Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > 1969 > Viatura destruída por mina anticarro. Resultado: dois mortos.
1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70), Partes XV e XVI (*) [Originalmente publicado na I Série, em 2006]
Buba, 1 de Setembro de 1969
Empada continua a ser a preferida do IN para brincar às guerrinhas. Ontem, pelas 4.30 h da madrugada, sofreu novo ataque. Foi chamada a aviação que não chegou a intervir.
Empada, 9 de Setembro de 1969
Desde ontem que estou por estas bandas, após dois meses em Buba sem novidade de maior. O ataque do dia 31 não foi tão perigoso como constou em Buba. Atacaram de Morteiro 60, LGFog e bazuka sem causarem prejuízo. Não caiu nenhuma dentro do quartel.
Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anticarro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência...
A Companhia de Comandos tinha vinda a fazer uma série de operações no Setor e dirigia-se para o Cais no Rio Grande, perto de S.João, para se retirar para Bissau.
Tem tido muito azar esta Companhia de Comandos. O Zé João sempre que sai com a Companhia faz ronco, mas no regresso tem tido sempre problemas graves. Ainda há pouco tempo, quando estavam em Buba comigo, saíram para uma operação em Saredivane, fizeram um ronco de 15 mortos, apanharam 21 armas, apenas com dois feridos ligeiros, mas no regresso cairam num campo de minas e uma bailarina matou um Furriel e um soldado ficou sem uma perna...
Nesse dia o Zé João foi buscar o morto e ferido ao campo de minas tendo recebido o prémio Governador, que não chegou a gozar devido a este brutal acidente que o afastou da guerra definitivamente.
Guiné-Bissau > Refgião de Bafatá > Saltinho > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia, o Braima de Mampatá, e uma bajuda, num antigo aquartelamento das NT, agora transformado em unidade hoteleira.
Empada, 11 de Setembro de 1969
Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?
Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama, corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.
E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino [, o Jorge Catarin, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo,] e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...
As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.
Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > O Zé deixou amigos que ele reencontrou trinta e cinco anos depois... Como, por exemplo, a mulher do filho do Régulo Shambel, de Contabane.
Fotos (e legendas): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: L.G.]
Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.
A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.
Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (#), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.
Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !
(Continua)
_____________
Nota de JT:
(#) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.
Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.
Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?
Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.
Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.
Este gesto gerou outra conversa que, como esta história, não coube no meu diário.
_________
Nota do editor:
Último poste da série > 9 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11363: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (7): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XIII / XIV): Julho / agosto de 1969: a angústia do cristão ante a dúvida "De que lado estará Deus ?"
Empada, 11 de Setembro de 1969
Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?
Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama, corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.
E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino [, o Jorge Catarin, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo,] e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...
As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.
Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > O Zé deixou amigos que ele reencontrou trinta e cinco anos depois... Como, por exemplo, a mulher do filho do Régulo Shambel, de Contabane.
Fotos (e legendas): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: L.G.]
Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.
A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.
Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (#), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.
Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !
(Continua)
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Nota de JT:
(#) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.
Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.
Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?
Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.
Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.
Este gesto gerou outra conversa que, como esta história, não coube no meu diário.
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Nota do editor:
Último poste da série > 9 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11363: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (7): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XIII / XIV): Julho / agosto de 1969: a angústia do cristão ante a dúvida "De que lado estará Deus ?"