1. Em mensagem do dia 14 de Outubro de 2011, o nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69), enviou-nos o segundo texto para publicação na sua série "Nós da memória".
NÓS DA MEMÓRIA
(…desatemos, aos poucos, alguns…)
3.1 - Baguera; Baguera
Aprontava-se o Sol para esfregar os olhos iniciando aquele dia e já eles estavam a caminhar.
Progressão cuidada, guias e um Grupo à frente e o dele logo atrás. O ruído da mata, o chilrear da passarada sossegava-os.
Entravam numa zona que fora cultivada de arroz e passaram para o cimo do muro de terra, entre os canteiros. Cuidados redobrados, passos mais lentos e os olhares a entrarem mata fora.
De repente, como sempre, um estrondo brutal um pouco atrás dele, o rebentar do tiroteio. Deitaram-se na espalda do muro para resposta pronta à emboscada, os gritos, o estranho som do chicotear de algumas balas no lado da emboscada.
- Que merda é esta?
- O carregador balanta a apontar para umas árvores atrás deles.
- Fogo, “rega” além com a MG, fogo…
Após as primeiras rajadas algo caiu com estrondo de uma árvore.
- Era macaco, dá mais uma ou duas rajadas… e pronto…
Minutos depois, ou uma eternidade depois, o silêncio só quebrado pelos gemidos dos feridos.
Sai, sai. Já pediram evacuações.
Agarrou no Furriel e carregou-o com as armas para o riacho à frente, os gemidos dele, o querer dizer algo e a resposta que ele dava para o animar. Pararam, deu-lhe água e ânimo, talvez só um olhar e um sorriso.
Dirigiram-se para o pequeno riacho quase seco e atolou-se na lama com o peso duplo de cada perna.
Surgiu então o grito: - baguera, baguera (abelhas). Parou, tentou cobrir a cabeça e cara do Camarada com o protector – um carapuço de tule ou tecido de mosquiteiro que enfiavam na cabeça. O cheiro do sangue trouxe-as mais irritadas e ele com o cabelo rapada e as ferroadas, a lama e, finalmente, o grito da ajuda.
Deixa uma arma porra. Eu levo o Furriel. Caminharam para o possível lugar da evacuação. O enfermeiro ia tratando aquela meia dúzia de feridos e o guarda-costas tirava os ferrões da cabeça dele.
Informou-se melhor do que se havia passado e a raiva veio forte, muito forte. Calma, porra. Tem calma logo os vingas. O cigarro indevidamente acesso.
Uma voz veio do lado dele:
- Não era macaco o cabrão e era mais do que um.
Riram…
3.2 - Desconforto
Já tinha ano e meio de Comissão. Sim ano e meio.
Estava farto, farto, farto. Que tédio.
De quando em vez a rotina era quebrada por uma noite de Loto. Santa Luzia animava-se então. De quando em vez interrompia-se o grito dos números pelo grito do vencedor. Tudo alegre e sorridente. Breve intervalo e novo jogo.
Havia outros, claro. Havia outros e tinham noites diferentes.
Poucas. Uma pasmaceira. Horrível viver naquelas condições. Ano e meio sem conforto, sem nada e já viera duas vezes de férias á Metrópole. Felizmente.
Diariamente era a Repartição, a papelada, aquela barafunda toda, os pedidos aborrecidos, chatos, de quem estava no mato e ele nem sabia onde. Que esperassem. Não esperava ele por lhe arranjarem o frigorifico, limpar o ventilador do ar condicionado ou outras faltas. Uma bagunça aquela Repartição.
Tudo era uma bagunça, um desconforto horrível naquela terra, naquele Quartel-General ou o que era. Até a casa onde estava instalado. Imprópria. Quando muito dava para duas pessoas. Estavam quatro, quatro oficiais – três Alferes e um velho Capitão do SGE. Ressonava o Capitão. Talvez o peso dos galões lhe tivesse entupido os cornetos.
Pior era o frigorífico. De quando em vez ou por carga excessiva ou pela electricidade não arrefecia o suficiente. Horrível viver assim.
Ainda faltavam seis meses, seis longos meses.
Mas já saíra de Bissau. Fora, com um Piloto amigo de infância, a Bolama e a Farim. Não gostara nada. Só a paisagem vista por detrás da janela da DO.
Ouvira ainda, raramente, o som de rebentamentos lá longe. Uma vez disseram-lhe ser em Tite. Assunto a ser resolvido por outros.
Esquecia-se, como acontecera na noite passada. Uma vez por semana, geralmente à sexta-feira, ia com amigos jantar ao Solar dos Dez. Acontecera na noite passada. Bebera demais, talvez. Certo é que se deitara e adormecera docemente ao som do Bolero de Ravel…
Acordara mais bem-disposto. Talvez da música e do sonho. Pequenos luxos naquele horrível fim de Mundo.
Um dia, quando voltasse teria muito que contar aos amigos daquela terrível guerra e logo a da Guiné.
Ficava triste ao recordar os amigos e amigas,
Que mês era? Julho… pior… Seis meses naquele fim de mundo…
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8873: Nós da memória (Torcato Mendonça) (2): Retaliação