não terem aproveitado mais aquele kairós ou Momento de Graça que foi a minha Passagem como pároco no meio deles.

27. Numa missa de domingo, 31 de Maio de 1970, disse que não tínhamos o direito de dominar Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, devendo ser entregues aos seus donos e, diz ainda, que o povo é que deveria mandar no Governo e exigir que a guerra acabasse. O padre Mário ao tocar num assunto tão melindroso como era o das colónias, para o Estado Novo, tinha consciência de que isso poderia desencadear uma acção repressiva contra si?

R. Já respondi a uma pergunta semelhante a esta. Pelo teor da pergunta, até parece que se pretende justificar o injustificável que era a manutenção da Guerra Colonial em três frentes de África! A Guerra Colonial foi um crime, um hediondo crime, senhoras, senhores! Ou não sabem disso? Portanto, o que está mal é a sua manutenção. Não é a denúncia que eu fiz dela, não de forma obcecada, mas sempre que as leituras bíblicas da Eucaristia dominical mo exigiam, a menos que fizesse orelhas moucas ao Espírito Santo que nos fala e interpela a partir dos sinais dos tempos. E que maior sinal dos tempos, então, no nosso país, que a Guerra Colonial? É claro que eu intuía que se o Regime então vigente fosse contumaz no seu ódio à liberdade e à independência dos povos africanos, não me perdoaria por eu trabalhar evangelicamente a favor duma e doutra. Mas isso era um problema dele. Não era um problema meu. A mim, só pertencia continuar a ser, lúcida e corajosamente, fiel ao anúncio do Evangelho, sem qualquer espécie de medo do Regime. E foi o que procurei fazer. Será que, todos estes anos depois, me querem agora convencer que procedi mal e que o Regime que me prendeu e julgou por duas vezes é que fez bem?

28. No seu julgamento a acusação disse que o padre Mário “exaltava o espírito da Guerra Civil” através das suas palavras. Era essa a sua pretensão?

R. A pergunta diz muito bem: “A acusação disse que o padre Mário «exaltava o espírito da Guerra Civil» através das suas palavras”. Não fui quem disse. Foi a Acusação, isto, é o representante do Regime deposto no 25 de Abril 74. Entretanto, o próprio Tribunal Plenário, que foi criado pelo Regime para julgar os seus opositores políticos, reais ou supostos, considerou improcedente essa acusação. O que pretendem ao voltar aqui à carga com este assunto? Será que continuam insatisfeitos com a minha não-condenação por parte dos Juízes do Tribunal Plenário do Porto e querem julgar-me e condenar-me, todos estes anos depois? Vamos a isso. Formulem a acusação, constituam um tribunal e eu cá estou para voltar a fazer a minha defesa e a defesa do Evangelho de Jesus.

29. As suas pregações reflectiam alguma tendência política?

R. Não. As minhas pregações reflectiam o Evangelho de Jesus, aplicado às circunstâncias concretas que eram então as nossas em Portugal e no mundo. Apenas.

30. O ritual da missa rege-se por um conjunto de normas estabelecidas pela Igreja. Transgrediu essas normas?

R. Como diz Jesus no Evangelho, até a norma mais sagrada de todas, como era então o mandamento do descanso em dia de sábado, é para o ser humano, não o ser humano para a norma, ou mandamento. Foi e é dentro desta liberdade de filhas, filhos de Deus, que sempre me orientei e oriento. Não somos escravos das normas, muito menos, das normas litúrgicas. O culto da norma é idolatria. E um pecado contra o Espírito Santo. Tenham paciência, mas aqui sou como S. Paulo, não cedo nem um milímetro. Por amor ao Evangelho de Jesus. Nunca transgredi, nem transgrido normas estabelecidas pela Igreja. Mas também nunca fui nem sou escravo delas. Sempre agi e ajo responsavelmente. Desde que me tornei cristão adulto e Igreja viva no estado de maioridade individual, percebi, para sempre, o que S. Paulo também percebeu no seu tempo: a letra (da norma) mata e o espírito é que dá vida. Não há melhor maneira de respeitar as normas da Igreja do que mantermo-nos fiéis ao espírito que as informa. E isso sempre fiz quando fui pároco de Macieira da Lixa. E é o que continuo a fazer hoje. E farei amanhã. E não admito que novos “fariseus” venham tentar pôr em risco esta liberdade para a qual Jesus, o Cristo, nos libertou!

31. Debatiam-se livremente dentro da igreja e durante o período de missa, assuntos relacionados com a vida política portuguesa e respectivas consequências sociais?

R. Apenas nas últimas semanas em que fui pároco de Macieira da Lixa, foi possível ensaiar homilias em forma de diálogo na assembleia. A experiência estava ainda a dar os primeiros passos, quando a PIDE me levou de novo preso. E nunca mais regressei a Macieira da Lixa como pároco. Mas mesmo nesse curto período de tempo, o diálogo quando aconteceu na assembleia litúrgica era sempre em redor da Palavra de Deus acabada de ser proclamada. A vida social, familiar, política das pessoas e do país estava sempre presente, evidentemente, porque a Palavra de Deus é mesmo assim. Mas não havia debate. Apenas contribuições daqui e dali. Normalmente, as minhas homilias continham muitas perguntas que remetiam cada pessoa participante para a sua própria consciência. Todas, todos éramos estimulados à reflexão interior. Aliás, eu próprio, era o primeiro ouvinte da Palavra, aquele que mais era directamente interpelado por ela. Começava a ser ouvinte, cerca duma semana antes, quando iniciava a preparação da homilia do domingo seguinte. E nunca avançava para a celebração, sem antes escrever a homilia que havia de proferir. Nem que para tanto tivesse que me fechar, de véspera, durante horas, na igreja paroquial, sem ninguém saber onde eu estava. E, quando nem assim conseguia escutar a palavra que havia de anunciar às pessoas – havia semanas em que a aridez espiritual era muita – tinha que me levantar na madrugada de domingo, horas antes da 1.ª Missa, para me sentar no cartório paroquial à escuta. Ninguém imagina o gozo espiritual que eu sentia, à medida que escutava o que o Espírito Santo queria que eu disse à Igreja que se reunia em Macieira da Lixa. E ainda hoje continuo a proceder assim. Sempre fui muito sério com o Espírito Santo. Talvez por isso é que a minha alegria é enorme. E as incompreensões, mesmo por parte de quem detém o poder na Igreja, também acabem por ser mais que muitas.

32. Fumava-se dentro da sua igreja?

R. Não! Jamais. Essa foi outra calúnia do senhor Amadeu C. de Vasconcelos, em mais uma das suas crónicas envenenadas contra mim, publicadas no semanário católico A ORDEM, que se editava no Porto e que então veiculava os pontos de vista dos nossos irmãos católicos mais tradicionalistas. Não suportavam a liberdade que eu tinha em Jesus, o Cristo. Como tão pouco suportavam que tivesse acontecido na Igreja católica o Concílio Vaticano II. São assim as coisas…

(Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição deste poste: LG)