1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2011:
Queridos amigos,
O confrade António Marques Lopes confiou-me esta leitura.
O Cote ou Norberto Tavares de Carvalho teve o inegável mérito de recolher da boca de Bobo Keita informações de grande valor pessoal, captou o seu olhar sobre os acontecimentos na viragem dos anos 50 para os anos 60, sente-se a confiança do jovem guerrilheiro a propagar a mensagem de Cabral.
Não se entende a metodologia que desorienta mais o leitor ao invés de o motivar. As memórias batem certo quanto à chegada de armamento e às múltiplas dificuldades nos primeiros anos da luta. Há omissões ininteligíveis, corre-se rapidamente dos anos 60 para os anos 70, há uma infinita pressa em chegar ao assassinato de Amílcar Cabral. Nas entrevistas é obrigatório um corpo-a-corpo com o entrevistado, em momentos cruciais somos arrastados pelo que Bobo quer dizer com a agravante de o Cote nos encharcar com notas e esclarecimentos.
Podia muito bem ter sido de outra maneira, para bem de todos.
Um abraço do
Mário
Bobo Keita: Memórias valiosas de um guerrilheiro errante
Beja Santos
Ninguém nos conhece que as memórias dos guerrilheiros do PAIGC mal cabem nos dedos de uma mão. “De Campo em Campo, Conversas com o comandante Bobo Keita, por Norberto Tavares de Carvalho, edição de autor, 2011 (
notaca-ocote@hotmail.com) é um registo de todo um percurso, dá para medir o pulso a uma trajectória, a um modo de ver e fazer a revolução e de a apreciar, desencantado, ao longe e já com poucas forças. Vale pela intensidade das memórias da juventude, para se perceber como se recrutava um jovem guerrilheiro, como evoluíram as etapas da guerra, o que ele pensa do assassinato de Amílcar Cabral e qual o âmago do diferendo entre guineenses e cabo-verdianos, por exemplo. O guerrilheiro participou activamente na alvorada da independência, faz declarações profundamente críticas quanto ao comportamento das tropas portuguesas – só neste domínio era importante que os actores da época clarificassem com os seus depoimentos o que realmente se passou, o guerrilheiro, mesmo pelo facto de já ter falecido, tem que ser submetido ao contraditório, os militares também têm honra.
É muito discutível a metodologia usada por Norberto Tavares de Carvalho, interrompe repetidamente as memórias do guerrilheiro com explicações que muito bem podiam aparecer em notícias de rodapé ou em anexo, cansa o leitor, quebra o ritmo, tantas fontes como as obras citadas revelam escassez de investigação, tudo leva a querer que Bobo Keita faz revelações dignas de melhor tratamento.
O guerrilheiro enche-se de orgulho a falar das suas raízes, lembra Amadu Djaló a conversar com Virgínio Briote: “Chamo-me Bobo Keita, sou o primeiro filho de Fofana Keita, alfaiate, e de Mbália Turé, mãe e doméstica. O meu pai nasceu na tabanca de Dabis, região de Boké. Os meus avós pertencem à tribo dos Landoma. O meu pai herdou dos seus progenitores a fé, o respeito e a confiança no divino. A minha mãe pertence à etnia Sosso da parte do pai e Papel de Safim da parte materna”. Depois o orgulho da infância, de participar nas obrigações familiares: “Lembro-me do meu quotidiano feito de vaivéns de tecidos e de panos que o pai transportava cuidadosamente do mercado e do ruído insistente da sua máquina de costura que só se calava quando a mãe anunciava a hora de comer. E tudo aquilo me fascinava e punha-me a sonhar que um dia viria a ser alfaiate como ele. Até que, vendo a paixão que eu manifestava observando os seus gestos, resolveu ensinar-me a profissão”. Vai ser um futebolista conceituado, aos poucos ganha percepção do que é o poder colonial, o que distingue um “civilizado” de um indígena, a natureza da hierarquia instituída: os que tinham bilhete de identidade, os grumetes portadores de apelidos portugueses, o gentio constituído só por indígenas. Fala em Rafael Barbosa e Momo Turé, e em 1960, com vinte e um anos, parte para a luta armada, vai para Conacri, aqui conhecerá Cabral, fica instalado no lar do PAIGC, nesta altura as duas primeiras fornadas de combatentes já tinham sido preparadas na China. Estavam lá há quinze dias quando regressou a segunda fornada constituída, entre outros, por Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Manuel Saturnino da Costa, Victorino Costa, Nino, Francisco Mendes e Constantino dos Santos Teixeira.
Descreve a sua preparação, as desconfianças de Sekou Turé, as disputas do PAIGC com os movimentos rivais, tanto na Guiné-Conacri como no Senegal, e parte para a sua primeira missão, no Norte, entre 1961-1962, esteve no chão dos Felupes, junto a S. Domingues, foram aparecendo as armas e regista detalhadamente as muitas dificuldades vividas devido às reticências das autoridades senegalesas.
As perguntas e respostas andam por vezes em ziguezague, o leitor, desnorteado, entra de chofre no Congresso de Cassacá e na formação do exército guineense. Toda esta informação confirma outros relatos já produzidos sobre a génese da orgânica da guerrilha após 1964. Bobo Keita é um guerrilheiro da frente Norte, anda por Binta e Guidage, a base era Sambuiá. Em Junho de 1968 é ferido e evacuado para Moscovo e depois regressa à frente Norte. Frequentou seminários em Conacri e depois foi para a Jugoslávia. No regresso, ofereceu-se para ficar nas regiões de Xime, Bambadinca e Xitole, aqui passou nove meses, vinha substituir provisoriamente Mamadu Injai, reorganizou a quadrícula: “A primeira medida que tomei no Leste foi acabar com a base central onde se concentrava toda a guerrilha e que daí procedia a longas marchas para ir atacar os quartéis. Além disso, na base central concentravam-se as milícias e havia uma certa confusão. Existia também o risco de que qualquer ataque do inimigo pudesse causar muitas baixas na base, devido a tamanha promiscuidade. Formei três destacamentos e um comando móvel. Com a nova organização, a população estava mais segura. Criei um depósito dos Armazéns do Povo. Com isto consegui criar uma nova vida nessa região”. Em Outubro de 1971 acompanha Amílcar Cabral numa viagem à União Soviética. No regresso, tendo-se intensificado a guerra no Sul, Cabral achou pertinente enviar um grupo de comandantes para reequilibrar a situação.
No final do ano de 1972, Cabral informa que alguns camaradas tinham sido presos (Aristides Barbosa, Momo Turé e o seu irmão Baciro). E comenta: “Esses camaradas tinham sido presos porque desenvolviam no seio dos militantes, em Conacri, actividades de mobilização contra a direcção do Partido, explorando de maneira perigosa as velhas rivalidades entre guineenses e cabo-verdianos”. Para Bobo Keita, esses camaradas teriam sido recrutados por Spínola, a sua missão era alargar o descontentamento. Em 20 de Janeiro de 1973, tendo de regressar a Boké, juntamente com Inocêncio Cani, foi despedir-se de Amílcar Cabral e este disse-lhe que tinham acabado de sair do seu gabinete dois embaixadores acreditados em Conacri que lhe tinham dado informações de que os portugueses tinham fechado a zona de Cacine e preparavam um novo golpe contra a República da Guiné: “Disse-me que os portugueses previam libertar os prisioneiros capturados pelo Partido e levá-los para Cacine bem como os homens do PAIGC que teriam capturado durante a operação. Que o plano deles incluía também a eliminação da sua própria pessoa”. Segundo Bobo Keita, a situação em Conacri estava caótica.
E ficamos por aqui, seguir-se-á o episódio do assassinato e daí partiremos para a independência e todo mais que se seguiu, até Bobo Keita, em colisão frontal com Nino, se ter afastado da Guiné-Bissau.
É um relato com muitos altos e baixos, seguramente que Bobo Keita teria muito mais a dizer sobre a evolução da guerra, ele conheceu perfeitamente a frente Norte e viveu largos meses na frente Leste. Há notoriamente silêncios, beliscadelas e sentimentos feridos. Não se lhe pode assacar a responsabilidade de exibir fontes escritas, ao que parece o manancial da documentação estava em poder de Cabral e do secretariado político. Mas estes comandantes recebiam documentação, nunca a invocam e muito menos a exibem. O que nos leva permanentemente a questionar como é que se vão cozer todas estas peças constituídas por depoimentos que mais ninguém valida.
(Continua)
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Notas de CV:
Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:
24 de Outubro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho
25 de Outubro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)
27 de Outubro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)
29 de Outubro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)
Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)