1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2019:
Queridos amigos,
Enquanto o viandante percorre as escavações de Herculano e medita neste capricho do destino que foram aqueles bons metros de lava e lama que "congelaram" a existência da cidade e permitem agora este maravilhamento que é percorrer um mundo que se extinguiu há quase dois milénios, pensa-se no Vesúvio, que é muito belo de ver à distância, é imponente e sobranceiro na sua vastidão de rocha vulcânica, há uma rota turística para visitar o Monte Vesúvio, contemplar as suas vinhas com uvas Lacrima Christi que davam um dos melhores vinhos de Itália - é uma beleza terrífica, nas camadas de cinza e nas correntes de lava fica a lembrança de um poder destruidor que mudou a vida em Pompeia e Herculano.
Agora, depois do cataclismo, é o calmo peregrinar por esse mundo perdido, e aplaudir a paciência e a sabedoria dos arqueólogos que desnudam esse opulento mundo perdido.
Um abraço do
Mário
Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (5)
Beja Santos
O viandante sobraça o guia de Nápoles e a costa amalfitana, um daqueles livros onde cabem vulcões, património edificado com museus, igrejas e ruínas, um pouco da história da cidade, lugares onde comer e ficar, shopping e entretenimento. A informação é útil e completa o pequeno guia de Herculano oferecido à entrada do parque arqueológico. A cidade tornou-se parte do Império Romano em 89 a.C., era próspera, contígua ao mar e quando em 79 d.C. a erupção do Vesúvio soterrou Pompeia cobriu igualmente Herculano com uma camada profunda de lava e lama, acabaram por ser o prodigioso elemento que levou à conservação destas escavações que estão patentes ao público e que, insista-se, são uma parte minoritária da primitiva Herculano. Olhando à volta, pergunta-se com tanto casario a rodear estas escavações, o que será possível fazer mais. O que é pena, veja-se a beleza que as escavações oferecem e imagine-se o muito que ainda há para ver. Logo a seguir, a imagem num estabelecimento que servia comida, não esquecer que era prática romana almoçar fora de casa, deviam ser fogareiros que permitiam servir à ilustre clientela um buffet quente, era assim o takeaway do Império Romano.
A visita a Herculano, tal como a Pompeia, permite conhecer as divisões da casa, o átrio, com a sua parte central que recolhia a água da chuva, o impluvium, as paredes decoradas, a sala de estar, também decorada, o tablino, que estava situado entre o átrio e o peristilo (jardim rodeado de pórticos ou galerias com colunas). Os dormitórios davam pelo nome de cubiculum. Os elementos religiosos eram recorrentes, os romanos tinham os seus deuses domésticos, os manes.
O viandante entra agora numa casa chamada a Herma de Bronze (uma herma é um busto sem braços assente num pilar), este senhor seria o dono da casa, impressiona muito.
Em Herculano todas as habitações escavadas têm nome: a Casa de Aristides, a Casa do Esqueleto, a Casa do Albergue, a Vila dos Papiros (não está patente ao público, sabe-se que inspirou a construção do museu Jean Paul Getty em Malibu, Los Angeles), o viandante fica intrigado, gostava de saber mais, segue em diante, vai a outras casas, entra na sede dos sacerdotes augustais, é de uma rara beleza, descodifica um pouco a prática religiosa romana. Para os libertos, antigos escravos, o facto de se poderem transformar em sacerdote augustal dava-lhes ascensão social. Tinham então um colégio consagrado ao culto do imperador Augusto, que se situava na área do fórum, o local onde se desenrolava a vida política, religiosa e comercial da cidade. O que mais impressiona são os seus frescos. As outras casas que se podem visitar dão-nos conta da organização do espaço doméstico, como se pode ver na imagem seguinte.
Herculano revela estabelecimentos, casas com átrio repleto de mosaicos, casas com varandas de madeira, com jardins, com entradas repletas de colunatas, há mesmo uma casa com átrio coríntio, outra que possui um grande portal. Impressiona o ginásio que é um gigantesco complexo arquitetónico destinado a atividades desportivas. Só uma parte do edifício foi alvo de escavações, o que se pode ver em colunas é de cortar a respiração. Neste ponto da visita considera o viajante que é bom saber que todo este reboco foi restaurado, as ruínas de Herculano estão a céu aberto, desapareceram as proteções em pedra, durante os restauros acordou-se em fortalecer as paredes para evitar mais deteriorações. É uma operação de conservação que garante uma longa vida para estes achados arqueológicos que fazem parte do património da humanidade.
No termo da visita, o viandante foi conhecer as réplicas das tais ossadas de alguma gente que fugia espavorida do inferno vulcânico, carregada dos seus haveres, numa efémera tentativa de se salvarem no mar, o que não aconteceu. Com a barriga a dar horas e meditando nas partidas do destino e nas erupções vulcânicas que não escolhem idades nem ricos e pobres se põe termo à visita a Herculano. Resta ir comer, flanar pela baía de Nápoles, entrar nos bairros populares e descansar o corpinho, amanhã é dia de partida para a costa amalfitana, caminhar até Ravello.
(continua)
____________
Notas do editor
Poste anterior de 16 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20979: Os nossos seres, saberes e lazeres (392): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (4) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 22 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20999: Os nossos seres, saberes e lazeres (393): Diário de um confinado (... mas não condenado) (José Saúde, Beja, abril de 2020)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 23 de maio de 2020
Guiné 61/74 - P21000: PAIGC - Quem foi quem (13): Areolino Cruz, professor do ensino primário, que alegadamente terá perdido a vida ao tentar salvar os seus alunos durante um bombardeamento, em Cubucaré, em 17 de fevereiro de 1964 (Cherno Baldé / Jorge Araújo)
Fundação Mário Soares > Portal Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Pasta: 07065.084.016 > Título: Requisição de material de ensino > Assunto: Requisição de material de ensino, assinada por Areolino Cruz, para a zona Sul > Data: Quarta, 22 de Julho de 1964
Citação:
(1964), "Requisição de material de ensino", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40014 (2020-5-22)
1. Troca de comentários ao poste P20994 (*);
(i) Cherno Baldé:
Estas cartas mostram, se dúvidas existissem, quão difícil foi iniciar a luta na zona Leste, pois eles (os guerrilheiros) estavam mais aterrorizados do que as populações civis a quem deviam aterrorizer e meter medo: tinham que passar todo o tempo escondidos no mato, porque se fossem detectados pela população eram presos e apresentados as autoridades coloniais.
As cartas sobre o ataque a Pirada e sabotagens [pontes, linhas telefónicas,,,], provavelmente, nada seriam do que um "bluff", para mostrar, à direcçao superior do partido, alguma acção no terreno, porque na verdade tinham imensas dificuldades de movimentaçao e abastecimentos e não podiam contar com o apoio da população local.
O Areolino Cruz foi professor numa escola da região de Cubucaré (no Sul do país) onde morreu durante um bombardeamento no dia 17 de Fevereiro de 1964, dia festejado na Guiné Bissau como o dia do Professor em homenagem à sua morte.
Quanto ao Yaya Koté, a grafia do seu nome indica que é natural ou naturalizado no Senegal, podendo ser descendente de pais de origem Guineense, pois a grafia portuguesa na Guiné portuguesa seria Iaia Coté, portanto diferente. Seria daqueles aventureiros que se juntaram ao movimento, contando com a rápida independência do território, mas que depois se afastaram em virtude das dificuldades encontradas no terreno...Fazia de elo de ligação com os elementos de Dakar, facto que confirma a sua facilidade de movimentos no Senegal.
Contrariamente ao que se possa pensar, em Bambadinca e Xime a semente da rebelião não estava na população Balanta (vítima do seu caracter rebelde e belicoso), mas sobretudo entre os ponteiros mestiços e assimilados (Guinéus e Caboverdianos) das familias dos Semedos e Pereiras que detinham grandes extensões de terras agrícolas e que utilizavam os Balantas como mão de obra nas suas pontas (as tais pontas do Inglês, entre outras).
As cartas sobre o ataque a Pirada e sabotagens [pontes, linhas telefónicas,,,], provavelmente, nada seriam do que um "bluff", para mostrar, à direcçao superior do partido, alguma acção no terreno, porque na verdade tinham imensas dificuldades de movimentaçao e abastecimentos e não podiam contar com o apoio da população local.
Esta situação de desespero criou no partido o sentimento anti-fula que resultou depois no genocídio dos líderes desta etnia no pós-independência.
O Areolino Cruz é hoje considerado herói nacional [, tem nome de rua em Bissau e nome de liceu regional/escola secundária em Catió].
Desse grupo de guerrilheiros, penso que só Chico Té [ , Francisco Mendes,] assistiu à independência em 1974.
O Areolino Cruz é hoje considerado herói nacional [, tem nome de rua em Bissau e nome de liceu regional/escola secundária em Catió].
Desse grupo de guerrilheiros, penso que só Chico Té [ , Francisco Mendes,] assistiu à independência em 1974.
O Areolino Cruz foi professor numa escola da região de Cubucaré (no Sul do país) onde morreu durante um bombardeamento no dia 17 de Fevereiro de 1964, dia festejado na Guiné Bissau como o dia do Professor em homenagem à sua morte.
Quanto ao Yaya Koté, a grafia do seu nome indica que é natural ou naturalizado no Senegal, podendo ser descendente de pais de origem Guineense, pois a grafia portuguesa na Guiné portuguesa seria Iaia Coté, portanto diferente. Seria daqueles aventureiros que se juntaram ao movimento, contando com a rápida independência do território, mas que depois se afastaram em virtude das dificuldades encontradas no terreno...Fazia de elo de ligação com os elementos de Dakar, facto que confirma a sua facilidade de movimentos no Senegal.
Quanto ao tal Demba... Não se trata do mesmo Demba, criado do [comerciante de Pirada,] Mário Soares, este ninguém o tirava da mesa do M. Soares, muito menos para ir morrer de fome no mato. Se calhar morreu depois da partida do patrão em 1974/75.
O Demba mencionado na carta, fazia parte do grupo dos poucos fulas que, no início, o PAIGC conseguira mobilizar para a guerrilha no Senegal, mas que, de seguida, abandonariam o barco devido às dificuldades e à feroz perseguição de que foram alvo no Chão fula.
(ii) Luís Graça:
Estes documentos de 1963 são bem elucidativos das tremendas dificuldades por que passou a guerrilha do PAIGC no chão fula, em especial no Gabu... Pirada (e não só) era um sítio hostil...Já em Bambadinca e Xime havia importantes núcleos balantas... como Nhabijões, Samba Silate, Poindom...
(iii) Cherno Baldé:
O Demba mencionado na carta, fazia parte do grupo dos poucos fulas que, no início, o PAIGC conseguira mobilizar para a guerrilha no Senegal, mas que, de seguida, abandonariam o barco devido às dificuldades e à feroz perseguição de que foram alvo no Chão fula.
(ii) Luís Graça:
Estes documentos de 1963 são bem elucidativos das tremendas dificuldades por que passou a guerrilha do PAIGC no chão fula, em especial no Gabu... Pirada (e não só) era um sítio hostil...Já em Bambadinca e Xime havia importantes núcleos balantas... como Nhabijões, Samba Silate, Poindom...
(iii) Cherno Baldé:
Contrariamente ao que se possa pensar, em Bambadinca e Xime a semente da rebelião não estava na população Balanta (vítima do seu caracter rebelde e belicoso), mas sobretudo entre os ponteiros mestiços e assimilados (Guinéus e Caboverdianos) das familias dos Semedos e Pereiras que detinham grandes extensões de terras agrícolas e que utilizavam os Balantas como mão de obra nas suas pontas (as tais pontas do Inglês, entre outras).
No inicio as autoridades militares não conseguindo fazer uma leitura correcta da situação, perseguiram e massacraram muitos inocentes apanhados no meio e assim conseguiram empurrá-los para o lado da guerrilha.
Caro Cherno Baldé: Antes de mais, os meus agradecimentos pelas informações complementares ao meu texto acima. São sempre achegas oportunas e relevantes, que ajudam à compreensão do(s) contexto(s)
[...) Quanto ao assunto relacionado com a morte do Areolino Cruz (e não Aerolindo):
Referes que "foi professor numa escola da região de Cubucaré (Sul do país) onde morreu durante um bombardeamento no dia 17 de Fevereiro de 1964 [último dia do I Congresso do PAIGC], dia festejado na Guiné-Bissau como o dia do Professor em homenagem à sua morte”.
Porém, em consulta aos meus apontamentos, verifico que em 17 de Junho de 1964, ou seja, quatro meses depois, Amílcar Cabral manda-o apresentar ao Nino Vieira, com uma guia de marcha, onde consta:
“Vai o camarada Areolino Cruz apresentar-se ao camarada João Bernardino Vieira (Nino) na zona 11, para ser integrado nos serviços de instrução (ensino) no chão dos Nalus.
"O camarada Areolino Cruz, que era estudante e tomou parte activa no complô contra o Partido, está sujeito a uma sanção suspensa de expulsão do Partido. Por isso, não tem quaisquer direitos de membro do Partido e deve ser rigorosamente controlado pelos responsáveis. Deve ser enviado um relatório mensal sobre a sua conduta, ao Secretário-Geral.”
Fonte: Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40246
Será que se trata da mesma pessoa?
(v) Luís Graça:
Mito ou não, o Areolino Cruz é descrito, na “hagiografia” do PAIGC, como um professor que perdeu a vida ao tentar salvar os seus alunos durante o bombardeamento de Cubucaré, no dia 17 de Fevereiro de 1964...
É um dos heróis nacionais, "combatente da liberdade da Pátria"... E os guineenses, como todos os povos, "precisam de heróis". de exemplos inspiradores... Tem nome de ruas, de estabelecimemtos de ensino, etc.
Mas o que passou realmente com este Areolino ?
Também já tinha dado conta, no Arquivo Amílcar Cabral, do "anacronismo" apontado pelo Jorge Araújo... Ele morre, estranhamente, no último dia do Congresso de Cassacá, no Cubucaré, em 17/2/1964... E em 17 de junho do mesmo ano, Amílcar Cabral manda-o, de castigo, com "guia de marcha", para o sul, para ser "reeducado" pelo 'Nino' Vieira ? Afinal, onde é que ele estava ?
Pode ser um erro de dactilografia, um erro no ano... Mas podia ser 17/6/1963 ? Nessa altura está em Pirada e é co-autor da carta de 10 de julho de 1963, transcrita pelo Jorge Araújo...
Já agora, de que chão seria o Areolino Cruz ? Manjaco ?
No portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, encontrámos o seguinte documento, da época colonial (1933), que faz parte hoje do arquivo do INEP / Bissau, e que fala de um "arrolador" (recenseador) de nome Areolino Cruz, talvez um antepassado do homónino, combatente do PAIGC... Pai ? Avô ? Bisavô ?.
Instituição:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau
Pasta: 10426.215
Assunto: Solicita envio dos elementos do arrolador Areolino Cruz.
Remetente: António Pereira Cardoso, 1.º oficial, Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas
Destinatário: Administrador da Circunscrição Civil de Canchungo
Data: Sexta, 3 de Novembro de 1933
Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas
Tipo Documental: Correspondencia
Cota Original: C1.6/13.215
http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10426.215
(vi) Cherno Baldé:
Caro Jorge Araujo,
Pode haver algum problema com a data oficial da sua morte em Cubucaré, que não sei explicar, é bem provavel que tenha sido um ano depois, em 1965.
De notar que, alguns meses depois da sua passagem por Pirada e arredores, documentada pelas cartas publicadas neste Poste (*), o Areolino (Lopes) da Cruz seria enviado à URSS para continuar seus estudos e em finais de 1963 (Setembro e Outubro) ele escreve aos irmãos Cabral (Luís e Amílcar) da cidade de Leninegrado onde estava a frequentar a Faculdade preparatória da lígua Russa. Todavia, sabe-se que depois houve problemas no seio dos estudantes sobre questões políticas, nomeadamente sobre a difícil questão da luta no interior e sobre a unidade Guiné/Cabo-Verde. (Fonet: Arquivo da Casa Comum)
Tudo leva a pensar que se trata do mesmo individuo que, infelizmente, terão mandado regressar e transferido para uma escola do Sul, na zona 11, como referiste na nota, para ser cuidadosamente observado, tipico dos métodos estalinistas usados pelo PAIGC durante e apás a luta.
(vii) Jorge Araújo:
Caro Cherno Baldé,
Obrigado pelas notas supra. Algumas delas já estavam incluídas nos meus apontamentos, pois fazem parte do espólio documental do Arquivo de Amílcar Cabral, disponível na Casa Comum, onde a sua consulta é pública.
Perante a ausência de informações concretas, sobre as questões em aberto, significa que este dossiê não ficará fechado, aguardando por novos/outros desenvolvimentos. Até breve.
(viii) Luís Graça;
No livro de Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita" (Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp) (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11), há uma informação detalhada sobre "guerrilheiros caídos no campo da honra" (Parte V). São duas dezenas, entre eles o Areolino Cruz.
Diz Bobo Keita, na pág. 242:
(...)"pertencia a uma família bem conhecida em Bissau. Indivíduo bastante instruído, foi para a luta e o seu desejo foi sempre o de trabalhar no domínio da educação. Era responsável pelo setor de educação no Sul (...). Ocupava-se do enquadramento e da educação dos jovens na escola primária. Morreu durante um ataque inimigo apoiado pela aviação. Foi violento".
Não diz o o local e a data da sua morte. (**)
_______________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 20 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)
(**) Último poste da série > 25 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19437: PAIGC - Quem foi quem (12): Rui [Demba] Djassi, nome de guerra, Faincam (1938-1964), antigo comandante da região de Quínara, hoje "Herói da Pátria"
Marcadores:
Areolino Cruz (PAIGC),
Arquivo Amílcar Cabral,
Catió,
Cherno Baldé,
Fundação Mário Soares,
Jorge Araújo,
PAIGC - Quem foi quem
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Guiné 61/74 - P20999: Os nossos seres, saberes e lazeres (393): Diário de um confinado (... mas não condenado) (José Saúde, Beja, abril de 2020)
Beja > Abril de 2020 > O Zé Saúde... "confinado mas não condenado"
Fotos (e legenda): © José Saúde (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
1. Mensagem do José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), jornalista e escritor, residente em Beja, com 190 referências no nosso blogue:
Data: 15/05/2020, 17:35
Assunto: Diário de um confinado
Luís, boa tarde
Tu, como administrador do nosso blogue, entendes que a temática que escrevo tem cabimento no nosso espaço?
Luís, boa tarde
Tu, como administrador do nosso blogue, entendes que a temática que escrevo tem cabimento no nosso espaço?
Todos vivemos a preocupação do covid-19, e todos falamos a mesma linguagem de uma pandemia que por ora nos aflige.
O texto é longo e tem três fotos e foi feito a 20 de abril. Deixo isto ao teu critério, se entenderes publica. Ah, falo também de dois camaradas nossos por terras guineenses.
Abraço,
Zé Saúde
Somos ínfimas partículas de um universo onde a banalidade dos acontecimentos proliferam, sendo a sua arquitetura surreal construída em peças soltas que ditam fins pressupostamente engendrados e cuja aritmética final baterá sempre certa desde que a conjetura derradeira da prova seja pautada pela exiguidade e o seu fim se apresente estritamente compreensível.
Zé Saúde
Diário de um confinado
por José Saúde
por José Saúde
O confinamento que o Covid-19 obrigou!
Somos ínfimas partículas de um universo onde a banalidade dos acontecimentos proliferam, sendo a sua arquitetura surreal construída em peças soltas que ditam fins pressupostamente engendrados e cuja aritmética final baterá sempre certa desde que a conjetura derradeira da prova seja pautada pela exiguidade e o seu fim se apresente estritamente compreensível.
Agora, confrontado com uma perspetiva inimaginável, o mundo depara-se com uma epidemia que não conhece fronteiras, raças humanas, credos, religiões, natureza das línguas, cores, estratos sociais ou políticos, enfim, um flagelo de consequências ilimitadas que obrigam o mais vulgar cidadão cosmopolita a resguarda-se de um inimigo invisível que dá pelo nome Covid-19.
Nasci no dia 23 de novembro de 1950 em Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa, distrito de Beja, Baixo Alentejo. e no universo celeste de então ainda se falava dos sórdidos alaridos dos sons das armas com as quais os desavindos combateram na Segunda Guerra Mundial a qual ocorreu entre 1939 e 1945. Depois, com a Europa praticamente destroçada, procedeu-se à sua renovação, assistindo-se às emigrações em massa de gentes que procuravam melhores situações financeiras além-fronteiras.
O mundo perante a devastação territorial observada, soube evoluir e a era das máquinas trouxe uma outra performance a uma sociedade que reclamava bem-estar e sobretudo pão para colocar na mesa de famílias famintas que viviam confinadas aos magros salários entretanto auferidos. Da carroça puxada, à época, por uma parelha de animais, às novas máquinas foi um passo gigante, seguindo-se o inovado tempo dos tratores, dos automóveis e sobretudo de uma enorme alteração infraestrutural quer do mundo rural na sua plenitude, quer do urbano.
A humanidade desenvolveu-se, conheceu a expansão das cidades, vilas e aldeias, assim como as novas técnicas industriais e, por outro lado, soubemos, in loco, o quão difícil foi a funesta guerra colonial nas três frentes de combate – Angola, Moçambique e Guiné – onde estiveram envolvidos cerca de 800 mil jovens soldados, intitulados como “carne para canhão” e de onde resultaram 100 mil feridos, 30 mil evacuações e perto de 10 mil mortos.
A evolução entrementes deparada não parou e cresceu desalmadamente no tempo e no espaço, o homem foi à lua, desbravou campos aéreos, implementou novas dinâmicas e chegou ao ponto de denominar tecnologicamente um qualquer espaço independentemente do local onde porventura este se situe. Carrega-se num botão e de repente eis-nos em contacto direto e visual com um outro amigo que se encontra do outro lado do globo terrestre. Acrescesse que as cenas cinéfilas a preto e branco do passado deram lugar à cor e o mundo evoluiu compreensivamente.
Aliás, tudo mudou radicalmente. Na minha singela opinião o universo confronta-se com uma presumível “Terceira Guerra Mundial”, mas sendo esta biológica, química e nuclear. A mãe Natureza é imutável e, quando o homem se fixa no interior de um casulo onde o eu se sobrepõem ao nós, eis que o desfecho tem efeitos tremendamente desastrosos. É o covid-19 a causar danos irrecuperáveis.
Encontro-me retido entre as paredes de uma casa onde o vazio é uma arma de arremesso que me coloca, felizmente, ainda na prateleira dos seres viventes. Desabafo com os meus botões e eles, embora murmurando de baixinho, respondem-me com altivez: não tombes, transmite-me o mais voluntarioso companheiro no alto da sua irreverente dignidade e eu, obediente, volto a reerguer-me. Vivo só e as visitas, não sendo diárias, dão-me alento para reencontrar o caminho seguro do amanhã.
A minha rotina do dia-a-dia passa pelo levantar cedo, cerca da sete da manhã, como aliás sempre foi costume, tomo banho, desfaço a barba, umas vezes visto-me como se fosse para sair, outras fico em pijama, delicio-me com o meu pequeno almoço e parto para mais uma jornada de trabalho. Ligo o computador e é nele que passo parte dos meus dias de ócio.
Aproveitando a razão de um confinamento imposto pelas entidades oficiais, que se aceitam plenamente, lá vou “matando” o tempo com a escrita, lendo e ouvindo as últimas notícias emitidas pelos canais televisivos. As informações todas elas recaem no covid-19 e das sequelas que o dito cujo proporciona numa sociedade onde os velhos são os mais fustigados, dado que a sua fragilidade é naturalmente superior. X mortos, y de novos casos e w de recuperados.
Creio que o medo que a determinada altura se apoderou da minha pessoa, está diretamente relacionada com o AVC que há quase 14 anos me flagelou, na madrugada do dia 27 de julho de 2006, e que tentou levar-me para o além quando nada o fazia prever. Logo, a minha condição patológica acarreta cuidados redobrados. Sou, portanto, uma das pessoas de alto risco, daí que as minhas filhas, Marta e Rita, diariamente me telefonem para saberem o meu estado de alma.
A Marta vive no Montijo e por volta das 10 horas da manhã, faz o primeiro contacto repetindo o feito ao longo da tarde. A Rita utiliza o mesmo método, para além das visitas onde me traz a comida que consumo em horários considerados adequados. Aqui fica também o profundo obrigado ao meu genro, Paulo Paixão, sendo que ambos se ocupam da missão ao trazerem-me os preciosos bens alimentícios. Aliás, desde que estou confinado a uma casa cheia de nada, é comum às segundas-feiras tanto a Rita como o Paulo trazerem-me o “avio” para a semana.
Uma outra presença, mesmo não sendo constante, é a do meu amigo Chico Fonseca, também ele um camarada na guerra da Guiné que, equipado com uma máscara, me traz algumas das novidades postas a circular nas ruelas citadinas acerca do covid-19. Numa destas recentes quintas-feiras, 17 de abril, lá me trouxe uma remessa de encomendas para aconchegar na minha dispensa e outras que foram a caminho do frigorifico. A ele estou-lhe verdadeiramente grato.
De resto recebo telefonemas, outras vezes a iniciativa é minha, dos meus amigos Otílio, Zé Cano Brito, Machado, Fernandes, Joaquim Catrapona, Dorival Xavier, Manel Serra, de entre outros que esporadicamente me perguntam sobre o meu estado moral, o que aliás muito agradeço, como foi o caso do Toinho no passado dia 15 de abril. Aqui deixo também o meu bem-haja à minha prima Anazinha, residente em Almada, que nunca se esquece de fazer o favor em me ligar. Ou não fosse a nossa amizade uma espécie de irmãos de sangue.
Os afazeres de casa foi coisa que nunca me perturbou a mente. Sabendo-se que a minha condição física é limitada, a mão direita resolveu um dia declarar-se ausente às tarefas, utilizo somente a esquerda, aquela que é hoje a minha idolatrada rainha, ponho a mesa, lavo a loiça e volto a colocar os utensílios utilizados no seu lugar.
Nasci no dia 23 de novembro de 1950 em Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa, distrito de Beja, Baixo Alentejo. e no universo celeste de então ainda se falava dos sórdidos alaridos dos sons das armas com as quais os desavindos combateram na Segunda Guerra Mundial a qual ocorreu entre 1939 e 1945. Depois, com a Europa praticamente destroçada, procedeu-se à sua renovação, assistindo-se às emigrações em massa de gentes que procuravam melhores situações financeiras além-fronteiras.
O mundo perante a devastação territorial observada, soube evoluir e a era das máquinas trouxe uma outra performance a uma sociedade que reclamava bem-estar e sobretudo pão para colocar na mesa de famílias famintas que viviam confinadas aos magros salários entretanto auferidos. Da carroça puxada, à época, por uma parelha de animais, às novas máquinas foi um passo gigante, seguindo-se o inovado tempo dos tratores, dos automóveis e sobretudo de uma enorme alteração infraestrutural quer do mundo rural na sua plenitude, quer do urbano.
A humanidade desenvolveu-se, conheceu a expansão das cidades, vilas e aldeias, assim como as novas técnicas industriais e, por outro lado, soubemos, in loco, o quão difícil foi a funesta guerra colonial nas três frentes de combate – Angola, Moçambique e Guiné – onde estiveram envolvidos cerca de 800 mil jovens soldados, intitulados como “carne para canhão” e de onde resultaram 100 mil feridos, 30 mil evacuações e perto de 10 mil mortos.
A evolução entrementes deparada não parou e cresceu desalmadamente no tempo e no espaço, o homem foi à lua, desbravou campos aéreos, implementou novas dinâmicas e chegou ao ponto de denominar tecnologicamente um qualquer espaço independentemente do local onde porventura este se situe. Carrega-se num botão e de repente eis-nos em contacto direto e visual com um outro amigo que se encontra do outro lado do globo terrestre. Acrescesse que as cenas cinéfilas a preto e branco do passado deram lugar à cor e o mundo evoluiu compreensivamente.
Aliás, tudo mudou radicalmente. Na minha singela opinião o universo confronta-se com uma presumível “Terceira Guerra Mundial”, mas sendo esta biológica, química e nuclear. A mãe Natureza é imutável e, quando o homem se fixa no interior de um casulo onde o eu se sobrepõem ao nós, eis que o desfecho tem efeitos tremendamente desastrosos. É o covid-19 a causar danos irrecuperáveis.
Retido em casa
Encontro-me retido entre as paredes de uma casa onde o vazio é uma arma de arremesso que me coloca, felizmente, ainda na prateleira dos seres viventes. Desabafo com os meus botões e eles, embora murmurando de baixinho, respondem-me com altivez: não tombes, transmite-me o mais voluntarioso companheiro no alto da sua irreverente dignidade e eu, obediente, volto a reerguer-me. Vivo só e as visitas, não sendo diárias, dão-me alento para reencontrar o caminho seguro do amanhã.
A minha rotina do dia-a-dia passa pelo levantar cedo, cerca da sete da manhã, como aliás sempre foi costume, tomo banho, desfaço a barba, umas vezes visto-me como se fosse para sair, outras fico em pijama, delicio-me com o meu pequeno almoço e parto para mais uma jornada de trabalho. Ligo o computador e é nele que passo parte dos meus dias de ócio.
Aproveitando a razão de um confinamento imposto pelas entidades oficiais, que se aceitam plenamente, lá vou “matando” o tempo com a escrita, lendo e ouvindo as últimas notícias emitidas pelos canais televisivos. As informações todas elas recaem no covid-19 e das sequelas que o dito cujo proporciona numa sociedade onde os velhos são os mais fustigados, dado que a sua fragilidade é naturalmente superior. X mortos, y de novos casos e w de recuperados.
Creio que o medo que a determinada altura se apoderou da minha pessoa, está diretamente relacionada com o AVC que há quase 14 anos me flagelou, na madrugada do dia 27 de julho de 2006, e que tentou levar-me para o além quando nada o fazia prever. Logo, a minha condição patológica acarreta cuidados redobrados. Sou, portanto, uma das pessoas de alto risco, daí que as minhas filhas, Marta e Rita, diariamente me telefonem para saberem o meu estado de alma.
A Marta vive no Montijo e por volta das 10 horas da manhã, faz o primeiro contacto repetindo o feito ao longo da tarde. A Rita utiliza o mesmo método, para além das visitas onde me traz a comida que consumo em horários considerados adequados. Aqui fica também o profundo obrigado ao meu genro, Paulo Paixão, sendo que ambos se ocupam da missão ao trazerem-me os preciosos bens alimentícios. Aliás, desde que estou confinado a uma casa cheia de nada, é comum às segundas-feiras tanto a Rita como o Paulo trazerem-me o “avio” para a semana.
Uma outra presença, mesmo não sendo constante, é a do meu amigo Chico Fonseca, também ele um camarada na guerra da Guiné que, equipado com uma máscara, me traz algumas das novidades postas a circular nas ruelas citadinas acerca do covid-19. Numa destas recentes quintas-feiras, 17 de abril, lá me trouxe uma remessa de encomendas para aconchegar na minha dispensa e outras que foram a caminho do frigorifico. A ele estou-lhe verdadeiramente grato.
De resto recebo telefonemas, outras vezes a iniciativa é minha, dos meus amigos Otílio, Zé Cano Brito, Machado, Fernandes, Joaquim Catrapona, Dorival Xavier, Manel Serra, de entre outros que esporadicamente me perguntam sobre o meu estado moral, o que aliás muito agradeço, como foi o caso do Toinho no passado dia 15 de abril. Aqui deixo também o meu bem-haja à minha prima Anazinha, residente em Almada, que nunca se esquece de fazer o favor em me ligar. Ou não fosse a nossa amizade uma espécie de irmãos de sangue.
A lida da casa
Os afazeres de casa foi coisa que nunca me perturbou a mente. Sabendo-se que a minha condição física é limitada, a mão direita resolveu um dia declarar-se ausente às tarefas, utilizo somente a esquerda, aquela que é hoje a minha idolatrada rainha, ponho a mesa, lavo a loiça e volto a colocar os utensílios utilizados no seu lugar.
Para além destes afazeres diários, faço máquinas para lavar a roupa, estendo-a e passo-a a ferro. Reconheço que o cansaço é, amiudamente, confrangedor dado que a diminuição física acarreta alguns contratempos, mas a minha voluntariedade, assente essencialmente numa enorme ânsia de viver, não me faz recuar perante os obstáculos que me surgem pela frente. O fazer a cama, por exemplo, é uma outra tarefa quotidiana de que não abdico.
É óbvio que tenho saudades da convivência social e aceita-se que assim o seja. Dos finais de tardes passadas na companhia dos amigos Zé Pardal, um velho companheiro e e também ele camarada da Guiné, Manel Vilão, Fernandes, Léi Marujo, Manel Augusto, Manel Aleixo, Chico do Talho, como é conhecido, Pepe, Correia e Zé Horta, ou do simpático Rui Torres, um rapaz com trissomia 21 que amavelmente se aproxima de nós, sendo a nossa reação de aproximação entendida como profícua, de entre outros companheiros que se juntam connosco à mesa do Café Caixinha, no Bairro de Santa Maria, em Beja, onde a cordialidade do Vítor e da Sandra é digna da nossa afeição, enfim, ali se dispersam um rol de conversas que tempo, já com tempo, dissemina a uma velocidade estonteante.
Tenho também saudades em conduzir o meu carro estrada fora e desbravar os dias solarengos de uma primavera onde o mês da abril nos envia para os tempos em que se conquistou a liberdade no ano de 1974 com a Revolução dos Cravos. Mas este abril nasceu sob o signo do confinamento, um confinamento que aleatoriamente leva o ser humano a um monumental cansaço psicológico reclamando-se laivos de liberdade, não obstante as regras que determinam a razão de o ficar em casa. Todavia, uma luz ao fundo do túnel aconselha-me que lance um grito de “Ipiranga” e soletre calmamente a expressão: quero ser livre, quero abraçar, apertar a mão e beijar, sobretudo os meus netos!
Através dos vidros da janela de um segundo andar vejo movimento, embora limitado, de pessoas em circulação numa rua que acusa uma suprema falta de trânsito. Algumas, poucas, criaturas segurando a trela de animais de estimação, outras com sacos de compras, ou de lixo para jogar para o contentor, outras em carros que se preveem serem gente em trabalho, e eu em casa amarrado ao mui digno conceito que acusa falta de uma liberdade plena.
Olho, atentamente, as fotos dos meus cinco netos que faço questão em manterem-se por perto e à noite contemplo-me com uma videochamada onde nos permite um encontro virtual. Avô e netos reencontram-se à distância porque a liberdade das novas tecnologias permite-nos trocar dois dedos de conversa. Ou quando à socapa vou vê-los, eles na varanda e eu cá em baixo na rua, e com a minha neta Ritinha, na inocência dos seus quatro aninhos, lançando-me o alerta: “avô, vai para casa porque o coronavírus é perigoso”! Tem razão. O avô cumpre.
Com o breu da noite a reclamar descanso parto rumo ao meu leito, seguindo-se uma noite desassossegada por via de um rol de sonhos que teimam em não me aluviar de um stressante dia onde uma imensidade de fantasias me ocorrem amiúde.
Sequioso da liberdade, remeto-me a incentivar o mais incauto cidadão que o tempo que por ora vivemos requer cuidados e sobretudo respeito por nós e pelos outros, porque só assim levaremos no futuro, que se requer próximo, a carta a Garcia.
Sim, é perfeitamente admissível que neste diário de um confinado lance o meu estridente e solidário grito de alerta o qual se encontra perfeitamente enquadrado com a questão sanitária que se abateu sobre o povo: soltem as amarras do medo e viajemos com segurança pelo interior de uma sociedade farta de estar em casa, sabendo-se de antemão que os tempos que sobram passam pela tenaz luta contra um inimigo cujo paradeiro é literalmente marcado pela sua invisibilidade. É, no fundo, o assistir a uma peleja desigual visto que do outro lado da trincheira existe um outro guerreiro, com rosto, nós, que foi apanhado na cilada sem que nada o fizesse prever.
Neste subtil contexto, fica o solidário aviso de um ermita que recusa perentoriamente atirar a toalha ao chão porque a vida, sendo efémera, vale a pena ser vivida. Cuidem-se, porque o barco em que navegamos é o da solidariedade e nele jornadeiam ricos, remediados e pobres, logo pronunciemos com firmeza que o momento é de união e não de discórdia, já que o covid-19 bate às mais diversificadas portas, sejam elas a da ostentação ou a da pura humildade!
Neste permanente deambular à volta de uma mesa onde os bens alimentícios são trazidos não só pela minha filha Rita como também pelo meu genro Paulo, hoje, 22 de abril de 2020, o estômago do confinado nutriu-se com um bacalhau feito no forno, cujo paladar foi abençoado com um copo de vinho da região e pão de São Miguel do Pinheiro.
Para compor a refeição fiz uma salada com tomate, pepino e cebola, regada com azeite e vinagre e, por fim, uma laranja. Convém deixar vincado que arranjar todos estes ingredientes comestíveis dá-me um imenso trabalho. Só com a mão esquerda a funcionar, o serviço, parecendo fácil, de facto para mim não o é. Mas pronto, lá puxo pelas ferramentas escondidas e por fim dou graças por mais um obstáculo vencido.
As notícias sobre o covid-19 caem em catadupa. Todo o mundo, o que é absolutamente normal, fala da epidemia. As conversas cruzam-se a uma velocidade estonteante. O medo instalou-se e a sociedade parece martirizada a um confinamento que tarda em conhecer o seu fim.
Reconheço que o covid-19 trouxe uma forma mais real para o ser humano se reencontrar com a veracidade da vida. A monstruosidade de efeitos provocados pela mão do homem neste imenso globo, trouxe catastróficas condições existenciais que levaram a própria Natureza a reclamar a razão pela qual é mãe.
É óbvio que a epidemia conhecida terá tido uma outra razão. Daí a desigualdade conferida na essência da mortalidade. Vejamos: racionalmente conhecemos que os mortos, quase na generalidade, são pessoas cujas idades se situam acima dos 70 anos. É a terceira idade a ver-se confrontada com tamanho mal. Aliás, numa observação atenta no capítulo mundial, verifica-se que os mais idosos são aqueles que sofrem na pele um destino que se apresenta como lógico. Os Lares são espaços que merecem uma maior atenção.
Falando com os meus amigos, pessoas que se situam já casa dos 70, ou próximo desta idade, pois todos na generalidade para lá caminhamos, observo medo neste covid-19. Mostram-se apreensivos e ninguém ousa traçar o caminho do futuro com convicção. Ou seja, projetar o dia de amanhã em segurança. Resguardados em casa limitam-se ao convívio caseiro e nada de visitas. Todos, já com netos, lá vão mendigando a presença dos seus descendentes, todavia, o dever do confinamento e da aproximação lá vai ficando colocada na prateleira dos desejos.
Neste contexto, as notícias não são animadoras. Fiquemos, pois, com a esperança que tudo passará, sabendo-se que nem tudo será como dantes, pelo menos ao dia em que existir uma vacina que “derrube” o maldito covid-19.
Confesso, convictamente, que ninguém é herói nesta epidemia que infelizmente nos flagelou. Nos meus elevados 69 anos conheci as mais díspares situações que fizeram o mundo evoluir. Conheci o mau e o bom. Conheci uma outra guerra em que existia um inimigo com qual lutávamos nas frentes de combate. Sim, estive no conflito armado na Guiné, onde assisti a caóticas situações. Camaradas que morreram, outros estropiados, outros psicologicamente atrofiados, outros que passaram imunes às balas que felizmente lhe passaram ao lado, ou a uma mina que rebentou fora da sua área de ação, ou a um flagelamento ao quartel onde tinha sido depositado, enfim, a malfadada guerra aqui era uma outra.
Mas, atualmente, a guerra é contra um inimigo sem rosto e onde a sua invisibilidade acarreta problemas acrescidos. Tenho medo? Sim, porque os medos aqui são literalmente tidos como incertezas do amanhã.
A minha esperança, que é a de todos, que estes medos que ora nos angustiam sejam convertidos em auréolas de felicidade num futuro que esperamos seja risonho.
__________
Saudades da convivência social
É óbvio que tenho saudades da convivência social e aceita-se que assim o seja. Dos finais de tardes passadas na companhia dos amigos Zé Pardal, um velho companheiro e e também ele camarada da Guiné, Manel Vilão, Fernandes, Léi Marujo, Manel Augusto, Manel Aleixo, Chico do Talho, como é conhecido, Pepe, Correia e Zé Horta, ou do simpático Rui Torres, um rapaz com trissomia 21 que amavelmente se aproxima de nós, sendo a nossa reação de aproximação entendida como profícua, de entre outros companheiros que se juntam connosco à mesa do Café Caixinha, no Bairro de Santa Maria, em Beja, onde a cordialidade do Vítor e da Sandra é digna da nossa afeição, enfim, ali se dispersam um rol de conversas que tempo, já com tempo, dissemina a uma velocidade estonteante.
Tenho também saudades em conduzir o meu carro estrada fora e desbravar os dias solarengos de uma primavera onde o mês da abril nos envia para os tempos em que se conquistou a liberdade no ano de 1974 com a Revolução dos Cravos. Mas este abril nasceu sob o signo do confinamento, um confinamento que aleatoriamente leva o ser humano a um monumental cansaço psicológico reclamando-se laivos de liberdade, não obstante as regras que determinam a razão de o ficar em casa. Todavia, uma luz ao fundo do túnel aconselha-me que lance um grito de “Ipiranga” e soletre calmamente a expressão: quero ser livre, quero abraçar, apertar a mão e beijar, sobretudo os meus netos!
Liberdade
Através dos vidros da janela de um segundo andar vejo movimento, embora limitado, de pessoas em circulação numa rua que acusa uma suprema falta de trânsito. Algumas, poucas, criaturas segurando a trela de animais de estimação, outras com sacos de compras, ou de lixo para jogar para o contentor, outras em carros que se preveem serem gente em trabalho, e eu em casa amarrado ao mui digno conceito que acusa falta de uma liberdade plena.
Olho, atentamente, as fotos dos meus cinco netos que faço questão em manterem-se por perto e à noite contemplo-me com uma videochamada onde nos permite um encontro virtual. Avô e netos reencontram-se à distância porque a liberdade das novas tecnologias permite-nos trocar dois dedos de conversa. Ou quando à socapa vou vê-los, eles na varanda e eu cá em baixo na rua, e com a minha neta Ritinha, na inocência dos seus quatro aninhos, lançando-me o alerta: “avô, vai para casa porque o coronavírus é perigoso”! Tem razão. O avô cumpre.
Com o breu da noite a reclamar descanso parto rumo ao meu leito, seguindo-se uma noite desassossegada por via de um rol de sonhos que teimam em não me aluviar de um stressante dia onde uma imensidade de fantasias me ocorrem amiúde.
Sequioso da liberdade, remeto-me a incentivar o mais incauto cidadão que o tempo que por ora vivemos requer cuidados e sobretudo respeito por nós e pelos outros, porque só assim levaremos no futuro, que se requer próximo, a carta a Garcia.
Soltem as amarras do medo
Neste subtil contexto, fica o solidário aviso de um ermita que recusa perentoriamente atirar a toalha ao chão porque a vida, sendo efémera, vale a pena ser vivida. Cuidem-se, porque o barco em que navegamos é o da solidariedade e nele jornadeiam ricos, remediados e pobres, logo pronunciemos com firmeza que o momento é de união e não de discórdia, já que o covid-19 bate às mais diversificadas portas, sejam elas a da ostentação ou a da pura humildade!
Almoço do confinado
Neste permanente deambular à volta de uma mesa onde os bens alimentícios são trazidos não só pela minha filha Rita como também pelo meu genro Paulo, hoje, 22 de abril de 2020, o estômago do confinado nutriu-se com um bacalhau feito no forno, cujo paladar foi abençoado com um copo de vinho da região e pão de São Miguel do Pinheiro.
Para compor a refeição fiz uma salada com tomate, pepino e cebola, regada com azeite e vinagre e, por fim, uma laranja. Convém deixar vincado que arranjar todos estes ingredientes comestíveis dá-me um imenso trabalho. Só com a mão esquerda a funcionar, o serviço, parecendo fácil, de facto para mim não o é. Mas pronto, lá puxo pelas ferramentas escondidas e por fim dou graças por mais um obstáculo vencido.
As notícias
As notícias sobre o covid-19 caem em catadupa. Todo o mundo, o que é absolutamente normal, fala da epidemia. As conversas cruzam-se a uma velocidade estonteante. O medo instalou-se e a sociedade parece martirizada a um confinamento que tarda em conhecer o seu fim.
Reconheço que o covid-19 trouxe uma forma mais real para o ser humano se reencontrar com a veracidade da vida. A monstruosidade de efeitos provocados pela mão do homem neste imenso globo, trouxe catastróficas condições existenciais que levaram a própria Natureza a reclamar a razão pela qual é mãe.
É óbvio que a epidemia conhecida terá tido uma outra razão. Daí a desigualdade conferida na essência da mortalidade. Vejamos: racionalmente conhecemos que os mortos, quase na generalidade, são pessoas cujas idades se situam acima dos 70 anos. É a terceira idade a ver-se confrontada com tamanho mal. Aliás, numa observação atenta no capítulo mundial, verifica-se que os mais idosos são aqueles que sofrem na pele um destino que se apresenta como lógico. Os Lares são espaços que merecem uma maior atenção.
Falando com os meus amigos, pessoas que se situam já casa dos 70, ou próximo desta idade, pois todos na generalidade para lá caminhamos, observo medo neste covid-19. Mostram-se apreensivos e ninguém ousa traçar o caminho do futuro com convicção. Ou seja, projetar o dia de amanhã em segurança. Resguardados em casa limitam-se ao convívio caseiro e nada de visitas. Todos, já com netos, lá vão mendigando a presença dos seus descendentes, todavia, o dever do confinamento e da aproximação lá vai ficando colocada na prateleira dos desejos.
Neste contexto, as notícias não são animadoras. Fiquemos, pois, com a esperança que tudo passará, sabendo-se que nem tudo será como dantes, pelo menos ao dia em que existir uma vacina que “derrube” o maldito covid-19.
Os medos
Confesso, convictamente, que ninguém é herói nesta epidemia que infelizmente nos flagelou. Nos meus elevados 69 anos conheci as mais díspares situações que fizeram o mundo evoluir. Conheci o mau e o bom. Conheci uma outra guerra em que existia um inimigo com qual lutávamos nas frentes de combate. Sim, estive no conflito armado na Guiné, onde assisti a caóticas situações. Camaradas que morreram, outros estropiados, outros psicologicamente atrofiados, outros que passaram imunes às balas que felizmente lhe passaram ao lado, ou a uma mina que rebentou fora da sua área de ação, ou a um flagelamento ao quartel onde tinha sido depositado, enfim, a malfadada guerra aqui era uma outra.
Mas, atualmente, a guerra é contra um inimigo sem rosto e onde a sua invisibilidade acarreta problemas acrescidos. Tenho medo? Sim, porque os medos aqui são literalmente tidos como incertezas do amanhã.
A minha esperança, que é a de todos, que estes medos que ora nos angustiam sejam convertidos em auréolas de felicidade num futuro que esperamos seja risonho.
__________
Nota do editor:
Último poste da série > 16 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20979: Os nossos seres, saberes e lazeres (392): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (4) (Mário Beja Santos)
Último poste da série > 16 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20979: Os nossos seres, saberes e lazeres (392): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (4) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P20998: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2020:
Queridos amigos,
Dá-se sequência a um conjunto de esboços de um romance que não chegou a ver a luz do dia, houve um baralhar e dar de novo, a partir de 2006, quando voltei à fala com o Luís Graça, e me comprometi a pôr por escrito o meu diário, deixei no limbo todos os projetos anteriores, seja o que vivi na experiência açoriana, seja na ficção que me ocorreu, e ponho as mãos sobre os livros sagrados como magiquei estes amores que culminaram na Rua do Eclipse. E confesso que me dá prazer rememorar este projeto e as pessoas que o envolviam, reais ou ficcionadas, e que nem lhes passa pela cabeça como estão a ser movimentadas nestes tilintares de memória.
Continuemos, era suposto haver muitíssimo ainda mais para dizer.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Paulo Guilherme, agradeço-lhe os seus telefonemas, são sempre bem-vindos, são esclarecedores do que pretende para o arranjo do romance que está a organizar, espero não o dececionar com a minha colaboração. Estudei vários meses em Lisboa, para dominar com fluência o português, antes do 25 de Abril frequentei um curso de férias na Faculdade de Letras, nessa altura já trabalhava como intérprete, usando as minhas línguas nativas, o francês e o neerlandês, mais o alemão e o inglês, só mais tarde me decidi pelo espanhol e o português. Foi nos estudos em Lisboa que me apercebi da profundidade da vossa cultura, e pode imaginar a alegria que senti há alguns anos atrás, precisamente na Europália 1991, dedicada a Portugal, passei fins de semana nas vossas exposições em várias cidades da Bélgica. Consegui a custo entrada para a exposição do Triunfo do Barroco, no Museu Nacional das Belas-Artes, fiquei abismada com a sumptuosidade das obras apresentadas, já conhecia o Museu dos Coches, mas aquelas carruagens que D. João V mandou ao Papa, ainda por cima bem restauradas, foi um assombro. Estive também na exposição De Goa a Lisboa, visitei-a antes do Natal desse ano, também guardei o catálogo, estava perto do Museu Nacional das Belas-Artes, no Banque Bruxelles Lambert, dedicado à arte indo-portuguesa dos séculos XVI a XVIII, não sabia da importância de S. Francisco Xavier, de toda aquela arte religiosa em marfim, os cofres, os relicários, as imagens dos santos, as alfaias religiosas, os paramentos e até o mobiliário, foi outra completa surpresa, a vossa presença no Oriente deu aquela síntese com as tradições milenares indianas.
Não deixo de refletir como nós, os europeus, que caminhamos para uma maior aproximação do nosso destino comum, temos uma irradiação universal: os portugueses em África, no Brasil e em regiões do Índico, até na China e no Japão; os espanhóis no continente americano; sabemos por onde se fixaram os britânicos e os franceses; assimilámos a cultura greco-latina e as suas desvairadas proveniências; aos holandeses, não podemos subestimar a sua presença comercial em dois oceanos; e se virmos com atenção, os povos nórdicos também se espalharam, misturando-se com eslavos, procurando até conquistá-los. Somos um continente com algumas fronteiras bem precisas mas temos o privilégio de todos estes cruzamentos, em todos os continentes. Tomei nota da sua observação das imisções culturais do que é hoje a Bélgica, a nossa arquitetura é por um lado genuinamente flamenga e francesa. Mas há o passado, e gostei muito que me tivesse falado de Saint-Géry, temos vestígios da presença romana, o bairro era percorrido pelo rio Senne que, como bem sabe, foi todo abobadado do século XIX para o século XX, quando Bruxelas perdeu o ar medieval e passou a ter um traçado urbanístico de grandes boulevards. Ainda bem que gostou da requalificação do Mercado de Saint-Géry, terei muito gosto de na sua próxima viagem irmos lá tomar uma bebida.
Percebo o seu fascínio pela cidade. Não é por acaso que eu vivo aqui, neste ponto central, permita-me que lhe fale um pouco da minha história. Sou de origem judia, o meu pai chegou a ser dirigente do Partido Comunista da Bélgica, foi preso quando as tropas alemãs aqui chegaram. Nasci em 1944, em Marolles. Maman, de nome Juliette, deu-me à luz na comuna de Ixelles, no exato momento em que os alemães procuravam os últimos judeus para os recambiar para Leste, não havia ilusões de que era para os exterminar. O meu pai falou com um casal católico de Marolles, eu fui para lá e registada com o nome deles. Maman e a minha meia-irmã de seis anos, Ester, conseguiram, através de uma viagem audaciosa, chegar à Suécia, regressaram em julho de 1945. O meu pai ficou muito combalido pelo que passou na prisão, voltou ao ensino e foi com muita dor que assistiu ao definhamento do Partido Comunista, morreu amargurado. Tive bolsas de estudo, muito cedo descobri esta inclinação para as línguas, parece ser uma propensão natural dos judeus. Como o Paulo Guilherme, gosto muito de Arte e percorrer os mercados de velharias. Ciente de que nos encontraremos mais vezes, pelas razões do seu livro, vou preparar um roteiro com alguns passeios, por exemplo, há visitas guiadas a Marolles e a Saint-Gilles, há os passeios Arte-Nova, temos quase cem museus para visitar, é tudo uma questão de tempo e disponibilidade. Durante aquele nosso almoço referi-lhe que sou obrigada a constantes deslocações, embora uma boa parte da minha vida se passe nos bairros Léopold e Europeu, reuniões da Comissão e do Parlamento, vou ao Luxemburgo, há as conferências internacionais de todos os Estados-membros, dão-me jeito por causa das ajudas de custo, tenho muitas vezes os fins de semana tomados. Mas tudo se há de conciliar para conversarmos, ainda bem que gosta de passear, a minha mãe vive na comuna de Saint-Josse, depois de Madou, numa pequena moradia na Avenida Georges Pêtre, vamos buscá-la, podemos ir até Waterloo, que me disse que não conhece, será o nosso primeiro passeio.
Falemos agora do seu trabalho, vamos deixar essa paixão ficcionada para mais tarde. Há aqui uma mistura entre a realidade e a ficção, como aliás me tem observado nas conversas telefónicas, e não lhe quero esconder o assombro que me provoca aquelas descrições da sua guerra colonial. Como me pede sugestões, gostava muito que o Paulo Guilherme me descrevesse as razões que o levaram a decidir ir à guerra, já que era contra ela. Não entendi bem o que me disse que rapidamente se aclimatou a viver muito bem com a população e com os seus soldados, não percebi se havia um quartel de um lado e um aglomerado de habitações nativas ali perto, pelo que me descreve parece que tudo se mistura. Parecendo que não, esse seu esclarecimento pode tornar, permita-me a apreciação, o seu relato mais interessante e aproximativo entre o tal português que vem trabalhar a Bruxelas e que se rende incondicionalmente de amores por uma mulher que tem o seu coração livre mas quer saber tudo sobre o passado dele, quer entender como aquela guerra tão violenta lhe mudou a vida, como ele tão insistentemente proclama.
Não se esqueça de me confirmar os seus planos de viagem. Os seus telefonemas são recebidos com o maior agrado, acredite, mas se possível telefone-me sempre antes das dez horas, não se esqueça que há vezes em que saio de casa às cinco e meia da manhã, quando vou trabalhar no Luxemburgo. Bem para si, muito bem para si, Annette.
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20975: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (2): A funda que arremessa para o fundo da memória
Queridos amigos,
Dá-se sequência a um conjunto de esboços de um romance que não chegou a ver a luz do dia, houve um baralhar e dar de novo, a partir de 2006, quando voltei à fala com o Luís Graça, e me comprometi a pôr por escrito o meu diário, deixei no limbo todos os projetos anteriores, seja o que vivi na experiência açoriana, seja na ficção que me ocorreu, e ponho as mãos sobre os livros sagrados como magiquei estes amores que culminaram na Rua do Eclipse. E confesso que me dá prazer rememorar este projeto e as pessoas que o envolviam, reais ou ficcionadas, e que nem lhes passa pela cabeça como estão a ser movimentadas nestes tilintares de memória.
Continuemos, era suposto haver muitíssimo ainda mais para dizer.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Paulo Guilherme, agradeço-lhe os seus telefonemas, são sempre bem-vindos, são esclarecedores do que pretende para o arranjo do romance que está a organizar, espero não o dececionar com a minha colaboração. Estudei vários meses em Lisboa, para dominar com fluência o português, antes do 25 de Abril frequentei um curso de férias na Faculdade de Letras, nessa altura já trabalhava como intérprete, usando as minhas línguas nativas, o francês e o neerlandês, mais o alemão e o inglês, só mais tarde me decidi pelo espanhol e o português. Foi nos estudos em Lisboa que me apercebi da profundidade da vossa cultura, e pode imaginar a alegria que senti há alguns anos atrás, precisamente na Europália 1991, dedicada a Portugal, passei fins de semana nas vossas exposições em várias cidades da Bélgica. Consegui a custo entrada para a exposição do Triunfo do Barroco, no Museu Nacional das Belas-Artes, fiquei abismada com a sumptuosidade das obras apresentadas, já conhecia o Museu dos Coches, mas aquelas carruagens que D. João V mandou ao Papa, ainda por cima bem restauradas, foi um assombro. Estive também na exposição De Goa a Lisboa, visitei-a antes do Natal desse ano, também guardei o catálogo, estava perto do Museu Nacional das Belas-Artes, no Banque Bruxelles Lambert, dedicado à arte indo-portuguesa dos séculos XVI a XVIII, não sabia da importância de S. Francisco Xavier, de toda aquela arte religiosa em marfim, os cofres, os relicários, as imagens dos santos, as alfaias religiosas, os paramentos e até o mobiliário, foi outra completa surpresa, a vossa presença no Oriente deu aquela síntese com as tradições milenares indianas.
Não deixo de refletir como nós, os europeus, que caminhamos para uma maior aproximação do nosso destino comum, temos uma irradiação universal: os portugueses em África, no Brasil e em regiões do Índico, até na China e no Japão; os espanhóis no continente americano; sabemos por onde se fixaram os britânicos e os franceses; assimilámos a cultura greco-latina e as suas desvairadas proveniências; aos holandeses, não podemos subestimar a sua presença comercial em dois oceanos; e se virmos com atenção, os povos nórdicos também se espalharam, misturando-se com eslavos, procurando até conquistá-los. Somos um continente com algumas fronteiras bem precisas mas temos o privilégio de todos estes cruzamentos, em todos os continentes. Tomei nota da sua observação das imisções culturais do que é hoje a Bélgica, a nossa arquitetura é por um lado genuinamente flamenga e francesa. Mas há o passado, e gostei muito que me tivesse falado de Saint-Géry, temos vestígios da presença romana, o bairro era percorrido pelo rio Senne que, como bem sabe, foi todo abobadado do século XIX para o século XX, quando Bruxelas perdeu o ar medieval e passou a ter um traçado urbanístico de grandes boulevards. Ainda bem que gostou da requalificação do Mercado de Saint-Géry, terei muito gosto de na sua próxima viagem irmos lá tomar uma bebida.
Percebo o seu fascínio pela cidade. Não é por acaso que eu vivo aqui, neste ponto central, permita-me que lhe fale um pouco da minha história. Sou de origem judia, o meu pai chegou a ser dirigente do Partido Comunista da Bélgica, foi preso quando as tropas alemãs aqui chegaram. Nasci em 1944, em Marolles. Maman, de nome Juliette, deu-me à luz na comuna de Ixelles, no exato momento em que os alemães procuravam os últimos judeus para os recambiar para Leste, não havia ilusões de que era para os exterminar. O meu pai falou com um casal católico de Marolles, eu fui para lá e registada com o nome deles. Maman e a minha meia-irmã de seis anos, Ester, conseguiram, através de uma viagem audaciosa, chegar à Suécia, regressaram em julho de 1945. O meu pai ficou muito combalido pelo que passou na prisão, voltou ao ensino e foi com muita dor que assistiu ao definhamento do Partido Comunista, morreu amargurado. Tive bolsas de estudo, muito cedo descobri esta inclinação para as línguas, parece ser uma propensão natural dos judeus. Como o Paulo Guilherme, gosto muito de Arte e percorrer os mercados de velharias. Ciente de que nos encontraremos mais vezes, pelas razões do seu livro, vou preparar um roteiro com alguns passeios, por exemplo, há visitas guiadas a Marolles e a Saint-Gilles, há os passeios Arte-Nova, temos quase cem museus para visitar, é tudo uma questão de tempo e disponibilidade. Durante aquele nosso almoço referi-lhe que sou obrigada a constantes deslocações, embora uma boa parte da minha vida se passe nos bairros Léopold e Europeu, reuniões da Comissão e do Parlamento, vou ao Luxemburgo, há as conferências internacionais de todos os Estados-membros, dão-me jeito por causa das ajudas de custo, tenho muitas vezes os fins de semana tomados. Mas tudo se há de conciliar para conversarmos, ainda bem que gosta de passear, a minha mãe vive na comuna de Saint-Josse, depois de Madou, numa pequena moradia na Avenida Georges Pêtre, vamos buscá-la, podemos ir até Waterloo, que me disse que não conhece, será o nosso primeiro passeio.
Falemos agora do seu trabalho, vamos deixar essa paixão ficcionada para mais tarde. Há aqui uma mistura entre a realidade e a ficção, como aliás me tem observado nas conversas telefónicas, e não lhe quero esconder o assombro que me provoca aquelas descrições da sua guerra colonial. Como me pede sugestões, gostava muito que o Paulo Guilherme me descrevesse as razões que o levaram a decidir ir à guerra, já que era contra ela. Não entendi bem o que me disse que rapidamente se aclimatou a viver muito bem com a população e com os seus soldados, não percebi se havia um quartel de um lado e um aglomerado de habitações nativas ali perto, pelo que me descreve parece que tudo se mistura. Parecendo que não, esse seu esclarecimento pode tornar, permita-me a apreciação, o seu relato mais interessante e aproximativo entre o tal português que vem trabalhar a Bruxelas e que se rende incondicionalmente de amores por uma mulher que tem o seu coração livre mas quer saber tudo sobre o passado dele, quer entender como aquela guerra tão violenta lhe mudou a vida, como ele tão insistentemente proclama.
Não se esqueça de me confirmar os seus planos de viagem. Os seus telefonemas são recebidos com o maior agrado, acredite, mas se possível telefone-me sempre antes das dez horas, não se esqueça que há vezes em que saio de casa às cinco e meia da manhã, quando vou trabalhar no Luxemburgo. Bem para si, muito bem para si, Annette.
Les Halles de Saint-Géry
Interior de Les Halles de Saint-Géry
Annette foi trabalhar para Antuérpia e manda uma imagem da Grand-Place
Imagens da Feira da Ladra de Bruxelas, Place du Jeu de Balle
Num bairro típico de Bruxelas, Marolles
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20975: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (2): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P20997: Parabéns a você (1806): Luciano Jesus, ex-Fur Mil Art da CART 3494 (Guiné, 1971/74)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 19 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20989: Parabéns a você (1805): Joaquim Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74) e Xico Allén, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 19 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20989: Parabéns a você (1805): Joaquim Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74) e Xico Allén, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1972/74)
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Guiné 61/74 - P20996: Memória dos lugares (408): Ponte Alferes Nunes, sobre o Rio Costa Pelundo na Região de Cacheu (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf)
1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem,
1969/71) com data de 19 de Maio de 2020:
Olá Carlos
Dado que recolhi mais elementos sobre a Ponte Alferes Nunes existente sobre o rio Costa Pelundo, região do Cacheu, fiz um vídeo para que os tertulianos tomem conhecimento na sequência do que muito já se escreveu no blogue sobre a obra de arte da Engenharia nos posts: P2275; P3743; P4364; P4381; P4382 e P9625 e com certeza mais alguns.
Aqui vai o link da minha página Jumbembem do Youtube onde tenho mais vídeos alojados sobre a Guiné: https://youtu.be/Acp92_WHSvs - 2020-05 Guiné-Bissau - Ponte Alferes Nunes – História
A designação de Ponte Alferes Nunes (Alferes José Nunes) militar português, Administrador da região do Cacheu na Guiné no início do Séc. XX e que numa batalha contra os naturais daquela terra, que se travou nas proximidades da travessia do rio Costa Pelundo, acabou por falecer e daí ter ficado conhecida a ponte aí existente com o seu nome.
Presumo que tal designação nunca foi oficializada.
Abraço
Carlos Silva
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20863: Memória dos lugares (407): Cuntima: a hortinha da CCAÇ 14 (1969/71) (Eduardo Estrela)
Olá Carlos
Dado que recolhi mais elementos sobre a Ponte Alferes Nunes existente sobre o rio Costa Pelundo, região do Cacheu, fiz um vídeo para que os tertulianos tomem conhecimento na sequência do que muito já se escreveu no blogue sobre a obra de arte da Engenharia nos posts: P2275; P3743; P4364; P4381; P4382 e P9625 e com certeza mais alguns.
Aqui vai o link da minha página Jumbembem do Youtube onde tenho mais vídeos alojados sobre a Guiné: https://youtu.be/Acp92_WHSvs - 2020-05 Guiné-Bissau - Ponte Alferes Nunes – História
A designação de Ponte Alferes Nunes (Alferes José Nunes) militar português, Administrador da região do Cacheu na Guiné no início do Séc. XX e que numa batalha contra os naturais daquela terra, que se travou nas proximidades da travessia do rio Costa Pelundo, acabou por falecer e daí ter ficado conhecida a ponte aí existente com o seu nome.
Presumo que tal designação nunca foi oficializada.
Abraço
Carlos Silva
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20863: Memória dos lugares (407): Cuntima: a hortinha da CCAÇ 14 (1969/71) (Eduardo Estrela)
Guiné 61/74 - P20995: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (72): Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida! (José Martins)
1. Mais um excelente trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude,
1968/70), enviado ao Blogue em mensagem de 2 de Maio de 2020, subordinado ao tema "Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!", que nos traz alguns esclarecimentos/informações sobre as sepulturas dos nossos militares caídos em campanha na I Grande Guerra e Guerra do Ultramar, espalhadas em cemitérios por todo o mundo e, sobre as trasladações dos restos mortais levadas a efeito durante e depois das guerras terminadas.
Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!
Até às Lutas Liberais, em 1834, os soldados mortos nas batalhas ficavam insepultos, acabando mais tarde, pela generosidade das populações, por serem sepultados em valas comuns.
No caso das mortes ocorridas, no então Ultramar, a morte dava-se em território nacional; os soldados morriam pelo Rei, depois pela Republica, e mais tarde em nome de Portugal; portanto ficavam enterrados em solo Pátrio. Só a pedido e a custas da família, seriam trasladados.
O texto escrito, vai já para oito anos, sob o título "Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!", refere, no terceiro post [*] publicado no blogue, alguma da legislação que havia e que ao longo dos anos da guerra foi sendo alterada, além da forma como deviam ser tratados os corpos dos que tombaram.
Até a instauração do Regime Liberal, os mortos civis, militares ou eclesiásticos eram sepultados nas criptas das igrejas, ou, os nobres ou mais abastados, teriam o seu lugar em túmulos nas igrejas ou panteões, construídos ou adaptados para o efeito.
É pelo Decreto de 21 de Setembro de 1835, que o rei ordena a construção de cemitérios em todas as localidades mas, perante a continuidade do uso, já ancestral, de sepultar dentro das igrejas, por Decreto do Governo datado de 28 de Setembro de 1844, é imposto à população a proibição de sepultamento no interior das igrejas, e novas normas sobre os locais de enterramento.
É a altura de se iniciar a construção de cemitérios, primeiro nas imediações dos templos e, mais tarde, fora das localidades. É por esta altura que foi emitida uma Circular do Ministério do Reino, datada de 16 de Dezembro de 1890, que traz novas orientações a esta matéria. Só volta a aparecer nova legislação o Decreto 44220 de 03/03/1962 e o Decreto-lei 48770 de 18/12/1968.
Procurei estas peças legislativas, na tentativa de encontrar algo acerca das sepulturas dos militares que, tombados em África durante as últimas campanhas (1961/1974), foram trasladados para a Metrópole. Tinha a ideia de que essas sepulturas seriam perpétuas, não existindo o levantamento das ossadas dos mesmos, mas vim a constatar que, em vários locais, havia militares inumados desde a sua chegada, enquanto outros tinham sido trasladados para ossários ou, mesmo, os seus restos mortais tinham sido dados como abandonados.
Apesar dos cemitérios serem construídos a distância considerada bastante, para se manterem a certa distância das localidades, algumas foram crescendo e expandido a sua malha urbana, que acabaram os cemitérios por ficar envolvidos pelas habitações.
O espaço que, inicialmente, se vendia a título perpétuo, foi escasseando, uma vez que muitas famílias adquiriam o terreno para que se perpetuasse nas famílias e nelas se reunissem as futuras gerações, e faltavam terrenos que favorecessem o seu alargamento.
O Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, define os termos para a elaboração dos regulamentos de funcionamento dos cemitérios, fossem administrados pelas Juntas de Freguesia ou Municípios, sendo estabelecidos os emolumentos para os serviços a prestar por aquelas estruturas.
Mesmo que, nesses cemitérios, haja talhões e/ou campas privativas de organizações ou associações civis ou irmandades religiosas, essas ficavam sujeitas aos regulamentos instituídos, assim como ao pagamento das taxas a aplicar.
O caso que nos foi apresentado, para comentar, é o seguinte:
No cemitério paroquial de uma freguesia, existia um local onde foi inumado o corpo de um militar, natural ou residente na freguesia, em 1967. É muito provável que tenham destinado parte do terreno anexo para, eventualmente, serem inumados outros militares tombados no Ultramar. Até ao final da guerra só houve, nessa freguesia e com enterramento nesse espaço do cemitério local, mais um combatente, em 1968.
Constava que esse espaço, era um talhão pertença das Forças Armadas. Não tenho conhecimento de que tal aconteça, na medida em que os talhões privativos que existem nos cemitérios, são cedidos a Associações de Bombeiros, Liga dos Combatentes ou confissões religiosas que não católicas e, todos eles, além de cumprir as normas do próprio cemitério, cumprem, também, as normas da entidade a quem foram cedidas a título perpetuo ou temporal.
Estava em curso a Guerra do Ultramar e, desde sempre foram consideradas parte integrante do território nacional, tese defendida durante a Monarquia e a Republica, razão pela qual o país travou as Campanhas de Ocupação, entrou na Grande Guerra e reforçou os territórios durante a II Grande Guerra. Por igual razão respondeu aos Movimentos de Libertação guarnecendo, entre 1961 e 1974, com mais de um milhão de militares aqueles territórios
É provável que, após o primeiro funeral em 1967, tenha havido a intenção de se proporcionar um local com alguma dignidade, não só a este, mas aos que eventualmente “fossem escolhidos pela morte”, um local onde ficassem todos juntos, seguindo o lema de “unidos na guerra, unidos na paz”.
Se anotarmos as causas das mortes ocorridas, no caso do Exército, nos Teatros de Operações – Angola, Guiné e Moçambique – vamos encontrar muitas causas, causas essas que ocorrem muitas vezes numa sociedade civil: doença, com as mais variadas causas; acidentes, desde os de viação, em ambiente ferroviário, até aos de aviação, porque havia transporte de tropas de uma zona para outra; afogamentos, em rios ou mar; e outras causas, que podiam ser comparados a “acidentes de trabalho” como queda do cimo de árvores, electrocussão, queimaduras nas cozinhas ou na trasfega de líquidos inflamáveis, etc. As outras causas, mais violentas, foram os mortos em combate e os acidentados com arma de fogo.
Se, nas causas apontadas na primeira abordagem, podiam provocar deformações no corpo dos combatentes, as segundas, as mais violentas, poderiam provocar, não só deformações muito acentuadas, como até a sua dispersão.
Durante o tempo em que a guerra durou, e mesmo para além desse tempo, houve como que um pacto de silêncio entre os que lá estiveram. Porque, no regresso, era tempo de esquecer; era tempo de reavaliar os projectos que se tinham, de acordo com as perspectivas que nos se apresentavam; era tempo de voltar a aprender a viver. Mesmo entre os que lá estiveram, levaram muito tempo a abrir o “baú”, e começar a partilhar memórias, vivências e factos.
E quando os “baús” se foram abrindo, foi com alguma discrição. Cada um ia retirando aquilo que era menos doloroso; aquilo que estava já mais assumido; aquilo que não colocasse em risco a memória dos camaradas. Ou seja: vai surgindo, para os que estavam ávidos de “bombas relógio a explodir”, aquilo que não dava para um estoiro de bomba de santos populares.
Só havia uma possibilidade: abrir os baús que se mantinham fechados. Aqueles que chegaram entre lágrimas e gritos sufocados e encerrados a sete palmos abaixo do chão. Foi uma “corrida” desenfreada. Todos, os que não estiveram na guerra e que não tinham ninguém entre os que tombaram, queriam arrancar “esqueletos do armário”, para “reabilitar a verdade”…
Muitas urnas não continham partes ósseas identificáveis. Continham pequenos fragmentos e pedras. Tudo o resto já tinha desaparecido. Outras, a parte óssea, apenas.
Faltavam a muitos o conhecimento do que é a “pensão de sangue”.
Não é um prémio, não é uma condecoração, não é uma reparação. Muitos dos que a receberam, preferiam mil vezes não a ter recebido. A “pensão de sangue” que, com outra designação já existia há muito tempo no nosso país, era uma reparação, pequena e muitas vezes simbólica, para tentar suavizar as necessidades, não a dor, daqueles que tinham perdido alguém na guerra: viúvos, filhos e pais.
Mas havia, e assim continua a haver, pressupostos que são indispensáveis para a sua concessão seja possível.
Um documento que justifique o infausto acontecimento, as condições em que ocorreu e, mais importante para a família, um corpo. Sem o corpo, não há morte; sem o corpo não há luto; sem o corpo, não há enterro.
Não há ninguém, desde o soldado ao general, que não saiba que a guerra vai gerar mortos; mas não há ninguém, desde o general ao soldado, que o deseje.
Pelos pressupostos citados, quando havia uma morte mais violenta, causada por engenhos explosivos, em que os corpos se tornavam irreconhecíveis, que todos tentavam que nada ficasse na terreno, buscando e recolhendo num espaço único, o que restava de camaradas seus, de que só saberiam a quantidade e identidade, após a chamada aos presentes. Muitos não responderam à chamada, não porque não estivessem vivos, mas porque tinham sido aprisionados.
A tropa, no seu sentido mais genérico, não formava especialistas em todos os serviços de que necessitava. Muito menos nos serviços funerários.
Não pretendo historiar os casos que real e/ou hipoteticamente aconteceram, ampliados por uma comunicação social que procura “manchetes bombásticas”, esquecendo que, para que muitas famílias não ficassem desamparadas, foram dados como mortos muitos militares que, mais tarde se veio a verificar estarem prisioneiros. Se surgissem dúvidas, caso fosse feita uma declaração de desaparecimento, anos levaria a que os mesmos fossem considerados “desaparecidos” ou “falecidos” por um tribunal. Isto sem colocar a hipótese de o juiz que julgasse o caso, decidisse considerar o militar “desaparecido” como desertor, por insuficiência de provas.
Que estes parágrafos, ou notas, não sejam consideradas “libelo”, nem de acusação nem de defesa de ninguém. A guerra é feita por humanos, e por isso é cruel e imperfeita.
Portugal, desde a sua fundação até à actualidade, esta mesma actualidade que estamos a viver, sempre teve mortes geradas pelas mais diversas razões.
Poderia terminar, aqui e agora, o texto que estou a redigir, mas, mais uma nota que se prende com os que ficaram, e outra com os que ainda estão entre nós.
Após a Grande Guerra, houve alguns concelhos que pensaram em trasladar e juntar num único local, os seus mortos. Rápido se constatou que seria uma operação que, além de dispendiosa era quase impraticável. Havia militares sepultados por vários cemitérios de vários países, onde se tinham dado os combates. Muitos estariam “desaparecidos” ou mal identificados.
Foi então que, e pela primeira vez, os estados promoveram a construção de Cemitérios Nacionais, reunindo num só local os seus militares mortos.
É criada a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra que entre o ano de 1924 e 1938, através do Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro, composta por oficiais do Exército e com a colaboração do Cônsul Português, em Arras, Louis Lantoine, reúne no Cemitério de Richebourg, os corpos de 1831 militares (238 não estão identificados) e provenientes dos cemitérios franceses de Le Touret, Ambleteuse, Brest, e Tournai (Bélgica) e os corpos dos militares que morreram na Alemanha, durante o cativeiro. Não foi possível trasladar todos os corpos para Richebourg, havendo campas de militares portugueses na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Inglaterra, não só por questões sanitárias mas, também, por constrangimentos orçamentais. Para substituir as cruzes que ficavam nas cabeceiras das campas, foram colocadas lápides que apenas indicam o nome dos combatentes, quando conhecido.
Em 4 de Fevereiro de 1966, aprovadas que foram as "Normas Reguladoras de Trasladação de Ossadas de Militares", estabelecendo a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares, da Metrópole e Ilhas, falecidos no então ultramar, as trasladações poderiam ser efectuadas, ou a pedido das famílias a quem seriam entregues ou, por outro lado, por iniciativa do Exército que, neste caso, as recolheria num Ossário Militar Central, localizado em Lisboa. Os militares falecidos dos então Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, teriam também, em cada ex-província, o seu Ossário em local a definir, provavelmente, nas respectivas capitais.
Os Ossários não saíram do papel e, por isso mesmo, foi sendo protelado o cumprimento das normas aprovadas e, oito anos após a sua aprovação, quando chegou a altura de iniciar as negociações de paz, ninguém, quer os militares que tinham tomado a decisão e aprovado as normas, quer os militares que tinham assumido o poder, nem sequer se “lembraram” de que, sob a terra que pisavam, estavam os corpos de militares que aguardavam a sua trasladação.
Agora, mais de quarenta anos depois de ter terminado a guerra, os que foram e regressaram, os combatentes, é que não esquecemos os camaradas que lá ficaram e temos uma ténue ideia das condições em que estarão as suas campas. Na altura o Estado Português podia delegar no Exército a tarefa de trasladar os mortos, mas presentemente é quase impraticável. Os antigos territórios são hoje países independentes; têm os seus governantes, que já não são os que negociaram a independência; as regras do jogo são diferentes e, as leis que regulam esta matéria, também já não são as mesmas. Hoje só é possível proceder a uma trasladação, caso a caso, e por decisão de cada família, tomar a decisão de abrir o processo.
Os pais dos nossos camaradas que tombaram, muitos já não existem ou já terão uma idade avançada; os outros familiares dos que caíram – viúvas, filhos, irmãos – que tomaram a decisão de recuperar os restos mortais dos seus entes queridos e puderam, já os foram lá recolher, apesar dos custos financeiros e de alguns desagradáveis casos, pois só procediam à exumação na presença dos mesmos, quando pensavam que estariam já na capital do antigo território, e ali tratariam de tudo.
Apesar de não ser essa a vontade, senão de todos, dum a grande parte dos combatentes, os nossos camaradas ficarão por lá, juntando o seu destino ao de muitos outros combatentes, que tombaram, ao longo dos séculos, em África.
Como última questão, mas não menos importante, é o número de combatentes que ainda se encontram entre nós. Não só o seu número, mas também a sua distribuição geográfica, etária e condições de vida, a fim de que, quem entregou a sua juventude à Pátria, agora pudesse receber o apoio, e não só o agradecimento, de que é credor. Quantos somos, efectivamente? Como se poderá obter essa informação?
Pois bem.
Nem todos os combatentes são membros da Liga dos Combatentes; muitos nunca se inscreveram na mesma, por não encontrarem razões para tal; outros nem sequer imaginam fazê-lo. Portanto, por aqui, não é o caminho.
Talvez fosse possível obter esse número através dos pagamentos efectuados pela Caixa Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações ou outros organismos (bancários, advogados, etc), mas estariam em falta os oficiais e sargentos do quadro permanente assim como as forças de segurança, assim como os combatentes que optaram pela emigração e por lá se encontram.
Poderia ser através das Associações de Combatentes, de âmbito local ou nacional mas, nem todos os combatentes estarão inscritos nessas associações e, alguns, poderão estar inscritos em mais do que uma associação.
As autarquias poderiam dar uma ajuda (sugestão que vi no facebook), mas não teriam pessoal para desenvolver um trabalho destes, mesmo com a ajuda de voluntários e, não sei se o poderiam fazer. Mantêm as listagens para as eleições, que não referem se o eleitor foi ou não combatente. Nas localidades com mais habitantes, muitos residentes nem sequer são conhecidos dos autarcas eleitos.
Como no próximo ano (2021) é ano dedicado aos censos da população. Poderia ser uma oportunidade mas, neste momento é tarde. Os folhetos do recenseamento já foram aprovados e não são susceptíveis de serem alterados.
Mesmo que pudessem, será que todos responderiam? Muitos combatentes não revelariam esse facto ou mesmo o ocultaria por questões pessoais.
Além do mais, existe desde 1994, uma Comissão Nacional de Protecção de Dados que colocaria decerto algumas objecções.
Perece que, como até agora, só podemos basear-nos em “projecções”, porque o direito à privacidade impede que, por muito boa vontade de muitos, possamos acudir com o necessário para que muitos camaradas nossos possam terminar os seus dias com a dignidade que todo o ser humano – homem ou mulher, velho ou novo – merecem.
[*]
4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)
e
6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)
José Marcelino Martins
Odivelas, 1 de Maio de 2020
____________
Nota do editor
Último poste da série de 28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)
Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!
Monumento ao Valor do Infante, em Mafra
Até às Lutas Liberais, em 1834, os soldados mortos nas batalhas ficavam insepultos, acabando mais tarde, pela generosidade das populações, por serem sepultados em valas comuns.
No caso das mortes ocorridas, no então Ultramar, a morte dava-se em território nacional; os soldados morriam pelo Rei, depois pela Republica, e mais tarde em nome de Portugal; portanto ficavam enterrados em solo Pátrio. Só a pedido e a custas da família, seriam trasladados.
O texto escrito, vai já para oito anos, sob o título "Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!", refere, no terceiro post [*] publicado no blogue, alguma da legislação que havia e que ao longo dos anos da guerra foi sendo alterada, além da forma como deviam ser tratados os corpos dos que tombaram.
Até a instauração do Regime Liberal, os mortos civis, militares ou eclesiásticos eram sepultados nas criptas das igrejas, ou, os nobres ou mais abastados, teriam o seu lugar em túmulos nas igrejas ou panteões, construídos ou adaptados para o efeito.
É pelo Decreto de 21 de Setembro de 1835, que o rei ordena a construção de cemitérios em todas as localidades mas, perante a continuidade do uso, já ancestral, de sepultar dentro das igrejas, por Decreto do Governo datado de 28 de Setembro de 1844, é imposto à população a proibição de sepultamento no interior das igrejas, e novas normas sobre os locais de enterramento.
É a altura de se iniciar a construção de cemitérios, primeiro nas imediações dos templos e, mais tarde, fora das localidades. É por esta altura que foi emitida uma Circular do Ministério do Reino, datada de 16 de Dezembro de 1890, que traz novas orientações a esta matéria. Só volta a aparecer nova legislação o Decreto 44220 de 03/03/1962 e o Decreto-lei 48770 de 18/12/1968.
Procurei estas peças legislativas, na tentativa de encontrar algo acerca das sepulturas dos militares que, tombados em África durante as últimas campanhas (1961/1974), foram trasladados para a Metrópole. Tinha a ideia de que essas sepulturas seriam perpétuas, não existindo o levantamento das ossadas dos mesmos, mas vim a constatar que, em vários locais, havia militares inumados desde a sua chegada, enquanto outros tinham sido trasladados para ossários ou, mesmo, os seus restos mortais tinham sido dados como abandonados.
Apesar dos cemitérios serem construídos a distância considerada bastante, para se manterem a certa distância das localidades, algumas foram crescendo e expandido a sua malha urbana, que acabaram os cemitérios por ficar envolvidos pelas habitações.
O espaço que, inicialmente, se vendia a título perpétuo, foi escasseando, uma vez que muitas famílias adquiriam o terreno para que se perpetuasse nas famílias e nelas se reunissem as futuras gerações, e faltavam terrenos que favorecessem o seu alargamento.
Entrada do Cemitério de Santo António do Carrascal, Leiria
Inaugurado em 1871
O Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, define os termos para a elaboração dos regulamentos de funcionamento dos cemitérios, fossem administrados pelas Juntas de Freguesia ou Municípios, sendo estabelecidos os emolumentos para os serviços a prestar por aquelas estruturas.
Mesmo que, nesses cemitérios, haja talhões e/ou campas privativas de organizações ou associações civis ou irmandades religiosas, essas ficavam sujeitas aos regulamentos instituídos, assim como ao pagamento das taxas a aplicar.
O caso que nos foi apresentado, para comentar, é o seguinte:
No cemitério paroquial de uma freguesia, existia um local onde foi inumado o corpo de um militar, natural ou residente na freguesia, em 1967. É muito provável que tenham destinado parte do terreno anexo para, eventualmente, serem inumados outros militares tombados no Ultramar. Até ao final da guerra só houve, nessa freguesia e com enterramento nesse espaço do cemitério local, mais um combatente, em 1968.
Constava que esse espaço, era um talhão pertença das Forças Armadas. Não tenho conhecimento de que tal aconteça, na medida em que os talhões privativos que existem nos cemitérios, são cedidos a Associações de Bombeiros, Liga dos Combatentes ou confissões religiosas que não católicas e, todos eles, além de cumprir as normas do próprio cemitério, cumprem, também, as normas da entidade a quem foram cedidas a título perpetuo ou temporal.
Estava em curso a Guerra do Ultramar e, desde sempre foram consideradas parte integrante do território nacional, tese defendida durante a Monarquia e a Republica, razão pela qual o país travou as Campanhas de Ocupação, entrou na Grande Guerra e reforçou os territórios durante a II Grande Guerra. Por igual razão respondeu aos Movimentos de Libertação guarnecendo, entre 1961 e 1974, com mais de um milhão de militares aqueles territórios
É provável que, após o primeiro funeral em 1967, tenha havido a intenção de se proporcionar um local com alguma dignidade, não só a este, mas aos que eventualmente “fossem escolhidos pela morte”, um local onde ficassem todos juntos, seguindo o lema de “unidos na guerra, unidos na paz”.
Se anotarmos as causas das mortes ocorridas, no caso do Exército, nos Teatros de Operações – Angola, Guiné e Moçambique – vamos encontrar muitas causas, causas essas que ocorrem muitas vezes numa sociedade civil: doença, com as mais variadas causas; acidentes, desde os de viação, em ambiente ferroviário, até aos de aviação, porque havia transporte de tropas de uma zona para outra; afogamentos, em rios ou mar; e outras causas, que podiam ser comparados a “acidentes de trabalho” como queda do cimo de árvores, electrocussão, queimaduras nas cozinhas ou na trasfega de líquidos inflamáveis, etc. As outras causas, mais violentas, foram os mortos em combate e os acidentados com arma de fogo.
Se, nas causas apontadas na primeira abordagem, podiam provocar deformações no corpo dos combatentes, as segundas, as mais violentas, poderiam provocar, não só deformações muito acentuadas, como até a sua dispersão.
Efeitos de mina num Unimog 411
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
Durante o tempo em que a guerra durou, e mesmo para além desse tempo, houve como que um pacto de silêncio entre os que lá estiveram. Porque, no regresso, era tempo de esquecer; era tempo de reavaliar os projectos que se tinham, de acordo com as perspectivas que nos se apresentavam; era tempo de voltar a aprender a viver. Mesmo entre os que lá estiveram, levaram muito tempo a abrir o “baú”, e começar a partilhar memórias, vivências e factos.
E quando os “baús” se foram abrindo, foi com alguma discrição. Cada um ia retirando aquilo que era menos doloroso; aquilo que estava já mais assumido; aquilo que não colocasse em risco a memória dos camaradas. Ou seja: vai surgindo, para os que estavam ávidos de “bombas relógio a explodir”, aquilo que não dava para um estoiro de bomba de santos populares.
Só havia uma possibilidade: abrir os baús que se mantinham fechados. Aqueles que chegaram entre lágrimas e gritos sufocados e encerrados a sete palmos abaixo do chão. Foi uma “corrida” desenfreada. Todos, os que não estiveram na guerra e que não tinham ninguém entre os que tombaram, queriam arrancar “esqueletos do armário”, para “reabilitar a verdade”…
Muitas urnas não continham partes ósseas identificáveis. Continham pequenos fragmentos e pedras. Tudo o resto já tinha desaparecido. Outras, a parte óssea, apenas.
Faltavam a muitos o conhecimento do que é a “pensão de sangue”.
Não é um prémio, não é uma condecoração, não é uma reparação. Muitos dos que a receberam, preferiam mil vezes não a ter recebido. A “pensão de sangue” que, com outra designação já existia há muito tempo no nosso país, era uma reparação, pequena e muitas vezes simbólica, para tentar suavizar as necessidades, não a dor, daqueles que tinham perdido alguém na guerra: viúvos, filhos e pais.
Mas havia, e assim continua a haver, pressupostos que são indispensáveis para a sua concessão seja possível.
Um documento que justifique o infausto acontecimento, as condições em que ocorreu e, mais importante para a família, um corpo. Sem o corpo, não há morte; sem o corpo não há luto; sem o corpo, não há enterro.
Não há ninguém, desde o soldado ao general, que não saiba que a guerra vai gerar mortos; mas não há ninguém, desde o general ao soldado, que o deseje.
Pelos pressupostos citados, quando havia uma morte mais violenta, causada por engenhos explosivos, em que os corpos se tornavam irreconhecíveis, que todos tentavam que nada ficasse na terreno, buscando e recolhendo num espaço único, o que restava de camaradas seus, de que só saberiam a quantidade e identidade, após a chamada aos presentes. Muitos não responderam à chamada, não porque não estivessem vivos, mas porque tinham sido aprisionados.
A tropa, no seu sentido mais genérico, não formava especialistas em todos os serviços de que necessitava. Muito menos nos serviços funerários.
Não pretendo historiar os casos que real e/ou hipoteticamente aconteceram, ampliados por uma comunicação social que procura “manchetes bombásticas”, esquecendo que, para que muitas famílias não ficassem desamparadas, foram dados como mortos muitos militares que, mais tarde se veio a verificar estarem prisioneiros. Se surgissem dúvidas, caso fosse feita uma declaração de desaparecimento, anos levaria a que os mesmos fossem considerados “desaparecidos” ou “falecidos” por um tribunal. Isto sem colocar a hipótese de o juiz que julgasse o caso, decidisse considerar o militar “desaparecido” como desertor, por insuficiência de provas.
Que estes parágrafos, ou notas, não sejam consideradas “libelo”, nem de acusação nem de defesa de ninguém. A guerra é feita por humanos, e por isso é cruel e imperfeita.
Portugal, desde a sua fundação até à actualidade, esta mesma actualidade que estamos a viver, sempre teve mortes geradas pelas mais diversas razões.
Poderia terminar, aqui e agora, o texto que estou a redigir, mas, mais uma nota que se prende com os que ficaram, e outra com os que ainda estão entre nós.
Após a Grande Guerra, houve alguns concelhos que pensaram em trasladar e juntar num único local, os seus mortos. Rápido se constatou que seria uma operação que, além de dispendiosa era quase impraticável. Havia militares sepultados por vários cemitérios de vários países, onde se tinham dado os combates. Muitos estariam “desaparecidos” ou mal identificados.
Foi então que, e pela primeira vez, os estados promoveram a construção de Cemitérios Nacionais, reunindo num só local os seus militares mortos.
É criada a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra que entre o ano de 1924 e 1938, através do Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro, composta por oficiais do Exército e com a colaboração do Cônsul Português, em Arras, Louis Lantoine, reúne no Cemitério de Richebourg, os corpos de 1831 militares (238 não estão identificados) e provenientes dos cemitérios franceses de Le Touret, Ambleteuse, Brest, e Tournai (Bélgica) e os corpos dos militares que morreram na Alemanha, durante o cativeiro. Não foi possível trasladar todos os corpos para Richebourg, havendo campas de militares portugueses na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Inglaterra, não só por questões sanitárias mas, também, por constrangimentos orçamentais. Para substituir as cruzes que ficavam nas cabeceiras das campas, foram colocadas lápides que apenas indicam o nome dos combatentes, quando conhecido.
Em 4 de Fevereiro de 1966, aprovadas que foram as "Normas Reguladoras de Trasladação de Ossadas de Militares", estabelecendo a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares, da Metrópole e Ilhas, falecidos no então ultramar, as trasladações poderiam ser efectuadas, ou a pedido das famílias a quem seriam entregues ou, por outro lado, por iniciativa do Exército que, neste caso, as recolheria num Ossário Militar Central, localizado em Lisboa. Os militares falecidos dos então Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, teriam também, em cada ex-província, o seu Ossário em local a definir, provavelmente, nas respectivas capitais.
Os Ossários não saíram do papel e, por isso mesmo, foi sendo protelado o cumprimento das normas aprovadas e, oito anos após a sua aprovação, quando chegou a altura de iniciar as negociações de paz, ninguém, quer os militares que tinham tomado a decisão e aprovado as normas, quer os militares que tinham assumido o poder, nem sequer se “lembraram” de que, sob a terra que pisavam, estavam os corpos de militares que aguardavam a sua trasladação.
Agora, mais de quarenta anos depois de ter terminado a guerra, os que foram e regressaram, os combatentes, é que não esquecemos os camaradas que lá ficaram e temos uma ténue ideia das condições em que estarão as suas campas. Na altura o Estado Português podia delegar no Exército a tarefa de trasladar os mortos, mas presentemente é quase impraticável. Os antigos territórios são hoje países independentes; têm os seus governantes, que já não são os que negociaram a independência; as regras do jogo são diferentes e, as leis que regulam esta matéria, também já não são as mesmas. Hoje só é possível proceder a uma trasladação, caso a caso, e por decisão de cada família, tomar a decisão de abrir o processo.
Os pais dos nossos camaradas que tombaram, muitos já não existem ou já terão uma idade avançada; os outros familiares dos que caíram – viúvas, filhos, irmãos – que tomaram a decisão de recuperar os restos mortais dos seus entes queridos e puderam, já os foram lá recolher, apesar dos custos financeiros e de alguns desagradáveis casos, pois só procediam à exumação na presença dos mesmos, quando pensavam que estariam já na capital do antigo território, e ali tratariam de tudo.
Apesar de não ser essa a vontade, senão de todos, dum a grande parte dos combatentes, os nossos camaradas ficarão por lá, juntando o seu destino ao de muitos outros combatentes, que tombaram, ao longo dos séculos, em África.
Como última questão, mas não menos importante, é o número de combatentes que ainda se encontram entre nós. Não só o seu número, mas também a sua distribuição geográfica, etária e condições de vida, a fim de que, quem entregou a sua juventude à Pátria, agora pudesse receber o apoio, e não só o agradecimento, de que é credor. Quantos somos, efectivamente? Como se poderá obter essa informação?
Pois bem.
Nem todos os combatentes são membros da Liga dos Combatentes; muitos nunca se inscreveram na mesma, por não encontrarem razões para tal; outros nem sequer imaginam fazê-lo. Portanto, por aqui, não é o caminho.
Talvez fosse possível obter esse número através dos pagamentos efectuados pela Caixa Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações ou outros organismos (bancários, advogados, etc), mas estariam em falta os oficiais e sargentos do quadro permanente assim como as forças de segurança, assim como os combatentes que optaram pela emigração e por lá se encontram.
Poderia ser através das Associações de Combatentes, de âmbito local ou nacional mas, nem todos os combatentes estarão inscritos nessas associações e, alguns, poderão estar inscritos em mais do que uma associação.
As autarquias poderiam dar uma ajuda (sugestão que vi no facebook), mas não teriam pessoal para desenvolver um trabalho destes, mesmo com a ajuda de voluntários e, não sei se o poderiam fazer. Mantêm as listagens para as eleições, que não referem se o eleitor foi ou não combatente. Nas localidades com mais habitantes, muitos residentes nem sequer são conhecidos dos autarcas eleitos.
Como no próximo ano (2021) é ano dedicado aos censos da população. Poderia ser uma oportunidade mas, neste momento é tarde. Os folhetos do recenseamento já foram aprovados e não são susceptíveis de serem alterados.
Mesmo que pudessem, será que todos responderiam? Muitos combatentes não revelariam esse facto ou mesmo o ocultaria por questões pessoais.
Além do mais, existe desde 1994, uma Comissão Nacional de Protecção de Dados que colocaria decerto algumas objecções.
Perece que, como até agora, só podemos basear-nos em “projecções”, porque o direito à privacidade impede que, por muito boa vontade de muitos, possamos acudir com o necessário para que muitos camaradas nossos possam terminar os seus dias com a dignidade que todo o ser humano – homem ou mulher, velho ou novo – merecem.
************
[*]
4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)
e
6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)
José Marcelino Martins
Odivelas, 1 de Maio de 2020
____________
Nota do editor
Último poste da série de 28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)
quarta-feira, 20 de maio de 2020
Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)
Foto 1: Pirada, Maio de 1945. Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Citação: (s.d.), "Visita oficial do Governador Sarmento Rodrigues à Guiné - inauguração de um monumento a [Manuel Maria] Sarmento Rodrigues [1899-1979], Pirada. Maio de 1945.", Fundação Mário Soares / INEP-CEGP-MGP,
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_10635 (Autor desconhecido), com a devida vénia.
Foto 2: Vista aérea de Pirada em Agosto de 1972. Foto de António Martins de Matos – P20867, com a devida vénia.
Mapa da Zona Leste, com a indicação de algumas localidades onde estavam estacionadas as unidades de quadrícula atribuídas ao Comando do BCAÇ 238 (1961/63).
Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873
(Xime e Mansambo, 1972/1974); professor de eduxção física,
docente do ensino superiro; nosso coeditor, autor da série "(D)o outro kado do combate"; régulo da Tabanca dos Emiratos,
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE:
O ATAQUE A PIRADA EM 15 DE JULHO DE 1963:
EM BUSCA DAS "PEÇAS" DO PUZZLE
1. - INTRODUÇÃO
A publicação das últimas narrativas relacionadas com o comerciante Mário Soares, de Pirada, suscitaram-me um particular interesse, neste tempo de confinamento prolongado, devido à pandemia de COVID-19.. Encontrei em todas elas "assunto", mais do que suficiente, para aprofundar todas as dúvidas e interrogações emergentes em cada uma delas, particularmente a partir das "pontas" ou dos "pontos" que o camarada Luís Graça deixou em aberto.
Desde logo o P20927 abriu o caminho sobre o caso do "ataque a Pirada em 28/5/1965". No P20867, síntese do P4879: «Gavetas da Memória», série de episódios da autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66, a questão principal era: "Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie de praceta, com um pequenino monumento [?] e tudo".
Que monumento seria esse? Pois é o que se indica na foto 1, inaugurado em Maio de 1945. Finalmente, o P20927, o último desta série até á data, coloca-nos em frente de uma nova "picada", agora em direcção ao "ataque a Pirada em 15 de Julho de 1963" de que resultou (está escrito) a morte de 1 soldado europeu" (?).
É sobre esta "peça" da história que trata este fragmento.
2. - SUBSÍDIO HISTÓRICO MILITAR DA ZONA LESTE, COM DESTAQUE PARA PIRADA
Ao Batalhão de Caçadores 238 [BCAÇ 238], mobilizado pelo BC 8, de Elvas, foi-lhe atribuída a responsabilidade da Zona Leste, com fronteira com o Senegal e a Guiné-Conacri, e para oriente da linha Cambajú-Xime-Rio Corubal, após a sua chegada a Bissau, em 06 de Julho de 1961, 5.ª feira, sob o Comando reduzido do Major Inf José Augusto de Sá Cardoso.
Em 19Jul61, esta Unidade assumiu a responsabilidade da referida zona de acção, com sede em Bafatá, comandando e coordenando a actividade das companhias estacionadas em Nova Lamego (CCAÇ 90) e Bafatá (CCAÇ 84) e pelotões de reforço, cujos efectivos se encontravam disseminados por Contuboel, Piche e sucessivamente, a partir de 16Ago61, por Pirada [3.ª CCaç (RL) e 1 Sec/CCAÇ 84], Buruntuma [2 Sec/CCAÇ 84], Canhamina, Sare Bacar, Paunca, Bajocunda, Canquelifá, Enxalé, Bambadinca e Saltinho.
2.1 - INÍCIO DAS ACTIVIDADES SUBVERSIVAS NA REGIÃO DE PIRADA
Segundo a literatura Oficial, em particular o livro do Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974); Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; "as actividades subversivas, atribuídas ao PAIGC, tiveram início no final de Junho com diversas sabotagens na região de Pirada-Sonaco".
3. - O ATAQUE A PIRADA EM 15 DE JULHO DE 1963 - DOCUMENTOS ANALISADOS
Ainda que não tenha obtido registos de prova, quanto ao modo como decorreu o ataque a Pirada e suas consequências, mesmo que ele tenha sido executado, é possível garantir que não produziu quaisquer baixas nas NT, quer sejam de origem africana ou europeia.
Para melhor análise e interpretação do seu valor factual, damos conta abaixo, por ordem cronológica, dos diferentes conteúdos reportados à correspondência trocada entre remetentes e destinatários, conforme se indica no quadro.
3.1 - PIRADA, 09 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NOME DE GUERRA DE NORBERTO ALVES]
Pirada, 9 de Julho de 1963 (3.ª feira) – (tradução do francês)
Caro camarada Yaya Koté.
Gostava que esta carta chegue pelo menos a tempo, encontrando-o com saúde, assim como os outros camaradas. O objectivo da carta é informar que dois dos nossos guerrilheiros abandonaram a luta por falta de resistência necessária aos desempenhos físicos e morais da luta, de acordo com os seus próprios testemunhos. Eles vão-lhe contar tudo minuciosamente. Por outro lado, fizemos uma boa viagem e começámos hoje os actos de sabotagem, para depois iniciarmos a luta armada. Esta será em breve!
Com os meus melhores cumprimentos, termino com muita amizade por ti. Saúde. Kanfrandi Ká - Norberto Alves.
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36861
3.2 - PIRADA, 10 DE JULHO DE 1963; ASSINAM: AREOLINO CRUZ E KANFRANDI KÁ
Pirada, 10 / Julho de 1963 (4.ª feira)
Caro [Pedro] Pires.
Saúde em primeiro lugar e acima de tudo. Nós vamos indo bem graças a Deus. O portador desta carta é um camarada que se encontra doente talvez por causa da frieza. Ele costuma ter dores na região lombar (?). É preciso tratá-lo bem para que ele possa voltar depressa porque é um elemento precioso para a nossa zona e é adjunto do nosso responsável. Ontem quando voltámos da sabotagem que fomos fazer em Pirada ele foi atacado fortemente por tal doença que só muito dificilmente pôde marchar em braços. Fomos obrigados a sair do mato essa noite e entregá-lo numa tabanca vizinha pois que chovia torrencialmente e ele não podia de modo nenhum estar exposto à intempérie.
Tentámos fazer explodir a ponte do rio Bidigor, entre Pirada e Bafatá, metemos na acção 700 g de plástico mas da explosão só resultou um buraco na dita ponte. É uma ponte bastante resistente. Cortámos os fios telefónicos numa distância de quase 300 metros. Na região de Pirada é difícil de trabalhar, pois que não foi mobilizada; nela só há um responsável (?) mas ele tem medo de contactar connosco e até de nos alimentar. Passamos dias seguidos sem comer e por isso dois fulas que vieram connosco recusaram a continuar. Precisamos de dinheiro para a alimentação, precisamos de explosivos TNT e balas de calibre 7,75.
Após a sabotagem os fulas da região [3.ª CCAÇ] mobilizaram-se e entraram para o mato à nossa procura. O Borges pode melhor contar-te a situação. Diz ao senhor Bebiano que o Kouko já chegou e foi cá recebido com grande entusiasmo. A escassez de explosivos deixa-nos uma falta terrível.
P.S. - Espero que não te esqueças de me enviar as botas de lona e as calças americanas. O responsável quer também 1 par de calças. Para mim manda-me o cobertor do Caetano que ele não vem agora.
Sempre esperando, Areolino Cruz e Kanfrandi Ká (Norberto Alves)
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36865.
3.3 - PIRADA (?), 14 DE JULHO DE 1963; ASSINA: CHICO TÉ [NOME DE GUERRA DE FRANCISCO MENDES]
Pirada (?) 14 / 7 / 63 (Domingo) – (tradução do francês)
Caro irmão e companheiro de luta Yaya Koté.
Neste momento decisivo da história de nosso povo, onde surgem dificuldades de todos os lados, a acção de cada um de nós é essencial para o triunfo, pois os nossos companheiros já derramaram o seu sangue.
Na última carta que lhe enviei, destaquei as dificuldades que nos cercam, mas até agora não nos conseguimos livrar delas ou, pelo contrário, estão aumentando dia-a-dia. Para isso, é necessário partir sem demora para Dakar para entrar em contacto com a Direcção, expondo concretamente a nossa situação a fim de estudarmos juntos e decidirmos como nos livrar desse impasse. Irmão deve deixar tudo para cumprir esta missão, que é tão importante, caso contrário tudo estará condenado ao fracasso.
Em anexo está uma carta em português para ser entregue à Direcção. Ela transmite tudo o que precisamos aqui e ainda a nossa situação concreta.
Devemos adverti-los de que, para atender às necessidades urgentes no campo de equipamentos, já enviei 40 jovens a Koundara para receber os equipamentos para a região. O seu irmão para sempre - Chico Té [Francisco Mendes]
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36869.
3.4 - PIRADA (?), 14 DE JULHO DE 1963; ASSINA: CHICO TÉ [NOME DE GUERRA DE FRANCISCO MENDES]
Pirada (?) 14 / 7 / 63 (Domingo)
Ao Secretariado-geral – Bureau de Dakar
Boa saúde. Nós por cá estamos todos bons apesar de estarmos rodeados de dificuldades que tentamos transpor para o triunfo urgente da nossa causa.
Essas dificuldades são as seguintes: devido à grande pressão em que se encontra o povo desta região, a fome coloca-se em primeiro lugar, porque sem alimentação um combatente não pode pegar em armas para fazer combate. Encontramos nesta situação desastrosa. Desde que entrámos no país sentimos falta de alimentação o que obrigou à deserção de vários camaradas fulas. A fome é tão maior que não podemos fazer nenhum combate e resolvemos unicamente defender a nossa pessoa contra os ataques dos colonialistas e dos régulos fulas. Na fronteira a cotização rareia devido à situação económica dos militantes.
A outra dificuldade é a falta de munições que no princípio não era suficiente porque para cada metra só havia munições para os carregadores.
Os medicamentos que alistei na presença do camarada Bebiano e que ele prometeu que desde que chegasse a Dakar faria todo o possível para que cheguem às nossas mãos, tal não aconteceu. A decisão dele era simplesmente para se desembaraçar de nós. Há camaradas que saiem por falta de comprimidos para febre ou outra crise parecida.
O Yaya Koté exporá tudo quanto nos é preciso aqui pois a fome não me deixa prolongar a carta. Até breve. Chico Té.
Para responder às necessidades da luta já enviei 40 jovens para Koundara com o fim de receber material para a Região porque estamos num momento difícil para nós. O camarada Koté explicará tudo. Chico Té.
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36873.
3.5 - PIRADA, 15 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NORBERTO ALVES]
Comunicado
Na madrugada do dia 15 de Julho de 1963, 2.ª feira, um grupo de guerrilheiros do nosso Partido, comandados pelo camarada Kanfrandi Ká, atacou por força o quartel de Pirada. Do ataque resultou da parte inimiga um morto. Não puderam os guerrilheiros apoderar-se da arma do inimigo morto por aquele se encontrar nas traseiras do quartel que é rodeado de arame farpado. Kanfrandi Ká (Norberto Alves)
Citação: (1963), "Comunicado [Região 4]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40527.
3.6 - PIRADA, 17 DE JULHO DE 1963; ASSINA: AREOLINDO CRUZ
Pirada, 17 / 7 / 63 (4.ª feira)
Caro [Pedro] Pires~
Saúde é o que te desejo. Nós vamos indo menos mal. Há dias escrevi-te uma carta tendo por portador um camarada doente, o Borges.
Já não vale a pena enviares as minhas correspondências pois que elas podem extraviar-se. Terei alguma carta do Fernando? Não estará ele já em África?
Na madrugada de 15 deste mês [Julho], 2.ª feira, fizemos um ataque ao quartel de Pirada e incendiamos a casa de um tipo da Pide. Morreu 1 soldado europeu. Os soldados têm agora medo de sair à noite e mesmo depois das 6 da tarde. Formaremos de agora em diante um só grupo comandado pelo Chico Té [Francisco Mendes] com aproximadamente 22 homens. Com saudações imensas, Areolind
o Cruz-
o Cruz-
Cumprimentos ao Paulo, Caetano, José Araújo, e Bebiano. Quando o Borges tiver de voltar, dá-lhe o que tiveres para mim. Obrigado.
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881.
3.7 - PAUNCA, 20 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NORBERTO ALVES]
Paunca, 20 / 7 / 63 (sábado)
Camarada Yaya Koté
Desejo-te saúde e felicidades em companhia de todos.
Comunico-te que o Chico Té [Francisco Mendes] está mal, 10 dias sem comer e não sabemos o paradeiro dele, chegou cá o Umaro, onde ele informou o estado dele. Ele teve que vir à frente, porque ele confessou que não podia resistir, e alguns dos camaradas fugiram. Comunico-te que dos meus camaradas alguns desistiram e alguns doentes.
Tive que vir colaborar com o Domingos, que é para trabalhar melhor, é único plano.
Comunico-vos que de facto o camarada Pulo desistiu da luta, onde que ele disse que não podia aguentar a maçada do mato, fui informado mesmo pelos militantes do Domingos e alguns responsáveis. Dos meus camaradas são 3 doentes e dois que desistiram. Vocês que arranjem dinheiro para nós de alimentação e para mandar ao Chico Té e mandar uma pessoa à sua procura.
Manda dinheiro urgente, estamos mal, não temos apoio do povo principalmente em Pirada, passamos 5 dias sem comer.
Tive que procurar o camarada Domingos, o Demba [será o criado do Mário Soares, P20904?) e o Cruz, foram para Açadung (?) porque eles estão doentes.
Comunico-te que o camarada Umaro chegou fraco. Veja se arranja um montiador [caçador] que conheça bem o mato para ir à procura do Chico Té, porque ele não pode ficar a padecer dentro do mato.
Diga ao Bebiano que nós aqui estamos no meio de dois inimigos: Colonialistas e fulas. Estamos com faltas de munições e da alimentação. À noite quando fizemos emboscada para Colonialistas, de dia os fulas também fizeram as suas emboscadas contra nós. Manda procurar o Chico no mato na área de Contuboel na Tabanca Sama.
Sou, Canfrandim Cá.
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36885, co m a devida vénia.
► Em resumo:
1. Em função da análise documental, não é possível confirmar a execução do ataque ao quartel de Pirada, no dia 15 de Julho de 1963 [informação de Kanfrandi Ká (Norberto Alves), simultaneamente autor do comunicado e comandante do ataque].
2. Quanto ao incêndio provocado na casa de um elemento da PIDE, em Pirada, na sequência do ataque indicado no ponto anterior, e referido por Areolindo Cruz na carta enviada a Pedro Pires dois dias depois, também não foi possível confirmar. Não se entende, porém, como é que o comandante da missão se tenha "esquecido" de o mencionar no seu comunicado.
3. Há "peças" que não encaixam neste "puzzle".
► Fontes consultadas:
Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).
Ø Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
04MAI2020
___________
Nota do editor:
Último poste da sériie > 23 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20891: (D)o outro lado do combate (59): A morte dos três majores no chão manjaco, em 20/4/1970, e a intervenção de Amíclar Cabral, três semanas depois, na reunião do Conselho de Guerra (Jorge Araújo)
Último poste da sériie > 23 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20891: (D)o outro lado do combate (59): A morte dos três majores no chão manjaco, em 20/4/1970, e a intervenção de Amíclar Cabral, três semanas depois, na reunião do Conselho de Guerra (Jorge Araújo)
Marcadores:
(D)o outro lado do combate,
1963,
Areolino Cruz (PAIGC),
Arquivo Amílcar Cabral,
BCAÇ 238,
Fundação Mário Soares,
Jorge Araújo,
Mário Soares (comerciante),
Paunca,
Pedro Pires,
Pirada
Subscrever:
Mensagens (Atom)