Caríssimos Luís e Vinhal:
Vai, sem mais demora, um grande abraço para vocês, extensivo aos co-editores e outros colaboradores deste fantástico Blogue gerador da grande família que são os ex-Combatentes da Guiné (há quem defenda que se deve tirar o “ex”).
Em anexo vai mais uma história (100% verídica, claro) para o Blogue, que vocês usarão no indiscutível critério de a pôr ou não e sempre de resultado por mim aceite e de cara alegre.
Pronto e às ordens.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Uma história de “Guiné minha”
Dos tais salpicos, das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
Como se apanha uma alcunha logo no primeiro dia de Guiné e fica-se com ela até (pelo menos) à despedida da malta no Cais da Rocha Conde de Óbidos.
Ainda hoje muitos conhecem-se pelas alcunhas e, em alguns casos, sem se ficar a saber os nomes próprios. E isto passados 44 longos anos após o regresso da Guiné.
Pois, nos nossos encontros anuais de Convívio, ainda as alcunhas funcionam e alguns até fazem questão de por assim serem chamados. Nomes de guerra, como se pode dizer, não deram para esquecer.
O Seiscentos, o Barrumas, o Pele-e-osso, o Passarinho, o Trovoada, o Paparôco, o Doutor, o Cow-boy, etc, e mais este que passo a contar:
Chegamos a Bissau, a bordo do Niassa, aos 26 dias do mês de Maio de 1965. Meio-dia, sol brilhante e muito quente este a prenunciar o tempo das chuvas que estava a chegar (não sabíamos, mas ficámos logo a saber).
O Niassa ficou ao largo, devido ao calado (o do barco), e seguia para Angola, aqui também de passagem a deixar tropas e em viagem até Timor.
A última meia milha para o cais de Bissau foi feita em LDG.
Saltámos para as viaturas ali pertinho da Fortaleza d’Amura e, em grande velocidade, a Companhia foi auto-transportada até ao aquartelamento de Brá.
Ficaríamos ali 13 dias. Depois, ala que se faz tarde: OIO. Manga de chocolate, disseram-nos, à despedida de Brá os que ali ficaram de fato amarelo já algo coçado e aterrado, “comandos” e do Briote se calhar.
Nos dias que ficámos em Brá tínhamos transporte por viatura militar a horas pré-determinadas para Bissau e volta.
O primeiro jantar resolvemos, uns poucos de Furriéis da 816, ir comer a um restaurante a Bissau.
Fomos cair ao Tropical, não sei como.
No Tropical comiam-se boas ostras passadas por molho picante num pires e, o que até não era preciso, a puxar por a cerveja. Garrafas de (julgo de 66cl) bebidas em dois ou três tempos.
Isto, mais tarde, quando se passava por Bissau e em transito para férias na metrópole.
Aqui as garrafas vazias de cerveja iam-se amontoando no chão junto à pedreira (as conchas das ostras) e ao lado de cada um, isto é do responsável pelo “lixo” que fazia.
O restaurante ficava numa rua paralela à avenida da República e do lado norte da cidade e na mesma rua do Solar do Dez que ficava mais abaixo lá prá marginal, julgo que relativamente perto do Pidjiguiti.
Falar em Pidjiguiti lembra a foto seguinte:
Dentro de um barco no cais de Pidjiguiti. Eu, à direita, armado em doutor e, do lado esquerdo, é mesmo o “doutor”, camarada da minha Companhia.
O restaurante tinha uma sala bonita e acolhedora. Bem frequentada. Com ar condicionado e tudo.
Gente fina nas mesas, e senhoras muito elegantes também.
Ficámos numa mesa, aí uns seis, e frango assado foi o escolhido da ementa, esta não muito diversa.
Até parecíamos uns turistas. Tudo de roupa à civil e já de indumentária tropical, mas branquinhos de epiderme. A guerra aqui, ficava ao lado, mesmo muito ao lado. Era curioso que só ao entrarmos no mato e de G3 na mão, é que nos lembrávamos que estávamos em guerra. Afora isso, borga, bola, e um uísque ali à mão também dava cá um jeitão.
Vinte anos de idade, de tanta perspectiva e expectativa!
No passeio-esplanada do Tropical, um ataque às ostras. Eu estou mais interessado na bebida do que no fotógrafo
Depois de bem comidos (salvo seja) e bem bebidos, alguém pensou em mandar vir sobremesa, mas naquela altura só havia fruta de calda. Foi a primeira vez que vi fruta em calda. Latas de um litro e em entre outras, havia de pêra, uvas, etc.
Gostei daquilo, e, no futuro, já no mato, muitas vezes ia à cantina comprar uma lata, bem fresca também.
Ainda no Tropical, abrem-se então duas latas e dividem-se as peras, irmãmente, claro.
Após a divisão da iguaria e naquele ambiente fino onde só se sussurrava (uma mesa não ouvia a outra) levanta-se no topo da minha mesa o Furriel Enfermeiro e, para que se ouvisse bem o que ele queria, diz naquele tom de acentuado sotaque algarvio ao homem que ainda tinha a lata na mão:
- Dá-me mais molhinho.
Acabou então ali a prosápia daquele grupo de Furriéis da 816 e ficou ditada a sentença. Dali para a frente, o homem que queria mais molho, passou a ser conhecido pelo Molhinho.
Nem foi preciso alguém alvitrar. Foi automático. Todos passamos a tratá-lo por Molhinho.
E quando nos despedimos no Cais da Rocha Conde de Óbidos, passados perto de dois anos, foi um:
- Até sempre… Molhinho.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 1 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8623: In Memoriam (87): Fur Mil João Fernandes Machado da Silva da CCAÇ 816, morto numa emboscada no dia 1 de Agosto de 1965 (Rui Silva)
Vd. último poste da série de 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 – P8354: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (12): Baile de Fim de Ano na Associação Comercial, mesmo ao lado do Palácio do Governador