terça-feira, 4 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P935: Porque não me mataram ou apanharam à mão em Missirá ? (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > 1969 > Aqui estiveram destacados, os nossos amigos e camaradas Beja Santos (comandante do Pel Caç Nat 52, entre 1968 e fiansi de 1969) e o Jorge Cabral (com o seu Pel Caç Nat 63). Mas também o Mário Armas, que foi furriel miliciano do Pel Caç Nat 54 (sob o comando do Alf Mil Correia, 1969/70).

Missirá era o destacamento do Sector L1, localizado mais a norte, no coração do regulado do Cuor, tendo por vizinhança duas bases do PAIGC: Madina/Belel (vd. carta de Bambadinca) e Sara-Sarauol (a noroeste de Madina/Belel, vd. carta de Mambonco). Missirá era frequentemente atacada. No tempo do Beja Santos, em Outuibro de 1969, haviua ainda dois pelotões de milícias, o 101 (Missirá) e 102 (Finete). Os milícias viviam nos destacamentos com as respectivas famílias, e deslocavam-se com elas, quando eram transferidos...

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


Caro Amigo e Camarada

Obrigado Luís, mil vezes obrigado, por nos teres proporcionado este encontro, sacudindo-nos a memória embaciada, para tristezas e alegrias, que há muito julgávamos enterradas.

Lembro-me do Paulo Santiago [, comandante do Pel Caç Nat 53,] e do seu antecessor Mota, bem como do Machado [Alf Mil da CCS do BCAÇ 2852], que era um companheirão. Lastimo a morte do Payne [médico da CCS do BCAÇ 2852], cujos irmãos foram meus colegas na Faculdade de Direito.

Quanto ao Beja Santos [, comandante do Pel Caç Nat 52], saúdo a sua entrada na Tertúlia. Agora vai ter de explicar o que fez ao Comandante Corca Só (1)...

Por mim, fiz várias vezes, sozinho, desarmado e de noite, o percurso Bambadinca – Missirá, e ia a Mato Cão quase em passeio. O Polidoro [comandante do BART 2917] costumava dizer que eu andava protegido … Talvez por isso me mandou a Madina/Belel, sem o Pelotão, na companhia dos Paras (1).

O meu Amigo Idrissa Embaló, Professor na Universidade de Bissau, prometeu consultar os documentos relativos à actividade operacional do PAIGC, na zona. Vamos a ver se consegue, e se descubro o mistério – porque não me mataram, ou apanharam à mão?

Obviamente que nunca fui um Tigre, mas isso não explica tudo...

Segue estória (2) e como sempre um Grande, Grande Abraço

(*) Não fui de helicóptero mas sim a pé. Os Paras poisaram em Missirá.

Jorge

PS - Magnífico o teu Relim não é poema (3). Sancorlá e Salá são para mim nomes fatídicos. Sofri lá três mortos, em minas.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

(2) Mais uma estória cabraliana, a 11ª, a publicar oportunamnete > A atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

(3) Vd post de 1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio)

Guiné 63/74 - P934: Da Casa da Mariquinhas do Gabu à Senhora Malária que me atacou seis vezes (A. Santos, Pel Mort 4574)


À esquerda: A. Santos (ex-soldados de transmissões, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), 1972/74).

À direita: O António Santos, hoje, fundador da empresa Noprodigital - Comércio Equipamentos Escritório Lda, com sede em Caneças.

Texto e fotos: António Santos (2006)


Guiné> Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > Os maus caminhos da vida de caserna...


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego >O posto de rádio da CCS do BCAV 3854 (1971/73). Na foto, o António Santos, de serviço.


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS do BCAV 3854 (1971/74 > O edifício do comando.


Camarada Luís:

Antes de mais, quero dizer-te que tive um enorme prazer em conhecer a tua pessoa, ao vivo e... a cores.

Junto um pequeno texto, mas com muitos adereços... Conforme a nossa conversa aqui vão 2 fotos da minha tábua das rezas, em árabe, vê se está perceptível para o Mr. Argelino [um médico, de origem argelina, conhecido de L.G.] traduzir, senão tiro fotos com outra máquina que tem mais definição.

Junto tambem as fotos antes e depois para a fotogaleria: demorou um pouco, mas a culpa é do fotógrafo, pois tirei a foto actual no baptismo da neta mais nova no dia 13 de Maio de 2006 e só hoje ma entregou.

As outras fotos são do edificio do comando e dentro do posto rádio.

Um abração

A. Santos

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Camarada, Luis Graça:

No dia seguinte (1), começou a sobreposição, que durou uns quinze dias já não recordo bem, os trms [transmissões] e condutores foram emprestados à CCS [do BCAV 3854, Nova Lamego, 1971/73] para entrar na escala de serviço da mesma, assim como já era feito pelo pelotão [de morteiros] que fomos render.

Nós, os trms, fomos apresentados ao Alf Mil Trms, Pinto Ferreira, que se veio a revelar um excelente chefe: confiava nos seus homens e não precisava de puxar pelos galões.

Eu fui para o posto de rádio mexer em aparelhos que na especialidade nunca tinha visto, o AN/PRC-10 para fonia e o AN/GRC-9... Este era utilizado quase sempre em grafia, mas também era muito bom para fonia, principalmente para ouvir notícias e relatos da bola.

Dois ou três dias depois ao chegar ao posto de rádio para mais umas lições, fui enviado para o centro de mensagens, em substituição doo camarada Vasco, que estivera lá mas não se adaptou às cifras e códigos... Fui e acabei por ficar até receber o meu pira.

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > A ida à bolanha, ver as as bajudas lavar a roupa e o corpinho, era um dos poucos passatempos a que se podia dar ao luxo o Zé Tuga , nas horas vagas... Foto: © José Teixeira (2006)



A velhice lá partiu de regresso às suas vidas, e nós ficamos a contar os dias e a entrar na rotina do dia a dia, serviço 8 horas seguidas, algum descanço, futebol, ida quase diária à bolanha, ver as bajudas a lavar a roupa e o corpo, a visita quase obrigatória à casa da mulher grande, que ficava aí a uns 200 metros da igreja (foto enviada há dias), muita das vezes era só para inspeccionar o material e divertirmo-nos um pouco...

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > A casa da mariquinhas do Gabu ficava a 200 metros da capela...

Quando havia patacão (2) bebia-se a bica e/ou a cervejinha, ou meio wiskey, o que era um luxo: não é que fosse caro, o problema eram mesmo os pesos, eram sempre muito poucos.

Cópia de uma nota de cem escudos da Guiné (ou pesos), emitida pelo BNU (Banco Nacional Ultramarino), em circulação antes da independência. A nota ostenta a efígie do Nuno Tristão, o primeiros dos nossos camaradas a morrer na Guiné, "país de azenegues e de negros" (sic), no já longínquo ano de 1446, "varado por azagaias envenenadas" (sic), como se pode ler algures no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra (se nunca lá foram, aproveitem para ir com os netos um fim-de-semana destes).

Foto: © Jorge Santos (2005)


Cópia de nota de 50 escudos (pesos) da Guiné. Frente. Imagem gentilmente enviada à nossa tertúlia pelo Sousa de Castro. Com uma verdinha destas, um cabo dava um queca, nos áureos tempos de 1972/74... (Na minha zona, dizia-se "mudar o óleo em Bafatá")...


Foto: © Sousa de Castro (2005)
Finais de Agosto de 1972, o primeiro e o mais terrível paludismo dos seis que me tocaram, mais terrível porque a ignorância de pira achou que fosse uma gripe, e por isso andei até ao limite das forças. Os camaradas - não me lembro quem - tiveram que pegar-me ao colo e levar-me para a enfermaria, ainda no quartel velho.

Ministraram-me tudo e mais alguma coisa, ainda assim, às 3 horas da madrugada, o enfermeiro de serviço chamou o médico e espetaram mais umas agulhas. Ao fim de quatro dias já estava a dar conta do recado, e fui transferido com outro soldado africano, únicos hóspedes, para a enfermaria do quartel novo, que era um luxo em relacção a anterior. Permaneci mais dois ou três dias e fiquei fino até a próxima.

Com esta aprendi que não se podia brincar com a malária, qundo aparecia ou atacávamos logo ou ela dava cabo de nós. As outras cinco vezes não foi nada parecido, inclusivé cheguei a fazer stock no meu armário dos quininos utilizados para esta maleita.

O centro de transmissões ficava no primeira divisão na ponta direita do edificio do comando, (junto foto, captada da porta de armas): ao centro do mesmo, os gabinetes do Comando e ao lado das trms a acção psicológica.


A. Santos

Ex-Soldado Transmissões
Pel Mort 4574, 1972/74

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Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores do António Santos, relativos às suas memórias de Nova Lamego:
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)
29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)
23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

(2) É caso para perguntar ao A. Santos, puto reguila, alfacinha, transmissões, qual era a cotação, em 1972/74, das meninas da Casa da Mariquinhas do Gabu... Essa é uma informação preciosa para os futuros historiadores da guerra da Guiné, 1963/74... e que infelizmente não vem em nenhum documento oficial das NT... Sobre o custo de vida do mulitar da tropa, nesses tempos já longínquos, vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXIX: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (1)

(...) "Há dias o Jorge Santos mandou-nos uma nota de cem escudos da Guiné (cem pesos). Ou melhor: uma nota digitalizada, uma imagem em formato jpeg. Puxem pela memória e digam lá, para a gente poder explicar isso aos filhos e netos, bem como à cara metadade, o que se podia comprar/pagar com uma notinha destas, no vosso/nosso tempo…

"Eu tenho ideia que era manga de patacão, pessoal ! Eu já não me recordo quanto pagava à lavadeira, em 1969/71, mas se fosse serviço extra, era capaz de lhe dar uma nota destas. A minha não fazia favores sexuais, mesmo em dias de festa: não era cristã nem animista, era uma fula, recatada e virtuosa… Mas em Bissau ou em Bafatá, uma queca (como os nossos filhos e as nossas tias dizem agora, 'tás-a-ver...) podia custar uma nota (preta) destas... Já não me lembro das cotações no lupanário em tempo de ocupação e de guerra... As verdianas do Pilão, essas, podiam ser até mais caras…

"Com uma nota destas, ó tuga, tu compravas duas garrafas de uísque novo (disso lembro-me bem…). O Old Parr (uísque velho, muito apreciado lá e cá) já custava mais: 130 ou até 150 pesos, se não me engano… Além do pré (6oo pesos/mês), os meus soldados africanos (que eram praças de 2ª classe!) recebiam mais, creio eu, cerca de 25 pesos por dia pelo facto de serem desarranchados. Nunca joguei à lerpa, mas o Humberto pode dizer quanto ganhava ou quanto perdia numa noite de insónias e de rodadas de uísque" (...) (L.G.)

Opinião (douta) de outro transmissões, do Alto Minho, o nosso querido camarada Sousa de Castro:

(...) "Puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade.A dita queca, se a memória não me trai, creio que era assim: para os soldados cinquenta pesos; para os cabos sessenta pesos; a partir daqui não me lembro quanto pagavam os mais graduados... Quanto às cabo-verdianas, a coisa era de facto mais cara, em final de comissão paguei cento e cinquenta ou duzentos pesos, isto em Fevereiro de 1974" (...).

Comentário de L.G.:

Ó Sousa, isso foi mesmo uma queca imperial, para a despedida, não da Guiné mas do Império!
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Guiné 63/74 - P933: Pensamento do dia (2): as três tropas (José Neto)

O Zé Neto escreveu-me há dias a protestar, e com razão, por lhe mandar a correspondência para o SPM errado... Aproveitou para se queixar das mazelas do corpo e da alma. Ele tem sido um herói, resistindo estoicamnente à tentação do cigarro... Mas agora vem a factura: o organismo a libertar-se da nicotina, os sintomas da síndroma da abstinência, etc.

(...) "Continuas a usar o meu endereço inicial da Clix, o tal dos poucos megas, embora em tempo oportuno eu te tivesse pedido para mudar para este, ou seja, para js.neto@clix.pt".

Mas o bom humor vem felizmente ao de cima neste homem - o nosso veterano - com quem tive o privilégio, há dias, de falar, pelo telefone, permitindo-me conhecê-lo um pouco melhor.

Diz o Zé: "Agora que a poeira já assentou quero apenas dizer-te que fiz três comissões em África e sempre convivi com a dura realidade das três tropas, a saber: Tropa de Cheque (a FA e seus subsídios), Tropa de Chique (a Marinha e as suas vaidades) e a Tropa de Choque (os Zés da macaca). Tenho, nas minhas memórias, passagens de rir e chorar que vivi com essa gente. Pela minha parte não valem as cinco ou seis batidas no teclado que estou a gastar com eles.

"Já vai longa a birra.

"Um abração do
Zé Neto"

Comentário de L.G.:

Força, Zé!... Só não posso concordar contigo: tu és uma excelente contador de estórias. Fico à espera dessas cinco ou seis batidas de teclado...

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P932: Sob a protecção do embondeiro (Zé Teixeira, CCAÇ 2381, 1968/70)

Guiné > Mampatá > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, mais a sua Maimuna...

Foto:© José Teixeira (2005)

Viva Luís.

Baseado num bate-estradas (*) que enviei à minha mãe alguns meses depois de chegar à Guiné, escrevi mais um texto reflexão sobre o que andava por lá a fazer.
Se entenderes que pode entrar no blogue. . .

Noto que ainda não me deste a tua opinião sobre a ordenação das Companhias em termos possibilitar uma consulta rádida. Já te mandei o trabalho sobre as Compªs de Artilharia. Gostava de ouvir a opinião e sugestões do distribuidor de jogo.

Um abraço
Zé Teixeira

Sob a protecção do embondeiro
São dez da noite em Mampatá (**). Tempo de luar que transforma a noite em dia. Uma brisa suave faz-me lembrar o meu Porto, nos meses quentes do verão. Ao longe ouvem-se o troar dos canhões que há momentos massacravam Gandembel. Agora parece ser em Guileje ou Gadamael. Aqui ao lado uma criança chora inconsoladamente, é a filha da Fatma ( Fatinha) e do Siriano, o comerciante cá do sítio.
- Boa noite fermero! - Saúda-me Hamadú o sargento da milícia, incansável todas as noites a fazer a ronda de controlo do silêncio junto da população.
-Na pinda (está tudo bem ?) - respondo-lhe na língua dele.
- Jame tum (Obrigado). Tudo está bom, tabanca está contente, mas tem perigo, bandido stá na mato lá.- E aponta para os lados de Cumbidjá / Colibuia.

Os ataques que temos sofrido têm sido montados desse lado da tabanca. Quando vamos para Buba pela estrada de Sinchã Cherne, cruzamos esses caminhos e há sempre encontros desagradáveis. Os canhões continuam ao longe, agora também dos lados de Buba, talvez Nhala e Saltinho. Mas, ao longe, de lugares indefinidos ou desconhecidos para mim, parecem-me foguetes. Fazem-me voltar aos meus tempos de criança na aldeia, no Domingo de Páscoa, quando ia contigo ao cair da noite ver a chegada do compasso à Igreja, mais ou menos à mesma hora em todas as freguesias, com um Cristo cansado de tanta beijoquice, depois de um dia a correr de porta a porta, em que os foguetes como que gritavam bem alto para que se ouvissem ao longe Cristo ressurrécit, alelluia.

Os meus camaradas dormem uns, outros estão de sentinela e eu estou para aqui escrevendo-te.
Pergunto-me, porque aceitei pacificamente, como o cordeiro a caminho do matadouro, ir para a tropa, vir para a Guiné, para esta terra vermelha e inóspita que me enjeita. Vim de arma na mão para matar ou morrer. Matar os inimigos da mãe pátria. Eu? Porquê eu !

O Pires teve medo e fugiu para França a salto. Despediu-se de mim numa noite fria no Café Bissau no Porto. Encarregou-me de avisar a família, mas só três dias depois, o tempo suficiente para passar a fronteira.

O Custódio, disse não à violência, furou barreiras e está em Lille a estudar.

O Nascimento (1) foi apanhado com o companheiro de aventura pela guardia espanhola e entregue à GNR mas ao menos tentaram . . .

Eu, nem sequer tentei. Deixei-me conduzir por fantasmas. Palavras que me meteram na cabeça, desde os bancos da escola em Sub-Ribas. Ainda te lembras, quando me levaste lá pela mão, quando tinha sete anos ? Aquela escola velha, destelhada, com paredes esburacadas !

Talvez mais cedo ainda. A catequista ficou contente quando no primeiro dia de catequese lhe disse de cor, o Pai Nosso, graças à avozinha, que tanta paciência teve em mo ensinar e que nos últimos anos de vida ia duas vezes à missinha, uma por ela e outra por este malandro que se podia esquecer !

Como pagamento, a catequista ensinou-me que Portugal era um país de heróis e de santos, que fomos para África para salvar os pretinhos, coitadinhos, e que tínhamos de rezar muito a Nossa Senhora de Fátima para salvar Portugal das garras do comunismo que vinha da Rússia. O que era o comunismo ? Quem era a Rússia ?

Mais tarde no grupo de jovens alguém disse que Cristo foi o primeiro comunista. Que confusão foi na minha cabeça !

Em 1961 os pretinhos, coitadinhos, passaram a mauzões. Estriparam, degolaram e mataram os brancos no norte de Angola. Quem lhes ensinou essas coisas ? Os Portugueses não foram. A esses tiravam-lhe, eles, o sarampo.

Ah ! Foram os comunistas. Então os comunistas foram para África. Será que a catequista tinha razão ?
- Para Angola e em força! - clamava Salazar. As suas palavras ecoaram pelo País fora, levadas pelos patriotas do Império. Para Moçambique ! para a Guiné ! . . . e cá vim eu cair uns anos depois

Que faço aqui ? Quem é esta gente que tão bem me acolheu aqui em Mampatá ?

Na partida em Abrantes um patriota de galões dourados disse no seu discurso de despedida:
-Todos vós tendes um bocadinho de terra na Guiné, é nosso dever de portugueses defendê-la até à última gotas de sangue.

Alguém respondeu baixinho:
- Eu dispenso o meu bocadinho -. Eu pensei:
- Podia o meu coronel ficar com o meu bocadinho e ir na minha vez... - mas o que é que ele percebe de enfermagem ? Um enfermeiro, mesmo às três pancadas, pode ser útil, e, aqui estou.

Ao longe os canhões continuam a troar, não há descanso de ambas as partes e eu aqui estou nesta terra linda de Mampatá, não fora a guerra, como seria bom estar aqui.

Muita gente jovem, mulheres bonitas. Tu sabias que as pretas são muito bonitas ? Gente hospitaleira (os tais pretinhos, coitadinhos) que acolhe com um sorriso, que quer que beije as suas crianças, que me ofereceu uma bebé, duas para minhas mulheres a quem tenho de ir parte mantanhas (beijar) todos os dias.

Todos os dias uma mãe(2) a quem curei a menina de paludismo crónico vem ter comigo, com a bebé ao colo e uma caneca de água fresquinha que vai buscar à mesma fonte de que se abastece a aldeia inimiga existente a poucos quilómetros daqui (dizem). Há tempos cuidei de um dos poucos velhos que há por aqui. Como forma de pagamento o filho, ofereceu-me a sua própria mulher.

Povo que têm a sua cultura de padrões muito diferentes da ocidental, de que tanto nos orgulhamos, mas cheia de valores, que talvez não tenhamos.

Às vezes quando parto para o mato ou para as colunas aparecem, na berma da picada, a dizer-nos adeus, com um sorriso aberto. Também surgem olhares carrancudos. Sou tentado a pensar se não vou reencontrar esses mesmos olhares, agora de ódio, lá mais à frente, no fogo cruzado de uma emboscada assassina. Não, não podem ser estes os olhares, que se escondem na mata.

Como eu gostava de lhes dizer a esses que nunca vi, que não estou aqui para matar, mas para viver. Deixem-me ir embora que eu deixo-vos o meu bocadinho de terra que dizem que é meu.
Pensava que me ia sentir um estanho, mal amado, rejeitado. Fui acolhido com natural carinho aqui em Mampatá. Não fiques preocupada. Criei amigos. Estou bem. Sinto-me numa ilha rodeada de guerra por todos os lados. De vez em quando a maré vem até aqui, mas tem sido a brincar. O pior será quando sair daqui para outra zona, ou eles lembrarem-se de nós.

Duas pequenas coisas para terminar:

1º - Não entendo esta guerra em que fui metido. Não tem sentido, irmãos contra irmãos, pais contra filhos, filhos contra pais. A família da Fatma Baldé viviam em Colibuia. Tiveram de fugir para Mampatá, ou teriam de passar-se para os terroristas, deixando lá tudo, casa, terreno, antepassados e sobretudo o sonho. É isso, matam-se em nome de um sonho – a Independência. Primos, tios, cunhados, estão da outra banda. São os nosso inimigos, que se escondem na mata, ou nos atacam no cair da noite.

2º- Impressiona-me a forma respeitosa como respeitam a bandeira de Portugal. Ao toque do corneteiro do quartel indicativo do içar ou do desfraldar da bandeira no quartel, toda a Tabanca pára e fica em sentido. Que Pátria esta que tem raízes tão profundas aqui na Guiné !
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(1) Ironia do destino, foi parar à Guiné e viveu o drama da retirada de Gadamael Porto, tendo-se safado porque fugiu para o mato e foi salvo por um Barco, suponho que foi a Orion. Gostaria de voltar a encontrá-lo, mas perdi-lhe o rasto.

(2) Na minha partida de Mampatá, para Buba, a Ansaro veio trazer-me a Maimuna, a sua bebé, e minha mulher para levar comigo. Acto simbólico, creio eu, mas que me comoveu profundamente, pois ela sabia que tal não era possível. Por esta e outras razões Mampatá esta gravado no meu coração. A minha estadia, lá foram umas pequenas férias no meio da guerra - uma pequena ilha como digo no texto rodeada de guerra por todos os lados – Gandembel, Gadamael Porto, Guileje, Cacine, Mejo, Buba, Saltinho, etc.

Estava tão calmo que quando deixei esta tabanca para ir até à Chamarra cerca de dois meses, a sua segurança foi entregue ao pelotão de milícias, formado por nativos locais, comandados pelo chefe da tabanca, Alferes Aliu Baldé e pelo sargento Hamadú.

Interessante a atitude do Aliu Baldé, cuja filha tive o prazer de reencontrar em 2005 no Saltinho. Quando o meu grupo de combate recebeu ordens de partida para Buba, ele, foi a Aldeia Formosa pedir ao comandante do sub-sector para que eu ficasse em Mampatá, como enfermeiro, enquanto a minha Companhia ficasse em Buba e na Chamarra (1 grupo de combate).

A solução encontrada, foi eu ser transferido para a Chamarra por troca com o colega que lá se encontrava e que seguiu para Buba, com o compromisso de eu ir duas vezes por semana a Mampatá , aproveitando as colunas que fazíamos a Aldeia Formosa. Assim, a viatura deixava-me em Mampatá a trabalhar com o milícia que lá ficou como enfermeiro e que ia fazendo alguns curativos e no regresso voltava para a Chamarra.

Cerca de meio ano depois, com a chegada da estrada nova de Buba para Aldeia Formosa ( Quebo) a situação alterou-se muito, tendo havido a necessidade de se fixar uma Companhia em Mampatá para garantir a segurança local.

O Chefe da Tabanca acabou por morrer durante um ataque, creio que em 1972. O Sargento Hamadú é actualmente o responsável pela condução das orações na mesquita de Buba, como aliás já o fazia no meu tempo em Mampatá.
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Nota de L.G.

(*) Aerograma, também conhecido por corta-capim, na zona leste (1969/71)

(**) Vd. o diário do Zé Teixeira,que é um dos mais notáveis documentos que já aqui publicámos no nosso blogue > 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Vd posts anteiores:

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (3): Aldeia Formosa, Julho de 1968 Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968 (...) Aldeia Formosa, 28d e Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968 (...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).

11 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968 (...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).

17 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

24 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (9): Buba, Fevereiro/Março de 1969, 'manga de chocolate' Buba, 20 de Fevereiro de 1968: Estou em Buba desde 7 de Fevereiro e as perspectivas não são muito boas. Gandembel foi abandonada e o IN entretinha-se por lá. Agora, talvez porque se está a construir uma estrada nova para ligar Buba a Aldeia Formosa, esta linda terra está a ser a preferida pelo IN para as suas brincadeiras.A estrada nova já causou um morto, o primeiro da minha Companhia quando eu ainda estava em Chamarra. O IN estava emboscado com dois fornilhos montados e, ao fazer rebentar a emboscada, provocou a explosão das armadilhas e um homem, o velho, foi pelos ares. Mais uma vida roubada (...).

30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXVI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!" (...) Buba, 19d e Abril de 1969: (...) Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia [CC 2381] e um Comando Africano, quando tomavam banho, originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece estar tudo louco (...).

6 de Fevereio de 2006 > Guiné 63/74 - DII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (11): Desenfiado, em férias na Metrópole (Maio/Junho de 1969)(...) Bissau, 19 de Junho de 1969: Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.A minha [licença] de férias foi cheia de aventura. O Comandante não assinou o Passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o Comandante foi para uma Operação.(...) Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao Comandante da Esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro Bombardeiro nada menos que o meu Comandante que regressava da Operação (...).

8 de Fevereiro de 2006 >A Guiné 63/74 - DV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (12): A morte do Cantiflas (Julho de 1969)(...) Buba, 18 de Julho de 1969: (...) Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele (...).

9 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - DVIII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (13): Vi a morte à minha frente (31 de Julho de 1969)Buba, 31 de Julho de 1969: Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à Bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os Picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:- Desta não escapo (...).

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (14): De que lado estaria Deus ? (Agosto de 1969)(...) Buba, 7 de Agosto de 1969: As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e, ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projectando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado (...).

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)(...) Empada, 9 de Setembro de 1969: Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência... (...)

8 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXVII: Dia Internacional da Mulher (5): 'Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer' (Zé Teixeira) .XVI Parte de O Meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (16)

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (17): Este gajo estava mesmo apanhado (...) Empada, 16 de Outubro de 1969: Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r (...)Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem a envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto (...).

12 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (18): Empada, Novembro/Dezembro de 1969Empada, 20 de Novembro de 1969: O Kebá aparecia todos os dias na Enfermaria. É o nosso ajudante no tratamentos da população. Trata as pequenas feridas. Elas já sabem:- Kebá põe mercuro ! - e ele põe.- Kebá, parte quinino! - e ele vai buscar LM. Vão-se embora todos contentes.Ao Almoço lá lhe trazemos uma cantina cheia de comida. É a nossa paga. Há dias deixou de aparecer. Estranho, mas como tem duas mulheres e vários filhos no mato, admiti que tivesse ido embora.Ontem vi-o a carregar barricas de água, da fonte para o jardim do chefe de posto. Perguntei-lhe porque deixou de aparecer e fiquei horrorizado. Estava preso por não pagar o Imposto de Pé Descalço.Vim para o Quartel e a minha revolta fez-me agir. Um quarto de hora depois estava a casa do Chefe de Posto cercada por militares armados de G3 a exigirem a libertação do Kebá (...).

Guiné 63/74 - P931: A actividade de rotina da CCAÇ 12 em Março de 1970 (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1970 > Força da CCAÇ 12 na estrada Mansambo-Xitole, a caminho de mais uma operação, em plena época seca, na zona de acção das unidades de quadrícula de Mansambo e Xitole.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


Durante o período de Janeiro a Abril de 1970, coincidindo com a época seca, a CCAÇ 12 desenvolveria uma intensa actividade operacional ofensiva, realizando 7 operações a nível de Batalhão (das quais 6 com contacto), 3 operações a nível de Companhia (uma com contacto e as outras com vestígios do IN) e ainda 10 acções, além da sempre extenuante actividade de rotina (emboscadas nocturnas, colunas logísticas, reforço a destacamentos, etc.).

Para completar o registo relativo ao mês do Março de 1970 - mês em que se destaca a participação da CCAÇ 12 na dramática Op Tigre Vadio, em 30 e 31 de Março e 1 de Abril -, aqui fica um resumo da chamada actidafde de rotina de um companhia de intervenção, às ordens do comando do Sector L1 e d« BCAÇ 2852 que tyerminaraia a sua comissão em Junho de 1970... A CCAÇ 12 foi, literalmente, uma unidade de tropa-macaca que foi utilizada até à exaustão, e sem escrúpulos, pelos senhores da guerra de Bambadinca (2)...

CCAÇ 12 > Actividade operacional em Março de 1970 (continuação)

Extractos de:História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 28-29.

A partir de 1 de Março de 1970, 1 Gr Comb da CCAÇ 12 em reforço temporário a Missirá (3) leva a efeito patrulhamentos diários e emboscadas nocturnas na ZA [Zona de Acção] do Pel Caç Nat 54, nomeadamente na área de Aldeia do Cuor em cuja picada tinham sido detectadas e levantadas 1 mina A/C e 4 [minas] A/P. A 15 regressou a Bambadinca.

Igualmente esteve destacada em Fá 1 secção durante as três primeiras semanas do mês, realizando juntamente com o Pel Caç Nat 63 (4) patrulhamentos nocturnos com emboscada ao longo do Rio Geba até Bissaque, em especial nas cambanças principais.

Por informação dum elemento IN capturado em Mero, soubera-se da existência duma base em Bucol (Joladu), fora da ZA do sector [L1, Bambadinca] mas com influência nele. De Bucol teriam partido as últimas iniciativas IN sobre Missirá e Finete e ainda sobre as populações de Canxicano e Bissaque. Admitia-se por isso a possibilidade do IN levar a efeito uma acção sobre Fá que se tornara a sede da 1ª Companhia de Comandos Africana.

A 9, o Gr Comb da CCAÇ l2 que estava de intervenção (2º), escoltou uma coluna até Mansambo para recolha dum doente grave, durante a noite e sem prévia picagem do itinerário.

A 12, a CCAÇ 12 a 2 Gr Comb reforçados com forças da CART 2520 [Xime] leva a efeito um patrulhamento ofensivo conjugado com emboscadas e armadilhamentos na região compreendida entre Enxalé, S. Belchior e orla da mata até Ponta Luís (Op Mazurka Óptima). Esta operação tinha sido cancelada no período anterior. Em 10 do mês anterior, o IN tinha atacado a tabanca e aquartelamento de Enxalé durante 40 minutos com 2 canhões s/r, Mort 82, LGFog e armas ligeiras, causando 3 feridos e incendiando 14 casas.

A 22, simultaneamente à Op Jaqueta Lisa (em que forças da CART 2520 e Pel Caç Nat 52 levam a efeito um patrulhamento ofensivo na região entre Xime, Ponta Varela, margem esquerda do Rio Geba, (tarrafo) Foz do Corubal, Poindon e Xime), aCCAÇ 12 realiza uma outra operaçãoà Ponta do Inglês, seguindo o itinerário Xime-Madina Colhido-Gundagué Beafada (Op Colete Encarnado).

Os 3 Gr Comb (1º, 2º e 3º ) saíram do Xime ao entardecer, mas tiveram de regressar imprevistamente após três horas de marcha devido a um caso de doença grave. Como foi, entretanto, imposto o cumprimento da missão, os 3 Gr Comb, já desfalcados de alguns elementos que mostravam sinais de esgotamento físico, voltariam a sair pelas 12h em direcção à Ponta do Inglês.

Durante a noite o IN fez várias vezes fogo de reconhecimento, pelo que se deduziu que devia estar alertado da presença das NT na zona. No outro dia de manhã, verificou-se mais um caso de esgotamento. Entretanto, deparou-se com grandes extensões de capim queimado pelo IN a fim de dificultar a aproximação das NT que, de resto, já tinham sido detectadas.

Tinha-se feito um pequeno alto quando se ouviu perto um rebentamento de RPG-2. E imediatamente a seguir outros, intervalados com rajadas, para os lados da Ponta Varela/Poindon. O PCV, no entanto, deu ordem para as forças retirarem simultaneamente, apoiando-se mutuamente até ao Xime . O IN foi no encalce das forças da CCAÇ 12, tendo sido visto um elemento armado atrás dum baga-baga.

Durante o mês, realizar-se ainda 2 colunas de reabastecimento ao Xitole.
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:

7 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXII: Assalto ao destacamento IN de Seco Braima, na margem direita do Rio Corubal (Janeiro de 1970, CCAÇ 12, CAÇ 2404, CART 2413)

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIII: Op Borboleta Destemida: uma emboscada de meia-hora (Poindon/Ponta Varela, CCAÇ 12, Janeiro de 1970)

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado

9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVIII: Violenta emboscada em L (Op Boga Destemida, CCAÇ 12, CART 2520 e Pel Caç Nat 63, em Gundagué Beafada, Fevereiro de 1970)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVIII: Festa Na Lona, um bravo combatente do PAIGC (CCAÇ 12, Fevereiro de 1970)

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(2) Vd. post de 1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio)

(3) A partir de Novembro de 1969, o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, foi subtituído, em Missirá, pelo Pel Caç Nat 54, sob comando do Alf Mil Correia.

(4) Na época, o Pel Caç Nat 63 era comandado pelo Alf Mil Cabral, o Jorge Cabral, membro da nossa tertúlia.

sábado, 1 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

1. Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina.

Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos:

Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Com, reforçada pelo Pel Caç Nat 52

Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb

Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.


Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.


2. Comentário de L.G.:


Relim não é poema

Participei nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel.
Um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,
e à navegação do Geba Estreito.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais barato:
pretos de primeira da CCAÇ 12
e do Pel Caç Nat 52,
mais alguns brancos de segunda,
os açoreanos
da vinte e seis trinta e seis.
Levámos dois cantis de água por cada G-3 (...).

O que é que um gajo pensa,
aos vinte três anos,
de Missirá a Salá
e daqui a Sancorlá,
em bicha de pirilau,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,
a fustigar-te as trombas ?
Um gajo não pensa nada,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais um operação...

Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(vd. Operação Lança Afiada
em que um em cada seis foi evacuado).

Caminhámos toda noite.
Penosamente.
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã.
Às dez em ponto.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.
Cortaram-nos as voltas.
Os tipos do PAIGC
(não me apetece dizer IN)
cercaram-nos pelo fogo.
E quanto a Deus
e às abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exactamente
de que lado estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
catorze horas, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Nós, quem ?
O major da Dornier, do PCV,
a quem as casas estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio.
Ainda não havia os Strellas,
a temível arma dos arsenais
do inimido,
que haveriam de pôr o homem
borrado de medo
e definitivamente em terra.

Alguém puxou dos galões
e decidiu fazer um golpe de mão.
Ou melhor: mandar fazer,
que eu nunca vi nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão.
P'ra ficar bem na fotografia.
E para pôr no curriculum vitae
e impressionar o Caco...
Um senhor major qualquer
do BCAÇ 2852,
que gostava de andar de Dornier
e que queria chegar a tenenente-coronel.
Um herói de opereta.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
quem comanda esta tropa-macaca ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.

Entretanto, já alguém,
o Beja Santos,
o nosso tigre de Missirá,
tinha ido buscar, de heli,
o reabasteciemnto de água
a Bambadinca.
Não voltou.
Alguém dos nossos (?!) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
(soube isto agora,
pelo relato dramático do Beja Santos) (1).
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o Beja Santos ficou retido no Xime.

A verdade é esta:
O PCV falhou, o heli falhou.
O cadeia de comando quebrou-se.
Ou porventura alguém quis matar
o tigre de Missirá.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o cabrão do comandante do PCV
foi bater a sesta em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
sofremos brutalmente.
Eu sofri,
que a dor não para dá
para partilhar.
Sofri brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
A insolação.
O absurdo.
A desumanidade.
Tive miragens.
Bebi o próprio mijo,
esgotado o soro.
Mastiguei as ervas do orvalho,
esgotada a água.
Desesperei,
perdida a esperança.
Bebi sofregamente a água choca dos charcos.
Amparei os mais desgraçados do que eu.
Transportei os nossos feridos.
Consolei os mais desesperados.
Fiz as minhas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus.
Não deu nenhum tiro de misericórdia
porque nunca dei nenhum tiro em combate.
Mesmo cristãmente,
odiei o PCV,
Bambadinca,
as fardas, os galões,
a tropa, a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné.

Um homem,
mesmo o cristão que eu não sou,
tem que odiar
para sobreviver.

Amigos e camaradas,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim.
O relim não é um poema.
Um poema épico ou dramático.
É sim, tão apenas,
Um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.

O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos.
Das miríades de abelhas kamikazes
que arrancastes do cachaço.

Dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel.
Dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados elementos pop
que morreram à hora da sua sesta.
Das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome, a sede.
A lassidão do corpo, a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para morderes de raiva.

Não, nunca mais irei esquecer Madina/Belel.
Eu e mais 250 homens combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte p à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água, etc.).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
da CCS do BCAÇ 2852,
o Alferes Miliciano Médico
Saraiva (tinha esquecido o nome),
que o Beja Santos
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação...
O pobre do doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficou em terra,
perdeu a boleia do heli
e conheceu o inferno do Cuor.

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de King
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
é coisa que se vê
e que em último caso serve
para limpar... o cu.

Fonte:
Extractos do Diário de um Tuga.
Abril de 1970 / Julho de 2006
_______

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

sexta-feira, 30 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P929: Felizmente falharam os tiros no heli (João Parreira)

Guiné > Grupo de Comandos Fantasmas > Março 1965 - "O Morais com bigode a meu lado (centro) com outros camaradas dos Fantasmas a aguardar o regresso, após operação à Base de Benifo, a oeste de Sinre.

Foto: © João Parreira (2006)

Caro Luís Graça:

Não consegui resistir à tentação de escrever estas linhas quando vi um Alouette que aparece hoje no blogue (P924) (1), pois trouxe-me velhas recordações.

Isto, porque quando fui ferido nas costas em Maio de 1965, em Cacine, durante o trajecto de madrugada para Bissau, e em zonas diferentes, tentaram alvejar o heli por 2 ou 3 vezes, não posso precisar.

Tinham-me injectado morfina e colocado de barriga para baixo numa maca de lona colocada no lado exterior direito do heli. Quando dos primeiros tiros e no meio da minha sonolência pensava:

- Oxalá que nenhuma das balas acerte na maca pois fico furado!- E naquela altura nem me passou pela cabeça que podiam acertar no heli. Mais à frente novos tiros, mesmo pensamento mas já desejoso que o heli chegasse ao Hospital. No lado esquerdo do heli colocaram o corpo do camarada que faleceu a meu lado (2).

Um abraço
João Parreira
__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 29d e Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(2) Vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

(...) "Mensagem do Virgínio Briote:

(...) "E agora pede para entrar o João Parreira, uma das lendas vivas dos velhos comandos de Brá. Andou pela Guiné toda, viu camaradas a morrer mesmo ao lado dele, foi evacuado no mesmo heli que transportou para Bissau o corpo do Furriel Morais. E tanta coisa que o João pode contar, se quiser!" (...)

Mensagem do João Parreira:

(...) "Noutra operação, a 6 de Maio, efectuada a um acampamento situado na mata a SW de Catungo (Cacine), em que foi capturado grande quantidade de material de guerra e sanitário, o Grupo (reduzido a 22 homens) teve 10 feridos, entre eles o Capitão de Artilharia Nuno José Varela Rubim que mais tarde ficou a comandar a Companhia de Comandos.

"Em virtude de ter sido ferido com alguma gravidade fui evacuado de heli para o Hospital Militar em Bissau, bem assim como um grande amigo e camarada, o Furriel Joaquim Carlos Ferreira Morais, que, infelizmente, faleceu a meu lado e do qual ouvi a última palavra.

"Como era amparo de mãe, e não tinha meios financeiros, teve que ser feita uma subscrição a fim de se angariar fundos para que o corpo pudesse regressar a Portugal.

"Com a extinção do meu Grupo, que estava reduzido a pouco mais do que meia dúzia de homens fui integrado num dos dois restantes, os Camaleões, os quais também acabaram por desaparecer, tal como o outro, os Panteras, devido a muitos dos seus elementos terem terminado a comissão e estarem a aguardar o embarque.Deste modo deixaram de existir os três primeiros Grupos de Comandos formados no 1º Curso e tornou-se necessário criar o 2º. Curso, no qual participei" (...).



Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >
O João Parreira, à esquerda, e o Miranda, à direita: dois veteranos dos velhos comandos de Brá. O Miranda, do Grupo Os Panteras, foi instrutor do Parreira, do Grupo Os Fantasmas.

Créditos fotográficos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006)

Vd. também posts de:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXI: Comandos: a equipa dos Fantasmas (1964)

13 de Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote).

(...) "Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.

"No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação" (...).

Guiné 63/74 - P928: Pensamento do dia (1): Cadetes, estamos na idade sexy (Paulo Raposo)


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. Amanhã, 1 de Julho, eles voltam lá, para o Grande Encontro da 2ª Incorporação, de 10 de Abril de 1967, do Curso de Oficiais Milicianos da EPI...

Foto: © Paulo Raposo (2006)


É assim a vida:
aos 10 ser criança;
aos 20, selvagem;
aos 30, ou domado ou nunca;
aos 40, sábio;
aos 50, rico;
aos 60, ou bom ou nunca...

Julgo que já estamos na idade sexy, portanto...

Somos a geração de OURO.

Mas... será que nós estamos em condições de passar aquilo que nossos pais sofreram, calados, com o nosso afastamento?

Será que nossos filhos têm o espírito de sacrifio que nós tivemos?

Vai um abraço quebra-costelas para o pessoal todo.

Paulo Lage Raposo

PS - No próximo sábado, dia 1 de Julho, em Mafra, às 11h00 grande encontro de ex-cadetes da 2ª incorporação de 1967! (1)

_____________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Encontro do Curso de Oficiais Milicianos da EPI, 2ª Incorporação de 1967

Guiné 63/74 - P927: O blogue dos nossos testemunhos, lembranças, saudades, emoções (J. L. Vacas de Carvalho)

Fão, Esposende > 1994 > Encontro da malta de Bambadinca (1968/71): CCS do BCAÇ 2852 (1969/71), CCAÇ 12 (1969/71), Pel Rec Daimler 2206 (1970/71) e outras unidades adidas. Na foto, da esquerda para a direita, o Reis, o Sousa, o Carlão e o Vacas de Carvalho.

Foto: © Humberto Reis (2006).


Texto do Zé Luís Vacas de Carvalho, velho companheiro das lides de Bambadinca (ex-Alf Mil Cav, Pelotão Daimler 2206, 1970/71)

Luís:

Tenho visto, lido e acompanhado o blogue que tiveste a iniciativa (boa) de fazer e coordenar.

Só te quero dizer que, ao longo destes meus anos de vida (e se Deus me quizer dar mais alguns, serão bem vindos), raramente me emocionei. Mas os testemunhos, lembranças, saudades, dos que participaram estão a levar-me a uma nova dimensão.

Os tempos da Guiné são, com orgulho, lembranças de amigos, e são ao mesmo tempo tristezas dos que ficaram. Ficaram muitas amizades. Ainda hoje sonho com a Guiné. Vejo-me em Bambadinca, outra vez. Revejo amigos e situações.

Mas estas nossas conversas, são muito mais reais.... São participações, estados de alma, são elos que não se quebram (não têm nem nunca virão a ter que ver com opções politicas ou ideológicas).

Pelo que nos uniste, pelas memórias, pelas recordações, pela saudade (?), abraço-te, com amizade.

Zé Luis

Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Contabane > O Paulo Santiago com o canhão sem recuo 82 B-10


Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > 1972 > Parada do quartel. O Pel Caç Nat 53, comandado pelo Alf Mil Paulo Santiago, estava aqui em reforço da unidade de quadrícula(originalmente a CCAÇ 2406, 1978/70, que pertencia ao BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > Memorial da CCAÇ 2406 (Os Tigres do Saltinho)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > À noite na Pousada do Saltinho: Abdu, Santiago e Sado.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Sinchã Sambel > "Eu, com a Fatemá e o meu filho João Francisco" (PS)



Fiz uma paragem no meu relato após o meu encontro com o Buba em Bambadinca, no dia 6, ao início da tarde.Vejamos o que se passou no resto do dia.

Saindo em direcção ao Xitole, acompanhamos durante alguns quilómetros, a antiga picada, situada à direita da estrada actual. Durante a minha comissão nunca fui para o Saltinho utilizando aquela picada.

Continuando a viagem,vejo a certa altura uma placa a indicar Mansambo, à direita, 2 Kms. Mais uns quilómetros chegamos ao Xitole, que contornamos sem parar. Estou aos saltos para chegar ao Saltinho.

Passamos Cambessê, segue-se Ura Candi, a pulsação aumenta, repentinamente avisto a Ponte do Saltinho e de seguida está o Pedro a dirigir-se para o estacionamento da Pousada do Saltinho. Penso que saio do jipe com lágrimas nos olhos. Aquele edifício está igual exteriormente, ali era o edifício do comando, tem outras cores, tem umas letras pintadas,mas o formato é mesmo, é aquilo que permanece na minha memória desde a minha primeira chegada em fins de Outubro de 190. Mais um forte murro no peito... está ali à frente dos meus olhos um memorial da CCAÇ 2406. Já o tinha visto no mesmo local quando cheguei em 1970. Faço uns instantes de silêncio.

Sento-me finalmente na esplanada frente ao bar, onde estão de passagem para Bissau três casais de italianos, vindos da zona do Cantanhês, que possivelmente acham estranho o meu comportamento e me interrogam se estou com algum problema. Explico num italianês o que estou a sentir. Bebemos umas cervejas e falamos de Roma que não conheço.

O João está cansado, vai descansar para o quarto que nos fora destinado. O Sado e o Pedro vão ao outro lado do rio a Sincha Sambel, antigo reordenamento de Contabane. Fico sózinho, percorro todo aquele perímetro onde se situava o quartel, tiro fotografias, encontro vestígios de ruínas e imagino o que ali se encontrava há trinta e três anos atrás. Há coisas que não consigo descrever, apenas sentir.

Vem o Rui, encarregado da pousada, chamar-me pois anda o homem grande à minha procura-era o Abdu, mandinga, chefe de tabanca do Saltinho, negociante de vacas e magarefe de serviço na 2701, e, soubemo-lo mais tarde, homem do PAIGC na zona... Abraçamo-nos fortemente e, penso, que consegue estar mais emocionado que eu própio. Sentamo-nos a lembrar o arroz à Abdu que ele fazia de forma magistral. Pergunta-me por muitos ex-militares da 2701, por alguns dos meus furriéis do 53, falamos de vários assuntos, até sobre canhotos, aqueles cachimbos tradicionais.

A conversa é interrompida pelo Pedro que diz estarem à minha espera em Sincha Sambel. Digo ao Abdu que continuamos a conversa à noite ali na estalagem. Sigo com o Pedro para Sincha Sambel e agora começa a ser difícil descrever o que se passou. Vou tentar.

Vivi durante os meus últimos três meses, opção minha apoiada pelos furriéis,e, melhor dito,vivemos em Contabane, que passou a ter o nome actual após a morte do Régulo Sambel. Sucedeu-lhe o filho Suleimane, 1ºcabo do Pel Caç Nat 53. O Suleimane veio para Portugal em 2004 para ver se conseguia receber qualquer pensão por um ferimento recebido em combate. Juntaram-se algumas vontades, fui duas vezes prestar declarações e a coisa estava encaminhada. Entretanto o Suleimane tem o filho Alfa a trabalhar no Aeroporto de Madrid e foi para Espanha em Novembro de 2004. Soube em Sincha Sambel, através de outro filho, que chegara a Lisboa vindo de Madrid, precisamente a 4 de Fevereiro e estava muito chateado
por não me poder receber aqui na sua morança.

A viúva do Sambel, Fatemá, mãe do Suleimane e também avó do Sado, fez-me uma recepção que ainda hoje me faz vir as lágrimas quando a recordo. Foram umas duas horas de abraços,de coisas que diziam eu ter feito e eu não me lembrava , eram mulheres aí dos seus quarenta anos que me tocavam e diziam Santiago... com um ar incrédulo como perguntando é mesmo ele que está aqui. O João tinha ficado a descansar na Pousada, foram buscá-lo, abraçaram-no, os miúdos não o largavam,chegou uma altura em que pegou numa criança ao colo e já estavam outras
a puxar-lhe pela camisa para ele as agarrar. Tenho um filme que é mais esclarecedor que quaisquer palavras.

Já noite o Sado vem dizer-me: a minha avó tem ali um cabrito para te oferecer. Digo-lhe não poder aceitar, faz-lhe falta a eles. Responde-me que seria uma desonra não aceitar. Acedo, iremos comer cabrito no dia seguinte ao almoço.

Regressamos à Pousada, onde o jantar já está frio e, passados uns instantes, para a recordação ser mais forte avaria o gerador.

Ouvi o nome do Xico Allen, pela 1ª vez, aqui na Pousada do Saltinho.


Continuarei o relato, por hoje estou cansado
Manga di mantenha

Paulo Santiago

Ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53,

SPM 3948

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P925: A formação de companhias de milícias em Bambadinca (J. L. Vacas de Carvalho)


Guiné-Bissau > Zona Leste > Estrada Xime - Bambadinca > Carreira de tiro > 1971 > O Alf Mil Cav José Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2606, foi também instrutor de tiro de "duas ou três companhias de milícias", numa altura em que aumentava a escalada da guerra e se intensificava o esforço de africanização das NT.
"Eu estou atrás do General Spínola. Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro. E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé".

Foto: © J.L. Vacas de Carvalho (2006]


Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 > O Alf Mil Cav J. Vacas de Carvalho, comandante do Pelotão de Reconhecimento Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71), à chegada de uma coluna logística ao Xitole.

Foto: © Humberto Reis (2006)
Texto do Vacas de Carvalho (conhecido, entre os amigos, por Zé Luís):


Para vossa Informação, fui instrutor de tiro, de 2 ou 3 companhias de milícias, em 1972. Vou ver se descubro, uma foto minha com o General Spínola. A carreira de tiro era no caminho do Xime, aproveitando-se um desterro quando foi feita a estrada alcatroada para o Xime.

Não sei se consegues ver alguma coisa. A foto é já antiga, como podes calcular. Mas se reparares, eu estou atrás do Gen Spínola (1). Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro (2). E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé (2).

E quando quizeres aparecer por Montemor-O-Novo para tomar um copo com o [Paulo] Raposo, é só dizeres. E isto é extensivo a todos.

Um abraço
J. Vacas
PS - O Pelotão Daimler 2206 ( mais conhecido entre o IN pelas Tartarugas de Bambandinca) teve como unidade mobilizadora o RC 6, no Porto e chegou à Guiné no dia 6 de Janeiro de 1970. Chegou no navio Uíge e partiu de avião (um dos primeiros) em 14 de Dezembro de 1971. Um abraço do Zé Luís

____________

Notas de L.G.

(1) É visível o distintivo da arma de cavalaria na boina do Vacas de Carvalho que, para além disso, usava bigode.

(2) O Polidoro Monteiro era o comandante do BART 2917.

(3) Major Mário Tomé. DE 1970 a 1972, comandou, como capitão, a CCAV 2721 (Olossato e Nhacra). Um dos seus alferes era o nosso Paulo Salgado, actualmente a exercer funções, como cooperante, na administração do Hospital Nacional Simão Mendes, em Bissau: vd post de 20 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCI: CCAV 2712 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Helicóptero da FAP, um Alouette III... Às vezes, era o heli do nosso descontentamento, da nossa raiva e do nosso desespero, como aconteceu na Op Tigre Vadio (1)... Ainda hoje o Beja Santos não sabe quem disparou sobre o heli: " (...) Foi nessa altura que pedi um helicóptero para ir buscar água a Bambadinca. Negociámos uma clareira com o oficial aviador e, ao levantar, uma rajada estilhaçou o vidro. Ainda hoje me interrogo sobre a proveniência do fogo, e longe de mim insinuar que foi gente menos calma entre os nossos"...

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).



Post do Beja Santos, ex-alf mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70). Acabei de lhe dizer: "Já viste o relatório da Op Tigre Vadio ? Tu, que foste, na prática, o comandante da operação, deves saber muito mais coisas… Vou publicar o teu relatório da mina na estrada de Finete, se não vires inconveniente… A malta gostou muito da tua carta ao Alcino"…

O Beja Santos respondeu-me, logo a seguir, na volta do correio:

Meu caro Luís, recebo sempre com satisfação as novidades do blogue. Por razões de organização mental, já que o blogue naturalmente mexe comigo, vou deixá-lo fechado até acabar os exames e as responsabilidades inadiáveis. Já fiz frequências em Santarém, tenho agora a 4 na Faculdade de Ciências e Tecnologia, seguem-se exames a 10. Estamos a trabalhar a todo o vapor num documento destinado ao Ministério da Educação, que terá que ficar pronto até 30 de Julho.

Acresce que tenho um curso em Bruxelas de 17 a 19 e entretanto tenho que enviar para o Instituto Piaget um texto de 50 páginas sobre as tendências actuais do consumo em Portugal.
Só o Tigre de Missirá é que pode aguentar esta disciplina de ferro... Tu entras casa adentro com o edifício da Messe Sargentos e Oficiais e a memória não para de esvoaçar. Com o Tigre Vadio (1) ainda foi pior, não pela operação em si em que o maior susto foi voar num helicóptero com os vidros despedaçados por uma rajada de metralhadora, mas pelo tempo duríssimo que começou em 1 de Janeiro e se prolongou até Abril.

Encurtando razões, não posso misturar sentimentos e comoção da nossa guerra com o trabalho presente. E uma coisa que aprendi muito com a nossa guerra é que há tempo para tudo. Tu terás acesso às minhas memórias, gradualmente. Fico contente sabendo que muitos dos nossos camaradas apreciaram a carta para o Alcino. A seu tempo também escreverei ao Paulo Raposo, de que guardo muita saudade, e àquele nosso camarada de Mansambo que questiona as diferentes guerras e classes de intervenientes. Fico-me por aqui e passo a escrever ao sabor da memória. Teu, Mário Beja Santos.

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Cão vadio disfarçado de tigre

por Beja Santos

Soube da Tigre Vadio (1) em finais de Fevereiro de 1970, quando o Major de operações de Bambadinca me convidou para um passeio numa Dornier sobre os céus do Cuor. Foi uma viagem que permitiu medir o crescimento militar e populacional de Madina/Belel e a sua ligação a Sara/Sarauol, uma enorme base do PAIGC com um hospital de campanha.

No regresso desse prolongado voo de reconhecimento, o oficial informou-me discretamente que lá para os finais de Março eu iria revisitar Madina. Era o que menos me interessava a 15 dias do meu casamento, que se veio a realizar na Sé Catedral de Bissau. O ano tinha-se iniciado da pior maneira. Desde que, em Novembro anterior, passara a prestar serviço em Bambadinca, não havia um dia de descanso: colunas ao Xitole, correio a Bafatá, noites na ponte de Undunduma, patrulhamentos alucinantes à volta da pista, toda ela bem iluminada, operações no Xime, emboscadas, segurança nas obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca...

Ora na noite de 31 de Dezembro [de 1969] coube-nos montar emboscada na estrada para Mansambo (2) A noite foi agitada com uma enorme bebedeira da malta do Xime que por volta da meia noite resolveu fazer fogo de obus, metralhadora e talvez dilagrama. Quando lhes liguei perguntando se queriam apoio, foi uma conversa de loucos.

Pelas 6 horas da manhã apareceu o Setúbal com um burrinho (Unimog 411) e deu-se uma fatalidade: ao subir para a viatura, o soldado Quebá Sisse inadvertidamente meteu o dedo no gatilho e disparou uma rajada sobre o soldado Uam Sambu que estava sentado ao meu lado. Em segundos, caiu-me um moribundo nos braços, corremos à desfilada para a enfermaria, pediu-se uma evacuação Y mas o Uam já chegou morto a Bissau. Cherno, nos dias seguintes, mostrava por toda a Bambadinca o meu camuflado com buracos das balas que não tinham morto o meu desditoso soldado mansoanque.

Em Fevereiro [de 1970], tive uma das baixas mais dolorosas em toda a minha vida, com a morte do Carlos Sampaio no norte de Moçambique. Eu fizera amizade com o Carlos no colégio dos Jesuítas, depois em Direito e depois em Letras. O Carlos era filho do grande pintor Fausto Sampaio, irmão da Teresa Costa Macedo e da Maria José Sampaio, conservadora de museus. Nunca me recompus desta baixa, tal a falta que ele me faz.

E Fevereiro e Março foram meses que puseram à prova toda a minha energia moral. Desde um furriel que me escorregou no saibro da picada e meteu um dedo mindinho no tapa-chamas (desastre que tem a probabilidade de 1 para 10 milhões) até às operações no Xime e Burontoni (2), tudo me aconteceu. Guardo esse tempo uma invenção que um dia oferecerei ao Estado Maior de qualquer exército em guerrilha: sair em patrulhamento com o acordo da equipa dos obuses que ficam com uma folha em papel manteiga com referências exactas às da força que parte para o combate e pedir fogo quando há emboscada ou detecção pela força inimiga. Deu-me imenso jeito na Ponta do Inglês, quando fomos cercados em Março (3).

Foi com imenso constrangimento que regressei a Missirá, onde guardei tantos amigos, dolorosas e boas recordações. Vivi a Tigre Vadio (1) do princípio até meio. Passo a explicar. Saímos à frente com um destacamento, Março é aquele tempo em que chove às 10 da noite, o capim fica molhado até de madrugada, volta a chover e chega um calor tórrido a partir do meio dia que leva a partir a lama que entretanto se colou ao camuflado. Foi uma viagem extremamente penosa e, meia hora antes de se desencadearem os combates referidos no relatório (1), a sede estava instalada e já havia insolados.

Foi nessa altura que pedi um helicóptero para ir buscar água a Bambadinca. Negociámos uma clareira com o oficial aviador e, ao levantar, uma rajada estilhaçou o vidro. Ainda hoje me interrogo sobre a proveniência do fogo, e longe de mim insinuar que foi gente menos calma entre os nossos. O que interessa é que quando cheguei a Bambadinca, o Comandante [do BCAÇ 2852] (4) perguntou-me porque é que eu deixara o teatro de operações. Olhei-o a direito e perguntei-lhe se ele sabia o que era um estado de desidratação total, desafiando-o a vir comigo...

Lá regressei à mata cheio de garrafões, o helicóptero dançava com os vidros partidos, a ligação ar/terra não se fez e o oficial convidou-me a desembarcar com os garrafões num sítio qualquer. Perguntei-lhe se ele tinha consciência que não estávamos num filme de aventuras na selva e então levou-me até ao Xime, dizendo que regressava a Bissau e que depois da reparação me viria buscar. Até hoje. Dormi no Xime, sem nenhum êxito na tentativa de comunicar com as forças do Tigre Vadio (5).

Só na manhã seguinte é que apareceram os grupos de combate completamente exaustos. Juro que desconheci a elevada façanha nos combates trocados, embora os meus soldados me tenham referido a existência de um contacto perto de Madina. Tenho que procurar o Cherno para saber pormenores e depois darei conta do que ainda tiver na memória (trouxe o Cherno em 1991 quando trabalhei como cooperante na Guiné; o Cherno foi preso em 1977 por ser furriel dos comandos africanos, sofreu horrores na prisão do Cumeré onde foi obrigado a matar outros presos e a enterrá-los...)

Eu era um cão vadio neste tempo, um tarefeiro da guerra, ex-comandante de Missirá e Finete, combatendo onde era preciso, recoveiro, carteiro, merceeiro, levando catering a gente esfomeada...O Tigre de Missirá interrogava o futuro da guerra, vivia com o coração agitado questionando qual o futuro para todos os seus soldados. A realidade encarregou-se de ultrapassar a ficção.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. postd e 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(2) Possivelmente na famosa Missão do Sono, em Bambadincazinho, na Estrada Bambadinca-Mansambo...





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)....
Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca... Era em Bambadincazinho que ficava a antiga Missão do Sono, em cujas instalações ficava, todas as secções, um Grupod e Combate para velar pelo bom sono dos seus senhores ofciais superiores do batalhão que dormim no quartel, a menos de um quilómetro...

Foto: © Humberto Reis (2006)


(3) O Pel Caç Nat 52, então aquartelado em Bambadinca desde Novembro de 1969, participou nas seguintes operações entre Janeiro e Março de 1970:

Op Topázio Valioso > 2 dias, com início a 30 de Janeiro, às 7h00, para batida na região de Sul Rio Buruntoni, entre este rio e o seu afluente. Dest A: CART 2520, a 2 Gr Comb; Pel Caç Nat 52; Dest B - CCAÇ 2404, a 2 Gr Commb; Pel Caç Nat 63. Sem contacto nem vestígios.

Op Rinoceronte Temível > 2 dias, com início a 8 de Março, às 16h30, para detecção de vestígios IN na região de Xime-Madina-Colhido-Ponta Varela - Poidon - Xime. As NT eram compostas, para além do Pel Caç Nat 52, pela CART 2520, a 3 Gr Comb. Contacto com o IN e destruição de meios de vida no Poindoin (cerca de três toneladas de arroz e casas da população).

Op Jaqueta Lisa > 2 dias, com início a 22 de Março, às 16h30, para detecção de vestígios IN na região de Xime- Ponta Varela - Tarrafo -_ Margem Esquerda do Rio Geba - Foz do Corubal - Poindon - Xime. Forças: CART 2520, a 3 Gr Comb, reforçada com o Pelk Caç Nat 52. Com contacto e sem consequências.

Fonte: História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. Documento reservado.

(4) Tenente coronel de infantaria Jovelino Pamplona Corte Real que, em Julho de 1969, tinha substituído o Ten corn inf Manuel Maria Pimentel Bastos (mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), transferido por motivos disciplinares.

(5) O médico da CCS do BCAÇ 2852 (que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra), na altura, o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis), veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...
O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...
O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça, entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina, estive a ajudá-lo a fazer curativos"... Se alguém souber do seu paradeiro, que entre em contacto connosco... Gostaríamos de conhecer a sua versão dos acontecimentos: por certo que nunca mais terá esquecido a Op Tigre Vadio... (LG)

(LG)