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quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24178: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte V: O "making of" do "Labanta, Negro!", um filme italiano, de Piero Nelli (1926-2014), a preto e branco, de estética tardo-neorrealiista, e que serviu que nem uma luva à propaganda do PAIGC


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 38m 28 s > A despedida do realizador italiano Piero Nelli


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 58 s > 11 de fevereiro de 1966 > 6h30 > Partida para a emboscada às obras da TECNIL na estrada Mansoa-Mansambá


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 31m 21 s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 06s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 58s >  A emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 31s >  Panfleto, manuscrito, convidando os militares portugueses  à deserção: "Amigo desconhecido: Com este papel podes estar seguro do teu bom acolhimento em caso de deserção". Assinado: PAIGC.


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 37m  21s > "Quartel-General do Norte"> 13 de fevereiro de 1966 > As despedidas...  À  italiana?

Fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2014), "Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43''). O filme ganhou o prémio do melhor documentário do ano no Festival de Veneza. Filmado a preto e branco, nas zonas controladas pelo PAIGC  (no Oio), na então Guiné portuguesa, de 2 a 15 de fevereiro de 1966, é um documentário de estética tardo-neorrealista, que o partido do Amílcar Cabral soube explorar habilmente como "arma de propaganda".  

Segundo a CECA (2014, pág. 372) (*), "o ano de 1966 foi considerado pelo PAIGC como o ano da informação, tendo desenvolvido uma intensa e bem orientada campanha de propaganda 'visando esclarecer a opinião pública mundial com testemunhos irrefutáveis'. Para tal estiveram no Boé e em Quitafine vários jornalistas e cineastas africanos, franceses, americanos, ingleses, italianos, holandeses e soviéticos que produziram artigos e filmes - documentários sobre aspectos da luta e do nível de realizações sócio-económicas do PAIGC, que mais tarde deram origem a publicações nas editoras francesa 'Maspero'
e americana 'Africa Report«, entre outras".

Por lapso, a CECA não menciona a visita desta equipa italiana, à região do Oio, o que nos parece lamentável... No nosso blogue, já tinha havido duas anteriores referências a este filme, talvez o mais famoso dos que se fizeram durante a guerra  (**).



"Labanta,Negro!" > O filme serviu objetiva e intencionalmente a propaganda do PAIGC:  foi apresentado pelos autores como um "diário de paz e de guerra" (sic), filmado entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, tendo por protagonistas os guerrilheiros da "província portuguesa do ultramar" da Guiné Cabo-Verde (sic, como se fora um só território)... O documentário (que não tem qualquer perspetiva crítica, é claramemnte "engagé", deliberadamente "militante" ou "não independente") foi, além disso, acolhido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, de 16 a 21 de junho de 1966, "como prova testemunhal sobre a situação" da colónia da Guiné Cabo-Verde (sic).

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de notas avulsas de leitura do livro "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (**):

O documentário "Labanta, Negro!", filmado na região do Oio, entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, por dois cineastas italianos 

No início de 1966, Luís Cabral (LC) está em Dacar, é o responsável pela supervisão da Frente Norte, cabendo-lhe a missão de tentar melhorar as difíceis relações do Senegal com o PAIGC, ao tempo em que os homens de Amílcar Cabral (AC) ainda não tinham “livre trânsito” no pais de Senghor, estando acantonados apenas em Dacar e em Ziguinchor.

É então contactado pelo cineasta italiano Piero Nelli, que queria fazer um documentário sobre a “luta de libertação”. Vinha acompanhado do seu operador de câmara Eugenio Bentivoglio (pág. 259).

LC, depois de contactar o irmão, AC (não fazia nada sem o seu consentimento) e o Osvaldo Vieira, comandante militar da Frente Norte, dirigiu-se à base do Morés, acompanhado dos dois italianos. Eram três dias de viagem, com cambança (sempre perigosa) no rio Farim…

Ali, no Oio, era o chão dos oincas, “mandingas e islamizados” (sic) (pág. 260), com uma forte tradição de resistência contra o colonizador: recorde-se as “campanhas de pacificação” do capitão Teixeira Pinto, o “capitão-diabo”, em 1913-1915, por exemplo.

Em 1962, “o ano da grande repressão” (sic), as populações do Morés, cercadas pelas tropas coloniais, e sem armas para se defenderem, tiveram de se refugiar no Senegal. A “base central” do Morés era, por isso, mítica para o PAIGC (e de algum modo também para as tropas portuguesas).

A base, que o LC conhecia pela primeira vez, “estava situada num terreno irregular, onde pequenas saliências aqui e declives ali ofereciam uma certa proteção contra os bombardeamentos” (pág. 261).

O Morés estava rodeado de “oito quartéis” do inimigo, um dos quais Farim, apenas separado pelo rio do mesmo nome. Chico Mendes era o comissário político. Osvaldo Vieira o comandante militar da região (e aquele que LC conhecia melhor, dos tempos de Bissau: desde a adolescência, trabalhava na Farmácia Moderna, de que era diretora técnica a dra. Sofia Pomba Guerra, conhecida opositora do regime salazarista). O Inocêncio Cani, de etnia bijagó, o futuro “matador” de AC, era o responsável pela base. LC encontrou-se com ele pela primeira vez. Notou que, em relação a ele, LC, o Cani mostrou “um comportamento algo reservado” (pág. 261). Também conheceu nessa altura o Simão Mendes, “responsável da saúde” (pág. 262), que viria, nesse ano, a ser vítima mortal de um bombardeamento da base.

Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos tiveram no Morés, o LC não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: “quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo. O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265).

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

Nas páginas 262-264, LC descreve, com algum detalhe e sentido de humor, as peripécias das filmagens do futuro documentário italiano “Labanta, Negro!”…

O Pierro Nelli (1926-2014) era um “antigo partisan das guerrilhas antifascistas”, na Itália de Mussolini e da ocupação nazi. Tivera conhecimento da luta do PAIGC, “ocasionalmente”, em Dacar. E estava agora entusiasmado com o que via nas florestas do Oio, e “altamente emocionado” pelo interesse e carinho com que o recebiam nesta visita. Viria a tornar-se “um admirador do nosso Partido” (pág. 262).

LC explicou-lhe que “na nossa terra não tínhamos montanhas para nelas instalar bases de guerrilha”… e que o Amílcar, seguramente (en)levado pelo “mito “ da Sierra Maestra, da ilha de Cuba, “dissera desde o início da luta que as nossas florestas seriam as nossas montanhas” (pág. 262).

De qualquer modo, ao deslocar-se na floresta o duo italiano tinha sempre alguém que ia à sua frente a assinalar ou remover os obstáculos, um tronco caído, uma cova mais funda, uma pedra, um ramo de árvore mais inclinada…

No plano de filmagens estava incluída uma sequència de guerra: “o encontro com as forças inimigas ia ser filmado, na estrada Mansoa-Mansabá, cujos trabalhos de alcatroamento avançavam com muita dificuldade, sob a protecção do exército colonial”.

Os cineastas ficaram a cem metros da estrada. Chegaram antes do romper do dia. Ficaram instalados “de maneira a ter bem claro na objectiva da câmara o ângulo onde deviam actuar os nossos camaradas já emboscados” (pág. 263).

A tropa, “apoiada com carros de assalto” (sic) (deveriam tratar-se de simples autometralhadoras Daimler, coisa que o LC não sabia distinguir), chegou primeiro que os operários, os técnicos e as suas viaturas (a empresa deveria ser a TECNIL onde, mais tarde, em 1977 irá trabalhar, como topógrafo, o nossso camarada António Rosinha).

Por inexperiência ou azar (para não dizer “nabice”), o operador de câmara ficou virado para oriente, donde vinham os primeiros raios de sol: 

(…) “Os reflexos desta perfurante luminosidade na objetiva da câmara cinematográfica fez com que ela fosse localizada pelo destacamento inimigo alguns segundos antes dos primeiros tiros da emboscada cuidadosamente preparada pelos nossos combatentes” (pág. 263).

Face ao intenso fogo que, de imediato, se desencadeou, de um lado e do outro, os cineastas tiveram que se retirar “precipitadamente” do local, “só tomando o fôlego quando se sentiram fora do alcance das armas inimigas” (pág. 264).

Na precipitação da retirada, o realizador perdeu o seu magnetofone, mas um dos guerrilheiros voltou depois ao local para o recuperar.

O aparelho registara os sons dos tiros produzidos durante a confrontação. E o operador também “registara imagens ao acaso, durante a retirada”, inadvertidamente, com a câmara ligada… É uma das sequências mais notáveis do filme de 38 minutos: “uma sequência plena de vida e de arte”, acrescenta o LC.

O operador de imagem, Eugenio Bentivoglio, não se cansava, já no regresso à base, de falar do medo, “la grande paura”, que experimentara, o maior de toda a sua vida, enquanto o realizador se mostrava mais calmo: pertencente a uma geração mais velha, conhecera a guerra e os seus horrores.

E num comentário, algo “naif” mas não menos fanfarrão, o LC (que nunca foi grande combatente, diga-se de passagem) acrescenta: a seu lado (do Piero Nelli), e ainda debaixo de fogo, “o comandante Joaquim Furtado (…) chamava a sua atenção para a beleza dos patos selvagens que esvoaçavam a alguns metros do lugar onde passavam, afastando-se do perigo iminente que vinha do lado da estrada” (pág. 264).

No dia seguinte, e para despedida do LC e dos seus amigos italianos, tudo acabou em bem, com um “grande comício” em que tomaram a palavra o Osvaldo Vieira e o Chico Mendes (tido por grande orador).

O Piero Nelli “chorou” ao deixar o Morés, garante o LC. E mais disse: que com o seu filme, o realizador italiano “ ia procurar ser o mais fiel possível, para transmitir ao espectador europeu que, como ele, nada sabia sobre a nossa luta, os sentimenmtos que vivera tão intensamente no nosso pais “ (pp. 266/267).

E arremata o LC:

 “Parece que conseguiu. O seu filme, ‘Labanta Negro’, título de um poema do cabo-verdiano Dambará (***), poeta das ilhas, recitado em Morés por um dos alunos, foi premiado com o Leão de Ouro do Festival de Veneza, como o melhor documentário do ano” (pág. 267).

Visto à distância de mais de meio século, parece ser um vulgar filme de propaganda, de estética tardo-neorrealista, que já não faz chorar ninguém…O realizador é incapaz do necessário distanciamento afetivo e do espírito crítico que deve ter o cinema documental… E a voz “off” do narrador, monocórdica, parece a de um (mau) locutor de serviço.

2. 
 O filme "Labanta Negro" (1966) (38' 44'')  em italiano, com falas em crioulo, está disponível no You Tube, na conta Archivio Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico, desde 21/03/2019.

Ficha técnica: Labanta Negro! 

Cópia integral: https://goo.gl/Q7PCy2 

Realização: Piero Nelli. 

Produção: Reiac Film, Itália. 

Ano: 1966. 

Duração: 38' 44''.

Aconselha-se a ver o documentário com as legendas em italiano, que são geradas automatiocamente (vd. definições). E uma vez que a narração é muita rápida, é preferível optar por uma reprodução mais lenta).

Sinopse (adapt. do italiano por LG): 

Em crioulo "Labanta, Negro!" (1966) significa "Levante-te, negro!". O filme, pensado como um diário, quer ser um testemunho da luta pela independência da colónia portuguesa da Guiné, a partir dos "territórios já libertados" (caso do Morés, por exemplo), onde a guerra e a actividade militar coexistem com a criação das primeiras estruturas de uma sociedade civil africana que se organiza na floresta, nas aldeias, nas savanas. 

O filme mostra, entre outras coisas, as "aldeias destruídas pelos bombardeamentos portugueses"  e os restos de um avião, um T6,  abatido em 1963 . 

Algumas sequências são dedicadas a uma reunião do PALGC, onde Luís Cabral intervém sobre a "luta de libertação"; também é registrado o depoimento de Osvaldo Vieira, comandante do Exército do Norte. As imagens de um confronto com uma patrulha portuguesa na estrata de Mansoa-Mansabá, em 11/2/1966, e do posterior regresso dos guerrilheiros à base do Morès (uma dramática sequência entre os minutos 30 e 34) encerram o documentário. 

Este documentário foi recebido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, como prova testemunhal sobre a situação da "província ultramarina portuguesa" da "Guiné Cabo Verde" (sic).

No texto acima, seguimos as memórias do Luís Cabral para sabermos algo mais sobre o "making of" do filme, que teve na altura algum sucesso e contribuiu bastante levar a luta do partido de Amílcar Cabral (AC) ao conhecimento do público europeu, nomeadamente em Itália.  O filme teve alguma projeção, ao ganhar o prémio para o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1966.
___________

Notas do editor:

(*) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 372.

(**) Vd. postes:



(***)  Kaoberdiano Dambará era o pseudónimo literário do poeta, escritor e advogado, cabo-verdiano,  lcenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Felisberto Vieira Lopes (Santa Catarina, Santiago, 1937 – 2020), 


(...) Vieira Lopes/Kaoberdiano Dambará é uma personalidade marcante, única e incontornável da literatura e da advocacia cabo-verdiana. Escolheu-se aqui homenageá-lo apresentando as publicações onde ele assina com o pseudónimo poético revolucionário, escritas em fases marcantes da sua vida: Noti (1964), fase de euforia e de engajamento na luta pela independência; e A saída da Crise não é pelo Anteprojecto da Constituição (1980), fase de desencanto e de combate ao regime de partido único instaurado no país com a independência. (...)

(...) "Noti": Livro de poemas em crioulo, edição do Departamento da Informação e Propaganda do Comité Central do PAIGC, França 1964, com introdução de Ioti Kunta (pseudónimo de Jorge Querido), é uma das obras poéticas mais representativas da poesia engajada na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. (...)

quinta-feira, 2 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24112: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte IV: a visita da delegação militar da OUA, em 1965, às bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari, na região Norte do PAIGC




Três fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2104),

"Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43'').

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de n
otas avulsas de leitura do livro  "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (*):

Visita da missão militar da OUA em 1965 (pp. 287 –297)


Que fique claro: desde sempre falámos aqui, neste blogue, do PAIGC, da sua história, dos seus dirigentes e combatentes, da sua organizaçãoo, do seu armamento, das suas bases ("barracas") e linhas de infiltração, das suas operações, das sus baixas, dos países que o apoaivam (incluindo a Suécia), da sua propaganda, dos  livros e dos filmes que falam deles, etc... 

Sempre falámos sem quaisquer complexos. O nosso tom é  necessariamente  crítico: afinal somos um blogue de antigos combatentes e não combatemos contra fantasmas... ou extraterrestres... Esses fantasmas ou extraterrestres tinham um rosto e nome: Amílcar Cabral, Luis  Cabral, 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, etc. , figuras que já nem sequer estão vivas.... 

Nunca os exaltámos mas também nunca escondemos  que não os podíamos ignorar.  A guerra (que foi um sangrento jogo de xadrez)  já acabou há meio século e é natural que haja memórias que se cruzam, quer gostemos ou não...  Mário Dias, por exemplo, fez a tropa, o 1ºCSM,com o Domingos Ramos... Já escreveu aqui, em tempos, um poste memorável sobre os seus encontros e desencontros... E, de um modo geral, todos temos alguma curiosidade em saber como era o inimigo de ontem, por onde andava, o que se escrevia sobre ele, etc. 

Feita esta prevenção pedagógica, a título meramente introdutório,  voltamos a dizer que um dos problemas com que se depara o leitor, desapaixonado. atento e crítico, da "Crónica da Libertação", de Luís Cabral (Lisboa, O Jornal, 1984) (*), é a oum ralidade da narrativa: o autor segue um fio condutor temporal, desde o início da criação do PAI (e depois PAIGC), passando pelo desenvolvolvimento da luta e acabando no assassinato do Amílcar Cabral em janeiro de 1972. Mas nem sempre (ou raramente) há datas precisas.

Sabe-se,por outras fontes, que a primeira visita da missão militar da OUA - Organização da Unidade Africana, criada em 1963, em Adis Adeba, ocorreu em 1965, com início em 23 de julho: em 20 de agosto a comissão militar da OUA dá por findos os seus trabalhos, tendo consegudo visitar instalações do PAIGC mas não as da FLING. Temos de reconhecer, em todo o caso, essa não era a melhor altura do ano , pro se estar em plena época das chuvas, para visitar um território como a Guiné.  

É possível que a delegação se tenha desdobrado, com uns observadores a visitar o Norte e outros o Sul. Por outro lado, sabe-se que Amílcar Cabral escreveu   em julho de 1965,   um "projecto do programa de trabalho da Comissão Militar da OUA incluindo a visita ao Secretariado Geral e às instalações civis do PAIGC em Conakry, bem como às bases militares em Boké e Koundara", visita essa que seria feita, obviamente,  de carrro...

Em 1965 o PAIGC ainda se procurava legitimar, aos olhos de África e do Mundo, que era o único representante dos povos de Guiné e Cabo Verde. Nomeadamente no Senegal, havia (e era tolerada) a presença de representantes de outros movimentos nacionalistas, nomeadamente da FLING. Amílcar Cabral tinha já preocupações hegemónicas (para não dizer totalitárias), não admitindo que houvesse rivais, para mais "oportunistas" (sic) na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Por outro lado, a intenção do PAIGC (ou do seu estratega, Amílcar Cabral) era também a de convencer os membros da OUA, de que precisava de mais e melhor armamento para poder combater, com eficácia, a tropa portuguesa (incluindo a marinha e a aviação).  

Daí a visita da missão militar da OUA, há muito pedida, com uma delegação  que, no Norte, e segundo o Luís Cabarl (LC), era composta por representantes (todos oficiais subalternos) de 4 países: Guiné Conacri (tenente Djarra), Senegal (capitão Tavares), Marrocos (um tenente) e Mauritânia (um outro tenente) (pág. 288).  Naturalmente, uma missão militar, com postos de baixa patente, como está,  vale o que vale...

Curiosamente, a visita realizou-se, segundo o autor, numa altura de crise política entre estes países, entre Marrocos e a Mauritânia, por um lado, e entre o Senegal e Guiné-Conacri, por outro.  Mas o Amílcar Cabral pôs todo o empenho em que a visita decorresse da melhor maneira e com toda a segurança. 

Há instruções escritas  por ele para o 'Nino' Vieira que estava no Sul. Mas, no Norte delegou no seu meio-irmão, o LC, o acompanhamento da missão. Fala-se na chegada da missão militar (de 3 elementos) da OUA  a Conacri a 15 de junho, mas a carta, manuscrita, de 5 páginas não tem indicação do ano: "É muito possível que o Luís os acompanhe. Depois de visitarem o Sul, irão ao Norte, onde temos de acabar para sempre com as mentiras dos oportunistas" (sic) (referência à FLING):

A delegação da OUA, no Norte,  terá percorrido, durante quase uma semana, cerca de 250 quilómetros, o que nos parece exagero (no caso de o trajeto ter sido feito sempre a pé). Partindo do Senegal, começaram pela base de São Domingos, no noroeste do território, sendo armados (sic) pelo ‘comandante’ Lúcio Soares. O LC e o o seu protegido Xico Mendes acompanharam toda a missão que visitou também a bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari.

Esclarece-nos o LC, que a entrada principal para a Frente Norte, passando pela fronteira com o Senegal, durante muito tempo, situava-se no sector de Sambuiá (pág. 288).

A força do PAIGC ali estacionada tinha como missão assegurar a passagem de homens e material, da fronteira ao rio Farim.

A base situava-se “a pouco mais ou menos três horas de marcha da fronteira” (sic). A vegetação era exuberante, devido à elevada humidade da região. A base era, por isso, das mais frias da Frente Norte, sobretudo no final e princípio do ano . (A referência de LG ao frio que se fazia sentir logo de manhã, leva-nos a pensar que a visita tenha ocorrido em finais de 1965.)

O comandante da base de Sambuiá era então o Bobo Queita, antigo jogador de futebol.  A base tinha abrigos, estando ao alcance da artilharia de Farim. Daqui a missão seguiu em direção da cambança da margem direita do rio Farim, onde uma canoa devia transportá-los a Jagali (lê-se: Djagali) (pág. 289).

Entre a mata de Sambuiá e o rio Farim há uma “larga e descampada planície”, uma enorme lala em que se fica a descoberto.

“Nô pintcha!”, dizia-se então. A expressão tinha vários significados, segundo o autor: 

”Era a chamada para a guerra para a marcha, para a comida, talvez até para o amor” (…) Ou seja: “chamava à realização de algo que exigia a participação de mais de uma pessoa” (pág. 289). 

A expressão não se sabe onde nasceu, durante a guerrilha, se no Norte, no Sul ou no Leste, di o LC.

“A imensa lala de Sambuiá, que se atravessava sem um suspiro de descanso, devido ao perigo que representava ser-se ali surpreendido pela aviação inimiga, ia-se tornando cada vez mais pesada à medida que se aproximava do rio” (pág. 289).

O rio Farim era navegável. Os barcos das companhias comerciais (Gouveia, Ultramarina, etc.) iam a Bigene, a Binta e mesmo até Farim para trazer a mancarra, o coconote ou a “maalira” (que eu não sei o que é, mas presumo que seja uma corruptela de “madeira” ).

O LC aproveita para descrever a paisagem:

“A paisagem que se desfrutava da cambança era de uma beleza impressionante. O rio estenda-se em curvas sinuosas ao longo da sua bacia, bordada nas duas margens pelo verde exuberante das matas de tarrafes, com os seus ramos e raízes emaranhados, donde se destacavam troncos esguios de altura surpreendente (pág. 290).

As populações da margem direita “cedo aderiram à luta de libertação” (sic) (pág. 291), e por isso aquela era uma zona de guerra. Para a guerrilha era um risco permanente atravessar o rio. Sabemos que as NT (sobretudo os fuzileiros) montavam emboscadas em pontos de cambança já conhecidos. Será aqui que morreram em 1972 a Titina Silá.

Feita a cambança, em canoa, a missão dirigiu-se para Djagali, reconstruída pela população (pág. 292). Aquando da receção da comissão da OUA , um navio da marinha flagela Djagali (pág.293).

Mas eram “raras as pessoas” (sic) que se apresentaram para saudar os visitantes. Explicação do LC:

“Havia algum tempo que as populações abandonavam as suas habitações, depois do bombardeamento da tabanca, antes do romper do dia, para só regressarem depois do sol posto, quando a aviação já não podia trazer à tabanca a morte ou a dor com as suas bombas criminosas” (pág. 292).

Os combatentes das FARP eram jovens cuja idade média não ultrapassava os 20 anos” (sic). Trajavam uniformes “muito variados”, com “calças e camisas muito diferentes umas das outras” (pág. 292).

Uma hora depois LC e os seus convidados estavam em Maqué. O comandante era o Quemo Mané (pág. 294). À noite ouviu-se uma explosão, ali perto. Um jovem auxilitar de enfermagem tinha accionado uma mina A/P, que lhe provocou a morte.

“Elementos das milícias coloniais africanas de Bissorã tinham-se infiltrado na área, certamemte no começo da noite, para colocar a mina antipessoal (…) no caminho que ligava a antiga base à fonte de Maqué” (pág. 294).

Os militares da OUA ainda visitaram as bases de Morés e Canjambari. Sabemos, pelo que conta LC, que produziram um relatório. Eu gostaria de o ler e confrontar com o relatondo do LC. Mas onde encontrar, na Net, esse relatório da OUA de 1965?

Parece que as relações do PAIGC com o Senegal de Senghor melhoraram um bom bocado, a partir daí, autorizando o governo senegalês o trânsito de homens e mercadorias pelo seu território. Mas não autorizava ainda que o PAIGC dispusesse de depósitos de armas e munições. Foi um passo: a partir daqui começaram a aparecer, cremos  que em 1967,  os primeiros “armazéns do povo”  (nome algo pomposo...para abastecimento de víveres e outros artigos não só à guerrilha como às populações da linha fronteiriça sob controlo do PAIGC (pp. 296/297).

Sabe-se que em outubro de 1965 , o Amílcar Cabral tinha marcado mais uns pontos: o seu partido fora reconhecido pela OUA como "o único movimento de libertação" da Guiné. No mesmo mês em que Portugal conseguia obter o fornecimento de 40 Fiat-G 91 R/4 por parte da Alemanha, fora dos acordos da NATO.

(Continua)


Guiné > Região do Oio >  Localização aproximada de algumas das "barracas" (ou bases...) do PAIGC  por onde terá passado, em visita, em 1965, a primeira missão militar da OUA:  Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari... Não consta que tenham os homens da OUA tenham ido com o lC do a Sará, que era mais longe e arriscado...

Infografia: Jorge Araújo (2018)
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Nota do editor:

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Foi uma belíssima escritora, de um ecletismo com forte propensão para a literatura juvenil e uma vertente memorial de grande rigor e sobriedade. Nunca se deixou condicionar pelo facto de ser casada com António Ferro, o responsável pela propaganda do Estado Novo. O que aqui se refere é a sua vivência em Bolama, o pai era o responsável da capitania do Porto, chegou aqui pela primeira vez com 13 anos, foi uma estadia traumática, a mãe faleceu provavelmente de febre-amarela, foi recambiada com o irmão pequeno para Portugal, voltará mais tarde, entretanto o pai voltou a casar, há mais irmãos, mandou a roda da fortuna uma nova colocação em Bolama, ela praticamente omite a segunda estadia, mas que aquela Guiné a subjugou é bem patente nesta "África Raiz" publicada em 1966, é uma elegia onde se misturam a ode triunfal com atmosferas misteriosas, onde pesa muitíssimo o exotismo, a floresta densa, os intermináveis fios de água. Lê-se com imenso agrado esta poetisa marcada pelo modernismo, cantando a África mãe, empolgada, chamando-lhe mater e matriz: "tu, África és raiz, és raiz".

Um abraço do
Mário


Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense

Mário Beja Santos

A escritora Fernanda de Castro (1900-1994) viveu na infância em Bolama, e "África Raiz", poema publicado em 1966 é uma obra modernista eivada de recordações desse tempo juvenil em que o pai dirigia a capitania de Bolama, não faltam no livro as referências que a memória reteve, as florestas, rios de água, aromas, o sortilégio das noites africanas, batuques, a flor do cajueiro, as danças. 

À data da edição, Fernanda de Castro era já uma autora prolífica, detentora de uma obra volumosa que se estendia pela poesia, pelo romance, teatro, literatura infantil e romance. Mariazinha em África foi o seu maior sucesso, remexeu neste romance as vezes que foram necessárias, de acordo com a necessidade de mudar o olhar colonial, evolutivo, de acordo com o ideário do Estado Novo. O poema "África Raiz" é dedicado à terra de Bolama, onde a sua mãe faleceu e está sepultada.

O tom exaltativo e exultativo arranca logo nos primeiros versos:

“África,/ no teu corpo rugem feras,/ uivam fomes e medos ancestrais,/ no teu sangue há marés,/ na tua pele há dardos e punhais./ Ventre de Continente,/ és mater e matriz./ Ásia é semente, Europa é flor,/ outros serão essência ou tronco,/ tu, África, és raiz”

Fala-nos de florestas venenosas de gigantes, de ciclopes vegetais, de pirogas e crocodilos, do rastejar das cobras, do esvoaçar dos jagudis, é uma permanente apoteose de musicalidade, entremeando-se do cheiro do almíscar, dos corpos em convulsão, não faltam tapetes vegetais, florestas fechadas, contas e missangas, o inevitável poilão, e lança-se, empolgada, como que desafiando tudo quanto a memória reteve:

“Ó África, raiz de quantas Áfricas/ pelo mundo espalhadas lhe consentes./ África mítica dos mitos/ de cinco Continentes./ África negra em cujas veias corre/ um sangue denso e grosso./ África impenetrável, obstinada, desbravada a machado, troço a troço”

Atenta aos costumes do quotidiano, deixa-nos um outro apontamento da memória: 

“Mulheres e bajudas/ lavam roupa no rio./ Veias de sangue branco, os rios,/ quilómetros de veias que percorrem/ a terra calcinada,/ que alimentam/ o arroz e dessedentam/ os pés de milho e de mancarra./ Escondida no mangue,/ uma piroga, sem remos, sem amarra,/ parece um velho tronco,/ um crocodilo à tona de água”.

A elegia é permanente, marcou-lhe a juventude aquela Bolama, como veremos mais adiante no seu texto "Ao Fim da Memória I, 1906-1939", deixemo-nos por enquanto com a sua ode triunfal:

“África das manhãs de Paraíso, com pombas e gazelas e açucenas/, com doces frutos nunca proibidos,/ e cantos de marimbas e de avenas”

Há o sino da igreja, e logo me ocorreu que a Igreja de Bolama que ela frequentou foi devorada pelo incêndio, aquela em cuja missa participei oficiada em crioulo é outra, crianças e adultos cantando, talvez os convertidos Mancanha e Manjaco, Balanta e Baiote, Papel e Bijagó que ela também conheceu. Fernanda de Castro é uma sexagenária avançada quando produziu "África Raiz", brotou-lhe espontânea aquela África voluptuosa e seguramente as lembranças da jovem adolescente que ouviu trovões e se impressionou com o desabamento das águas, como escreveu:

“E de repente/ uma nuvem de chumbo tapa o Sol,/ como asa de agoiro,/ e um vento negro escarva, muge, arranca,/ com a fúria de um toiro./ O céu ruge trovões, estoira lumes/ nas copas incendiadas, as rajadas/ retalham como gumes/ de aceradas espadas,/ arrancam arrozais, abrem crateras,/ uivando como lobos,/ como esfaimadas feras./ Tudo é calor,/ suor,/ tudo é cinzento,/ o céu e o vento”.

Nas suas memórias, inevitavelmente que tudo começa pela apresentação de Bolama, onde chega com a mãe e o irmão, receção apoteótica do pai, lembra-se que ao longo do cais havia muita gente, “Deram-me na vista, acima de todos, os Bijagós com os seus saiotes de palha, os Mancanhas embrulhados em grandes panos azuis e os Mandingas com as suas cabaias de um branco imaculado”. Sobressaía o Palácio do Governo, o edifício mais imponente, mas sem rasto de beleza e ali perto o edifício da capitania, logo se agradou de um jardim em que havia bananeiras e papaeiras e uma grande quantidade de hibiscos de grandes flores encarnadas.

“A cidade de Bolama era na realidade uma pequena vila provinciana que poderia parecer alentejana, por exemplo, se não fossem os trajes garridos, os planos coloridos das mulheres, os balaios que traziam à cabeça, e se não fossem também os capacetes coloniais, que os brancos eram obrigados a usar se queriam cometer a imprudência de sair à hora do calor”.

 Criou amizades, a sua vida era simples e agradável, faziam a sesta sobre a proteção de grandes mosquiteiros de tule, à noite havia sempre visitas, ela tem 13 anos, não se apercebe das dores de cabeça da mãe que irá inopinadamente morrer de febre amarela. E é o regresso dramático a Lisboa com o irmãozinho, uma viagem que se arrasta com uma estadia inesperada em Cabo Verde. Manda a roda da fortuna que se diga que o pai irá de novo casar e anos depois será de novo colocado na Capitania de Bolama, viagem de navio, não se recorda exatamente se foi no Bolama se no Guiné, de novo uma avaria em Cabo Verde, ficaram um mês retidos em S. Vicente, onde um jovem se mostrou galante, ela totalmente indiferente e um belo dia chegaram a Bolama, não nos ficará registo do que aqui se passou.

O seu legado principal, insiste-se, é o romance "Mariazinha em África", um sucesso de décadas. Leopoldo Amado no seu trabalho sobre a literatura colonial guineense dar-lhe-á um grande apreço. Uma outra nota singular é referir que outra escritora passou por Bolama, e deixou-nos páginas tumultuosas da época das chuvas, foi Maria Archer.

Lê-se o testemunho de Fernanda de Castro e o que mais pesa é a morte da sua mãe, aquela noite em que ela e o irmão foram tirados do sono e rapidamente recambiados para Bissau:

“Eu estava exausta, sacudida por maus pressentimentos, mas apesar disso adormeci. Quando o meu pai chegou, desfeito, com ar alucinado e as lágrimas a correrem-lhe em fio, esqueceu as palavras que por certo preparara e disse-me apenas, apertando-me convulsivamente:
- Morreu! A tua mãe morreu há duas horas. E agora, agora, o que vai ser de nós. E eu não conseguia dizer nada, chorava também convulsivamente, misturando as minhas lágrimas com as dele.”


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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O sucesso obtido em sucessivas edições do "Comandante Hussi" que começou por ser uma reportagem do conhecido jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo acerca de uma criança que foi envolvida no conflito político-militar de 1998-1999, um estafeta-mascote que recusou abandonar o campo de batalha para ficar ao lado do pai, antigo combatente que aderiu à causa de Ansumane Mané. António Hussi vai viver em cheio a guerra desde junho de 1998 a maio de 1999, e enquanto em Bissau e um pouco por todo o país se sente o vento libertador do fim de uma tirania, Hussi veio a correr a casa à procura do seu tesouro, uma bicicleta desconjuntada, comoveu-se ao ver que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. "Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta". Metáfora de uma criança contente com a simplicidade do seu tesouro, e temos aqui algumas das páginas esmaltadas da literatura da lusofonia.

Um abraço do
Mário



Comandante Hussi: uma reportagem que deu brado, inesquecível

Mário Beja Santos

Comandante Hussi[*], uma das obras mais dramáticas e ternas do que se pode designar por literatura de guerra, antes de aparecer sob a forma de livro foi editado como reportagem num jornal, e por tal razão, atendendo à altíssima qualidade do texto, José Vegar [foto à direita], selecionador, prefaciador e anotador do livro "Reportagem", uma antologia, Assírio & Alvim, 2001, deu primazia ao trabalho de Jorge Araújo, experiente em cenários de guerra. Como Vegar escreve: 

“No caso do conflito na Guiné-Bissau, Jorge Araújo – profissional desde 1986, na Televisão de Cabo Verde, BBC, Já e O Independente – foi particularmente feliz. Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a Batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta”

Mas antes de se falar das aventuras de António Hussi, retorne-se ao prefácio de Vegar:

“Das vinte reportagens reunidas nesta antologia, seis são sobre a guerra, uma, a de Timor, sobre uma operação militar contra um povo indefeso, oito sobre problemas ou acontecimentos sociais importantes, duas sobre personagens ou factos na nossa História contemporânea, uma sobre um tycoon dos media, outra é puro jornalismo de viagem e uma última sobre política”

Elogia o papel que a reportagem tem no jornalismo, deplora cada vez menos espaço que a reportagem tem na substância dos jornais, mas também recrimina o jornalista, assim: 

“A restante parte da culpa pertence aos próprios jornalistas portugueses, à sua cultura profissional. Por não considerarem o jornalismo como uma Arte, que tem história, estilos, períodos, ruturas e mestres, que importa conhecer. Por ignorarem que nenhuma história se faz sem alma, essa entidade imaterial que gera curiosidade, paciência e o supremo gozo de encontrar os factos e as pessoas a escrever sobre eles”.

Jorge Araújo [foto à esquerda] publicou "Comandante Hussi" no jornal “O Independente”, em fevereiro de 1999, e arranca com um parágrafo que captura imediatamente o leitor:

“Era uma vez um menino. Pobre mas feliz. Feliz porque tinha um tesouro. Não era um vistoso boneco do Rambo – daqueles que se transformam em carro de combate e em avião supersónico –, nem mesmo uma sofisticada metralhadora de brincadeira, que acende uma luzinha irritante e faz mais barulho do que qualquer arma de verdade. Muito menos um computador capaz de navegar pela Internet e com jogos que desafiam até as madrugadas mais longas. Era um tesouro que só uma criança pobre pode ter”.

E descreve esse tesouro, uma bicicleta reduzida a um escombro, pintada de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. Mas um tesouro, era o único presente que o pai algum dia pôde oferecer-lhe. “Porque era tudo o que dinheiro de pobre pode comprar”.

Segue-se o contexto familiar e um acontecimento inopinado, o princípio da guerra, as famílias em fuga, naquele dia 7 de junho rapidamente a população de Bissau se apercebeu que o inferno lhes batera à porta. Acompanhou a família, choroso por deixar a sua bicicleta, mas chegado a Nhacra, justificando saudades do pai, Ablei Sissé, um dos muitos antigos combatentes da liberdade da Pátria que se juntaram ao brigadeiro Ansumane Mané, deu meia volta, fugiu, fintou bombas e tiros e chegado a Bissau perguntou pelo pai, deu-se o reencontro, o pai furioso, sovou-o, aquilo não era lugar para uma criança, mas António Hussi insistiu em ficar, o pai cedeu. 

“Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase 11 meses o principal prato do dia era uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. E conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição”.

Assistiu à humilhação dos milhares de soldados do Senegal e da Guiné Conacri que morreram ou fugiram sem honra nem glória. Tentou-se a paz. Até que no dia 6 de maio de 1999, a Junta Militar lançou-se no ataque final, as tropas de Ansumane Mané puseram todos os apoiantes de Nino Vieira em debandada. Nino, considerado o maior herói da luta de libertação vivo, vencido, humilhado, procurou refúgio na Embaixada de Portugal.

O estado de Bissau era calamitoso, o Hotel Hotti e o Mercado de Bandim num perfeito abandono. Hussi estava exultante. 

“Durante toda a noite, deliciou-se com o fogo de artifício da artilharia. Quando a madrugada acordou, o menino-soldado pedalou com as suas sandálias de plástico até à Praça Che Guevara. Assistiu à confusão em frente ao Centro Cultural Francês, com a população a gritar por vingança e a querer reduzir o edifício a cinzas. Viu os civis franceses a abandonarem o local amedrontados e as tropas especiais de Paris encurraladas na sua arrogância a sair com o rabinho entre as pernas. Uns e outros refugiaram-se na Embaixada de Portugal. Viu também os livros, que nunca teve, serem consumidos pelas chamas assassinas. E a pilhagem que se seguiu. E apanhou uma fitinha tricolor, que agora coloca à volta da testa. É o seu único troféu de guerra”.

E depois do triunfo veio a redenção ou melhor o reencontro com a bicicleta, o seu tesouro, e se até agora acompanhámos as ditas e as desditas de uma criança que prestou serviço na guerra, uma mascote dos vitoriosos, tudo culmina quando António Hussi saiu daquela guerra e partiu para a guerra da sua vida:

“Uma das primeiras coisas que Hussi fez mal a guerra terminou foi dar um salto até à sua casa ali para os lados do Bairro de Santa Luzia. Foi uma viagem-relâmpago, que nem deu para abraçar os amigos ou participar num animado jogo de futebol. Como no início dos confrontos, todos os seus pensamentos continuavam amarrados a uma única coisa. Hussi quase chorou de alegria quando se apercebeu que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta”

Texto prodigioso que veio a dar edições ilustradas, e não menos comoventes. Aquela guerra de 1998-1999 deu azo a diferentes textos e relatos, mas nenhum deles possui a luminosidade e o prodígio de encantar como Comandante Hussi, estão ali, com marca-de-água, algumas das mais belas páginas da literatura lusófona, convém acarinhá-las e dá-las a saber às mais novas gerações para que não esqueçam o que a guerra custa e como uma criança, naqueles lugares de caos, de desespero, guarda como maior triunfo o escombro de uma bicicleta. Que texto maravilhoso, oxalá que circule na memória das novas gerações guineenses.
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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 6 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da  Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)


1. O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, já aqui fez uma exaustiva e brilhante  recensão do livro do Luís Cabral (*), livro de memórias, talvez um pouco  esquecido,  do meio-irmão de Amílcar Cabral, escrito no seu exílio.

Recorde-se que Luís Cabral esteve  detido mais de um ano no Forte da Amura, em Bissau, logo a seguir ao golpe militar de 'Nino' Vieira, seu primeiro ministro, em 14 de novembro de 1980,  até ser liberto por pressões internacionais, acabando por seguir para Cuba e Cabo Verde e por fim para Portugal, em 1984, país onde viveu até à sua morte, em 2009, vítima de doença prolongada. (Ironicamente, um mês depois de 'Nino' Vieira.) (**). 

No prefácio do livro de 461 pp., com data de outubro de 1983, e escrito na Praia,  Cabo Verde, ele diz que nunca lhe tinha passado pela cabeça escrever um livro sobre a sua vida e a sua luta. Foi na solidão da Amura, que foi tentado a escrever. E fê-lo sobretudo em homenagem ao Amílcar e demais companheiros: 

(...) "Mais tarde, já em liberdade, alguns dos meus antigos companheiros dão o seu apoio e uma apreciação amiga a este primeiro trabalho sobre a vida e a luta com o Amílcar, e, fornecendo-me importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentacão e encorajando-me a continuar a escrever as minhas lembranças sobre a heroica luta que conduziu os nossos povos à liberdade e independênci nacional" (pág. 9).

E no fim acressenta:

(...) Se é que tenho a uma pretensão, é a de considera que fiz o melhor do meu esforço para que tudo o que foi dito neste trabalho corresponda à verdade dos factos registados, embora com a consciência de, em muitos casos, não ter ainda chegado o momento de dizer toda a verdade" (pág. 11).

Não sei se o Luís Cabral chegou a ter a oportunidade, nomeadamente em entrevistas que foi dando, de "dizer toda a verdade" até ao momento da sua morte, em 2009, no antigo Hospital do Barro, nos arredores de Torres Vedras.  Ao que parece, estava nos seus planos escrever um segundo livro de memórias sobre a sua experiência como presidente da República da Guiné-Bissau. Teve 25 anos para o fazer, antes de morrer. Não chegou, infelizmente,  a escrevê-lo ou a publicá-lo. O que é pena.

Temos, todavia, que concordar que este seu primeiro (e único) livro é um documento importante para a historiografia da guerra colonial na Guiné, tanto mais que Luís Cabral era o nº 2 ou 3 do PAIGC, membro do "Bureau Político" e do "Conselho de Guerra", além de ter sido o primeiro presidente do conselho da República da Guiné-Bissau. Foi, além disso, íntimo confidente, grande admirador e fiel executante do pensamento e da estratégia  do irmão. Por outro lado, sabemos que os seus antigos companheiros, da cúpula do PAIGC,  já morreram todos ou quase todos, tendo levado para a cova os seus segredos, as suas melhores e piores memórias. Tirando Luís Cabral e Aristides Pereira, quem escreveu mais ? Ou dá a cara, falando em público, como é o caso do 'comandante' Pedro Pires ?!

Alguns antigos combatentes, membros da Tabanca Grande e/ou leitores do nosso blogue, nem sempre se sentem confortáveis quando falamos aqui do PAIGC, dos seus dirigentes, do seu pensamento e da sua história...como se o IN que combatemos, no TO da Guiné, não tivesse  um nome e protagonistas com um rosto... Como se tivéssemos combatida contra extra-terrestres!... Amílcar Cabral e Luis Cabral, por exemplo, estão na "lista negra"... Fazem parte dos ódios de estimação de alguns de nós... 

Mas se voltamos hoje a uma (re)leitura da "Crónica da Libertação" não é para santificar ou diabolizar ninguém, é apenas para melhorarmos e enriquecermos o conhecimento que temos daquele conflito em que estivemos envolvidos. E que não foi um conflito qualquer, Foi uma guerra prolongada e, em muitos casos, sangrenta e cruel. E, ainda mais do que isso, completamente estúpida e inútil.

Neste caso há "factos & mitos" que devemos pôr em evidência, numa linha que nos é cara, aqui, no blogue, que é a exploração das "memórias cruzadas", na continuação dos escritos de camaradas nossos como o Jorge Araújo, o Mário Dias, o António Rosinha ou o Patrício Ribeiro (estes dois últimos já como "paisanas", na República da Guiné-Bissau)...

Não vou cotejar o que diz (e muito menos o que omite, esquece, branqueia ou falsifica) Luís Cabral com o que os biógrafos de Amílcar Cabral  investigaram e escreveram. E são já  várias  as biografias do líder histórico do PAIGC.  Confesso que ainda não as li, conheço-as apenas das recensões que têm sido feitas, e nomeadamente pela mão do nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos. É preciso tempo e vagar para se ler, e a lista de prioridades de cada de um de nós é diferente. 

Da "Crónica da Libertação" vou, ao longo de vários postes, reter alguns pontos que me chamaram a atenção e que julgo ser também do interesse dos nossos leitores conhecer ou apurar melhor...  Por exemplo, a relação do PAIGC com os fotojornalistas e os cineastas, nomeadamente europeus, que ajudaram a alimentar o mito das "áreas libertadas", do "poder popular", dos "armazéns do povo",  das escolas e dos hospitais de campanha... 

Noutros casos, há perguntas que ficam no ar: teve ou não Luís Cabral um "copydesk" (editor literário) que o ajudou na feitura do seu livro ? Recordo-me de o saudoso Leopoldo Amado (vítima da pandemia de Covid-19, em 2021) me ter confidenciado, há uns largos anos atrás, na Feira do Livro de Lisboa, que a obra "O Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países", de Aristides Pereira  (Lisboa, Editorial Notícias, 2003, 974 pp.)  tinha sido em grande parte escrita por ele...

Não há nenhum mal nisso: muitos políticos e outras celebridades (nomeadamente do mundo do espetáculo) recorrem a jornalistas e escritores profissionais, como "copydesks", ajudando-os a publicar as suas memórias ou autobiografias...

Na ficha técnica do livro de Luís Cabral, editado em 1984 sob a chancela de "O Jornal", não há menção sequer de um revisor técnico e/ou de texto. Mas admitimos que tenha tido a ajuda de alguém na parte da escrita. No prefácio, o autor agradece, sem os citar, a "alguns dos seus antigos companheiros" que, além do apoio e estímulo, lhe forneceram "importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentação".

O livro foi publicado em julho de 1984. O prefácio escrito em outubro de 1983. E a detenção na Amura decorreu, presumivelmentre,  entre novembro de 1980 e o  final do ano de 1981 (13 meses). Esteve depois exilado  em Cuba e a seguir em Cabo Verde, nos anos de 1982 e 1983. 

O "making of" do livro deve ser deste período, mas curiosamente as referências a Cuba e à participação dos "internacionalistas cubanos" na luta ao lado do PAIGC são escassas ou discretas... Fala de um ou outro médico, mas nem sequer nos dá um número (mesmo que aproximado) dos cubanos que participaram na "luta de libertação", desde 1966. Como se isso se tratasse de um "segredo de Estado"...

O autor é também avaro ou omisso quanto a outros números: população sob controlo do PAIGC, tabancas, escolas, hospitais, armazéns do povo, "barracas" ou "bases", homens armados (incluindo milícias), mortos e feridos, ajuda externa, etc. (Quanto a desertors portugueses, acolhidos pelo PAIGC, fala em 20, se não erro.)

Luís Cabral nunca foi um "operacional", ou um "combatente", de armas na mão... Nem devia ter qualquer formação militar específica... De resto, nunca foi tratado como um comandante, como 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira ou Pedro Pires.  Pertencia ao aparelho político, ao "bureau"...  Mas tinha como pelouro, no interior do território da Guiné, a "reconstrução nacional das áreas libertadas" (sic). E, como Amílcar Cabral não tinha tempo para andar no mato, a caminhar, a pé, dias e dias, até à fronteira, o "mano" fazia as funções de "inspetor-geral"... dos combatentes e da população que os suportava... Em contrapartida, tinha boa memória para nomes, o Luís... 

De qualquer modo, é o homem de confiança do irmão para missões difíceis, nomeadamente na Região Norte e no Senegal (cujas autoridades só tardiamente abrem, ao PAIGC, o "semáf0ro verde" para o trânsito de homens armados, e de carregamentos  de armas e munições; e por essa razão o Luís passava mais tempo em Dacar, enquanto o Amílcar percorria as capelinhas a "ajuda internacional" e fazia o "marketing político" da sua "revolução africana").

A narrativa conserva um estilo de alguma oralidade, mas o autor raramente é traído pelo  crioulo guineense com que, supomos, se exprimia no dia-a-dia, para mais sendo casado com uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, Lucette Andrade (ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar), e lidando com muita gente de PAIGC de diferentes etnias. 

No final há um glossário, com 27 termos, para uso do leitor português (sem novidades para nós). O livro é ainda ilustrado com 3 dezenas de fotografias.

Numa primeira impressão, o livro tem algo de hagiográfico: o Luís Cabral viveu muito em função do irmão, que admirava acriticamente, pondo-o  no altar dos deuses ou semi-deuses (que para os gregos eram os heróis). E não é por acaso que as suas memórias acabam com as derradeiras recordações do Amílcar, no dia a seguir à sua morte em Conacri... 

Um dia depois, a 21 de janeiro de 1973, Luís chega a Dacar, e só então sabe da trágica notícia... É o último a saber, cruel ironia!... Senghor põe então um avião à disposição da delegação do PAIGC que se desloca a Conacri para as cerimónias fúnebres"...

Trata-se, mais do que um trajeto pessoal (o do guineense Luís Cabral, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, antigo contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma cunha do irmão, conceituado engenheiro agrónomo): é, de facto, uma crónica da "luta de libertação",  mas ao mesmo tempo é também a crónica de uma morte anunciada,  parafraseando o título de um dos romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez.  

Ao longo destas quatrocentas e tal páginas, que seguem um fio cronológico, embora sejam avaras em datas precisas, o autor não esconde que o seu irmão foi sendo alvo de várias tentativas de assassinato por parte de homens do seu partido... (A lista parece ser bem maior do que as referidas por Luís Cabral.) (***). A última, em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, foi fatal. 

Mas o Luís é incapaz de perceber as razões e as motivações que estão por detrás desta tragédia: como é que um homem como o irmão, Amílcar,  tão amado e até idolatrado por tantos, podia ser também tão odiado por alguns, para mais estando dele tão próximos ?

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


(...) É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas. (...) 

(**) Vd. poste de 1 de junho de  2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24027: (In)citações (228): Na morte do Francisco Silva (1948-2023), relembrando o cmdt do Pel Caç Nat 51, Nuno Gonçalves da Costa, assassinado por um dos seus homens, em Jumbembem, em 16/7/1973 (Manuel Luís R. Sousa, SAj Ref, GNR)

1. Comentário (*) do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa (sargento-ajudante da GNR na situação de reforma; ex-soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74; autor do livro "Prece de um Combatente - Nos trilhos e trincheiras da guerra colonial" (2012) (**): tem 46 referências no nosso blogue, e entrou para a Tabanca Grande em 31/3/2011.
 

A MORTE DO ALFERES NUNO GONÇALVES DA COSTA

por Manuel Luís Rodrigues Sousa

(excerto do meu livro "Prece de um Combatente", 2012, imagem da capa à esquerda).

Em março ou abril de 1973, Jumbembém foi reforçado com um pelotão de militares nativos, para suprir a falta do 1.º pelotão acabado de ser colocado em Canjambari, um quartel a sul de Jumbembém, a cerca de doze quilómetros, juntamente com outro pelotão de Cuntima, em substituição de uma companhia que dali foi retirada.

Desse pelotão de nativos, o Pel Caç Nat 51,  apenas os comandos, o alferes, Nuno Gonçalves da Costa,  e um furriel, eram de origem metropolitana.

Num dia em que se realizava a habitual coluna de reabastecimentos a Jumbembém, Cuntima e Canjambari, a 
16 de julho de 1973, um dos elementos deste pelotão pediu ao alferes Costa, ao seu comandante, para o deixar seguir na coluna de Jumbembém para Cuntima para visitar familiares.
Tratando-se de um militar rebelde e indisciplinado, como forma de o castigar, o alferes não autorizou a sua deslocação a Cuntima.

Perante esta recusa, o referido militar deslocou-se ao quarto do alferes, em fim de comissão e quase formado em medicina, com um futuro promissor pela frente, disparando contra ele dois ou três tiros de G3, atingindo-o na região do abdómen.

Foi-lhe prestada a assistência possível na enfermaria, enquanto se aguardava a evacuação por meios aéreos que entretanto foi pedida.

Passada pouco mais de uma hora veio a falecer, perante a impossibilidade de ser evacuado por falta desses meios aéreos, cujo uso era já particularmente restritivo, em consequência dos mísseis Strela ao dispor do PAIGC.

Este caso ilustra bem a perda do controlo aéreo na Guiné das Forças Armadas Portuguesas a que faço referência noutra parte do livro.

O referido alferes Costa era natural de Campos de Sá, S. Jorge, Arcos de Valdevez.

Após a sua morte, foi substituído pelo alferes Francisco Silva. Foi nestas circunstâncias que o alferes Silva chegou a Jumbembém. 

Que descansem em paz o alferes Silva, bem como malogrado alferes Costa. (****)

30 de janeiro de 2023 às 19:24

(Revisão e fixação de texto: LG)
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de  2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide


(***) Vd. postes de:


(...) Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e, voltou a ser pedido insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

O nativo foi preso com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia queriam fazer justiça pelas próprias mãos (linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:

- Não lhe toquem!

Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.

Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura “Berliet” e uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do Batalhão 4512).

A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais,  ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé. Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante - Ten Cor Vaz Antunes -, ou o 2º comandante Major Menezes, já não me lembro bem).

Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.

Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.

Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a “Ilha das Cobras”.

Para substituir o comando do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva (madeirense), que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. (...)


(****) Último poste da série > 27 de dezembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23921: (In)citações (227): As cheias, estas e as outras (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)