Caros amigos
Nesta época de alegada menor produção editorial e de atenção ao Blogue por parte daqueles que normalmente o seguem, envio-vos este texto que foi produzido por inspiração dum episódio retratado no "P10305" da autoria do Juvenal Amado e que podem, caso queiram e achem oportuno, fazer publicar.
Trata-se de uma situação de abuso de poder, de atitudes reprováveis mas afinal tão recorrentes. E também de solidariedade.
Embora não se passando em terras da Guiné trata-se de coisas que se passaram 'em tempo de guerra', que é o lema que escolhi para os relatos das minhas recordações, e com pessoas que estavam a ser preparadas para 'ir para a guerra', sendo que alguns dos que se referem no texto também pisaram terras da Guiné.
Abraços
Hélder Sousa
HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (13)
ABUSO DE PODER
Caros camaradas, amigos e outros…
A memória tem destas coisas. Certas cenas, certas situações, ficam arrumadas lá, nalgum cantinho do cérebro, por incomodarem, por não lhes darmos importância ou por outro motivo qualquer mas, às vezes, basta um pequeno ‘clic’, uma pequena referência, para voltarem a aparecer, mais ou menos claras, mais ou menos difusas. O que agora pretendo relatar é uma dessas situações. Passou-se fez agora 42 anos e foi o texto do Juvenal Amado no “P10305”, relatando a atitude prepotente de um Oficial, em claro abuso de autoridade, perfeitamente descabelado, no caso que ele ilustrou sobre o Silva, que me fez relembrar este outro episódio do qual fui uma testemunha privilegiada. Neste meu relato há lugar à revelação dessa atitude de abuso de poder mas também às manifestações de solidariedade subsequentes.
Foto retirado da página http://zala.fotosblogue.com/129565/Codigo-de-Morse/, com a devida vénia
O local foi o então designado Regimento de Transmissões, no Porto, na Rua do Vale Formoso, ali perto do Jardim da Arca d’Água. A data foi o dia 1 de Setembro de 1970, os tais 42 anos que acima referi. O espaço em causa foi nas proximidades do Refeitório, aquando da formatura para o almoço.
As personagens principais foram o Sargento-de-dia, papel desempenhado pelo 1.º Cabo Miliciano de serviço na escala desse dia e um tal “Capitão C” vulgarmente conhecido na Unidade com a ‘cobra cuspideira’ pelo facto de ser usual falar espalhafatosamente lançando ‘perdigotos’ para cima dos seus interlocutores que deveriam guardar prudente distância. As personagens secundárias foram o Sr. Oficial-de-dia e o conjunto de soldados-instruendos em formatura e outros nas proximidades. O que se passou, e a que eu assisti, foi o seguinte:
Aquando da verificação das presenças e ausências autorizadas para a entrada no Refeitório, com os diversos pelotões formados, sob um sol a pino, abrasador, o Sargento-de-dia verificou que faltavam dois elementos que, por sinal eram do seu Pelotão de instrução. Procurou saber o que se passava e logo outros instruendos lhe disseram que os elementos em falta tinham sido ‘desviados’ pela ‘cobra cuspideira’ para ir até à pedreira, ali ao lado (cerca de 30, 40 metros), quando se dirigiam para o Refeitório, para participarem numa acção de rebentamento dessa pedreira e retirada rápida de algumas pedras. Esse trabalho demorou mais do que se previa e desse modo os homens ainda se encontravam sob as ordens forçadas do “Capitão C” estando agora em falta à formatura.
Para procurar resolver a situação o Sargento-de-dia dirigiu-se ao local onde estavam os elementos em falta para saber como se tinha processado a ‘requisição’ e como e quando os homens seriam ‘libertados’.
Nesse momento, o “Capitão C”, sentindo-se questionado na sua autoridade, dirigiu-se em passo apressado, gesticulando e vociferando, perguntando ao 1.º Cabo Miliciano o que é que ele tinha que interferir no trabalho. O 1.º Cabo Miliciano suportando estoicamente os ‘perdigotos’ da ‘cobra cuspideira’, colocou-se em sentido e respondeu-lhe que só estava a cumprir e a fazer cumprir as suas responsabilidades de Sargento-de-dia e pretendia os homens na formatura ou então um documento de requisição dos mesmos para justificar a ausência deles à formatura.
De cabeça perdida, por lhe contestarem a sua ‘autoridade’ normalmente impune, o “Capitão C” ensaia enfiar uma chapada com a sua mão direita na face esquerda do Sargento-de-dia que teve reflexos mais rápidos que o agressor, levantando o braço esquerdo e sustendo a chapada ao mesmo tempo que a mão direita agarrou fortemente o braço da ‘cobra cuspideira’ dizendo qualquer coisa que ficou apenas no conhecimento dos dois (e dos dois instruendos que se encontravam ali a dois metros), já que estavam face a face.
O Sr. Oficial-de-dia resolveu então entrar para ‘salvar’ a situação, assumindo a ‘justificação’ da não presença dos instruendos ‘requisitados’ pelo “Capitão C” e dissuadindo o “Capitão C” de voltar a interferir com as obrigações do Sargento-de-dia, mas como tudo se tinha passado à vista dos vários Pelotões e do próprio Oficial-de-dia os acontecimentos não iriam ficar por ali.
Até aqui falei do ‘abuso de poder’, mas é preciso também falar da solidariedade.
Acontece que naquela época decorriam obras no Quartel sendo que era voz corrente, no tal diz-que-diz, que a ‘dupla maravilha’ que por lá havia nessa época, constituída pelo referido “Capitão C” e pelo “Tenente VT”, manobrou a empreitada de modo a fazer com que algum trabalho necessário fosse executado pelos próprios soldados-instruendos, economizando as verbas correspondentes, sendo que o tal ‘diz-que-diz’ aventava hipóteses bem mais ‘cabeludas’.
O certo é que esse referido trabalho consistia essencialmente na recolha e transporte de pedras da pedreira para o local das obras, trabalho feito sem luvas (estávamos longe da intervenção da inspecção de trabalho…) o que originava frequentes cortes, esfoladelas e inchaço nas mãos. Os instruendos envolvidos, requisitados obrigatoriamente’, faziam-no rotativamente pelos vários Pelotões, mas andavam contrariados, revoltados mesmo, porque essas acções originavam frequentemente um menor desempenho nos testes de aproveitamento semanal, que permitiriam, ou não, a ida de fim-de-semana.
Deste modo, a cena ocorrida à sua frente, de desautorização do Sargento-de-dia pelo “Capitão C” e correspondente oposição só podia suscitar apoio e simpatia ao 1.º Cabo Miliciano.
O “Capitão C” no meio da sua fúria, para além de sentir desafiado na sua ‘autoridade’ dizia que tinha sido ofendido porque o 1.º Cabo Miliciano quando o impediu de bater e lhe agarrou o braço lhe teria dito:
- Se voltas a repetir isto, meu cabrão, mato-te! - e, em consequência ameaçou o 1.º Cabo Miliciano que lhe ia ‘fazer a folha’, ia fazer uma participação que o meteria na cadeia. Os instruendos juraram que o que ouviram foi:
- Se volta a repetir isto, meu capitão, bato-lhe!- e dispuseram-se para o testemunhar onde e como fosse preciso.
Várias pessoas, incluindo o Oficial-de-dia que presenciou a cena (mas não o ‘diálogo’) e por exemplo o então 1.º Sargento Guedes Barbosa (que mais tarde também esteve na Guiné) que é um exemplo vivo de como as pessoas do Quadro não são indiferentes às injustiças, aconselharam o Sargento-de-dia a ‘fazer queixa’ do “Capitão C” com base de desautorização de funções e de tentativa de agressão testemunhada.
Com estas premissas decorreu a refeição e logo a seguir ao almoço foram várias as ‘movimentações’ que se processaram em vários sentidos. Nos ´rádios´ recebidos por essa altura, depois de descodificados, tomou-se conhecimento de várias mobilizações, designadamente de sete 1.ºs Cabos Milicianos para o CTIG, entre os quais o que protagonizava o episódio do dia.
Uns quantos dissuadiram o “Capitão C” de apresentar a tal participação, porque as suas razões eram fracas, havia largas dezenas de testemunhas para falar da tentativa de agressão e, além disso, “o rapaz já tinha castigo suficiente, tinha acabado de ser mobilizado para a Guiné”.
Outros ‘mostraram’ ao 1.º Cabo Miliciano que não valia a pena ir para a frente com a queixa porque o processo iria demorar algum tempo e já não estaria lá para o acompanhar. O melhor era mesmo anularem-se as acções, a participação e a queixa. E assim se fez.
Mais difícil foi dissuadir alguns dos instruendos mais revoltados com a situação de exploração a que estavam submetidos, trabalhando como escravos e ‘metendo dinheiro ao bolso’ dos tais membros da ‘dupla maravilha’ e que aproveitaram a situação para tentarem algum desforço deles.
Recordo alguns, como o “Tony” que trabalhou no “Hotel Cibra” em Cascais (e que também foi mais tarde parar à Guiné) e o “Marinheiro” que trabalhou na “Lanalgo” em Lisboa, entre outros, que estavam apostados em ‘visitar’ a propriedade da ‘cobra cuspideira’ em Gaia e fazer lá alguns ‘trabalhos’ para se sentirem de algum modo vingados das afrontas.
Acho que consegui fazer-lhes ver que não valia a pena tais acções, nem por mim que iria seguir a minha mobilização e não queria mais perturbações, nem por eles pois podiam ter algum dissabor que lhes iria estragar a vida. Mas valeu a solidariedade!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto