2. Por achar que as declarações do Luís Carvalhido (1) deveriam merecer uma mais ampla divulgação - e no mínimo chegar ao conhecimento de todos nós, camaradas e amigos da Guiné - pedi autorização para reproduzir esse trabalho jornalístico no nosso blogue. Aqui vai um excerto da mensagem que enviei ao Jornal de Barcelos:
Sra. Directora do Jornal de Barcelos:
Antes de mais, queira aceitar os meus cumprimentos e as minhas felicitações pelo sítio na Net que é o Jornal de Barcelos ‘on line’… É um grande contributo para a defesa dos legítimos interesses da população e da identidade cultural da região, e de Barcelos em particular.
Venho-lhe pedir autorização para reproduzir, no todo ou em parte, a entrevista de Luís Carvalhido a esse jornal, reproduzida na edição de 9 de Julho de 2003. Na altura, o Luís Carvalhido era vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra.
Sou o webmaster do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, o maior blogue, em língua portuguesa, sobre a experiência da guerra colonial na Guiné-Bissau. Formamos uma tertúlia virtual com mais de cem membros, de que também faz parte o Luís Carvalhido, ex-soldado de transmissões da CCS do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74), natural e residente em Barcelos (...).
3. A resposta do jornal veio, ontem, neste termos:
Boa tarde!
Obrigada, primeiramente, pelas palavras que teve a amabilidade de nos endereçar.
Ainda sobre o Jornal de Barcelos – On Line, que não tem sido actualizado nas últimas semanas por razões de ordem técnica, em breve já irá poderá aceder através de uma versão renovada.
Quanto à reprodução da entrevista em causa, poderá utilizá-la nos moldes que entender desde que mencione a fonte e o autor. Neste caso, Zita Fonseca e José de Coelho / Jornal de Barcelos.
Com os melhores cumprimentos
Zita Fonseca
4. Aqui vai, então, transcrita com a devida vénia, do repectivo sítio (Jornal de Barcelos), a entrevista do Luís Carvalhido, vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra e membro da nossa tertúlia.
A divulgação desta entrevista (que no essencial não perdeu actualidade e oportunidade) não implica qualquer juízo de valor, a favor ou contra, sobre o conteúdo das perguntas que foram postas ao nosso camarada Luís Carvalhido bem como das suas respostas, nem muito menos sobre a APVG de que ele é dirigente.
Os ex-combatentes da guerra colonial são dezenas de milhar e querem que, finalmente, o país reconheça o serviço que lhe prestaram. Nesta entrevista, Luís Carvalhido (na foto), vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra fala da guerra, do esquecimento e das sequelas que ela deixou numa geração inteira.
Entrevista a Luís Carvalhido
por Zita Fonseca e José de Coelho
Jornal de Barcelos. 9 de Julho de 2003 (com a devida autorização)
Passados quase trinta anos sobre a descolonização, o país começa, finalmente, a encarar os efeitos da guerra colonial sobre uma geração de jovens. Muitos ficaram marcados para sempre porque não há guerras limpas. Não há guerras sem atrocidades. Não se faz a guerra sem matar. E muitos desses jovens de vinte anos- os “meninos das suas mães” que não foram preparados para o mal - vivem ainda amarrados aos seus pesadelos. Ainda hoje, o stress de guerra corrói vidas.
Luís Carvalhido, vice-presidente da APVG onde estão associados mais de 40 mil ex-combatentes, diz que todos quiseram esquecer o Vietname português. Agora, exigem reconhecimento pelos serviços prestados ao país e apoio para quem deles precisa.
Jornal de Barcelos - Para que serve a Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra?
Luís Carvalhido - Serve para defender os interesses dos ex-combatentes. Ao longo do tempo, sobretudo no fim da guerra colonial, houve uma tentativa por parte do poder político, do poder civil, de esquecer ou tentar esquecer o que tinha sido a guerra colonial. Presumo que houve uma tentativa de confundir colonialismo com dever pátrio. Houve uma necessidade de esquecer esta intervenção querendo-se misturar tudo no mesmo saco, querendo desvirtuar o papel dos jovens portugueses chamados à força para defender uma parcela de terreno que nos tinham ensinado ao longo da vida que era nossa. Durante alguns anos conseguiu-se confundir a opinião pública.
Por isso, esta Associação tem por objectivo fazer relembrar todo o passado que foi esquecido. E para quê? Exactamente para fazer prevalecer os nossos direitos que passam, fundamentalmente, pela criação do estatuto de veteranos de guerra. Esse estatuto deverá definir o que é um veterano de guerra e aquilo a que tem direito na sociedade enquanto elemento que deu um alto contributo para a nação. Os ex-combatentes têm entre 50 e 65 anos. Queremos estabelecer parcerias com a Segurança Social para criar lares de terceira idade, centros de dia e serviços de apoio domiciliário.
JB - O que é que pretendem que o Estado vos reconheça?
LC - Queremos um estatuto próprio que, depois, nos conferirá um conjunto de pormenores a estudar em relação àquilo que são as nossas necessidades. Este estatuto conduzirá, seguramente, à contagem do tempo do serviço militar em África acrescido de cem por cento. Ou seja: que para efeitos de reforma esse tempo conte a dobrar. Isto já é uma garantia (está a ser trabalhado no Arquivo Geral do Exército). Tivemos o compromisso do senhor ministro da Defesa de que em Janeiro isto ficaria pronto a ser regulamentado e a entrar em acção. Esta tem sido uma das nossas lutas que, finalmente, se está a concretizar.
Finalmente, começa a ser reconhecido que nós existimos, que fomos especiais, que nós servimos.
JB - O país foi ingrato para convosco?
LC - O país foi ingrato! O país não teve a capacidade de reconhecer isso e fez uma coisa ao contrário que foi tentar ocultar. Quando um povo não é capaz de reconhecer o seu próprio mérito, mesmo na adversidade, fraco é este povo ou fraco é quem o lidera. Actualmente, as coisas estão a vir ao de cima, o movimento está a crescer. A prova disso é esta Associação que é a maior com 40 mil membros, mas há outras com alguns milhares. Isso quer dizer que este movimento não vai parar. Isto assumiu proporções de bola de neve.
JB - As consequências mais visíveis da guerra colonial eram, para além dos mortos, os soldados que voltavam estropiados. Nos outros, as consequências não se viam, a não ser às vezes, quando a família de algum comentava que veio de África...
LC - Que veio marado, cacimbado, ninguém o pode aturar.
JB - Isto eram coisas que as famílias viviam dentro das quatro paredes e passavam despercebidas. Agora, a ideia que se começa a implantar é que as consequências psicológicas da guerra têm uma dimensão muito grande.
LC - Enorme. Há dois tipos de feridos e de feridas. Há os chamados deficientes das forças armadas, que estão à vista, e há os deficientes encobertos. E a própria família, sendo vítima do sistema - e o sistema era de encobrimento - tinha de acobertar os seus doentes suportando tudo à luz do modelo duma pretensa família católica. Ou seja, se o marido era um stressado, um indivíduo cacimbado como se diz na gíria, batia na mulher ela, porque era uma boa católica, tinha de aguentar. Se o marido batia nos filhos pedia-lhes que tivessem paciência. Durante muito anos foi assim. Finalmente, há cerca de meia dúzia de anos, fruto das lutas de pessoas mais atentas, está reconhecido o stress pós-traumático de guerra. Isto veio ajudar a quebrar os tabus. Começou a encarar-se com naturalidade a possibilidade de cada um transmitir ao seu psiquiatra ou psicólogo um fenómeno que estava associado a efeitos recorrentes.
À luz dos anos volvidos, penso que comecei a ter stress de guerra quando tinha 14 anos e vi a minha mãe chorar por um vizinho que tinha morrido em Angola e passado um ano morreu outro. Isto ia-nos preparando e amputando a mente, de tal maneira que já estávamos a entrar em sintonia com o tal stress. Depois, sabendo que alguns colegas nossos que tinham mais dinheiro podiam escapar a esta carga emocional fugindo para o estrangeiro, fomos colocados na recruta.
Quando regressámos à Metrópole, o que se presumia ser natural era não sermos despejados em Lisboa a pontapé e "vão-se embora para onde quiserem, arranjem-se!". Presumo que isto é uma dívida enorme do país para com os seus filhos, para com aqueles que o serviram. Não nos deram o apoio psicológico necessário para a integração porque estivemos ausentes 25, 27 ou 28 meses num meio completamente distinto, debaixo duma pressão contínua, debaixo dum ambiente hostil, passando fome, sede, contraindo doenças, sem dormir, sempre à espera do nosso dia. Devíamos ter tido uma recepção condigna que, no mínimo, passaria por algum apoio médico à chegada...
JB - Davam uns comprimidos a quem queria...
LC - Os comprimidos que nos davam eram os chamados LM para a dor de cabeça e anti-paludismo, mais nada. Eram os comprimidos que tomávamos lá todos os dias contra as várias febres. Mas o que era essencial era saber o que cada um precisava. E cada um de nós precisava de coisas, só que não havia condições para exigências e havia uma tentativa enorme de fugir ao que tínhamos deixado para trás. Todos nós estávamos a tentar fugir. E de tal maneira que ainda hoje muitos não querem falar desses fenómenos. Presumo que, mais tarde ou mais cedo, quando se conseguir implementar uma boa rede de apoio a esta gente... As pessoas têm ainda muitos males guardados, não querem falar. Os psiquiatras dizem que cada vez aparecem pessoas com problemas recorrentes. Há estes e há dez mil ou doze mil mortos.
JB - Algum dia se saberá, de facto, quantos morreram?
LC - O Estado português ao longo do tempo tentou, penso que intencionalmente, dizer que tínhamos nove mil a dez mil mortos. O número que e parece mais correcto aponta para treze mil. A questão é que temos milhares de paraplégicos, amputados e temos esses mortos. Isso é representativo do que somos. E quanto mais não seja, acredito que pelos mortos e pelos outros, pelos que não dormem, por aqueles que batem na mulher, pelos que batem nos filhos.
__________
Nota de L.G.:
(1) O Luís Carvalhido entrou na nossa tertúlia em Abrild e 2005, foi logo dos primneiros, por mão do seu amigo, camarada de guerra e de trabalho, o Sousa de Castro. Aqui fica um execrtro da mensagem que ele me enviou em 21 de Abril de 2005, já transcrita na página respeitante à tertúlia:
Companheiro: Permite-me que te chame companheiro e amigo. Não me conheces, mas tal como muitos milhares de Portugueses falamos uma linguagem mais comum que a própria linguagem de Camões. Vivemos Africa e sentimos o frio das noites de medos disfarçados no fumo do tabaco e no paladar acre da cola. (...) Pisei os mesmos caminhos que tu, num triângulo que ia do portinho do Xime, até ao interior do Xitole. Decerto que não estarás admirado se te disser que te chamo companheiro porque também tu deves conhecer de cor e salteado a localização das tabancas de Bambadinca, onde eu passei cerca de vinte e sete meses.
Deixa-me voltar um pouco atrás, para te dizer como é que cheguei até ti. Para além de estar socialmente ligado à Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (isto é outra história, que dava outro livro, ou outros livros) , sou amigo do António Castro, meu amigo e companheiro de armas na Guiné. Com ele mantenho contactos diários e através dele tomei conhecimento da tua existência e das muitas coisas que temos em comum (...).
E digo-te isto sobretudo porque nessa altura eu tinha um olhar de menino rebelde. Olhar de quem vê e não acredita. Olhar de quem sabe que tem que ser, mas que não fica calado. Olhar de menino ingénuo, mas muito selvagem. Olhar de quem brinca com coisas sérias, não se detendo com os medos comuns. Medo de morrer sim, medo de afrontar nunca. Perdoa-me, porque quando começo nunca mais acabo. África é imensa, África é linda, África é inesquecível, a guerra colonial é uma nódoa que tem quer ser exorcizada.