segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18018: Notas de leitura (1018): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Aqui se dá conta das restantes matérias versadas no relatório "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, arrisco a considerar tal relatório como um dos documentos de leitura obrigatória para o melhor entendimento do período mais recente da história da Guiné-Bissau.

O leitor tem tudo a ganhar em procurar o site desta organização não governamental que presta um relevantíssimo trabalho aos direitos cívicos e à denúncia dos contínuos atropelos ao normal funcionamento das instituições democráticas.

Um abraço do
Mário


40 anos de impunidade na Guiné-Bissau: uma leitura do relatório da Liga Guineense dos Direitos Humanos datado de 2013 (2)

Beja Santos

Trata-se, não é de mais insistir, dum relatório de elevadíssima qualidade que carreia dados que são obrigatórios conhecer para a história mais recente da Guiné-Bissau. No texto anterior, encontramos a definição de impunidade, uma tipologia alargada para formas de impunidade, o nexo entre verdade, memória e reparação, uma análise de uma questão aparentemente inesgotável e que tem a ver se são os militares o os civis os principais responsáveis pela sociedade sem regras em que se transformou a Guiné-Bissau.

No presente texto far-se-á uma abreviada digressão sobre o uso abusivo das iniciativas de amnistia, a inoperância do poder judicial, a incapacidade do Estado exigir boas contas aos cidadãos, encontraremos referências ao narcotráfico e aos assassínios na cúpula do Estado.

Não é incomum haver atos de banditismo praticados pelos militares, o que obriga os populares a reagirem, constituindo forças paralelas. São imensas as áreas da Guiné que não dispõem de forças de segurança, nessas regiões a impunidade é total. Noutras localidades,  e dado o disfuncionamento do setor judicial, são os polícias que atribuem a si competências para administrar a justiça sem ter preparação para tal.

Periodicamente, surgem iniciativas de amnistia geral, que são mais que formas desvalorizadas e equívocas de reconciliação nacional. Em 10 de Outubro de 2004, o General Veríssimo Seabra e o seu adjunto foram assassinados. Dias depois assinou-se um memorando de entendimento onde, entre outras medidas, se propunha promover diligências junto do Presidente da República para um indulto ou comutação de penas em militares envolvidos noutros atos de insubordinação, é o cúmulo do desafogo.

A fragilidade do Estado revela-se noutras formas de impunidade: a aceitação das mulheres em serem espancadas pelos maridos ultrapassa os 50%, é como se a violência com base no género fosse algo natural, como natural parece ser a violação e o casamento forçado. A mutilação genital, mesmo sendo alvo de profunda condenação, continua a ser praticada e muitas vezes às escondidas. 57% das crianças com idade entre 5 e 14 anos estão envolvidas no trabalho infantil, a situação é mais grave em meios rurais.



Passando para o tema da má gestão até chegar aos crimes económicos, o relatório chama a atenção para instituições inoperantes. Veja-se o Tribunal de Contas, criado há mais de 20 anos, entre as suas principais competências está a de responsabilizar as pessoas que são gestoras das coisas públicas mas que se aproveitam para seu aproveito próprio. O tribunal nunca aplicou qualquer medida, nunca emitiu uma nota de pagamento de multas, não pode sancionar.

Referindo-se ao narcotráfico na culpa do Estado, o relatório lembra vários casos de impunidade como o de António Indjai e o caso das aeronaves retidas no aeroporto Osvaldo Vieira em Abril de 2008. A situação conta-se em breves palavras. O governo fora avisado da presença de duas aeronaves no aeroporto. Do relatório oficial produzido pelo ministério público sobre o caso era claramente indicado que as chefias militares tinham desautorizado as autoridades aeroportuárias. Descarregaram-se de uma das aeronaves mais de 400 caixas que, segundo o comandante Ibraima Papa Camará, continham “medicamentos” para os militares. No descarregamento esteve envolvido um criminoso venezuelano procurado pelas autoridades mexicanas que pediram a sua extradição, em vão.

Estamos perante um caso ilustrativo da violação do espaço aéreo guineense e do desrespeito da soberania da Guiné-Bissau com a conivência do Estado-Maior das Forças Armadas.

O relatório espraia-se sobre a multiplicidade de formas de violência manifestadas antes, durante e após a luta de libertação, é um historial de torturas, denuncias, golpes inventados, julgamentos fantoches, conspirações inexistentes. Assim se chegou ao país desmantelado após o conflito político militar de 1998-1999 e ao caos subsequente. Escreve-se no relatório:

“O pós-guerra não trouxe a consolidação da paz. Pelo contrário, na década entre a deposição de Nino Vieira em 1999 e o seu assassínio em 2009, registaram-se pelo menos dois golpes de Estado, a eliminação de um presidente da República e de três Chefes do Estado-Maior das Forças Armadas, tendo a Guiné-Bissau conhecido 5 Chefes de Estado, 11 governos e outros tantos primeiros-ministros sem que nenhum deles tenha concluído o mandato”.

Também o relatório recorda a vaga de assassinatos de 2009, seria uma nova estratégia de liquidação física dos adversários políticos ou abertura de novo círculo de vingança cujas causas e alvos eram desconhecidos até à consumação do ato. A 26 de Dezembro de 2011 tornou-se pública mais uma tentativa de golpe de Estado durante a qual dois agentes das forças de segurança foram assassinados sem motivos plausíveis. Um grupo constituído para mais de 2 militares, incluindo praças, oficiais subalternos e superiores, foi ilegalmente preso nos calabouços da base aérea de Bissau e no aquartelamento militar de Mansoa. Muitos destes detidos apresentavam sinais de espancamento e ferimentos de pequena gravidade. Também em resultado desta alegada tentativa de golpe desapareceu Roberto Ferreira Cacheu, antigo Secretário de Estado da Cooperação e deputado. Nunca se descobriu o seu paradeiro. Três meses depois do alegado golpe de Dezembro de 2011, o Coronel Samba Djalo, antigo chefe da Contra-Inteligência Militar, foi atingido mortalmente por um grupo de indivíduos na sua residência.

Não há processos, desaparecem os inquéritos, ninguém é considerado culpado ou responsabilizado. Reina a arbitrariedade, veja-se este caso descrito no relatório: “A política de interferência e intimidação de outros órgãos do Estado, do poder judicial ou simplesmente de fações rivais no seio de militares ficou patente no decurso da alegada sublevação militar de 1 de Abril de 2010. O antigo Chefe do Estado-Maior, Vice-Almirante José Zamora Induta, e o ex-Chefe dos Serviços da Contra-Inteligência Militar foram presos arbitrariamente nas instalações prisionais militares em Bissau e Mansoa, a mando do Estado-Maior General das Forças Armadas. Posteriormente, o processo contra aqueles oficiais foi formalmente transferido para o Tribunal Superior Militar mas, na prática, as visitas dos familiares, dos médicos e mesmo dos advogados eram admitidas sob prévia autorização do Chefe do Estado-Maior”.

E assim se chegou ao golpe de Estado de 12 de Abril de 2012 em que um autointitulado comando militar justificou o golpe como uma medida de defesa legítima face às tropas angolanas no país que teriam um plano para destruir as Forças Armadas guineenses em conluio com Carlos Gomes Júnior.

Este golpe de Estado constituiu mais um retrocesso na vida do país. Até às eleições de 2014 esta ditadura militar ilegalizou a liberdade de expressão, de manifestação e de reunião. É por demais conhecido o contexto em que ocorreu o golpe. Houvera eleições presidenciais antecipadas em 18 de Março de 2012, por morte de Malam Bacai Sanhá. As Forças Armadas não escondiam o seu profundo descontentamento pela candidatura do Primeiro-Ministro Carlos Gomes Júnior à presidência da República. No decorrer deste golpe a residência do primeiro-ministro foi totalmente vandalizada.

O Secretário de Estado dos Combatentes da Liberdade da Pátria, Brigadeiro-General Fodé Cassamá, foi sequestrado e espancado em Farim por ser infundadamente acusado de estar a mobilizar os rebeldes de Casamansa para um eventual contragolpe. Estes três políticos foram libertados dias depois graças à intervenção da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CDAO). Entretanto, vários dirigentes procuravam refúgio nas instalações diplomáticas, tanto governantes como dirigentes do PAIGC.

No final do relatório cujo título é “Quarenta anos a matar Cabral” exprime-se que ainda se acredita na luz ao fundo do túnel: 

  “A República da Guiné-Bissau existe porque os guineenses quiseram. Há um elemento forte de memória da dignidade dessa luta na esperança que a maior parte dos entrevistados no estudo sobre a impunidade colocam na possibilidade de resolução da crise estrutural que atravessamos. Essa esperança é formulada de formas diferentes mas que convergem num sentido: ainda não é demasiado tarde mas começa a ser tarde para escolher outro caminho, outro modelo, outro futuro”.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17991: Notas de leitura (1016): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de novembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P18009: Notas de leitura (1017): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18017: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 9 e 10: Bissau: da coca-cola (bebida proibida na metrópole) a uma desastrada ida ao Pilão...



Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado >: Av da República  (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Fotos e texto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto ( esquerda) e hoje (à direita, em baixo):  o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74.

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção).  Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande . [Foto atual, a seguir, à direita].


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:


Sinopse (*):

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia  2 de julho de 1972, domingo,  tem licença para ir visitar Bissau...


9º Capítulo > COCA-COLA


Bissau. Capital da Guiné. Fiquei admirado com a cidade. Até ao escrever sobre ela, disse! “É uma cidade pequena mas engraçada”.

Mencionei vários dos produtos que ali estavam à venda nas lojas: “O que tem aqui mais à venda são tapetes, obras em madeira, porcelanas, colares e pulseiras mais alguns artigos como rádios máquinas de tirar fotografias e outras coisas”.

Recordo-me que uma das primeiras coisas que comprei foi um colar para a minha namorada e um postal com a Avenida da República, o Palácio do Governador (Na altura o General António Sebastião Ribeiro de Spínola) e a Catedral.

Nos bares havia bebidas frescas. Tive muito receio de beber Coca-Cola. Embora já tivesse ouvido falar nela, na metrópole era proibida e eu desconhecia o sabor dessa bebida. Nos primeiros dias, só bebia Fanta.

Podem considerar estúpido, o que vos digo neste capítulo. Não fui só eu a ter receio de beber Coca-Cola. Por certo, reparam numa certa subserviência que eu sentia, perante a ordem vigente. Se algo era proibido por lei, cumpria a lei. Asseguro-lhes, sem vergonha de o dizer, que era um autêntico ignorante do mundo, que ultrapassava os seus limitados horizontes. Lia muitos livros, mas nenhum era proibido e embora, às vezes, as dúvidas me assaltassem, ainda não tinha a noção nem o conceito de democracia ou liberdade. Mais para diante, vão perceber onde altero o paradigma. Entretanto, obedecia ao que me era ordenado e é claro, precisei de ir para a Guiné, para me ser permitido beber Coca-Cola. Não admira que muitos outros partissem para outros países, para lhes ser permitido ter outras coisas. Também foi lá que eu, e muitos outros, aprendemos que sem luta não há liberdade para os povos.

Logicamente, quando fiz uma encomenda para mandar o colar à namorada, incluí algumas latas dessa bebida. Creio que ela as bebeu, porque um irmão, que na época tinha regressado da sua comissão em Moçambique, lhe afirmou que não era uma bebida perigosa.

O obscurantismo sempre foi a principal premissa, para que os ditadores se prolongassem à frente dos destinos do povo; mesmo um produto corriqueiro intimidava. Ter um povo culto é o Maior receio de quem manda e a Maior ameaça para o nepotismo.

O interessante é que, após todos estes anos, ainda se diz que a Coca-Cola é prejudicial à saúde. Ironias!

Socorro-me do que escrevi naqueles dias, estupidamente perdidos, em que misturei algum drama com comédia, para que estes meus relatos, perdurem na memória. Não sendo um erudito, tento dar-lhes o meu testemunho com palavras simples, com a certeza de que tudo o que lhes relato aconteceu na realidade. Agora não mostrem isto à minha família. Vamos até ao Pilão.


10º Capítulo > O PILÃO? QUE SUSTO!

Parecia uma autêntica carraça, aquele meu amigo de armas. Por uma mera casualidade, encontrámo-nos sucessivamente. No CICA 1, no Regimento de Cavalaria nº 6, no Regimento de Transmissões, RAL 5 e, por fim, em Cumeré. O engraçado é que não pertencíamos à mesma Companhia, ou Batalhão. Pois bem, fomos os dois. Imberbes soldados com meia dúzia de dias de experiência em África, armados em conquistadores das “Bajudas” (Raparigas) guineenses, para o Pilão.

O Pilão é um instrumento usado para múltiplos usos na culinária africana desde descascar arroz ao moer milho, café, etc. Neste caso, porém, era um bairro onde se procuravam, a troco de alguns pesos, favores sexuais. (A moeda na Guiné, embora fosse o escudo local, era mais conhecida por Peso).

Correu muito mal a nossa incursão por entre as tabancas e, se não fosse termos encontrado dois camaradas da “velhice”, podia ter sido pior.

Logo no primeiro assalto da primeira que apareceu, aconteceu que perdemos todo o entusiasmo. A senhora exalava um cheiro horrível a catinga e exigia 200 pesos, quando nós tínhamos informação de que não era tanto, por isso recusámos. Ao segundo assalto, entrámos na tabanca e só se ouvia bebés a chorar, o que por certo não ia tornar o ato em si, muito entusiasmante. Mais uma vez recusámos, só que um velho negro desdentado, que se encontrava à porta, em tom ameaçador, queria à força que pagássemos na mesma. Saímos dali rapidamente e fomos mais um pouco para o interior do bairro. Perdemo-nos por entre o emaranhado de ruas de terra lamacenta, pois tinha acabado de cair um enorme aguaceiro.

Só escutávamos falar em crioulo e não percebíamos nada do que diziam. Encharcados até aos ossos, já temíamos até pela nossa segurança, e veio-me à memória o que já alguém me dissera antes. Tinham sido mortos alguns soldados, por terroristas do PAIGC que se ocultavam entre a população civil. Arranjavam uma confusão por causa das mulheres, e tinham a desculpa de que nós as provocávamos. Testemunhas não lhes faltavam.

Foi um enorme alívio encontrar outros brancos naquela altura: o 1º Cabo cozinheiro Castro e um amigo, que como ele, estava colocado no quartel-general. Tinham ido buscar as suas roupas à lavadeira que lhas preparava semanalmente. Tiraram-nos de lá sem comentar que estávamos quase borrados de medo.

Do Castro ainda vos falarei novamente. Quanto ao meu amigo carraça, ainda nos encontrámos mais uma ou duas vezes. Marcámos encontrar-nos na Metrópole, se sobrevivêssemos, em agosto de 1974, mas isso não sucedeu; só guardei o número de ordem [, nº mecanográfico,]  dele que acabei por perder. De certeza que agora tem um nome. Esse, não sei.

(Continua)

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Nota do editor

(*) Último poste da série > 22 de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18002: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 7 e 8: O Cumeré, os mosquitos, o patacão, a correspondência, os preservativos...

domingo, 26 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18016: Blogues da nossa blogosfera (81): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (2): "Botão-flor da primeira folha verde" e "Venho de um jardim distante"



Do Blogue Jardim das Delícias, do nosso camarada Adão Cruz, médico, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos dois textos e duas imagens da sua autoria.




Botão-flor da primeira folha verde

Adão Cruz

© Adão Cruz

Há uma mulher de alvor azul, com um fio de azeite nos lábios finos e uma gota de água no canto dos olhos secos.

Os lábios foram carnudos e vermelhos de sangue, e os olhos eram verdes como o sol, quando o sol era verde.

Tem o rosto sumido na sombra descaída ao longo dos braços, como vela despregada de navegar.

Outrora, o mar encapelado e nu brilhava nos seus olhos, cobrindo de espuma branca as alamedas do desejo.

Havia uma cidade entre os lábios, envolta em lagos de montanha, com peixes verdes voando entre os pinheiros.

Não havia pombas brancas caídas no chão da cidade morta.

Nas ruínas da ilusão, um edifício muito alto erguia-se nas paredes do deserto e rompia o céu de nuvens negras.

No vão da noite que acolhe os sonhos, o botão-flor da primeira folha verde inverteu a vida entre o real e o imaginário nas dobras do tempo em universal dilema.

Há uma mulher de alvor azul com um fio de azeite nos lábios roxos e uma gota de água gelada no canto dos olhos, mas cedo se fez tarde a madrugada sem tempo para morrer na vida de um poema.

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Venho de um jardim distante

Adão Cruz

© Adão Cruz

Venho de um jardim distante florido de memórias ou de um sonho qualquer entre risos e lágrimas caindo de um céu de chumbo ou de um céu de magnólias.

Venho do seio do orvalho da madrugada num punhado de vida libertada em qualquer rumor de passos brincando nos telhados acesos pela luz do dia....

Venho de um jardim distante onde grinaldas de flores abrilhantam a festa do azul dos tempos no incêndio do crepúsculo ou no ardor da manhã do meu berço de mistério e universo.

Venho das esquinas do tempo em recordações avulsas ao sabor das pontes da vida cavalgando o vento que assobia nas ruas estreitas ou mordendo as pedras com punhais de silêncio.

De onde venho ninguém sabe.

Venho talvez da intimidade salgada do mar ou de um jardim distante com um rio de passos e palavras e pedaços de sol num rosário de pérolas abrindo a neblina do nascer da vida.

Venho… quem sabe da nudez adormecida no silêncio do tempo destinado à simplicidade da morte pelo sinuoso caminho das recordações perdidas no chão fundo das angústias ou nos retalhos da esperança.

Venho talvez das sombrias entranhas prenhes de fulvos e ilusórios tesouros que emergem do fundo do mar sublimados de cor e luz à superfície traiçoeira das águas bordadas de espuma. Ou então…

Ou então serei filho de um mundo sem resposta sujeito a ventos e marés que enrugam o latejar das veias e quebram o voo das artérias com lugar no corpo rompendo o fluir da vida no interior do sonho.

Não.

Eu não venho de lugar algum fora da mente nem trago comigo a erva daninha.

Eu venho de um jardim distante entre o sonho e a razão onde o pensamento se agiganta contra as trevas e a ilusão.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17989: Blogues da nossa blogosfera (80): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547

Guiné 61/74 - P18015: Blogpoesia (539): "As rampas...", "Apanágio de poucos..." e "Arame farpado...", poemas de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Gaia ao Pôr-do-sol
© Carlos Vinhal


1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


As rampas…

Aqueles caminhos estreitos,
Por vezes alcantilados,
Que abreviam distâncias
E economizam o tempo,
São o recurso expedito,
Cheio de sabedoria
Que a engenharia natural engendra,
Desde sempre
E em todos espaços da terra.
Dão acesso aos altos cumes,
Onde há, sempre, uma ermida ou um miradouro,
Enriquecedores do espírito
E os telescópios de ver perto o longe e à volta.
Descem ao mar, através de escarpas, inacessíveis e transitáveis.
São promontórios longos a perfurarem o mar, por onde passam os pescadores e suas redes até aos barcos.
São os magníficos escadórios longos,
engalanados de estátuas esbeltas,
que irrompem cá de baixo,
desde o centro da cidade,
numa alameda, frondosa e larga, aos zigue-zagues,
até à cerca do Santuário.
E, com saudade a lembro,
aquela rampinha ensolarada,
rodeada de latadas de uvas,
na estrada antiga de Lisboa ao Porto,
que levava a um restaurante,
“A Rampinha”
em Gaia,
onde o rei era o bacalhau,
de todo o jeito,
como nunca mais provei…

Ouvindo Brahms por Hélène Grimaud ao piano
Berlim, 20 de Novembro de 2017
6h29m
Jlmg

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Apanágio de poucos…

Escrever poemas ou pintar belos quadros de beleza é apanágio de poucos.
É um talento que poisa onde quer.
Seu sustento é de além.
Como a chuva que cai na hora,
Regando a seca,
Fermenta o solo.
Reverdece a cor. Define a luz.
Ressalta os tons.
Como nuvens do céu, prenhes de cores,
As ideias bailam na mente como o sopra o vento.
Desenham figuras. Narram de cor,
Lamentos da noite.
Suspiros de paz.
A meditação contemplativa, essa, está ao dispor de cada pessoa.
Acessível a todos.
Com talento ou não…

Ouvindo Albinoni na despedida da tarde
Berlim, 23 de Novembro de 2017
16h33m
Jlmg

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Arame farpado...

Cúmulo do medo pelo seu igual,
na selva em que o mundo se tornou.
Vivem livres as feras na selva.
Convivem em harmonia.
Basta-lhes a lei natural.
Os privilegiados da inteligência,
aterrorizados por perderem seu trono fraco,
amordaçam-se com cinturões de arame, cravejado de espetos.
Levantam longos muros,
guardados por metralha,
à volta das fronteiras.
Supõe-nos de ferro,
na verdade são de palha.
Acautelam as suas vidas,
cercados de seguranças
que se traficam a quem der mais.
Ostentam um poderio de majestade,
como uma armada invencível,
na realidade, basta um kamikase,
e, tudo rebenta como um balão...

ouvindo Adágio de Albinoni
Berlim, 21 de Novembro de 2017
8h18m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17988: Blogpoesia (538): "Um escadório...", "Os astros..." e "A idolatria das pedras e do metal...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18014: Parabéns a você (1347): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Guiné, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18008: Parabéns a você (1346): Abel Santos (ex-Soldado Atirador Art da CART 1742 (Guiné, 1967/69) e António Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

sábado, 25 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18013: Bibliografia (42): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Em 1954, descrente da formação universitária a que se propusera vir fazer a Lisboa, e já atraído pela causa nacionalista, Mário Pinto de Andrade parte para Paris onde terá o privilégio de se encontrar e corresponder com os principais intelectuais negros contestatários de vários continentes. Trabalha numa prestigiada revista, acompanha o que se passa no seu país, reúne regularmente com Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança, tem uma relação fraterna com Amílcar Cabral. Foi assim que germinou e se veio a criar em 1957 o Movimento Anticolonialista, é o primeiro gérmen da cooperação entre os movimentos de libertação das colónias portuguesas africanas.
Os dados estão lançados.

Um abraço do
Mário


Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (2)

Beja Santos

Não se pode estudar em toda a sua amplitude o movimento anticolonial em Portugal sem conhecer o pensamento e ação de Mário Pinto de Andrade, um angolano que veio estudar Filologia Clássica em Lisboa e constituiu amizades com futuros líderes, caso de Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, encerra dez sessões de trabalho que vão de Março de 1954 a Junho de 1957. Este grupo de amigos constitui o Centro de Estudos Africanos, na Rua Ator Vale, ao Bairro dos Atores em Lisboa, ali se reuniam Alda e Julieta do Espírito Santo, Francisco Tenreiro, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. Encontravam-se igualmente na Casa dos Estudantes do Império e no Clube Marítimo, na Graça, tinna sido uma escolha do Agostinho Neto.

Pinto de Andrade não perde o contacto com os jovens nacionalistas angolanos, trocam muita correspondência. Dá-nos conta da atividade desenvolvida nesse grupo de reflexão que foi o Centro de Estudos Africanos, a partir da primeira reunião que se realizou em Outubro de 1951. Pouco estimulado pelos estudos da Filologia Clássica, desperta o seu interesse pela literatura africana, começa pelo Kimbundu, amplia as suas leituras, lê autores antilhanos, norte-americanos e africanos, tais como Nicolás Guillén, Richard Wright, Aimé Césaire, Léopold Senghor. Pôs-se em marcha uma antologia: o Caderno de Poesia Negra de Dispersão Portuguesa. Depois, o Centro dispersou-se, Amílcar Cabral foi trabalhar para a Guiné, Tenreiro ficou em Lisboa, a família Espírito Santo ficou sob suspeita na PIDE, supunham que estavam implicados, visto que um dos tios de Alda Espírito Santo era acusado de conluio do protesto contra o trabalho forçado no massacre de Batepá. A última reunião deste grupo de reflexão realizou-se em Abril de 1954. E rememora duas figuras hoje injustamente esquecidas: o pintor António Domingues e o escritor António Mário Domingues, pai do primeiro. Domingues era um artista muito próximo dos comunistas, estava muito atraído pela pintura mural mexicana e pela arte negra, fez desenhos de toda esta gente do grupo. Mário Domingues pertencia à geração dos anos 20, foi colega de jornalista de Ferreira de Castro. Para ganhar a vida escrevia obras históricas publicadas por Edições Romano Torres, traduzia muito e escrevia sobre pseudónimo romances policiais. Era um português nascido na Ilha do Príncipe que escreveu um romance sobre a sua experiência, O Menino entre Gigantes. Distinguiu-se por ter enviado uma mensagem para o Congresso dos Escritores e Artistas Negros que se realizou em Paris.

Estes jovens africanos reuniam com gente do MUD Juvenil, explica a organização manobrada pelos comunistas e as causas que defendiam. Mas os jovens africanos sentiam-se dececionados porque a questão africana era um tema marginal para o MUD e faz o seguinte comentário: “A ideia que os comunistas tinham na altura era a de uma especificidade – a especificidade colonial portuguesa – muito diferente da colonização francesa ou inglesa. Recordo-me de uma conversa com Aboim Inglês quando eu lhe disse que não queria militar no MUD juvenil porque a minha atenção estava fixada no Centro de Estudos Africanos. Ele chamava a isto uma posição racista e, sobretudo, considerava que nós não tínhamos em conta a especificidade da colonização portuguesa pelas ações de outros colonizados, justamente os colonizados do domínio francês e do domínio inglês, que a questão não devia colocar-se nesses termos porque o que era necessário – do seu ponto de vista, era criar um vasto movimento antifascista. Era o derrube do fascismo que ia abrir perspetivas à libertação das colónias”.

Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade

Refere a vida efémera do Partido Comunista Angolano, em 1954 Pinto de Andrade parte para Paris, quer especializar-se em assuntos africanos. Vai trabalhar com Alioune Diop na revista Présence Africaine, graças a este trabalho vai conhecer algumas das mais pertinentes figuras intelectuais francesas e escritores negros de todo mundo. Estuda na École Pratique des Hautes Études, seguia as aulas de Roger Bastile. Dá-se muito com Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança. As lutas de libertação e as independências das antigas colónias são um tema da agenda política mundial. Há a guerra da Argélia, os preparativos para as independências de Marrocos e da Tunísia, em 1955 realizou-se a Conferência de Bandung, onde nasceu o movimento dos não-alinhados, a conferência teve consequência na Ásia e em África. É nesse contexto que se prepara o congresso dos escritores africanos onde as teses de Aimé Césaire saíram vencedores, derrotando as teses conciliadoras de Senghor. Este congresso teve repercussões, foi o caso da American Society of African Culture dos Estados Unidos, que reunia os escritores negros americanos. Em Paris, Pinto de Andrade continuava a trocar muita correspondência: com Lúcio Lara, com Amílcar Cabral, com Viriato da Cruz. Em meados de 1957 chega Viriato da Cruz fugido à polícia. A visita foi seguida quase imediatamente pela de Amílcar Cabral, este tinha participado no conjunto das formações que em seguida levaram à criação do MPLA. Pinto de Andrade atribui a Viriato da Cruz um papel charneira, por ter participado no nascimento de todas as organizações importantes de Angola, colaborar na redação do manifesto do MPLA. Viriato veio para ficar, o mesmo não ocorreu com Amílcar que trabalhava em Angola, Amílcar reuniu em Paris com a comunidade africana lusófona na diáspora.

Em Novembro de 1957, em Paris ocorre uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta das colónias portuguesas, participam Amílcar Cabral, Viriato da Cruz, Marcelino dos Santos, Guilhermo do Espírito Santo e Pinto de Andrade. “Foi talvez a primeira pequena assembleia a fazer o ponto da situação do movimento geral das organizações em luta nos cinco países africanos, do estado do que se chamava as forças vivas da nação e da capacidade de mobilização das forças sociais nessa altura”. E tomou-se uma decisão importante: criar uma organização unitária. “Nós tínhamos visto que cada organização por si própria, tomada isoladamente, em cada um dos nossos países, não era suficientemente forte para que nos concentrássemos. Era preciso encorajar essas organizações, mas elas eram frágeis. Foi a origem do Movimento Anticolonialista que se criou em Lisboa, mas tinha um outro nome na altura, um nome muito mais amplo: Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas, e tinha mesmo estatutos”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17984: Bibliografia (41): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18012: Efemérides (265): 25/26 de novembro de 1967: a notícia da tragédia diluviana na Região de Lisboa que chegou a Gadamael pelas ondas hertzianas (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


1ª  página do Diário de Lisboa, 2ª edição, domingo, 26 de novembro de 1967 (Ano 47, nº 16143; diretor: António Ruella Ramos). Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Diário de Lisboa / Ruella Ramos.

Fonte:

(1967), "Diário de Lisboa", nº 16143, Ano 47, Domingo, 26 de Novembro de 1967, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_11918 (2017-11-23)

O maior desastre natural ocorrido em Portugal depois o terramoto de 1755... Nem os senhores coronéis da censura conseguiram apagar os títulos de caixa alta dos jornais, fizeram  tudo  no entanto para impedir que os diretores dos jornais  dessem o número exato dos mortos... Ainda hoje não sabemos quantos portugueses morreram: nos [atuais] concelhos de Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer.


1. Mensagem de Mário Vitorino Gaspar [ foto atual à direita; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR]

Data: 25 de novembro de 2017

Assunto: FAZ HOJE 50 ANOS

Camaradas Luís,

Lembrei-me e disparei. Este tiro. Levei com diversos estilhaços a 25 de Novembro de 1967. 

Atravesso um péssimo período da minha vida. Ambos os filhos (42 e 47 anos foram vítimas de Síncopes Cardíacas), o mais novo a 14 de Maio, só há um mês saiu do Hospital de Santa Maria. O mais velho foi a 14 de Outubro, só fez o cateterismo, não foi à Cirurgia de Bypass como o pai a 12 de Março de 2002 e o mais novo que com três entupimentos só fez um Bypass, mas teve de seguida uma gravíssima inflamação, ou vírus como lhe chamaram.

Simultaneamente, por insistência da minha parte, fiz Exames necessários para saber se tinha ou não a Doença de Parkinson. Tive a novidade que sim. Outro estilhaço. Sempre a verdade, custa escutá-la. Sei ser doloroso para todos, a verdade é essencial na minha vida, detesto os mentirosos. Mentem tanto que eles próprios acreditam que a sua mentira, é a verdade. "Verdade dos mentirosos", bom chavão e título para um Romance, Peça de Teatro, Filme – por que não de um filme – e nessa Guerra Colonial tantos são os mentirosos…

Pois há 50 anos "passei as passas do Algarve" e, na cama, mesmo ao meu lado, estava o meu Camarada Algarvio (Loulé) o Furriel Miliciano José Manuel Guerreiro Justo, dono do aparelho de Rádio. Armadilhei a sua cama até se convencer. Camas duras como os cornos e os mosquitos até comiam os mosquiteiros da cama.

Os camaradas de que falo estão todos vivos, incluindo o Capitão e Sargento Barreira que rondam os 84 anos e mantenho-me em contacto com todos.

Vou-me esquecendo de acontecimentos próximos, motivado pelo Parkinson, a memória arquivada decerto com falhas, mas viva ainda. Por vezes é difícil recordar um nome, aborreço-me. Teimoso como sou, recordo.

Ando há anos com as rodas avariadas, o problema é não ter um mecânico à altura, e talvez quinze dias rebentaram as pernas, sangue e pus a escorrer para os sapatos. Pernas inchadas e ardem, mais parece o Nosso Portugal a Arder. Há muito que ardemos… Matas e casas a arder? Calamidade.

Pois se considerarem serem textos a publicar no Blogue, façam-no. Nasceram agora, não são plagiados…

Um abraço para a Tabanca.

NOTA: Quando me for embora posso ser embrulhado em papel de jornal, no "Correio da Manhã" não quero…

Mário Vitorino Gaspar

2. Efemérides > Faz Hoje 50 Anos > Grandes Cheias de 25 de Novembro de 1967 (*)

A 25 de Novembro de 1967, estava eu em Gadamael Porto no sul da Guiné, numa guerra que não era minha. A minha Companhia era a CART 1659, com o lema "Os Homens não Morrem".

Os aparelhos Rádios comprados através de alguém que se deslocava a Bissau, normalmente de evacuados por ferimentos ou doenças, serviam para ouvirmos de Batuque, Mornas e Coladeiras da Ex Guiné Francesa (Conacri). Insistia no aparelho de Rádio comprado pelo Furriel Miliciano Mecânico José Manuel Guerreiro Justo (Loulé). Procurava com insistência alguém que falasse, de música estávamos fartos. 

De botão em botão, até que apanho um posto de Portugal. Milagre, autêntico milagre. Dormiam a meu lado os Sargentos Abílio Seabra de Oliveira Barreira (área da cidade do Porto); Manuel da Silva Pereira (Massamá) e António Martins Reis Dores (Elvas) e os Furriéis Milicianos Augusto Varandas Casimiro (área do Porto), Manuel Ferreira Jorge (Massamá), Joaquim Fernandes Alves (área do Porto), José Nicolau Silveira Santos (Açoriano a viver há 47 anos no Canadá) e Manuel Adelino Alves de Campos (vive no Faial).

Gritei para o pessoal. Sucede o inacreditável e assustador. Percebi estarem as populações de Alhandra e povoações próximas a serem vítimas de Inundações. Entendi o nome da vila de Alhandra. Terra para onde fora aos 3 anos era lá a terra onde viviam meus Pais; um dos meus Irmãos, o José, Fernanda minha cunhada, meu sobrinho Luís Filipe que nascera em Abril e todo um mundo de Amigos.

As notícias iam chegando, sabia bem que o Tejo galgava para a terra e estendia os braços pelas ruas mais próximas.

Pior que um ataque do PAIGC que lutava pela libertação. Longa a angústia. Nada poderia fazer. O rádio, aquele aparelho de mornas e coladeiras era já um amigo. Gosto dessa música, pudera… Comecei por ter pormenores das cheias e resolvi falar com o Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha sobre o assunto. Estranhou apanhar uma Rádio Portuguesa. Eu próprio nem acreditava. Um milagre, talvez pela calamidade da situação as Rádios tivessem colocado a funcionar outros meios que projectaram as emissões para outras distâncias.

Pois o Capitão enviou via Bissau um telegrama para os meus Pais. Ao fim de pouco tempo recebi a resposta da minha Mãe. Nunca cheguei a saber como conseguiu fazer chegar esse telegrama aos Correios da terra que ficavam bem perto do rio Tejo. As águas atingiram, no denominado pela população Largo da Praça, 2,20 metros de altura. Ainda hoje nas paredes da Junta de Freguesia existe a marcação dessas águas. O povo sofre, Alhandra recebe ajuda e o Povo mais prejudicado pouco ou nada recebe.

Este Portugal que Ardeu e Arde e as terras inundadas pelas chamas receberão todo o material e dinheiro vindo do País e Estrangeiro?

Em 1967, em Alhandra, colchões, cobertores fugiram para as mãos de quem não teve danos. Alguns Amigos meus que ficaram sem nada foram habitar para outros ares.

Nunca mais apanhámos uma emissão de Rádio de Lisboa.

Batuque, Mornas e Coladeiras. Gostava e gosto de Mornas e Coladeiras. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  20 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14905: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (10): Não, nunca percebi para que serviam os CTT no CTIG... Notícias de Alhandra, da minha família, por ocasião da tragédia, as grandes inundações, de 25 para 26 de novembro de 1967, que atingiram a Grande Lisboa, recebi-as através de telegrama militar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

(**) Último poste da série > 29 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17711: Efemérides (264): O antropólogo e professor doutor Mesquitela Lima, natural do Mindelo, São Vicente, que eu conheci na Academia Sénior de Lisboa... Morreu há 10 anos (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18011: (In)citações (112): A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje. Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]


1. Em mensagem datada de 22 de Novembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:


A Tabanca Grande, a Guerra “de libertação”, que tarda em acabar para os bissau-guineenses e a marca dela nos ex-combatentes do continente

Alegram-me os 10 milhões de visualizações do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, a Tabanca Grande tornou-se numa espécie de país virtual, com população superior à da Catalunha, uma nação sem exército e uma promessa de “libertação”, segundo os métodos de Gandhi ou de Mandela, com a consciente exclusão dos de Lenine, de Mao ou… de Amílcar Cabral.

Louvores ao seu “Homem grande” Luís Graça, ao seu mouro de trabalho Carlos Vinhal, extensivos aos co-editores Virgínio Briote e Magalhães Ribeiro. Um caso especial de sucesso do voluntarismo, de entranhada camaradagem, de pluralismo e do “dever de memória”.

No tocante a ex-combatentes expedicionários nos seus teatros, invoco os testemunhos do Dr. Albuquerque, especialista do setresse pós-traumático, de que a guerra ultramarina ficou colada à vida dos seus combatentes; do escritor Lobo Antunes “Não sei explicar, mas a maior parte do que sou, continua lá”; e do Coronel-Comando José Manuel Belchior, Presidente do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes, de que, como participante em várias tertúlias, nenhuma outra se mantém tão ligada à terra e à sua gente como as dos ex-combatentes da Guiné.

As emoções que vivemos foram tantas e tais, que se cristalizaram em sentimentos – digo eu.
Em suma: Não há cura para a guerra da Guiné, enquanto maleita nossa; e a “guerra de libertação” da Guiné tarda a acabar, para mal dos bissau-guineenses.
E quanto à sua história, sou recorrente na metáfora da prédica do Padre António Vieira, referida à relação da substância com a forma.

Em rigor histórico, o PAIGC nem conquistou nem ocupou Guileje. Mas no entender do historiador Fernando Rosas, esse acontecimento foi uma derrota militar portuguesa e uma ocupação vitoriosa do PAIGC; para o historiador Rui Ramos, por exemplo, seria fruto de uma desobediência e de uma retirada do Major Coutinho e Lima, aliás bem comandada e sucedida. Algo susceptível de acontecer cá por casa, com o mesmo que entra pelo “orifício” do pensar do António Graça Abreu e do pensar do A. J. Pereira da Costa – aproveito e protesto a ambos a minha mais elevada consideração.

Em rigor histórico, Madina do Boé e Guileje, duas tabancas fronteiriças e as únicas tabancas “libertadas” da Guiné, não o foram nem por conquista nem por ocupação: o PAIGC limitou-se a explorar o sucesso do seu abandono pelos portugueses. Uma oferta do General Spínola, rumo à sua vitória – digo eu.

A guerra de libertação dos bissau-guineenses só terminará quando forem superadas a sua orfandade de Amílcar Cabral e da administração portuguesa.
Amílcar Cabral foi responsável pela quimera do “absolutismo despótico” da Guiné (sob o nome de Socialismo), pela quimera da unidade com Cabo Verde, por recusar, pela violência, o pluralismo político aos seus concidadãos, por ter antecipado a fundação da sua nacionalidade, sem sustentação na nação, mas num exército desproporcional – o mesmo que a independência transformará de simples guerrilheiros em casta de oficiais superiores… sem soldados.

Portugal é responsável por ter enformado a Guiné, por a ter conservado contra ventos e marés, mas, sobretudo, por os seus militares a terem abandonado, consciente de que cediam a uma solução imposta do exterior, extemporânea e não adequada à sua consolidação como nação, tendo apenas como atenuante as tentativas de uma força de guerrilha, com o efectivo de menos de 10% da sua guarnição militar e com o apoio de cerca de 10% da sua população de 600 000 mil almas, porfiada em os correr a tiro.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17765: (In)citações (111): Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

Guiné 61/74 - P18010: Agenda cultural (612): Ílhavo, Biblioteca Municipal, domingo, 26 de novembro, 17h00, lançamento de "O Livro das Santinhas de Apegar: textos poéticos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do nosso amigo José António Paradela, arquiteto)









1. O meu amigo José António Bóia Paradela  é daqueles que eu considero do "peito", um dos "manos" que eu não  tive, já que nasci rapaz, o primeiro, num família de três raparigas. É bom ter amigos do "peito",  manos não pelo sangue mas pelo coração, os afetos, as cumplicidades, a amizade. (*)

Ainda há dias lhe escrevi um extenso (12 páginas) texto poético, celebrando as suas maravilhosas e frutuosas 80 primaveras... Começava assim:

"Tratado sobre a amizade, para o meu amigo do peito
José Paradela, arquiteto, ilhavense,
que tem um “alter ego”, de nome Ábio de Láparo.

Sobremesa literária
em jantar comemorativo de uma bela amizade
que não precisa de pré-textos."


E acabava assim:

Antes de começares o trabalho ciclópico de mudar o mundo,
ao quilómetro oitenta da tua picada da vida,
dá três voltas dentro de tua casa de Miraflores...

E sobretudo não esqueças a lição
sobre a parábola da Sabedoria e da Asneira:
Para os erros alheios temos os olhos do lince;
para os nossos próprios, os olhos da toupeira.

(Com um xicoração fraterno…
Reserva-me um lugar, a mim e à Alice,
na tua festa dos 100 anos,
com vista de mar)

Luís, teu amigo, teu mano.


2. Pois, o meu amigo do peito, o meu mano Zé António vai lançar o seu quarto ou quinto  (já não sei ao certo) livrinho, desta vez sobre as "santinhas de apegar"... Eu sabia que ele era um grande colecionador destas "santinhas de apegar", à laia das decalcomanias do nosso tempo de infância, que usávamos para "personalizar" os nossos cadernos escolares. 

Na introdução do livro ele escreve (, aliás, o seu "alter ego", Ábio de Lápara, vd aqui a sua sempre surpreendente página do Facebook):

(...) "Na Vida, cada um escolhe as suas Santinhas como pode e usa-as para personalizar os cadernos das  contas que ajusta com Ela"...

É um livro, original, de textos poéticos (não "poemas"), muitos deles  audiovisuais,  interativos (alojados no You Tube). É uma belíssima edição de autor, ilustrada, de que foi feita uma tiragem de 300 exemplares. O livro, de 125 pp, teve a execução gráfica de Oficina Digital - Impressão e Artes Gráficas Lda, com sede em Aveiro.

O lançamento do livro é este fim de semana em Ílhavo, na Biblioteca Municipal, às 17h00. O livro é apresentado por Paulo Costa, antigo vereador da cultura da Câmara Municipal de Ílhavo,

Tenho pena de não poder lá estar, no domingo, em Ílhavo. Além do seu imenso talento e da sua vasta cultura, o Zé António é uma pessoa de grande sinceridade, honestidade e encanto.  Estar com ele é sempre um  prazer.  Espero que alguns dos nossos amigos e camaradas da região de Aveiro possam representar a nossa Tabanca Grande na sessão de apresentação de mais este "filho" do nosso Ábio de Lápara...

Do penúltimo livro, lançado em 2015, "A Rua Suspensa dos Olhos", reproduzimos, em três postes, o capítulo 7 ("O mar por tradição"), com a descrição da viagem de seis meses que ele fez aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau...

Deste último livro, reproduzo, com a devida vénia, o texto "O Verde", que evoca a primeira vez, em 1955, em que o nosso autor se meteu num dóri, num mar de aicebergues...  Tal como na guerra, na pesca do bacalhau também havia uma distinção entre os "verdes" (periquitos, maçaricos, checas) e os "maduros" (velhinhos")... O "verde" era um pescador ou marinheiro da frota do bacalhau que embarcava pela primeira vez...
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Notas do editor:

(*) Vd. 30 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10596: Memória dos lugares (194): Ilhavo, Costa Nova... a terra do meu amigo e irmão mais velho e, porque não ?, meu camarada, o arquitecto Zé António Paradela, que hoje celebra 3/4 de século de existência, antigo marinheiro da pesca do bacalhau, último representante de um povo que tem o mar no ADN!... (Luís Graça)

(...) O Zé António, como bom ilhavense, é, também ele, filho e neto de gente do mar, tendo passado, aos 16 anos, pela pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra da Guiné... Uma experiência, duríssima, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro - a pensar nos amigos - a que deu o belíssimo título Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, e que eu tive a honra e o prazer de prefaciar. (...)

(**) Último poste da série >  22 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18003: Agenda cultural (611): O nosso camarada José Ferreira da Silva, autor dos Volumes I e II de "Memórias Boas da Minha Guerra", vai apresentar os seus livros na sua terra natal, Fiães, concelho de Santa Maria da Feira, no próximo dia 2 de Dezembro

Guiné 61/74 - P18009: Notas de leitura (1017): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Com este texto atingimos 10 anos da vida do BNU em Bolama. Tudo I República.
Vale a pena insistir, não existem no Arquivo Histórico do BNU quaisquer documentos entre 1903 e 1915, só escassas imagens que não ajudam a compreender nem a contextualizar o que se passou nesse período que persiste na obscuridade. Não há referências à campanha de Teixeira Pinto, só aparece um documento alusivo à partida de Abdul Indjai para Cabo Verde, onde falecerá. No entanto, esta documentação é riquíssima em elementos económicos e financeiros e na muitíssima turbulência da vida governativa, onde não faltaram revoltas, levantamentos e sedições.
Para meu conforto, entreabriu-se mais uma porta para um melhor conhecimento da Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10)

Beja Santos

Caminhamos para o fim da I República, há uma vertente de modernização na Guiné. Começam-se a cantar hossanas, é patente que a política concebida e executada por Velez Caroço começa a dar os seus frutos.

Em 1925, é dado à estampa uma Memória da Província da Guiné, é seu autor Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, funcionário colonial. É um homem esperançado, deslumbrado e não o esconde no prefácio do seu escrito:

“Falar da Guiné é falar da colónia portuguesa que mais caráter possui de terra africana; é falar, dentre as possessões que constituem o nosso domínio colonial, daquela que melhor situação financeira desfruta, daquela que tem mais personalidade, sem mistelas equívocas, sem arremedos bacocos.

A Guiné é, de facto, a mais rica das nossas províncias africanas, nas possibilidades de produção agrícola.

Quem for ativo e inteligente, quem entender que os seus braços devem servir para mais alguma coisa do que roçar malandramente pelo mármore rachado dos cafés, quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio, aqui encontrará o El Dourado das suas legítimas ambições.
Porque a Guiné, com a quermesse bizarra e multicolorida das suas onze raças, e diversas subraças, formando um bloco notável de aproximadamente 800 mil habitantes; com a maravilha pessoalíssima da sua fauna; com a sua ornitologia, opulenta e variada, em que as cores das aves dir-se-iam fugidas de uma paleta de pintor impressionista, pela diversidade ofuscante dos tons; com a abundância da sua herpetologia; com a variedade dos seus espécimes entomológicos; com a riqueza da sua concheologia; a Guiné com a sua flora variegada até ao impossível; com o sensível incremento que está sendo dado à sua agricultura, transformando em fontes de riqueza o que era até há bem pouco uma desoladora extensão de solo inaproveitado…”.

Tais louvores aparecem mais contidos no olhar do historiador. Na sua "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", Volume II, Editorial Estampa, 1997, René Pélissier ajuíza a atividade de Velez Caroço. Escreve o seguinte a partir da página 204:

“O primeiro mandato de Velez Caroço conhecerá uma febre de construções no sertão, afetando as sedes da quase totalidade das 14 circunscrições. Porém, este governador manter-se-á, principalmente, como o homem das estradas e das pontes e, como consequência, o do trabalho indígena obrigatório e não remunerado. Infelizmente, o otimismo musculado de Velez Caroço vai ver-se desmentido”.

Para além das estradas, pontes e radiotelegrafia, Velez Caroço ver-se-á envolvido numa nova campanha de Canhabaque, entre Março e Maio de 1925. Deixará a colónia em Dezembro de 1926. Bolama e o gerente da filial do BNU acompanham as questões momentosas de um movimento de desagrado à administração do governador:

“Rompeu hostilidades, em primeiro lugar, ostensivamente, o Capitão de Engenharia João Pedro da Costa, com o relatório dirigido ao Ministro das Colónias, verberando a administração do governador, que classifica de perdulária. Esse relatório, verdadeiro libelo contra Velez Caroço, foi organizado um tanto levianamente, ressentindo-se da falta de provas jurídicas, e por isso, e ainda porque sendo o ministro e o governador democráticos, não sortiu o efeito que o autor desejava: uma sindicância àquilo a que o governador chama a sua obra. Dizem-nos que o governador facilmente destruiu as acusações que lhe foram feitas. O certo, porém, é que o Capitão Pedro da Costa não foi até hoje castigado militarmente. Pouco depois, era o Engenheiro Costa secundado na campanha pela Associação Comercial de Bissau, elegendo como seu representante para o concelho legislativo o Dr. Alçada Padez, advogado naquela cidade e particular amigo do Engenheiro João Pedro da Costa.
Passaram então a revestir certo interesse para o público as sessões do Conselho Legislativo onde o Dr. Padez entrou em franca oposição. Dá-se a Revolta Militar e o governador embarca apressadamente para o seu posto, de cabeça levantada, segundo ele, e sorrateiramente, segundo a oposição”.

Não pararam as acusações e os ataques dos opositores a Velez Caroço.

Chegaram as eleições para o representante da Guiné no Conselho Superior das Colónias, parecia que a campanha anticarocista atingiu o auge. O gerente de Bolama desce aos pormenores:

“O truque da posição foi coroado com êxito raras vezes registado nas colónias. Apesar de todas as trapaças concebíveis em matéria de eleições, da banda dos apaniguados do governador, a lista governamental apenas conseguiu vencer pela ridícula maioria de 60 votos! É de notar que aqui em Bolama, onde o governador reside, e onde a maioria dos eleitores são funcionários, a oposição, habilmente manejada pelo Tenente-Coronel Médico Dr. Monteiro Filipe venceu Velez Caroço por 40 votos!

Isto só por si seria bastante para que o atual governador se convencesse que era de mais na Guiné. Mas não. Ele não o compreende assim e mantém-se à frente da colónia, embora divorciado da opinião política que o detesta, aguardando uma salvadora revolução democrática que lhe dê força que sente faltar-lhe na atual situação.

Parece que o atual ministro as Colónias mantém por tudo quando se está passando na Guiné um desprezo superior”.

 Praia de Ofir - Bolama

O relatório de 1926 tem uma valiosa componente económica e procede à situação da colónia com bastante cuidado. Vejamos agora a situação da colónia deixando para mais tarde o quadro económico e financeiro da Guiné no relatório de exercício de 1926, ver-se-á que é extremamente útil. Estava agora em funções um encarregado do governo, o novo governador será alguém que deixará nome, Leite de Magalhães. Vejamos como o gerente se refere a este período de transição:

“A obra do atual encarregado de governo tem já factos que demonstram bem o acerto e desinteresse com que pretende governar. Empenhado em ressuscitar a Guiné e fazer dela valor seguro e real que representa no nosso Império Colonial, começou por moralizar os diferentes serviços públicos, reduzindo nuns, ao mínimo indispensável os servidores da colónia que pesavam exageradamente no seu orçamento, reorganizou-se o quadro administrativo, começando por uma acertada divisão do território da província em sete circunscrições e dois concelhos, que trouxe como consequência o alijamento de muitos funcionários que nada produziam; extinguiu-se o Corpo da Guarda Fiscal, corpo militar aparatoso mas inútil, composto na sua maioria por cabo-verdianos, sem noção dos seus deveres e que eram sem dúvida dos maiores contrabandistas (…) Estão-se reorganizando os serviços aduaneiros com o mesmo intuito de economia; foram dispensados muitos contratados que para nada prestavam; foram suspensos todos os contratos de empreitadas; paralisam as obras do Estado que vinham absorvendo uma enorme parte das receitas da província, obras em que a fiscalização e os desperdícios eram tamanhos que toda a gente se arrepiava com tão grande desmazelo”.

O gerente não esconde uma profunda animosidade pela administração de Velez Caroço e adianta um episódio onde se insinua que o então governador praticava arbitrariedades e prepotências:
“Um facto queremos ainda salientar a V. Exas., que pela sua importância e significado é preciso ponderar.

No governo passado, há anos, ausentou-se do Forreá um régulo dos mais poderosos daquela região, chamado Cherno Cali. Levou na fuga atrás de si muitas centenas de pessoas e muito gado. As perseguições de um administrador, dos que se recrutam por favor da política, sem conhecimentos e sem a noção da responsabilidade que sobre ele pesava, originaram a resolução do régulo Cali, oficial de segunda linha do Exército por seus bons serviços ao país.

Despovoou-se o Forreá, região rica, abundante de coconote; não se lavraram mais as suas terras; não se justificava já a existência de uma circunscrição naquele território. Várias tentativas se fizeram no sentido de conseguir o seu regresso no governo passado. Tudo inútil, pois desconfiado, como todos os da sua raça, esperava que lhe fizessem pior ou o sobrecarregassem com alguma pesada multa em gado. Pois logo no começo do governo do Capitão Saldanha o régulo Cali pediu licença para regressar à sua terra de onde se exilara forçado pelos vexames e perseguições a que o sujeitaram. Estava certo que a forma vexatória e injustificada como fora perseguido, desaparecera, para não desmentir a maneira branda como sempre tratamos os portugueses filhos dos nossos domínios africanos. Este facto, por si só, quando outros não avultassem já, diz bem do alto conceito em que é tido o encarregado do governo da Guiné entre os próprios indígenas”.

(Continua)
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 17 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17978: Notas de leitura (1015): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17991: Notas de leitura (1016): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18008: Parabéns a você 81346): Abel Santos (ex-Soldado Atirador Art da CART 1742 (Guiné, 1967/69) e António Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série >23 de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18005: Parabéns a você (1345): José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74)