quarta-feira, 21 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1970 > O Pelotão de Caçadores Nativos 54, comandado pelo Alf Mil Correia, que substituiu o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos (1968/70)

Foto: © Mário Armas de Sousa (2005)

Texto do Beja Santos, novo membro da tertúlia dos Amigos & Camaradas da Guiné, publicada na revista artciencia.com, revista de arte, ciência e comunicação. Trata-se de "uma revista electrónica, trimestral, cujo objectivo é agregar e divulgar trabalhos de investigadores e autores, cujos interesses se situem na intersecção das áreas arte-ciência-comunicação. Os textos podem ser escritos em português, castelhano, italiano, inglês ou francês". O Beja Santos pertence ao respectivo conselho editorial e deu-nos autorização expressa para publicar este texto que nos honra, a todos nós, ex-combatentes. É mais um momento tocante da vida da nossa caserna virtual. É uma história com moral, sobre o valor da solidariedade humana, em tempo de guerra, cruel...
Estranhamente, o episódio aqui evocado não consta da actividade operacional do mês de Dezembro do BCAÇ 2852, a que o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, estava adido: vd. História do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70): Bambadinca: BCAÇ 2852. 1970. Cap II. 13-24. (Documento policopiado, classificado como reservado).
De qualquer modo, este episódio com o diligrama faz-me lembrar um outro já aqui evocado por mim e de que resultou a primeira vítima mortal na minha companhia, a CCAÇ 12 (1) (LG)
______________

artciência.com (ISSN 1646-3463) Ano I. Número Dois. Fevereiro-Abril 2006


O PRESÉPIO DE CHICRI

Beja Santos

Que bom teres vindo! Feitas as contas, faz hoje 36 anos que nos vimos pela última vez. Graças ao Abudu, descobrimos finalmente o teu primo Álvaro Semedo, e assim chegámos à tua casa na Brandoa. Senta-te. Se não te impressionares, gostava de te contar tudo o que se passou no dia em que todos te julgámos perdido.

A 19 de Dezembro de 1968, decidi que partiríamos a 22 para patrulhar Chicri. Só no fim de Novembro me apercebi da importância estratégica de Missirá e Finete. Os guerrilheiros de Madina do Cuor abasteciam-se atravessando o Geba em dois pontos: Perto de Samba Silate, ao lado de Bambadinca, no Sul, ou em Mero, a Oeste. Mais a Sul, junto ao Xime, o PAIGC transportava a sua artilharia pesada e as suas munições. Eles aterrorizavam-nos, nós tínhamos que pagar com a mesma moeda. Por isso, íamos a Chicri.

Não era a primeira vez que eu lá ia. Era uma terra próspera, abandonada, as madeiras da tabanca ainda espetadas no ar e, olhando ao longe, como num amplo anfiteatro, o Geba refulgia, serpenteando entre o Xime e Bambadinca. Um trilho fino atravessava a tabanca entre estacas calcinadas, restos de paredes de adobe, mais além ficava a construção monumental da destilaria do cabo-verdiano Simão. Chicri fora enorme, povoada por Mandingas e Futafulas.

Tu tinhas-me dito, semanas antes, quando íamos numa operação perto de Madina: "Chicri não parece um presépio?" Recordo-te isto agora porque em vésperas do patrulhamento tu pediste-me para ir a Bafatá comprar figurinhas de barro para o nosso presépio de quartel. Quando me fizeste a proposta, achei estranho. Éramos 150, dos quais só nove cristãos. Eu sabia que tu tinhas sido educado numa missão em Bissau, mas surpreendeu-me a ideia do presépio. E lá foste a Bafatá, com o Teixeira das transmissões e o Barbosa da cantina. O Teixeira vive agora em Darmstadt e o Barbosa, a última vez que falámos, tinha um estabelecimento em Aveiro.

Na madrugada do dia 22, a patrulha abandonou Missirá, deixaras o presépio armado na messe e seguias à frente com a tua arma temível, o dilagrama. Percorremos os lamaçais de Gã Gémeos, depois Ganturé e Mato Madeira. Não sei se te recordas mas não havia vestígios nenhuns de presença humana. Porém, em Maná, topámos com indícios de um trilho recentemente aberto, entre o alto capim que circundava a velha tabanca dos Balantas. Entrámos no trilho. De Maná seguimos para Mato Cão. Na foz do Gambiel, tivermos um percalço com um enxame de abelhas. Vejo como tu estás atento, sinto que te espantas por ter guardado tudo. Seguimos depois para Chicri. Estávamos numa zona de guerrilha. Tinham-se passado 15 horas a andar e a tropa estava derreada.

Regressámos a Missirá para descansar e saímos de novo, na madrugada de 23. Queria regressar a Chicri antes do amanhecer. Tal como na véspera, tu insististe em vir. Eu tinha 23 anos, era o alferes de Missirá e Finete, território encravado nos arrozais, na outra margem de Bambadinca e matas do Ôio. Tinha à minha responsabilidade centena e meia de soldados, e muitas centenas de civis. Guerrilha paga-se com contra-guerrilha, terror com terror. Era o que eu me preparava para fazer.


Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca > 1997 : A velha Capela de Bambadinca. Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá)

Tu, lembro-me muito bem, estavas sorridente, tinhas preparado o presépio a um canto da messe, ao lado do armário onde guardávamos os pratos e os talheres. A nossa consoada seria em Missirá. No dia de Natal, iríamos à capela de Bambadinca e almoçaríamos em Finete, com a família do régulo Malâ.

Portanto, eram sete da manhã da antevéspera de Natal quando, em Chicri, 30 homens com uma bazuca e dois morteiros entraram num terreno de combate. Sete horas com muita humidade e o dia a despontar. Havia uma poalha luminosa nos palmeirais. Os indícios avolumavam-se: Encontrámos vestígios de uma fogueira, restos de caju e peixe, uma patorra bem desenhada na areia. Marchávamos silenciosamente, na testa da coluna o picador, depois o guia, a seguir eu e o José Jamanca com o bornal das munições. O mato engolia-nos na sua galeria silenciosa. Lembro-me de ter pedido ao Jamanca para ir chamar o Teixeira e o Campino da bazuca. Tu vieste, também, e o Cibo Indjai, o picador que lia na terra como na palma das mãos e que me avisou que podíamos estar próximos de um acampamento de guerrilha. Deixou-se de fazer a picagem do terreno, progredíamos lentamente. As fardas ensopavam-se nos corpos. Um Sol brutal escoava-se pela ramaria. Quebá Soncó pediu-me o cantil. "Quebá, onde estamos?" Só responderam os seus olhos devorados pelo medo. Era um caminhar sonâmbulo, sem se ouvir o piar das aves, com o estômago revoltado. De relance, vi as horas. Tu pediste-me um cigarro. E, de repente, na curva da picada, guia, picador e Cibo atiram-se para o chão. A pouco mais de cinco metros, um homem fardado de caqui amarelo, um chapéu de cowboy preso por atilhos olha-me estuporado e tão confuso como eu. Num segundo, medimo-nos de alto a baixo. Depois, dois tiros num só eco.
Aquele homem que eu nunca vira levou a mão ao ombro direito, os dedos tintos de sangue. Eu continuei a disparar e ele caiu lentamente como um fardo, a meio da picada. Seguiu-se o tiroteio caótico, gritos, o estoiro das granadas, o desabar das folhas, dos ramos, as armas a cuspir fogo. Os guerrilheiros abandonavam o terreno.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba.

Foto: © Humberto Reis (2006).

Chegara o momento da caça ao homem. Nós avançámos, tu começaste a usar a tua arma temível. E quando eu estava a avaliar os estragos e a preparar o ataque, ouviu- se um urro medonho, e eu só me lembro de te ver numa rodilha de carne dilacerada, em rios de sangue. Soubemos logo o que aconteceu. Meteras um cartucho de bala real, prepararas a tua condenação. Ergui a tua cabeça e tu disseste-me baixinho: "Alferes, dá-me um tiro para acabar tudo". Afastei-te a espingarda, o Jolá rasgou-te o dólman, tirou-te os restos das botas. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei que tinhas perdido os dois olhos, tal o mar de sangue. À nossa volta, na zona de combate, estava tudo juncado de comida, panos, esteiras, granadas, cartucheiras, tudo o que os guerrilheiros tiveram de abandonar para fugir rapidamente.

Isto passou-se exactamente há 36 anos. Chegou o momento da confidência mais dolorosa: ninguém quis pegar em ti. Não por estares a morrer, mas por seres cabo-verdiano. Nesse dia, eu confirmei na carne quanto pesa um ódio. Tu repetiste: "Não vale a pena, estou perdido. Atira-me na testa". Dizem que é um acorde viril do macho estropiado, pedir a morte quando jorram os intestinos ou se perdem as pernas numa mina. Então, pedi ao Teixeira e ao enfermeiro Sérgio para se porem à frente da coluna e começámos a retirar. O Jau e o Cibo puseram-te às minhas costas. Retirámos aos tombos, eu levava entre os dentes o teu braço esfacelado, e vamos percorrer os quilómetros mais dolorosos da minha vida até chegarmos ao anfiteatro de Chicri. Não sei quanto tempo durou esta viagem alucinante. Finalmente, depositei-te, cheio de ternura, no chão. O Teixeira tentou uma ligação, a ver se conseguia que um helicóptero te viesse buscar. Não se conseguiu a ligação. O Sol estava no zénite. Tomei a decisão de ir a Missirá buscar uma viatura e reforços, improvisou-se uma maca, retirei com seis homens enquanto o resto da coluna seguia para a curva de Ganturé. Nova corrida para o quartel de Missirá. Ainda parámos uns minutos no Gambiel para matarmos a sede. Depois, uma corrida de 10 quilómetros até avistarmos os cajueiros amigos e o arame farpado de Missirá.

Acorria gente de todos os lados. Fez-se um silêncio sepulcral quando me viram, a farda empapada em sangue. Dei ordens. Queria uma viatura, garrafões cheios de água, um colchão, medicamentos. Ao contrário das tragédias gregas, ninguém comentava nem perguntava. Surgiu Malã, sempre resignado, vidente, brumoso. Não foi preciso dizer nada. E partimos, à procura da curva de Ganturé e de um helicóptero bendito.

Tenho outra confissão a fazer-te. Olhando as minhas mãos cheias de sangue, entre a vontade de chegar ao pé de ti e de me atirar para o chão a dormir só me lembrava das figurinhas de barro de um presépio que tu não irias partilhar connosco. Fomos até Bambadinca, onde foste evacuado para o Hospital de Bissau. O médico do Batalhão deu-me poucas esperanças, tinhas perdido muito sangue e era muito grande o estado de choque.

Regressámos a Missirá depois de eu ter feito o relatório dos acontecimentos. Lembras-te do meu abrigo, não lembras? Aquelas centenas de discos e os livros espalhados por toda a parte? Ardeu tudo em Março de 69. Tu rias-te com as minhas óperas e com aquela música, lembras-te?

E assim chegou a noite fria do Natal, fria no meu coração. Perto da meia-noite, o Teixeira veio chamar-me. No nosso refeitório, a um canto, iluminava-se o presépio. Estávamos todos com um nó na garganta. E, então, contei a todos que o teu corpo estropiado iria renascer de tanto sangue inocente derramado.

Estou a falar-te muito devagar, para calar a emoção. Desculpa se estas memórias te ferem. Estamos no Natal, e ter-te aqui, à minha frente, 36 anos depois, é uma grande alegria. Eu sabia que tu ias recuperando, que ficaras cego e aleijado. Depois do 25 de Abril, deram-me notícias de que casaras mas ninguém sabia do teu paradeiro. Esta história de Chicri, eu não sabia o que fazer dela. Receei voltar a ver-te, já que não sabia o que te dizer. Agora, olhando-te de frente, sei que sobreviveste para lembrar aos homens da tua pátria e da minha que houve milhares de presépios de Chicri perdidos ou esquecidos. Mas tenho uma surpresa para ti: as figurinhas de barro que foste comprar a Bafatá estão aqui para as levares.

Como é bom tu teres vindo e trazeres-me o alívio de tantos quilómetros de sangue e sofrimento. Quando vocês bateram à porta, estava precisamente a ler estes versos:

Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites:

Tumba de carne viva em ódio amortalhada,
Anunciando sangue e pranto e morte.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.

É bonito, não é? Foram 36 anos de dor que tu vieste hoje apagar. Vamos celebrar, finalmente, um Natal tão adiado. Nunca ninguém poderá saber como é bom poderes estar ao pé de mim!
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(2) Chicri: Vd. mapa de Bambadinca. Chicri ficava acima do Mato Cão.

terça-feira, 20 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P887: Tabanca Grande (1): Pedro Lauret, ex-Imediato da LFG Orion e Mário Beja Santos, ex-Alf Mil CMDT do Pel Caç Nat 52

Pedro Lauret, antigo imediato da LFG Orion, à esquerda, ladeado por Ulisses Faria Pereira, ex-grumete electricista... Foto: Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005 (com a devida vénia) (1).


1. Na nossa tertúlia, é assim: não é preciso grandes cerimónias para se entrar... Foi o que se passou com o comandante Pedro Lauret com quem fiz uma rápida troca de galhardetes... Quanto ao Ulisses, faço votos para que ele dê sinais de vida e nos dê a honra de se juntar a este já imenso grupo de amigos e camaradas da Guiné...


Pedro: Amor com amor se paga… Tem, à sua disposição, as cartas do sul da Guiné, à escala 1/50.000… Conhece o António Marques Lopes, coronel DFA ? É um dos mais antigos membros desta caserna virtual onde fazemos blogoterapia… e mantemos acesa a chama da revolta pelo silêncio (societal) à volta da guerra colonial que você denuncia no seu texto (acabei de publicá-lo) (2)…

O António faz parte da A25A, delegação do Porto… É autor de alguns dos mais notáveis textos (ou posts) que temos publicado no nosso blogue, desde 25 de Abril de 2005… Espero que você volte… Mas na caserna tratamo-nos todos por tu…


Resposta do nosso camarada da Marinha:

Caro Luís Graça, se passar na inspecção é com todo o gosto que me junto ao pessoal da caserna.

Um abraço.

Resposta na volta do correio, ao desafio do nosso novo marinheiro:

Pedro: Estás dispensado!... Vou pôr-te na nossa mailing list. Passa uma vista de olhos pelo regulamento da caserna...

Um ciber-abraço

O Pedro Lauret não perdeu tempo com salamaleques...

Luís, quero dar-te os parabéns pois o regulamento da caserna está muito bem feito. Subescrevo-o sem hesitação. Um abraço,
Pedro Lauret


2. O caso do nosso camarada Beja Santos foi ainda mais célere... Comecei com cerimónias e acabámos no tu-cá-tu-lá, voltando aos velhos tempos de Missirá, Finete, Mato Cão, Bambadinca...

Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/70). Foto tirada em 26 de Novembro de 1994, em Fão, Esposende, num convíviuo de malta que passou por Bambadinca, entre 1968 e 1971.

Foto: © Humberto Reis (2006)



Caro Mário:

Recebi, gostei muito e vou divulgar de imediato pela tertúlia [a dramática e comovente história do teu soldado cabo-verdiano gravemente ferido pela explosão de um dilagrama]. Estive três dias fora, só ontem inseri uma das tuas coisas [a lenda do alferes Hermínio de Jesus]…


Mas uma vez que este teu último texto, o presépio de Chicri, já foi publicado em revista, será que posso inseri-lo no blogue ? Preciso da tua autorização e/ou da revista… Um abração. Luís

O Beja Santos respondeu-me de imediato: Tens o meu OK!

Amigos e camaradas: a nossa caserna fica hoje mais rica, com a entrada do Pedro Lauret e do Beja Santos... A entrada de cada novo amigo ou camarada é sempre um momento bonito... Há trinta e tal anos atrás, seria celebrado mais ruidosamente, com umas valentes rajadas de G3... Agora estamos mais calmos, mais sábios, menos folgosos, mais amigos do ambiente, mais respeitadores do erário público, quiçá mais pacifistas, seguramente mais velhos... Espero que eles se sintam em casa, nas suas sete quintas, no seu meio (aquático, terrestre, aéreo, cibernáutico...) e que continuem sobretudo com essa imensa vontade de partilhar connosco a sua excepcional experiência como homens e como operacionais...

Mário e Pedro: É também um privilégio contar convosco!... Vocês são mais dois pesos pesados da guerra que nos calhou em sorte... Conto convosco para nos ajudarmos, uns aos outros, a reconstituir o puzzle da nossa memória colectiva... Temos essa obrigação, perante nós próprios, o povo português, o povo guineense e a nossa história parcialmente comum...
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)


(2) Vd. post de 14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)

segunda-feira, 19 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

Guiné > Bissau > Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira, já depois de ter saído da CART 730, aquartelada em Bissorã (1)... Foto tirada na esplanada do Café Universal, em frente ao Hotel Portugal.

Foto: © João Parreira (2005)

Texto, com data de 9 de Junho de 2006, enviado pelo João Parreira , ex-Furriel Miliciano, CART 730 (Bissorã) e Comandos (Brá), 1964/66 (1)


Caro Luís Graça,

Penosamente estou a abordar novamente o assunto que ultimamente tenho trazido a lume, ou seja dar a conhecer mais nomes de camaradas guineenses - que obtive de fonte que considero fidedigna - e que por razões que só eles sabiam, decidiram lutar ao nosso lado, com excepção de um civil, e que mais tarde, já em tempo de paz, pagaram com a vida, ao serem fuzilados (2).

Constata-se que foi praticado um variado leque de execuções, tal como soldados de infantaria e artilharia, milícias, comandos, fuzileiros, marinheiros, enfermeiros, condutores, e talvez mais. Todos eles tinham variadas patentes.

Não me compete fazer qualquer juízo ou comentário, nem se está certo ou errado, pois os actos ficam com quem os mandou praticar, no entanto não compreendo como foram escolhidos e qual foi o critério desses fuzilamentos.

Que mais teriam feito para merecer tal destino?

Por certo foram muitos mais os guineenses que lutaram a nosso lado e que por lá ficaram com as suas famílias, felizmente, digo eu, sem que nada lhes acontecesse.

No que concerne à tendência de cada um de nós, tertulianos ou não, é óbvio que o que estava errado para uns estava certo para outros e vice-versa. Ao fim e ao cabo dentro do ponto de vista de cada um, todos têm as suas razões.

No post nº DCCCVI (3) não completei a última frase, que agora julgo oportuno acabar, ou seja: "Brevemente irei enviar mais nomes de outros fuzilados já depois da guerra terminar, que não assassinos dos comandos"... Eu queria dzier: "... que não assassinos dos comandos, como alguns lhe chamaram".

Na véspera do 10 de Junho [de 2006], não posso deixar de frisar que estes militares também morreram por terem defendido a Pátria Portuguesa.

Outros militares executados:
Soldado de Infantaria Uri Jaló (Esquadrão/Bafatá)

Sold Inf Sello Jaló (Farim)
Sold Inf Mamadu Bobó Jaló (Farim)

Sold Inf Alfa Baldé (Pel Caç Nat 53)
Sold Inf Mama Samba Candé (Pel Caç Nat 53)

2º Sargento Fuzileiro Especial Domingos Ensá Djassi (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Luntam Indjai (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Braima Sani (Dest Fuz Esp nº 21)
2º Sarg Fuz Esp Califa Baldé (Dest Fuz Esp nº 21)
Marinheiro Mamadu Aliu Seidi (Dest Fuz Esp nº 21)

2º Sarg Fuz Esp Adulai Dabó (Dest Fuz Esp nº 22)
2º Sarg Fuz Esp Marçal Sambu (Dest Fuz Esp nº 22)
2º. Sarg Fuz Esp Mário Adjabá (Dest Fuz Esp nº 22)
Marinheiro Calido Baldé (Dest Fuz Esp nº 22)

Comandante de Milícia Calilo Dabó (Empada)
Cmdt Mil Bawali Tcham (Empada)
Cmdt Mil Aladje Seco Camará (Jabadá)
Cmdt Ansumane Mané (Gampará)
Cmdt Mil Sambaro Candé (Mansabá)
2º Cmdt Mil Mam Braima Seidi (Mansabá)
Soldado Milícia Mama Djam Jaló (Mansabá)
Sold Mil Mori Baldé (Mansabá)
Sold Mil Uri Baldé (Mansabá)
Sold Mil Aliu Baldé (Mansabá)
Sold Mil Braima Candé (Farim)
Sold Mil Saco Baldé (Cuntima)

1º Sargento comando Zeca Lopes (1ª. C.C.A./C.O.E.)
Furriel cmd Luis Assaul (2ª Companhia de Comandos Africanos)
Fur cmd Amarante Sadjá (2ª Comp Cmds Africanos)
Sold Inf Augusto Amen Sanhá (3ª Comp Comandos Africanos)
Sold Inf Constantino Aliu Sani (4º Curso Comandos)
Sold Bacarzinho (5º Curso Comandos)

Fur Grad Inf Salazar Saliu Queta (CCAÇ 5) (3)
1ºCabo Inf Mama Saliu Jaló (CCAÇ 5)
Sold Inf Demba Ganó (CCAÇ 11)
Sold Inf Malam Sani (CCAÇ 14)
Sold Inf Bará Dabó (CCAÇ 14)
Fur Grad Inf MalanTuré (CCAÇ 21) (5)

Civil Malam Cassapai (Administração de Catió, Catió)

E assim termino a triste missão que me impus a mim próprio.

Um abraço
João Parreira
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Notas de L.G.

(1) Vd post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

(2) Vd. posts anteriores, de:

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

(3) Vd. post de 27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

(4) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

" (...) Em conversa com alguém que esteve lá contigo nos últimos dias - creio que o Capitão Miliciano Silva de Mendonça, de que já te enviei o contacto -, sei que pagaram aos africanos seis meses de pré e, como se o contrato de trabalho de muitos anos e muita lealdade tivesse terminado, disseram-lhes, em nome de quem nunca os conheceu e viveu junto deles, vão à vossa vida.

"Também em conversa tida com o Capitão Figueiredo Barros, soube que o Salazar Saliú Queta, Soldado Africano da Psico-social, foi sumariamente executado, por degolação, assim que o PAIGC tomou conta do aquartelamento. Este relato foi feito pelo Fernando Saliu Queta, filho do nosso nharro" (...).
(5) Mensagem posterior, de 21 de Junho, do João Parreira, a esclarecer o seguinte: "É que entrou em contacto comigo um camarada nosso que me disse que esteve com ele e nessa altura o Malan era 1º. cabo, e que por isso não podia ser o mesmo".

Guiné 63/74 - P885: Guileje, onde hoje floresce a 'matchundadi di branco' (Pepito)

Guinau-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Antigo aquartelamento das NT > Uma planta chamada matchundadi di branco...

Foto: © Pepito (2006)


Mensagem do Pepito, da AD-Acção para o Desenvolvimento (Bissau):

Caro Luís

Como Guiledje é uma fonte inesgotável de conhecimentos, junto envio a foto de uma planta lindíssima que brota do chão do Quartel e a quem os antigos milícias africanos de Guiledje chamam sugestivamente de ...matchundadi di branco.

Comentário de L.G.:

(i) Obrigado, Pepito... É um deslumbramento!
(ii) A tua/nossa Guileje tem sido um caixinha de surpresas...
(iii) Já agora, para o teu serviço ser completo, diz-nos o que quer dizer, em crioulo, matchundadi... Traduz à letra, não queremos eufemismos...

O bom amigo do Pepito, meio encaralhado, lá me esclaraceu, logo a seguir:

Caro Luís

Semanticamente falando, que o assunto é delicado, a palavra em crioulo matchundadi vem directamente da palavra matcho, que vem de macho e que vem vernaculamente do caralho...
abraços
pepito

Comentário de L.G.:
Assim é que é: em bom vernáculo, do crioulo da Guiné, é que a gente se entende!... Matchundadi di branco, para os nossos queridos nharros, não é mais do que o caralho ou a piça do branco ! ... Quem disse que os guineenses não tinham sentido de humor ? Assim sendo, o título deste post devia ser Guileje, onde floersce o 'matchundadi di branco'...

Guiné 63/74 - P884: Por onde parará o Cristo de Guileje? (Pepito)

Guiné > Guileje > s.d. > Imagem de Cristo inscrutada numa árvore. Fonte: Afonso e Gomes (2002) (1)


Mensagem do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau):

Caro Luís

Desde que me abalancei nesta Iniciativa de Guiledje me tenho deparado com uma dúvida que ainda não consegui esclarecer. No livro editado pelo Diário de Notícias "Guerra Colonial", da autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (1), vem referido com foto que junto envio, a existência do "Cristo de Guiledje".

Sucede que todas as pessoas a quem perguntei não me confirmam a existência desse Cristo incrustado na base de uma árvore. Será que algum tertuliano se lembra da sua existência?

abraços
pepito
___________

Nota de L.G.:

(1) AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos Matos - Guerra Colonial. Lisboa: Ed. Notícias 2002.

Guiné 63/74 - P883: Convívio de ex-cadetes da EPI, Mafra, 1 de Julho de 2006 (Paulo Raposo)


O Paulo Raposo volta pedir-me que divulgue a realização do encontro de ex-camaradas que passaram por Mafra, e de que ele é co-organizador, com o Rui Felício:


GRANDE ENCONTRO DA 2ª INCORPORAÇÃO DE 10 DE ABRIL DE 1967
Curso de Oficiais Milicianos
Escola Prática de Infantaria (EPI)
Mafra

1 de Julho de 2006

Programa

10.00 - Concentração junto da Porta de Armas

10.45 - Homenagem aos mortos

11.00 - Colocação de uma placa assinalando o encontro:

"Homenagem à EPI
Curso de Oficiais Milicianos 2ª Inc. 1967
10 de Abril de 1967
1 de Julho de 2006"

12.00 - Missa campal na Parada, em princípio presidida pelo Reverendíssimo Sr. D. Januário

12.45 - Fotografia dos presentes

13.00 - Almoço no refeitório do quartel

Preço do pessoa> 15 a 20 € (está dependente do número de participantes)

TRAZ A FAMÍLIA E PASSA PALAVRA A OUTROS EX-CADETES DESTA INCORPORAÇÃO.

TRAZ TAMBÉM UMA BOINA COM ARMAS DE INFANTARIA E O EMBLEMA DA ESCOLA


Organizadores: Rui Felício / Paulo Raposo (1)
.
Envia a tua inscrição para: abr1967epi@gmail.com

Contacto na EPI: 2º Comandante Ten Cor João Mendes
Tel > 261 815 055

Paulo Lage Raposo
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Nota de L.G.

(1) O Rui Felício e o Paulo Raposo fazem parte da nossa tertúlia e são ex-Alf Mil da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

domingo, 18 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P882: Historiografia da presença portuguesa em África (1): Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Ao fundo, a escola primária (no telhado, ainda vísiveis as letras pintadas a branco com o nome da localidade...), frente à parada, o pau da bandeira e os memoriais das unidades que por lá passaram; à direita, a árvore de maior porte que lá existia no nosso tempo, a casa do chefe de posto (se não me engano) e, por detrás, o depósito de água... Ao tempo, era professora a Dona Violette da Silva Aires, de origem caboverdiana, aqui tão justamente evocada pelo Beja Santos... (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 : Vinte e sete anos depois, a escola, já em completa ruína... "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...) (Beja Santos).
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor local). Direitos reservados.


Por gentileza do autor, o nosso camarada Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do
Pel Caç Nat 52 (Bambadinca e Missirá, 1968/70) (1)

A LENDA DO ALFERES HERMÍNIO DE JESUS
por Beja Santos

Para Bacari Soncó, Régulo do Cúor

A noite passada, sonhei que tinha voltado a Missirá, envolto pelo piar lúgubre dos jagudis e o restolhar dos porcos do mato. Meti-me à estrada a partir de Canturé, rápido alcancei Finete, de onde se avista o bruxulear de Bambadinca. Abudu Cassamá, de costas retalhadas por uma granada de fósforo, acompanhou-me pela bolanha enluarada. Como num sonho tudo é consentido, retiro de uma carta que trago no meu camuflado a fotografia do túmulo de Infali Soncó, reduzido a duas paredes de adobe carcomido por chuvas diluvianas e estios tórridos. Infali Soncó, Régulo do Cúor, derrotou Teixeira Pinto em 1917. É um herói mandinga, mas não foi ainda herói para a Guiné Bissau. No meu sonho ele está sepultado em Bambadinca, mas, de facto, ele jaz em Missirá.

Para procurar conhecer o sopro anímico que movia o guerreiro Infali, a noite passada percorri, em relâmpago os seus territórios, o seu império: a sul, definia-se pelas sinuosidades do Rio Geba ou Xaianga; a oeste, por Porto Gole; a norte, pelo Ôio e Mansomini; a oeste, pelo Jolado e Badora. Abro uma carta de um para cinquenta mil, dos Serviços Cartográficos do Exército, para ver o que cabe dentro do território do Cúor: nomes exóticos como Darsalame, Gã Joaquim, Paté Gidé, Flaque Dulo.
Lembro estes nomes e estremeço com a recordação de ter percorrido muitas destas ruínas do império destruído, naqueles anos da guerra, quando comandei em Missirá. Na guerra patrulhei, minei, queimei, vi gritar de dor nos rios Biassa, Gambiel e na orla do Geba, embusquei em Chicri, em São Belchior, sobretudo em Mato do Cão, onde me apavorei quando ouvi e vi as águas revoltas pelo macaréu.
Os guerrilheiros tinham os seus acampamentos em Madina, em Mansomini, em Quebá Jilã. As famílias Soncó e Mané, os descendentes de Infali, estão em Missirá e também em Finete (é aqui que conheci Bacari, hoje Régulo do Cúor). Porque o Cúor de Infali já não existe. O meu sonho prossegue. Vejo-me sentado numa raíz de poilão, junto do túmulo de Infali a perguntar ao vento: no fim desta guerra medonha, será que este Cúor se levantará, ainda terra de grumetes e ponteiros? O vento permanece impenetrável.

Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida. Súbito, Dona Violete ganha energia e, sem pausas, segue-se a narrativa histórica dos Rios da Guiné, de Cabo Verde, uma espiral de violência, tráfego de escravos e conquista que se derrama dentro do meu sonho. Inevitavelmente, o Cúor entra no palco. Nele, o Geba é a região dos entrepostos; a estrada de Porto Gole-Enxalé avança para Geba e Bafatá, sulcando o terreno firme do Cúor, a serpentear o rio das mercadorias; e o Cúor é rico em madeiras perfumadas, tem um pau sangue único no mundo.

Sinto que o meu sonho está a terminar. A voz sumida da Dona Violete adverte: "Lembre-se, Sr. Alferes, estamos numa das regiões mais palustres da terra. Antes do combate à doença do sono e do tracoma, as grandes mortandades da malária, da lepra e do béribéri, situavam-se aqui. No fundo dos mangais, a vida só é possível à volta dos riachos e palmares. Já ouviu falar de um alferes português que no tempo de Infali morreu de amor? “.

Acordo, hoje é o segundo domingo de Janeiro de 1990, 20 anos depois regresso a Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis. De Bissau seguimos para Nhacra, onde as crianças acompanham a missa com batuque. A caminho de Porto Gole, o Geba é mercúrio ígneo. Paramos em Mato do Cão, que percorri todos os dias, entre Agosto de 1968 e Novembro de 1969. A ponta do cabo-verdiano está completamente destruída. Restam umas madeiras do ancoradouro e vou ver o Geba e o seu tarrafe. Subimos depois para Missirá, onde vou entrar e sair lavado em lágrimas. Após a recepção, Abudu Soncó, o filho mais novo do Régulo Malâ, apresenta-me Alage Soaré Soncó, o último filho sobrevivente de Infali. Será através dele que vou finalmente conhecer a lenda do Alferes Hermínio de Jesus.

Sentado à porta de uma tabanca, depois de termos bebido chá e comido papaia, Alage, de olhos brumosos, falou-me de Infali. Vou tomando nota do que ele diz, a partir de agora nada é ficção. A lenda do alferes português é o momento mais alto do génio militar e, simultaneamente, prenuncia o ocaso de Infali. A luta encarniçada entre Infali Soncó e as tropas portuguesas, na segunda campanha de Teixeira Pinto, em 1917, revela a sua bravura e igualmente a sua fina percepção política.

Infali terá nascido por volta de 1870, em Berrocolom no sector do Gabu, leste da Guiné. Com 19 anos, à frente de cem cavaleiros, conquista Cumpone, na região de Boké, Guiné Conakri. Tal feito grangeia-lhe a admiração dos mandingas e é convidado para Régulo de Cumpone. Infali encontrou forte rivalidade dos fulas, sobretudo do guerreiro Alfa Iaia, de Conakri, e logo fica à espreita de uma oportunidade para sair de Cumpone.
Essa oportunidade veio a acontecer em 1894, quando o seu tio Calonandim Mané, Régulo do Cossé, em Bafatá, e aliado dos portugueses, lhe pede para invadir o chão do Cúor, repito um imenso território entre a Porta do Cúor (hoje Porto Gole) e a região do Geba. O objectivo era depor o Régulo Sambel, Nhatam, que tinha a sua fortaleza em Sam-Sam (perto de Gã Gémios, totalmente desaparecida, como eu próprio confirmei). E daí partiam as hostilidades contra as embarcações portuguesas e cabo-verdianas que ele atacava com ferocidade no Rio Geba, entre Mato do Cão e Bambadinca.
Infali aceitou combater ao lado de Calonandim Mané, ambos cercaram Sam-Sam com mais de duzentos guerreiros armados de longas (canhangulos) e azagaias e Sambel Nhatam bateu em retirada. As autoridades portuguesas apercebem-se das vantagens de uma aliança com estes fogosos guerrilheiros mandingas. Logo o Governador Lito de Magalhães parte de Bolama (então a capital da Guiné) e convida Calonandim a aceitar o regulado do Cúor.

Alage Soncó contou-me que as festas deste novo régulo foram faustosas e compareceram os régulos de Mansoa e Mansabá. Calonandim reinou cerca de vinte anos e foi morto numa batalha perto de Enxalé, terra de balantas. Com a aprovação das autoridades de Bolama, Infali ascende ao trono e vinga exemplarmente Calonandim - correram rios de sangue entre Enxalé e a Porta do Cúor.

As autoridades portuguesas mostraram-se entusiasmadas com o perfil do castigador e as provas de fidelidade do aliado: Infali foi condecorado em Geba, em 1914.

Pergunto então a Alage Soncó porque se revoltou Infali contra os portugueses. Aqui ficam as explicações de Alage.
Em 1915, o Governador Fortes veio de Bolama (2) em visita de cortesia pelos regulados do leste da Guiné, fez-se acompanhar de comitiva militar , e entre os oficiais vinha o Alferes Hermínio de Jesus, um quase mancebo. Infali sai de Sam-Sam acompanhado pelos seus músicos para apresentar saudações de boas vindas. O Governador Fortes fica desorientado com o avanço da mole humana e a algazarra dos músicos. O Alferes Hermínio, desconhecedor do carácter hospitaleiro da fanfarra, manda disparar. Infali não se atemoriza com os tiros, interpretou-os como um acto de pura hostilidade e manda cercar os portugueses.
Protegido pela resistência do Alferes Hermínio, Fortes retira para Malandim e daqui para Samba Silate, perto do Xime. Infali captura o Alferes Hermínio, dois sargentos e catorze praças. Bolama interpreta estes reféns como sinal de rebelião contra Portugal. Infali não se deixa intimidar e actuou em duas direcções: cortou a navegação no Geba, paralisando toda a actividade económica entre Bambadinca e Bafatá; e, tendo comprado armas a comerciantes franceses do Casamansa, desafiou o Capitão Teixeira Pinto para as matas do Ôio. O Alferes Hermínio, entretanto, ficou a viver numa morança em Gâ Gémeos, perto da Aldeia do Cúor.
Um amigo de Infali Soncó, de nome Pedro Moreira, dono de uma destilaria entre Gâ Gémeos e Aldeia do Cúor, negociou com Infali a liberdade do oficial português. Veio, entretanto, um barco do Bolama para recuperar todos reféns, e um segundo tenente trouxe, em nome de Fortes, uma proposta de paz. Tinham-se passado cerca de vinte meses após o incidente com os músicos e a fuga do Governador Fortes.
Alage Soncó confessa então que as opiniões dos mandingas se dividiram quanto às razões da morte de Hermínio. Uns disseram que se apaixonara loucamente por Cumba Mané, filha de Inderissa Mané, comerciante de tabaco, panos e álcool em Canquelifá (3) e no rio Cheche. Havia mesmo quem dissesse que o casal era feliz e que Hermínio se dedicava à agricultura, aprendia crioulo, ourivesaria e as artes equestres. Outros, foram premptórios quanto à progressiva insanidade mental e isolamento do oficial, que se passeava sozinho pelo mato como um sonâmbulo. Ao gosto da época, o alferes suicida-se num palmar entre Caranquecunda e Missirá, deixando uma carta de despedida aos pais, pedindo-lhes perdão por não querer regressar, tal a paixão que sentia pelas terras da Guiné.
Nessa carta, reza a lenda, Hermínio referia-se ao Geba, aos pôr–do- sol em fogo que caiam repentinamente sobre a terra, à vida da tabanca, ao filho que ia nascer. Certo e seguro, o segundo tenente regressou a Bolama com um cadáver que era incómodo para todos. Aqui, Alage Soncó observa a fatalidade: a desdita do Alferes Hermínio marcava o início da queda política da Infali Soncó.

De facto, no fim da segunda campanha de Teixeira Pinto, Infali, que negociara a sua manutenção no poder após a derrota do contigente português nas matas do Ôio, desavençou-se com os régulos do Jolado e Cossé - os fulas abandonaram-no e Infali só dispunha do apoio dos mandingas e dos beafares. Bolama não perdeu a oportunidade para se desembaraçar do aliado instável. Infali é desterrado para Fulacunda (região de Quínara) onde morrerá em 1926. Um dos filhos de Infali, Bacari, é designado para régulo. É Bacari Soncó quem transfere a sede do regulado de Sam-Sam para Missirá, onde eu estou a recolher o depoimento de Alage Soaré Soncó.

Terei eu retido o essencial sobre a história do Alferes Hermínio? Alage pergunta-me de sopetão: “A família de Hermínio respeita a terra onde ele viveu e morreu?”. Digo que sim, como se Missirá não estivesse no meu sonho, e esta história tivesse alguma importância a não ser a de eu voltar a Missirá no segundo domingo de Janeiro de 1990, vinte anos após dela ter partido, a Missirá, que vi três vezes queimada e reconstruída, onde os meus mortos estão sepultados no cajueiro virado para Gambiel (4).

Está na hora de regressar. É difícil sair de Missirá, e, repito, tal como entrei saio lavado em lágrimas. Abudu Soncó entrega-me um livro que eu deixei em Missirá. Tem uma dedicatória e tem também um pensamento escrito numa máquina dactilográfica. O pensamento diz: “Se capturares o momento antes de maduro/As lágrimas de arrependimento certamente te fustigarão/Mas, uma vez que deixas escapar o maduro momento,/tu nunca poderás limpar as lágrimas de desespero”. William Blake. Acordo do meu sonho. Amanhã vou perguntar ao Abudu se Alage Soncó ainda é vivo. Tenho para ele uma resposta acerca dos familiares do Alferes Hermínio. Também eles gostavam de ir às terras do Cúor. A carta chegara a Lisboa. Hermínio morrera de amor por uma mulher e por um território. Muito ao gosto da época, afinal. (5)

__________

Notas de L.G.

(1) Vd . post anterior

(2) Bolama foi a primeira capital da província portuguesa da Guiné desde 1879 até 1941.

(3) Canquelifá: a nordeste de Nova Lamego

(4) Rio Gambiel, afluente do Rio Geba
(5) Em relação aos factos recolhidos oralmente pelo Beja Santos, parece haver algumas notórias discrepâncias, quando confrontrada a versão local com a historiografia portuguesa. Por exemplo, na Nova História Militar de Portugal (ed. lit. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira), vol. 3 (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003), pode-se ler a seguinte nota (p. 449):
"1908 - O governador Oliveira Muzanty, obtendo reforços da metrópole, organiza a maior expedição efectuada na Guiné até 1963, vencendo a resistência biafada, encabeçada por Unfali Soncó em Cuor e Canturé e restabelece as comunicações entre Bissau e Bafatá (5 a 24 de Abril)".
Carlos Bessa , autor do capítulo "Guiné. Das deitorias isoladasa ao 'enclave' unificado" (pp. 257-270), escreve o seguinte sobre o régulo Soncó:
"(,...) O régulo Unfali Soncó, aliado do régulo de Badora, Bonco Sanhá, com o assentimento de outros régulos fulas, pretendeu impedir a navegação no Geba, criando o risco de sufocar Bissau extinguindo-lhe o comércio. Contando com a aliança do régulo do Xime, Abdulai Kassalá, violento e impopular, e de Monjour, célebre régulo do Gabu, Muzanty fez frente a Soncó (...).
"Em 18 de Março [de 1908] desembarcou a expedição prometida pelo governo, com um efectivo de 358 oficiais e soldados portuguese. A resistência de Unfali Soncó ainda durava, e Muzanty organizou e assumiu o comando da maior expedição do exército regular ao interor da Guiné até 1963. Unfali Soncó, vencido em Cuor e Ganturé, entre 5 e 24 de Abril, viu-se abandonado. A resistência das tabancas biafadas foi pequena, e a navegação comercial entre Bissau e Bafatá restabelecida. Abdul Injai, aventureiro senegalês, distinguiu-se no apoio dado. Foi nomeado réglo do Cuor, efectuou avultadíssima cobrança do imposto e ele próprio enriqueceu" (pp. 266-267).
Na referência de Carlos Bessa ao "pacificador" da Guiné, Teixeira Pinto, e à sua "segunda campanha" (1913-1915), não surge o nome de Unfali (ou Infali) Soncó.
João Augusto de Oliveira Muzanty foi governador da Guiné entre 1906 e 1909. Não encontro nenhum Fortes nem nenhum Lito de Magalhães na lista dos governadores da Guiné. Muzanty é, juntamente com Teixeira Pinto, um dos grandes protaganistas da "pacificação" da Guiné, tendo em sua honra sido erigida uma estátua em Bafatá.

Guiné 63/74 - P881: Tabanca Grande: Uma saudação especial ao nosso camarada Beja Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá, 1968/70)

Esposende > Fão > 26 de Novembro de 1994 > Convívio da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852 e outras unidades destacadas em Bambadinca, entre 1968 e 1971... Na imagem, ao centro o Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano que comandou o Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/70), ladeado pelo Humberto reis (à direita) e o Tony Levezinho (de costas, à esquerda). Ao fundo, particularmente sorridente, vê-se o Arlindo Teixeira Roda. Estes três eram furriéis milicianos da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) (1) .

Foto: © Humberto Reis (2006)


Segundo as minhas próprias recordações e as do Humberto Reis, este foi o primeiro convívio colectivo que o pessoal de Bambadinca realizou, depois do regresso a casa. Foi organizado em Fão, Esposende, por iniciativa do ex-Alf Mil Carlão, da CCAÇ 12. Foi também o único em que participei, até à data. Entre os velhos camaradas de Bambadinca, reencontrei o Beja Santos. O convívio seguinte foi na herdade do J. Vacas de Carvalho aonde, creio, o Beja Santos também foi.

Há dias encontrei na Net um belíssimo texto do Beja Santos, aliás, do Dr. Mário Beja Santos, um figura pública conhecida (especialista, de renome internacional, em questões de direito do consumidor, assessor do Instituto do Consumidor, professor universitário, etc.). E isso foi um pretexto para o contactar e pedir-lhe autorização para publicar o texto no nosso blogue.

Aproveito para lembrar que, com o Pel Caç Nat 52, comandando pelo Beja Santos, fizemos (a CCAÇ 12, mais a CCAÇ 2636, mais 1 Esq. Morteiros do Pel Mort 2106 (e ainda - segundo creio - mais o Pel Caç Nat 54) talvez a mais dramática, temerária e penosa operação de que eu me lembre: Op Tigre Vadio (Março de 1970), na pensínsula de Madina/Belel, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor, na extremidade sul do famoso corredor do Morès...

De facto, todos os anos nos obrigavam (o comando de Bambadinca) a fazer uma visita à base do PAIGC de Madina/Belel... O Beja Santos foi lá pelo menos duas vezes... Jorge Cabral também lá foi, pelo menos uma vez, de helicóptero, com os paraquedistas... Um belo dia destes teremos que falar destas estórias fabulosas e dramáticas das nossas incursões a Madina/Belel... O Jorge Cabral também conhece muito bem o Beja Santos, de resto também ele foi rei e senhor de Missirá...

O texto, que eu vou reproduzir, a seguir, no nosso blogue (depois de obtida a competente autorização do autor), evoca duas figuras: por um lado, o herói mandinga Infali Soncó, régulo do Cuor, que terá derrotado o Teixeira Pinto em 1917; e por outro, um anti-herói, português, o alferes Hermínio de Jesus, aprisionado pelo Infali e que depois terá morrido de loucura e de amores por uma bela mandinga...

O texto, escrito por um homem de cultura como é o Beja Santos, e que já circulou internamente pela nossa tertúlia, por e-mail, evoca igualmente um das mais mais belas regiões da Guiné, justamente aquela que ele próprio, mas também eu próprio, o Jorge Cabral, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Joaquim Fernandes, o Vacas de Carvalho, o Luís Moreira, o António Duarte, o Sousa Castro, o Carlos Marques dos Santos e outros tertulianos, tão bem conheceram e amaram... Chamo a atenção também para a evocação da figura da professora primária de Bambadinca, Dona Violete da Silva Alves (2)...

Falando há dias com o Beja Santos pelo telefone, pareceu-me que ele, embora sendo um homem atarefado, mostrou interesse pela existência da nossa tertúlia e sobretudo disposição para colaborar com mais textos da sua autoria. Autorizou-me expressamente a publicar a lenda do Alferes Hermínio de Jesus (2)… Fica aqui o meu agradecimento (público) pela sua atenção e o nosso voto para que se junte à centena de amigos & camaradas da Guiné que constituem já a nossa tertúlia…

Eis a mensagem que ele me mandou, por e-mail: "Prezado Luís Graça, gostei muito do seu telefonema e procurarei corresponder ao seu solicitado. Para já leva dois textos com todas as autorizações necessárias para os publicar. Estou asfixiado com o fim do ano lectivo. Mas terei muito gosto em continuar em conversar consigo nos próximos tempos. Abraços, Beja Santos".

Tine oportunidade de responder-lhe de imediato , por e-mail de 14 de Junho de 2006:

"Caro Beja Santos:

"1. Obrigado pelo gesto de camaradagem. Irei publicar, com muito gosto, os dois textos que mandou para a nossa tertúlia.

"2. Teremos oportunidade de ir matando saudades das terras do Cuor: Missirá, Finete, Mato Cão, Enxalé, Portogole... Eu também sou professor universitário, ambos sabemos o que é a azáfama do fim de ano lectivo... Tenho pena que as circunstâncias não nos tenham permitido, na Guiné, manter um contacto mais pessoal... Estive várias vezes em Missirá, usufruindo da sua hospitalidade e até dos seus bens culturais... Recordo-me que você era um melómano e que um dia perdeu toda a sua discoteca (incluindo a sinfomia do Novo Mundo, que era uma das suas preferidas, se a memória não me atraiçoa)" (...)

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)

(2) Vd. post seguinte, com data de hoje.

Guiné 63/74 - P880: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (João Tunes)

Mensagem do João Tunes, com data de 14 de Junho de 2006:

Caros amigos e camaradas tertulianos,

Um enorme peso na consciência que não consijo alijar, nem com juros de remorso, obriga-me a, também por dever de lealdade, partilhar convosco o meu penitente mea culpa. Aqui vai: Faltou-me coragem guerreira suficiente (ou seja, fui-me abaixo das canetas, eufemismo para designar um vaipe de cobardia) para partilhar a vossa estimada companhia na efeméride gloriosa do 10 de Junho lá na nossa Praça do Império.

Mas, embora esfarrapadas, não deixo de invocar dois arremedos de desculpas:

1ª) Já não sei onde me para o raio da boina. Quiçá, foram ratos turras que a roeram. Garantido é que não lhe sei do paradeiro. Às tantas, o mais certo, é nem sequer a ter guardado. Ou talvez ela se tenha ido na bruma do tempo por míngua de naftalina de saudade.

2ª) Temi ir e entusiasmar-me e, dando-mo no gosto, desatar a desfilar Avenida da Liberdade abaixo no próximo 1º de Dezembro em honra saudosa dos desfiles restauracionistas do tempo da Dona Vera Lagoa. Que alívio...!!!

Contando com a vossa compreensão, abraços para todos os estimados terulianos.

João Tunes

quinta-feira, 15 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte) (Luís Graça)




Guiné > Guileje > O ex-furriel miliciano de operações especiais Casimiro Carvalho, da Companhia Independente de Cavalaria 8350, que esteve naquele que ficou conhecido pelo corredor da morte, entre Guilege e Gadamael , entre Outubro de 1972 e Junho de 1973. Ele foi reconhecido como um dos heróis de Gadamael, não só pelos seus camaradas e pelos seus superiores imediatos (o Capitão Quintas, comandante da CCAV 8350, ferido em combate na batalha de Gadamael, bem como pelo capitão comando Ferreira da Silva, nomeado de urgência para chefiar o COP 5, e aqui evocado e entrevistado pelo jornalista do Público)... Mas esse facto nunca foi devidamente reconhecido pela hierarquia do Exército (LG)
Foto amavelmente cedida pelo próprio e enviada pelo seu amigo e camarada © Magalhães Ribeiro (2005)

Segunda e última parte do trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso > (Público, 26 de Junho de 2005) (1)


Histórias reais recordadas 32 anos depois

(i) O soldado da Madeira que só morreu em Bissau

“Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só ia conseguindo tirar um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro. Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada. O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma. O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta. O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico. Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá”.


(ii) Uma bala por cima do coração

“Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha alojada uma bala acima do coração. Este homem pesaria entre 110 e 120 quilos. Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante. O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – eram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas. Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa. O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro. Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali. Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel. O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado.”


(iii) Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos

“Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor: chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali e encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós. Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam as urnas. Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias. Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada. A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno. Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar àquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta anos, não consegui”.

Ninguém entregou a condecoração ao coronel

Uma investigação de Eduardo Dâmaso

O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.

Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.

Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.

A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido.

Chuva de 18 granadas de três em três minutos (2)

Pelo amanhecer do dia 1 de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos. Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente. Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.

Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados, os mortos e feridos foram aumentando. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.

Num cenário de desespero e com poucos abrigos, os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada. Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens.

A bravura do cabo Raposo

Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.

A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho (3), porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.

Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas (*) que entretanto tinham chegado. O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado. "A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra.

Fonte: Público, edição nº 5571, de 26 de Junho de 2005.
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Notas de L.G.

(1) vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(*) Mensagem de Vítor Tavares : "...para que fosse corrigido o relato de um texto relativo á suposta morte de Para-quedistas em Gadamael , que felizmente não aconteceu".

Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I) (Luís Graça)


Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > A LFG Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967. 

Foto: © Lema Santos (2006)

A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. 

Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva, e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael. (Público, 26 de Junho de 2005)


A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos

Uma investigação de Eduardo Dâmaso

Fonte: Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005 (com a devida vénia).

[ Notas de L.G. Agradece-se ao Pedro Lauret, ao Carlos Fortunato e ao A. Marques Lopes o envio de ficheiros, em diferentes formatos, com cópia deste notável e original trabalho do jornalista Eduardo Dâmaso que merece especial destaque na nossa secção antológica, reservada a textos já publicados e que, em princípio, não são da autoria de membros da nossa tertúlia].

Passaram 32 anos desse dia 1 de Junho de 1973 mas o comandante Pedro Lauret ainda se recorda do arroz de tomate com peixe que estava a comer e que era também o jantar da guarnição da fragata Orion (1) em missão no rio Cumbijã (2). Ali estavam, estacionados nas águas de um dos muitos rios da Guiné, a comer a tomatada de peixe e a beber cerveja gelada enquanto a noite começava a deitar-se sobre a mata de Cantanhez, tão bela quanto sinistra para os milhares de soldados portugueses que a olhavam como um santuário dos guerrilheiros do PAIGC. Foi à hora do jantar que o comandante, então imediato da embarcação, Pedro Lauret, recebeu a indicação de que estava a chegar uma mensagem de “alto grau de precedência”, ou seja, de António Spínola, comandante-chefe do contingente militar português na Guiné.

O jantar acabou e começava uma inesperada e marcante aventura na vida de todos os homens embarcados na Orion. Pedro Lauret entra na cabine onde a mensagem estava a ser descodificada e percebe logo que têm de preparar-se para levantar ferro. A mensagem trazia ordens do Comando Geral a determinar que a Orion subisse o rio e embarcasse uma companhia de paraquedistas que deveria conduzir para o porto de Cacine.

“Não eram dadas explicações mas de imediato nos apercebemos que algo de muito grave se passava. Embarcar de noite uma companhia de paraquedistas sem qualquer tipo de protecção, naquele local, era muito arriscado”, afirma Pedro Lauret.

A missão secreta chegou à hora de jantar

As ordens destapavam uma outra face da moeda: tirar uma companhia de paraquedistas da região iria diminuir a capacidade militar num local problemático. As missões da Marinha no rio Cumbijã tinham recomeçado em 1972 quando Spínola decidira reactivar cinco aquartelamentos na região de Cantanhez mas a operação não estava a dar resultados. O dispositivo militar tinha sido reforçado com companhias de tropas especiais, paraquedistas e fuzileiros, bem como com diversas unidades do Exército mas mal punham o pé fora do arame farpado dos quartéis eram de imediato atacados.

“Nunca se percebeu muito bem o objectivo desta reocupação”, declara Pedro Lauret que recorda os meios navais envolvidos nessas missões no Cumbijã: a Orion, duas lanchas de desembarque médias (LDM), oito botes zebro, uma companhia de fuzos.

O jantar acabou de imediato para toda a tripulação. O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista e moço da botica, foi um dos que perdeu a refeição. “Ao entardecer já a tripulação comia arroz de tomate com peixe frito. Lembro-me que estava de ‘quarto’ e, por isso, só iria jantar depois da rendição. Jantar é uma forma de dizer... O arroz já estava feito em cimento e comi, à boa maneira portuguesa, uns peixinhos fritos com pão e umas cervejas”.

Foram dadas instruções aos patrões das LDM para seguirem em direcção a Cacine pelo canal do Melo (2), um pequeno braço de rio que liga os Cumbijã e Cacine, curto e seguro mas não navegável para embarcações maiores.

A Orion seguiu rio acima e embarcou os paras no local combinado. Foi uma operação morosa pois não havia nenhum ponto para acostar. Os soldados foram transportados em botes depois de montada uma linha de segurança.

Seriam uma oito da manhã de 2 de Junho [de 1973] quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão.

Spínola proíbe auxílio a ‘cobardes’

O major Pessoa, do batalhão de paraquedistas que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje (3), um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, coronel Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael (4). Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.

O retrato da situação em Gadamael feita pelo major Pessoa era caótico. “As últimas indicações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio”, recorda Pedro Lauret.

A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os “uns cobardes”.

“Vou buscá-los nem que seja de canoa”

Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. “Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontravam. Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas”, afirma Lauret.

A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio. O Orion partiu de imediato em auxílio das tropas fugitivas e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima.

Avançaram as LDM porque havia muitos anos que as LFG não subiam o Cacine para lá da marca da Lira, um sinal com reflector instalado no rio e já próximo de Gadamael (4). A verdade é que não eram conhecidas as condições de fundo para lá dessa marca, mas o navio aproximou-se do quartel o mais possível, sem problemas.

Do ponto onde estava a Orion podia avistar-se uma antena de grandes dimensões e era um evidente sinal da proximidade do inimigo que punha também a Orion na linha de fogo. De imediato foram desembarcados os paraquedistas nos zebros e as LDM começaram a percorrer as margens a recuperar os soldados que andavam perdidos.

“À noite, a coberta das praças estava repleta de feridos”

Havia feridos e mortos. Desaparecidos e enlouquecidos. No convés foi instalado o mais improvisado dos hospitais para assistir aos feridos ligeiros. Os que tinham ferimentos mais graves foram colocados na coberta dos praças. Dentro do possível foi servido pão e cerveja gelada. Lá fora, nas águas do rio, os zebros percorriam incessantemente as margens enquanto as LDM começavam a fazer uma ponte marítima em direcção a Cacine para levar os sobreviventes para um lugar mais seguro e os feridos para uma assistência mais eficaz.

“Penso que teremos recuperado cerca de 300 a 400 pessoas, entre militares e população”, diz Pedro Lauret, evocando uma imagem que nunca mais o abandonou: “À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem”.

O relato do grumete Ulisses Faria Pereira é feito de rajada, como se quisesse deitar qualquer coisa cá para fora. De resto, isto foi um episódio silenciado ao longo de 32 anos. “Ao longo da manhã foi recebido a bordo um número elevado de feridos, a quem eram prestados os primeiros socorros, administrados pelo enfermeiro Abrantes, auxiliados pelo moço da botica, que por sinal era eu... e que, posteriormente, eram enviados para terra, para terem uma assistência melhor proceder à sua evacuação via aérea para o hospital e Bissau”, diz.

G3 ficaram abandonadas a bordo do Orion

Nessa noite de 2 de Junho de 1973, o cenário não podia ser pior. A maré baixa criou uma massa de lodo que dificultava o desembarque dos feridos. Dentro do barco estavam esgotadas todas as reservas de soro, compressas, desinfectantes. Foi então enviada uma mensagem para Bissau pedindo reabastecimentos mas temendo o pior face ao conhecimento que havia das ordens de Spínola. Na manhã seguinte, porém, um avião da Marinha largava em Cacine tudo o que tinha sido pedido.

O trabalho da Orion continuou nos dias seguintes, fazendo evacuações e começando a retirar do teatro de guerra os paraquedistas feridos. A bordo jaziam a um canto dezenas de espingardas G3: o princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido. O moral daquela tropa estava abaixo de zero.

Para a história fica o silêncio da hierarquia. Nunca o Comando da Defesa Marítima da Guiné se referiu à desobediência do Orion, do seu comando e tripulação, nem estes sofreram qualquer punição. Na memória ficaram imagens que os protagonistas ainda hoje retêm: em Cacine, por aqueles dias, vivia um Exército enlouquecido, desarticulado, abandonado pela hierarquia, a deambular por entre os seus mortos.

O diário que nunca existiu

O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista, moço da botica no navio Orion e ex-seminarista, tinha a "mania da escrita". Todos os dias escrevinhava umas notas sobre a sua comissão militar. Todavia, nunca organizou as suas notas num diário e acabou por perdê-las. Mas se o tivesse feito ele começaria por rezar assim:

Maio de 1973

Já passaram 12 meses e a comissão decorre com toda a normalidade apesar de notar, conversa aqui, conversa ali, que a situação militar está a degradar-se. A nossa rotina é feita dos habituais 'cruzeiros' pelo Cacheu . O Cacheu merece redobrada atenção. É muito estreito, tem muitas clareiras e o navio torna-se um alvo fácil. A navegação do nosso barco é feita com a guarnição em 'bordadas', ou seja, através de equipas constituídas por metade do pessoal que cumpre um turno de seis horas comandada por um oficial e um sargento. A outra metade descansa.

Frequentemente fazemos a navegação em posto de combate devido a informações sobre a actividade do inimigo. E varremos as margens a tiro. Seis homens são destinados às peças de artilharia antiaérea, duas Bofors de 40 mm, uma a ré e outra avante. Nas missões de patrulhamento, quer de dia quer de noite, são colocadas na ponte, tanto a bombordo como a estibordo duas MG42. Na ponte há ainda um morteiro manobrado por um fuzileiro. Pois foi num destes 'cruzeiros', há dias, que já vimos como é má a situação.

A Norte, o PAIGC atacou Guidage (5) e pela primeira vez se sussurrou entre as tropas que usaram mísseis. E também que foi abatido um avião a hélice num dia e um helicóptero no dia seguinte. Nós estávamos aí perto. A tensão foi enorme. Batíamos o rio a toda a hora, noite e dia. À noite em ocultação de luzes. Chegaram, depois, notícias do sul também muito más.

Guidage, Guileje e Gadamael começaram a ser os nomes da morte entre a tropa. O que mais depressa chega aos ouvidos dos soldados é a dificuldade de evacuação de feridos. Recebemos então a missão de embarcar uma companhia de paraquedistas na zona de Bolama e deslocá-los para Gadamael com o objectivo de prestar auxílio às unidades que flageladas pelo inimigo.

Percebemos logo que aquela não iria ser mais uma missão de rotina quando soubemos da possibilidade de o massacre ser de tal ordem que havia militares a fugir para as bolanhas em redor de Gadamael. Após o embarque, as forças especiais foram-se acomodando no convés. Apagámos as luzes e fizemos rumo para Cacine.

Ao longo das primeiras horas da manhã foram recebidas a bordo dezenas de homens feridos. Nestes dias, o Orion funcionou não como lancha de fiscalização mas como um navio hospital, de primeira linha, mas sem médico e apenas com um enfermeiro e um 'curioso' que era eu.

Trinta e um anos depois sobram as memórias de uns tempos de chumbo mas também de uma experiência decisiva na vida de Ulisses, natural de Alboritel, concelho de Ourém, há muito instalado em Almada onde é funcionário da inspecção tributária. Hoje até é capaz de se rir quando se lembra dos truques que a sua imaginação criou para não ser incorporado para a Guiné – como responder tudo mal nos testes do curso da Marinha – e de como o tiro lhe saiu pela culatra. Logo a ele que ficou com a especialidade de electricista sem que tivesse qualquer vocação para tratar de fusíveis e tomadas. Foi excluído do curso mas acabou incorporado no navio S. Roque, embarcação dos mergulhadores da Marinha. Daí até à Guiné foi o tempo de um fósforo a arder. Quando pôs o pé em Bissau era um recruta em prontidão para combater sem que alguma vez tivesse tido contacto sério com armas de fogo...

Jorge Amado e Gorki no navio que atacou Conakri

Quando Pedro Lauret, então um jovem guarda-marinha de 22 anos, chegou ao Orion, em Setembro de 1971, ainda por ali pairava a memória fresca de uma operação secreta. O navio tinha comandado a incursão militar contra a Guiné-Conakri sob a mão de ferro do comandante Alpoim Galvão (7), na mais polémica acção de guerra da campanha colonial portuguesa. Nos porões ainda havia umas boas caixas de champanhe francês e de whisky velho.

O ambiente a bordo era, por assim dizer, agressivo, no sentido em que era profundamente marcado pela lógica pura da guerra. "Foi minha primeira preocupação modificar o ambiente e, dentro das limitações de quem vive em teatro de operações, criar dinâmicas antifascistas e anticoloniais", recorda aquele que em breve seria imediato.

Na bagagem Lauret levava uma formação política na linha das actividades conspirativas de sectores da Marinha contra o regime. Desde 1968 que se organizavam na Marinha movimentos com finalidades políticas e que estavam centrados nas actividades associativas, culturais e técnico-profissionais do Clube Militar Naval (8). Um desses movimentos foi o que pretendia instituir um curso de natureza associativa e sindical que acabou proibido por despacho governamental em 1972. Outro, mais importante, foi o que fomentou clandestinamente uma plataforma política contra o regime e a guerra. Havia debates sobre o marxismo e o estruturalismo com convidados como Maria Lamas e Augusto Abelaira.

Eram dinamizadas actividades culturais nas unidades, como jornais de bordo, bibliotecas e convívios desportivos. Foram ainda criadas comissões de bem-estar, órgãos previstos na Ordenança do Serviço Naval e que juntavam na mesma unidade oficiais, sargentos e praças, servindo de conselho do comandante em vários domínios da vida nas embarcações. Uma das estratégias de aproximação entre oficiais e praças assentava em actividades lectivas para estes. Assim, foram criadas em algumas unidades pequenos núcleos escolares adquirindo maior importância os que se constituíram no próprio Ministério da Marinha e numa colectividade recreativa da Cova da Piedade.

Pedro Lauret, enquanto jovem cadete, relacionou-se mais com este mundo clandestino o que teve uma influência decisiva na sua formação política. Quando chega ao Orion leva já no espírito esta necessidade de trabalhar para tentar mudar alguma coisa no rumo que a presença militar portuguesa em África levava.

Numa curta passagem por Lisboa, em licença, recebe no aeroporto uma biblioteca de bordo. A entrega é feita pelo seu filho da Escola, mais tarde comandante Cambraia Duarte, a quem pedira para que lhe comprasse os livros. Os títulos são sugestivos quanto aos objectivos: "Os subterrâneos da Liberdade", "A Mãe", de Gorki, e "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes. Começam, assim, as leituras a bordo do Orion e também as aulas a alguns praças, que terminaram com sucesso exames do 2ºano do liceu. "Aos poucos o ambiente foi-se tornando muito diferente do que encontrara. Era um equilíbrio difícil para quem tem de manter a sua unidade em muito elevada prontidão para combate mas contei com apoio total do meu comandante de então, Coelho Rita,", declara Pedro Lauret. Em sua opinião, aliás, a mudança de ambiente no navio acabou mesmo por ser um factor decisivo para a tripulação viesse a ter a capacidade moral para desobedecer às ordens do Comandante-chefe, Spínola, quando o que estava em causa era tão só a solidariedade com aquilo a que chama "o povo português fardado".

(Continua)
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Notas de L.G.

(1) Sobre a Lancha de Fiscalização Grande (LFG) Orion - e não "fragata" -, vd. os seguintes posts:

21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

(...) "Depois, já promovido a Subtenente, o destacamento para uma unidade naval na Guiné, o NRP Orion - P362 (LFG - Lancha de Fiscalização Grande) onde fui oficial Imediato de Maio de 1966 a Abril de 1968; uma unidade naval de 42 metros, com 2 oficiais, 4 sargentos e 22 praças entre outras 6 idênticas (Argos, Dragão, Hidra, Lira, Cassiopeia e Sagitário).

"Seguiram-se inúmeras operações, apoios à navegação (LDG, LDM, LDP, TT, embarcações e batelões) e oceanografia, escoltas, fiscalização, transportes, ataques e respostas, evacuação de feridos, prisioneiros e até transporte de agentes da PIDE" (...).

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: A Marinha, as LDG e as LFG (Lema Santos)

(...) "Naquela altura, as LFG (Hidra, Lira, Orion, Cassiopeia e Sagitário) tal como as LDG (Alfange e Montante), tinham comando autónomo, estavam atribuídos operacionalmente ao CDMG e incluiam na guarnição dois oficiais: (i) comandante, em princípio um primeiro tenente dos QP [Quadros Permanentes] da classe de Marinha, era nomeado pelo CEMA com publicação em OA; apenas conhecido um único caso de comando, durante algum tempo, por oficial da Reserva Naval - a Cassiopeia; e (ii) imediato, em princípio um oficial da Reserva Naval, igualmente da classe de Marinha, nomeado em OA e que, por inerência do cargo, substituia sempre o comandante em caso de ausência ou impedimento daquele; alguns deles também foram oficiais dos QP" (...).

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

(...) "Limitando-me apenas às LFG e especificamente à Orion, refiro alguns aspectos genéricos:

"O aspecto visual do perfil era claramente o de um patrulha. Em profundidade, havia navio até 2,20 m abaixo da linha de água o que lhes vedava, em alguns rios, o acesso parcial ou, noutros casos, total. O risco corrido da não observação deste princípio náutico, a respeitar na informação dada pela sonda, era o encalhe pura e simples, como sucedeu algumas vezes.

"Estas unidades navais efectuavam inicialmente a docagem de conservação (alagem) nos estaleiros navais de S. Vicente, em Cabo Verde e, mais tarde em Bissau. Significava que, com alguma dificuldade e amargos diversos de estômago, efectuavam navegação oceânica.

"Tinham a base naval em Bissau, na ponte cais em T, frente ao Comando de Defesa Marítima na parte interior da ponte-cais em T onde, na parte exterior atracavam também os comerciais e alguns TT. Estou a lembrar-me do Rita Maria, Ana Mafalda e até mesmo o Funchal.

"Para lá de toda a zona costeira da Guiné, incluindo os Bijagós, eram navegáveis, para as LFG, os cursos do rio Cacheu (até Farim), do Mansoa, do Geba até ao início do Corubal, do Grande Buba até um pouco acima de Bolama, do Tombali praticamente apenas na foz, do Cumbijã até em frente a Cadique e do Cacine até um pouco acima da foz do Unconde.

"Quando a curso dos rios já o não permitia, a navegabilidade mais para montante era preenchida complementarmente pelas LFP. Depois as grandes heroínas do tarrafo, do lôdo, dos desembarques, dos pequenos transportes, as LDM e as LDP; nos imprescindíveis grandes transportes de pessoal, material e abastecimentos as LDG assumiam a função" (...).

(2) Vd. mapa geral da Guiné e mapa de Cacine
(3) Vd. mapa de Guileje
(4) Vd. mapa de Cacoca
(5) Vd. mapa geral da Guiné

(6) Vd. mapa geral da Guiné e o sítio Memórias dos lugares > Guidage, Bigene, Binta

(7) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde
"Trecho do livro de Alpoím Galvão De Conakry ao MDLP (1976), seleccionado por A. Marques Lopes (vd. post de 22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXX: Bibliografia de uma guerra (9): a invasão de Conacri):

"A LFG ORION fundeou a NW dos molhes de protecção do porto de Conakry. A maré estava completamente cheia, o vento era nulo, e apenas o clarão da cidade iluminava a noite. Os botes de assalto foram colocados na água e, pelas 00.45, a equipa Victor, do comando do 2.° tenente Rebordão de Brito e composta por 14 elementos, largou discretamente em direcção aos molhes. Encostou ao Dique Norte, localizou exactamente o objectivo e partiu ao ataque" (...).

(8) Vd. sítio do Clube Militar Naval, fundado em 1866 e sediado em Lisboa

quarta-feira, 14 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P877: Tabanca Grande: Manuel Rebocho, Sargento-Mor Paraquedista na Reserva - Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra

Meus caros tertulianos, com uma saudação muito particular ao nosso inquilino, Luís Graça, permitam-me a impertinência de meter a minha colher.

Fui Sargento Pára-Quedista e estive colocado na Guiné entre os dias 8 de Maio de 1972 e 8 de Julho de 1974, sempre como operacional. Sou, de momento, Sargento-Mor Pára-Quedista, na Reserva e tenho por nome Manuel Rebocho.

Sobre o assunto que o Idálio Reis colocou a Nuno Rubim, posso acrescentar-lhe que a história da sua Companhia, a CCAÇ 2317 do BCAÇ 2835, se encontra disponível ao público e está na caixa nº 74, da 2ª Divisão, da 4ª Secção, no Arquivo Histórico Militar, junto a Santa Apolónia, em Lisboa.

Todavia, e como muito bem acentua Nuno Rubim, os relatórios das operações não constam, nem fazem parte desta história, vá-se lá saber porquê! Mas tenho uma opinião, que pode não passar de uma especulação: as histórias são sempre contadas pelos vencedores, logo, à sua semelhança e medida.

E, como concluí, no final da minha investigação sobre a Guerra da Guiné, que conduziu à minha tese de doutoramento em Sociologia, na Universidade de Évora, nos últimos anos da guerra, não havia, ou praticamente não havia, Oficiais oriundos da Academia em lugares de combate. Então, os relatórios das operações só podem revelar que a guerra foi feita pelos milicianos, que não fazem parte dos vencedores de Abril, logo, suprimem-se os relatórios.

É a vida meus amigos… É a vida.

Um abraço a todos,
do Manuel Rebocho

PS - Ah, faltava dizer-lhes, que tomei contacto com o vosso/nosso blogue, através do então Furriel Miliciano José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (a que abandonou Guileje, em 22 de Maio de 1973), o grande herói de Gadamael Porto, que, não obstante isso, também não faz parte da história oficial da Guerra da Guiné (1).

Comentário de L.G:

Meu caro Manuel Rebocho: O José Casimiro Carvalho já me tinha falado em ti. Ex-combatente da Guiné e doutorado (ou ainda doutorando ?) em sociologia, estás duplamente em casa, que é como quem diz: deves sentir-te confortável na nossa tertúlia virtual. Como já cá estás dentro, faz o favor de cumprir a praxe: 2 fotos, uma estória... ou as estórias que quiseres, porque o nosso hobby era a blogoterapia... Escrevemos, contamos estórias, mostramos as nossas fotografias, investigamos, apontamos o dedo à muralha de silêncio que se faz à nossa volta, a geração que fez a guerra colonial e que a perdeu (ou talvez não, por que como diz o Leopoldo Amado, a guerra colonial é apenas uma das faces da moeda; podremos ter perdido a guerra, mas ganhámos a paz, ou pelo menos estamos a tentar comquistá-la)...

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)

Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)




Cópia do título (e da primeira página) do trabalho de investigação jornalística da autoria de Eduardo Dâmaso, publicado no Público, sobre a batalha de Gadamael , em princípios de Junho de 1973, e o papel da LFG Orion, cujo imediato era então o nosso camarada Pedro Lauret, hoje capitão de mar e guerra na situação de reforma o > "A naves dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos: a história secreta do navio Orion, que há 32 anos salvou centenas de soldados na Guiné contra as ordens de Spínola" (****).

Fotos: ©
Pedro Lauret (2006). Direitos reservados.


Texto do comandante Pedro Lauret:

Caro Luís Graça

Dei hoje conta da vossa existência. Sou praticamente da última geração que esteve na Guiné. Fui imediato do NRP Orion entre 1971 e 1973. Sou hoje Capitão-de-mar-e-guerra reformado. O silêncio que se faz sentir em torno da guerra colonial é para mim revoltante. Se perguntarmos a qualquer jovem, até aos 40 anos, o que foi a guerra, na sua maioria tem apenas ideias vagas. A culpa também é nossa. O que contamos às nossas mulheres, filhos e netos?

Estive na Guiné num momento particularmente difícil, em 1973 após o PAIGC ter colocado em operação os mísseis Strella, e a FAP ter deixado de voar numa primeira fase e posteriormente voar com enormes limitações. Deixaram de se verificar evacuações e apoios de fogo.

Sou do tempo em que o Presidente do Conselho, Prof. Marcello Caetano afirma ao General Spínola que aceita a derrota (como na Índia), mas nunca a negociação (ver livro Depoimento de Marcello Caetano).

É necessário quebrar este silêncio traumático e doloroso.

Faço neste momento parte da Direcção da Associação 25 de Abril, e estamos a trabalhar para lançar um grande site sobre a Guerra Colonial.

Envio, para os fins que entenderem, uma cópia de um artigo (Jornal Público) sobre a actuação do NRP Orion em Gadamael, quando eu era imediato (1).

Um abraço

Pedro Lauret

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Nota de L.G.

(1) Documento que está a circular pela tertúlia, para leitura e análise. Trata-se de um trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso, publicado na Pública, separata de domingo do Publico, edição nº 5571, de 12 (?) de Junho de 2005. Título:"A naves dos feridos, enlouquecidos e desaparecidos"... Recordo-me de ter lido na altura este notável documento onde se fazem inéditas revelações sobre a batalha de Gadamael e a dramática retirada das NT, em 2 de Junho de 1973...

Eis o pedido que formulei, ontem, aos nossos amigos & camaradas da Guyiné, que fazem parte da nossa tertúlia:

"(...) Gostava de pedir ao Manuel Lema Santos (que foi imediato da Orion, em 1966/68) e ao José Carvalho ( o nosso ranger, que esteve na batalha de Gadamael, em finais de Maio/princípios de Junho de 1973), que comentassem o notável trabalho de investigação feito pelo jornalista do Público, Eduardo Dâmaso (“A naves dos feridos, enlouquecidos e desaparecidos”), e de que eu vos enviei um ficheiro (pesado) em “power point” com as cinco páginas da reportagem, documento esse que o comandante Pedro Luret (imediato da Orion em 1973) me fez chegar e que eu já reenviei, ontem, para as vossas caixas de correio…

"(...) O ficheiro, com aquele formato e tamanho (quase 5MB), não pode ser inserido no blogue. Eu acho que merece ser melhor divulgado, tal como as batalhas de Guileje e Guidage… Simplesmente, temos que arranjar uma cópia do jornal, digitalizá-la… O texto tem que ser em word ou rtf… Não consigo, por outro lado, saber a data exacta em que foi publicado: sei que foi na Pública, separata do Público, de domingo, correspondente à edição nº 5571, Junho de 2005, talvez 12 de Junho…

"Se alguém tiver à mão uma cópia do original, que me diga… Talvez o A. Marques Lopes tenha esse recorte (A propósito, deves conhecer o Pedro Luret, ele é da Associação 25 de Abril, da tua associação que, pelo que ele diz, está a preparar um grande site sobre a guerra colonial… Sabes mais alguma coisa disto ?)”…

terça-feira, 13 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P875: XXI convívio anual da CART 3494 em Vila Nova de Gaia (Sousa de Castro)






Texto e fotos: © Sousa de Castro (2006)

No dia 10 de Junho 2006 realizou-se o XXI convívio da CART 3494 (Fantasmas do Xime) em Vila Nova de Gaia, no Regimento de Artilharia 5 (RA 5) , ex-Regimento de Artilharia Pesada 2 (RAP 2).
Foi um encontro onde apareceram camaradas que não se viam há mais de trinta anos, foi emocionante. Foi prestada homenagem aos mortos em combate ao toque da música de silêncio, protagonisada por alguns elementos da Banda de Música do Regimento, depondo-se em seguida uma coroa de flores no memorial existente.
Convém referir que esse memorial simboliza todos mortos considerados em combate nas três frentes em que Portugal esteve envolvido (ou seja: Angola, Moçambique e Guiné), dos Batalhões aí formados. É de salientar que existem duas pedras com os nomes de soldados mortos em Angola, duas de Moçambique, mas da Guiné existem três. Quer isto dizer que numa província tão pequena tenham morrido mais doque nas outras duas províncias.
Divulguei o Blogueforanada e incentivei a que participassem nele, vamos a ver se alguém de novo aparece com novas estórias.
De referir também que o menu foi mesmo à moda da tropa, servido no Quartel pelos próprios Militares, tendo constado de rancho, vinho dos temperos, espumoso, whisky, bolo da CART 3494 e café.

Sousa de Castro
(ex-1º cabo TRMS CART 3494 Guiné, Xime e Mansambo, Janeiro de 1972/ Abril de 1974)

Guiné 63/74 - P874: O que é feito dos nossos relatórios de operações ? (Idálio Reis / Nuno Rubim)

1. Texto, com data de 9 de Junho de 2006, do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1):

Caro Nuno Rubim:

Aproveito esta oportunidade para lhe desejar que esteja de boa saúde.

Esta questão do blogue do Luís Graça vem naturalmente despertando alguma curiosidade, mas reconheço que as memórias de há 4 décadas estão confusas na sua incertidão, para além de as de menor sensibilidade estarem já bastante esbatidas. Percebe-se esta inquietude, para quem gostaria de narrar acontecimentos, mas que requerem a precisão e o seu pormenor, ou seja, baseados na sua autenticidade formal.

De forma que tomo a ousadia de me dirigir à sua pessoa, para me ajudar. Julgo eu, que haverá um qualquer Departamento do Ministério da Defesa, um arquivo referente à minha Companhia [, onde me seja possível consultar a sua história, desde militares incorporados, itinerários, confrontos bélicos, datas, mortos, feridos, etc.
Se assim é, onde? Qual o melhor meio de chegar até ela?

Muito cordialmente, Idálio Reis.


2. Resposta, no mesmo dia, do Nuno Rubim (coronel de artilharia, historiador, comandante, entre outras unidades, da CCAÇ 726, Guileje, 1964/66:

Pois, caro Camarada Idálio Reis:

A questão que coloca é o cerne da problemática que respeita à documentação das nossas guerras de África, 1961-1974 !

Porque... simplesmente... desapareceu a quase totalidade dos relatórios de operações das unidades envolvidas !!! E de qualquer das três frentes, Angola, Moçambique e Guiné !

Incrível, mas é a pura verdade !..

Parece que só restaram os Sitreps, Perintreps e os relatórios dos altos Comandos que, como é óbvio, são resumos muito resumidos... e expurgados da realidade da actividade operacional. E que estão à responsabilidade de uma entidade, a CECA, que deles, pelo que tenho sido informado, não abre mão...

Tal como o amigo, e justamente porque me dedico ao estudo da nossa história militar, também eu procurei encontrar os numerosos relatórios de operações e outra documentação que enviei, quer por escrito, quer via rádio, referente às várias unidades que comandei.

E o resultado foi...zero!!!...

E, como muito bem diz, a nossa memória de 4 décadas está bastante esbatida e muitos de nós gostariamos de a confrontar com a documentação oficial então produzida, sobretudo ao nível Companhia.

Para mim o problema é de tal forma absurdo que, numa pesquisa que estou presentemente a desenvolver, encontrei todos os relatórios de operações (no Arquivo Histórico-Militar) que foram redigidos entre 1871 e 1915, no Sul de Angola, matéria que estou a investigar.

Mas no Arquivo Histórico Militar há um processo, referente ao CTIG [Comando Territorial Independente da Guiné], que ainda não consultei. Não tenho grandes esperanças, mas o camarada até podia ajudar. Quem sabe ?...

Eu vou lá na próxima 5ª feira (ainda a confirmar). O meu telefone é o 212 120 446.

Por favor não me fale mais em ousadia. O camarada, tal como eu, passámos por tais provações que nos tornam permanentemente solidários em quanto estivermos neste triste vale de lágrimas...

Um grande abraço,
Nuno Rubim


3. Comentário de L.G.:

Esta questão, aqui levantada pelo Idálio e respondida com frontalidade pelo Rubim, deve merecer a nossa melhor atenção e mobilizar as nossas melhores energias. Temos direito à verdade, incluindo o acesso às fontes de informação e documentação sobre a guerra colonial. Eu fiquei perplexo ao saber, pelo Nuno Rubim, que grande parte da nossa memória colectiva, da memória de toda uma geração, ficou irremediavelmente amputada com a destruição ou perda dos arquivos das unidades que fizeram a guerra colonial na Guiné, em Angola e em Moçambique.

Os arquivos da PIDE, da Legião Portuguesa, do Salazar, do Marcelo Caetano passaram a estar disponíveis, na Torre do Tombo, à consulta dos especialsiats e de demais interessados, com as restrições previstas na lei.

Nós, que fizémos a guerra colonial na Guiné, entre 1963 e 1974, estamos impedidos de saber o que se passou exactamente no dia em que fomos emboscados ou caímos numa mina ou sofremos um ataque no nosso aquartelamento ou destacamento... Alguns de nós conseguiram, à socapa, trazer alguns documentos classificados, nomeadamente a história das respectivas unidades... Mas pouco mais.

Sugiro que façamos chegar aos nossos eleitos, os nossos representantes na Assembleia da República, um pedido para a que esta questão seja esclarecida pelo Ministro da Defesa:(i) quem destruiu ou mandou destruir ou abandonar a documentação relativa à actividade operacional em África (1961/74); (ii) como se pode aceder ao que resta da informação e documentação ainda na posse dos militares; (iii) que razões (legítimas ou não) se escondem por detrás deste muro de silêncio, etc.

O Jorge Cabral, que é jurista, e o Nuno Rubim, que é historiador militar, além de oficial superior do Exército, com larga experiência no TO da Guiné, poderão ajudar-nos a levar a bom termo estas nossas pretensões. Sem esquecer outro nosso historiador, que é o Leopoldo Amado, um outro especialista nesta área, profundo conhecedor dos aspectos político-militares da guerra de guerrilha que foi travada na Guiné contra Portugal.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(2) Vd. post de 10 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P862: O nosso novo tertuliano, o Coronel Nuno Rubim