sábado, 24 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2301: Tabanca Grande (41): Santos Oliveira, 2.º Sarg Mil de Armas Pesadas Inf.ª (Como, Cufar e Tite, 1964/66)



Fernando Santos Oliveira
2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf.ª

1964/66





1. Mensagem de 10 de Novembro de 2007 do nosso camarada Santos Oliveira para o nosso tertuliano Mário Fitas

Caríssimo Amigo Vicente

De acordo com a nossa conversa telefónica de ontem, vou tentar escrever o que sei dizer, mesmo com imprecisões cronológicas, datas e ausência de muitos nomes, que durante cerca de 40 anos procurei varrer das minhas lembranças.

No entanto, os factos vividos jamais foram esquecidos, sobretudo os que foram menos maus, pelo que te narrarei e documentarei, sempre que possível, o que tu próprio testemunhaste, embora num período curto (do mesmo modo que todas as Unidades que por mim passaram, ou eu por elas passei).

Gostava, ainda de referir que passei, entre a minha chegada e a despedida, cerca de 20 dias com o Pel Indep de Morteiros 912 e que não sei distinguir quem foram os militares (afora os 2 Cabos e 7 Soldados que sempre estiveram comigo) que pertenciam à minha Secção de 20 homens.

Assim, apresento-me:
2.º Sarg Mil Armas Pesadas de Infataria (EPI, Mafra, 1963);
Tirocinado Ranger (CIOE, Lamego, 1963/64);
Tirocinado Pára-quedista (BCP, Tancos, 1964);
Mobilização pelo RAL 1 (Lisboa, 1964), com destino a Rendição Individual de militar morto em combate, pelo chamado fogo amigo, quando em Missão inadequada à sua Formação de Armas Pesadas, integrava um Grupo de Combate, em Patrulha.


2. Em 19 de Novembro Mário Fitas dirigia-se ao Luís Graça

Caro Chefe da Tabanca Grande:

Não posso ficar indiferente ao aparecimento do Santos Oliveira no blogue. Em Cufar, juntos comemos da batata já a apodrecer, com o bacalhau que não havia, mas tivemos um grande petisco um dia quando comemos gazela com feijão frade, bem bom! Arroz não havia naquela terra distante.

O Fernando Santos Oliveira é um bom homem e um extraordinário Morteirista. Nos meus primeiros tempo de Cufar, era ele que conseguia calar a malta de Cufar Nalu nas horas das nossas refeições, curiosamente coincidentes com as horas de carreira de tiro deles.

O Fernando tem muito para contar. Mas já agora mando algumas notque ele teve a amabilidade de me mandar e espero que ele, para além destas notas, mande as suas cartas de morteiro do Como, Cufar e Tite.

É uma honra para a malta de armas pesadas. As notas da guerra do Joaquim Fernando Santos Oliveira são a forma respeitável como ele viu e viveu a guerra.

Um abraço para toda a Tabanca.
Mário Fitas


3. Em 20 de Novembro o co-editor CV endereçou mensagem ao Santos Oliveira

Caro Camarada Santos Oliveira:

Os editores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné vêm convidar-te a formalizares a tua entrada na nossa Tabanca Grande (nome alternativo do Blogue) e autorizares a publicação do trabalho que enviaste ao camarada Mário Fitas.

Para seres membro deste importante depositório de estórias, recordações, memórias, testemunhos, depoimentos,. etc. de ex-combatentes da Guiné, basta que digas que sim ao nosso convite, que mandes uma foto tipo passe, actual, para que te conheçamos no nosso próximo encontro, e uma foto dos teus tempos de Sargento Miliciano.

Claro que ficas obrigado a contar as tuas estórias devidamente ilustradas (quando for o caso) com as tuas fotos guardadas há tanto tempo. Vais ter o prazer de aumentar o nosso espólio e de ver as tuas experiências partilhadas com camaradas teus que sentiram o mesmo que tu, nos diversos Chãos e nos diversos anos que durou a guerra na Guiné.

Se nunca foste, aconselho-te a ir à nossa página da Tertúlia , onde poderás verificar que o nosso objectivo é unicamente não deixar esquecer a nossa geração e dar a conhecer um bocado da História de Portugal que se vai desvanecendo, como se a culpa da manutenção da guerra fosse nossa (milicianos e recrutados à força) e não das más políticas seguidas pelo regime de então.

Ficamos a aguardar a tua resposta.

Da parte dos editores, recebe um fraterno abraço
Carlos Vinhal, co-editor.


4. Mensagem de Santos Oliveira com data de 23 de Novembro, para Luís Graça

Camarada Luís Graça

Saudações

Ontem, à noite, o nosso camarada Mário Vicente deu-me umas dicas para aprender a entrar nas leituras cronológicas do Blogue. Acho que consegui e dei de caras com a transcrição de um mail em que sou solidário com uma opinião do Torcato Mendonça. Surpreendeu-me, pela positiva.

Como bem sabes (a tua formação militar em Armas Pesadas, foi igual à minha) o nosso Ofício não era ser-se Apontador (fossem Morteiros, Canhões sem Recuo ou Metralhadoras Pesadas), mas Comandar um Grupo de Homens, de duas esquadras e dois Morteiros. Tudo o restante está de acordo.

Como tenho dito, sou um principiante inexperiente e até inocente, na arte da Internet; procurarei evoluir, como foi referido pelo Torcato, até poder manejar a comunicação na Net, (como muito bem o fazem os miúdos de hoje) como outrora o fazia com a G3. Assim o espero.

Isto porque me sinto extremamente honrado, pelo público convite, para integrar o Blogue. Disso, já deves ter conhecimento, (com a minha inexperiência de permeio), de que o Carlos Vinhal tem todos (???) os elementos. Desculpa-me não ter seguido os passos sem pisar minas. Parece que o fiz.

Já há para aí algum material publicável; ajustem-no ao Blogue, enquanto não rotinar a minha escrita.

Quero, finalmente, garantir que apenas escrevo como sempre tenho vivido, pelo que é importante saberem que tudo o que for apresentado por escrito (para ti, para o Blogue ou para um qualquer Camarada), é publicável. Fica autorizado. Nada tenho a esconder ou a recear, mesmo que a Verdade venha a doer ou a magoar.

Publicamente, quero agradecer ao companheiro Mário Vicente (Fitas), porque desde o seu início no Blogue (creio) sempre me motivou e incentivou a que aderisse; igualmente ao Torcato por também ter dado um empurrão.

Aos Editores Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote, as minhas felicitações e os meus parabéns pelo trabalho desenvolvido em prol da classe de Veteranos em extinção e da História de Portugal, que um dia será reescrita, com verdade, para os nossos tetranetos poderem aprender nas Escolas.

Aos restantes Camaradas do Blogue, igualmente um Bem haja pelos vossos contributos.

Ao grosso dos Veteranos, peço-vos apenas: não sejam Ex-Militares, ex-Alferes, ex-Furriel, ex-Cabo ou ex-Soldado, porque, desse Direito Histórico, por mais que o tentem apagar, não o conseguirão. Todos, somos portugueses como Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Mouzinho de Albuquerque, etc, etc. e, um dia, daqui a muitos anos, seremos honrados, não por sermos Colonialistas (historicamente, os nossos antepassados não são!), mas por termos sido portugueses que cumpriram (muitas vezes contrariados) o dever e a obrigação, sem desertar ou fugir.

Pessoalmente, o meu muito obrigado.

Neste Natal, que se aproxima, para todos os portugueses, os votos das maiores felicidades.

Fraternais saudações, do
Santos Oliveira

Guiné 63/74 - P2300: Bibliografia (12): Memórias de outra tropa, de outra guerra, a da pesca do bacalhau: escovar a história a contra pêlo (José António Boia Paradela)


Ilhavo > Costa Nova > Agosto de 2006 > José António Boia Paradela, arquitecto, amigo de infância do Comandante Valdemar Aveiro... Também ele, filho e neto de gente do mar, andou embarcado, até aos 18 anos, na pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra... Uma experiência, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro - "para os amigos" - Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, que eu tive a honra e o prazer de prefaciar.

O que o meu/nosso querido Zé António - amigo comum, meu e do Capitão Valdemar Aveiro - escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssimo e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados....

Não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista ou pessimista, escrita sob pseudónimo (Ábio de Lápara = Boia Paradela). No final, Irineu - um dos personagens da narrativa e, seguramente, um alter ego do autor - (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, um ilha...vense, mesmo quando deixa a sua ilha, em busca de mundo, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro… (LG).

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.


Título: 80 Graus Norte: Recordações da Pesca do Bacalhau.
Autor: Valdemar Aveiro
Editora: Papiro
Ano: 2006
Nº páginas: 166
Preço: c. 17 €

"Nítidos e cheios de expressivas imagens são os relatos que faz da sua vida na faina da pesca. Sem nos apercebermos, somos convidados a entrar a bordo do seu navio e fazermos companhia ao nosso comandante nas amarguradas horas de forçada prisão em mares gelados, verificando in loco como a força do homem e até os seus mais modernos conhecimentos ali parecem tão pequenos e sem valor, comparados com a brutal força dos elementos da natureza." (Excerto do prefácio, do Capitão António Marques da Silva).

Título:Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar
Autor: Valdemar Aveiro
Editora: Papiro.
Ano: 2006 (2ª ed., 2007)
Preço: c. 17 €




1. Texto do editor L.G.:

O capitão Valdemar Aveiro é um velho lobo do mar, natural da Gafanha da Nazaré, Ílhavo, terra que tem dado, a Portugal, ao longo da sua história, grandes marinheiros, pescadores e capitães... Passou 35 anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau, a bordo, e capitaneando grandes lugres. Hoje, está em terra, com funções de gestão em empresa do sector piscatório ao mesmo tempo que vai passando e repassando para o papel as suas memórias...

Em 2004 saiu o seu primeiro livro, Figuras e Factos do Passado: Recordações da Pesca do Bacalhau, numa edição infelizmente nada profissional da Câmara Municipal de Aveiro. Quando o conheci, através de um amigo comum - o Arq. Zé António Paradela, da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, Lda -, ele teve a gentileza de me oferecer ume exemplar desse seu primeiro livro, autografado.

Foi uma revelação, para mim, essas estórias - épicas, dramáticas, picarescas, burlescas, mas sempre humaníssimas - dos nossos marinheiros e pescadores da Terra Nova.. Fiquei de lhe fazer uma recensão crítica que nunca chegou a aparecer, à luz do dia, no meu blogue, na altura o Blogue-Fora-Nada...

Por outro lado, sempre me intrigou o facto de, durante a guerra colonial, se poder optar pela dura pesca do bacalhau como alternativa à tropa e à guerra... O Comandante Valdemar terá recebido - imagino eu - largas e largas dezenas, ou centenas, de pedidos para aceitar a bordo mancebos que se queriam livrar da Guiné, Angola ou Moçambique... Um belo dia destes, na Costa Nova, hei-de falar com ele sobre esta outra tropa ou guerra que se desenrolova nos bancos de gelo da Gronelândia e da Terra Nova...

Hoje vou-me limitar a reproduzir, aqui, a belíssima apresentação que o seu mano José António Paradela - e meu velho amigo - fez do seu livro, em 2ª edição, Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar... Pegando na inspiradíssima dica do Zé António, também eu direi que - à semelhança dos nossos velhos lobos do mar que hoje morrem em terra ! - compete-nos também a nós, que fizémos a guerra colonial, "escovar a história a contra pêlo"... Temos tentado fazê-lo, fazendo jus ao lema do nosso blogue: Não deixes que sejam os outros a contar a tua história!...

O Capitão Valdemar Aveiro, como como todos os mareantes, é um execelente contador de estórias. Tem, além do talento, a grande vantagem da vivência e da autenticidade... Que ele seja um exemplo inspirador para todos nós, amigos e camaradas da Guiné.

Boa saúde, boa viagem, meu caro comandante! Luís Graça

2. Aveiro, Setembro de 2007. Na apresentação dos “Grandes Trabalhadores do Mar ”

Texto de José António Paradela, Arquitecto


“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto? A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.” (Valdemar Aveiro)

Li novamente o teu livro e gostei ainda mais.

Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.
Estava a lê-lo e a recordar-me de Alain Gerbault ( À la Porsuite du Soleil ), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville (Moby Dick).

O barco de que falas já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.

Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.

Contudo esse argumento é para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.

Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas -, para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.

Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. É a vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos!

Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!

Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória. À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (existem) e que marcaram o teu trajecto, quase sempre sobre as águas que do planeta são ainda a parte incógnita. Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitam, estes de quem tu falas.

São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.

O que afirmas na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram, e a falta que isso agora te faz.

Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões. Um tempo de outrora, mas também de hoje, por dentro de nós.

Este livro é o livro que faltava… Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto.

A história com H grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.

Walter Benjamim, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.

O teu livro, os teus livros, que para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.

Haverá quem faça a história oficial da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos: Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.

O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo, aos seus instrumentos e às suas palavras. (Podes acrescentar no glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).

A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa muito por aqui: Pelas ligações orgânicas, e pelos copos… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal. Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.

E é este acto de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, este incontornável filtro da inteligência e do coração, que constitui a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.

Não contaste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, ou o peixe como Hemingway . Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.

Ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos, ela não deixa de ser menos verdade. Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:

“… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.

Um abraço do teu mano Zé
____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2284: Antologia (66): A tropa do bacalhau, na Terra Nova e na Gronelândia: uma estória de vida (Joaquim Sampaio de Azevedo)

(2) Testemunhos sobre o Capitão Valdemar Aveiro:

Do Blogue Mar de Viana > 24 de Fevereiro de 2007 > Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar

Fui honrar o convite que a CMVC [Câmara Municipal de Viana do Castelo] me fez para o lançamento da 2.ª edição do livro, com título em epígrafe, do Capitão Valdemar Cravo da Cruz Aveiro que teve lugar a bordo do navio-museu Gil Eanes, atracado no topo Leste da doca de flutuação do Porto de Viana do Castelo.

A possibilidade de estar com o autor e demais pessoas ligadas ao meio marítimo em que me insiro e no qual vivi longos anos, é , à partida, motivo mais que suficiente para não desperdiçar uma oportunidade tão envolvente.

O capitão Valdemar é um nome sobejamente conhecido no meio bacalhoeiro, pelo seu perfil, pelo seu carácter, pela sua atitude, pelo seu sucesso e pelo seu humanismo. Estes atributos só por si dizem tudo do homem que passou 35 longos anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau e disso dá testemunho neste livro que hoje lança em segunda edição.

Em 1970 fui pela primeira vez à pesca do bacalhau, como piloto do arrastão de popa Lutador, propriedade da extinta Empresa de Pesca de Lavadores em que o Capitão Ferreira da Silva era sócio-gerente.

Falei algumas vezes com o Capitão Valdemar sem que nos conhecêssemos . Isto acontecia com muitos de nós, capitães, imediatos, pilotos e telegrafistas especialmente, porque tínhamos comunicações entre nós e raramente nos encontrávamos em terra. Há histórias interessantes a esse respeito vividas por homens do mar que só vieram a conhecer-se depois que abandonaram a profissão. Este é um caso desses. Se o Capitão Valdemar não tivesse escrito este livro e não tivesse vindo a Viana fazer o lançamento, não sei se alguma vez nos chegaríamos a conhecer.

Interessante foi também o facto de termos histórias semelhantes a contar por ocasião do 25 de Abril, cada um à sua maneira, mas que estávamos ambos no mar e a bordo de navios bacalhoeiros quando se deu esse acontecimento marcante na vida de todos nós. A marca que deixou nas nossas vidas, a forma como cada um o viveu, são outras histórias interessantes e desconhecidas. Só por isso valeu a pena ter ido ao lançamento do livro ao Gil Eanes.

Do blogue Mukandas do Nelsinho >[Rio de Janeiro, ] 19 Fevereiro de 2007 > Homens do Mar...

Valdemar Aveiro é bem um daqueles típicos Lobos do Mar pelos quais, garoto de doze ou treze anos, eu nutria uma profunda e respeitosa admiração, quando o meu irresistível fascínio pelos maiores e mais belos Lugres de três e quatro mastros, me levava à margem direita do Rio Douro, onde aparelhavam para a perigosa e dura faina da pesca do bacalhau em mares gelados e traiçoeiros!

O Capitão Aveiro, eu soube ontem, acaba de publicar um livro contando as Histórias Desconhecidas dos Grandes Trabalhadores do Mar, que adivinho tratar-se de leitura imperdível para todos aqueles que gostam do mar e de aventuras vividas!Apesar da minha admiração por sua extraordinária pessoa, faz muito tempo que não nos encontramos e, pior, sequer temos nos comunicado! A apresentação do seu livro na RTPi, disparou minha vontade de buscar de volta os laços que nos ligavam, acabei telefonando e garantindo o convite de honra para uma sardinhada em sua casa na Gafanha da Nazaré!Então, até lá Comandante!

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2299: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (10): O meu amigo açoriano de Bissau



Açores > Ilha de S. Miguel > Arrifes > 1967 > Ao fundo, o quartel. Em primeiro plano, criabças da povoação. A pobreza era extrema nas ilhas, naquele tempo. Não surpreendia, pois, que as crianças viessem todos os dias pedir as sobras do rancho. Fiz estima com estes garotos, que eram meus convidados quando estava de oficial de dia. Foi uma grande alegria tê-los na festa de Natal de 1967, que organizámos com a devoção dos meus amigos de Ponta Delgada, sobretudo a Maria Teves Lemos e a Cremilde Tapia, recolhendo frituras, doçaria, pastéis de bacalhau e o mais que se sabe.

O Natal de 1968 foi mais tocante, certamente, estávamos dentro da guerra, mas esta recordação de 1967 têm-me acompanhado sempre, é estímulo para o que se deve continuar a fazer.

Açores > Ilha de São Miguel > Quartel de Arrifes > 1967 > Tirei esta fotografia com os soldados e as crianças que vinham às sobras do rancho. Os soldados adoravam a tropa porque tinham carne e peixe a todas as refeições. Achavam graça ter de fazer a barba todos os dias e cortar o cabelo regularmente. Gostavam igualmente dos hábitos de higiene, confessando-me mesmo que a vida é outra coisa com o banhinho diário. As crianças , como se pode ver, andavam descalças. A freguesia dos Arrifes já era nesse tempo enorme e as famílias eram numerosas. O açoriano é muito disciplinado e muito religioso. Quando estava de oficial de dia e percorria as camaratas depois do toque de recolher, muitas vezes ouvio-os rezar o terço, e acompanhei-os no exterior, para não os melindrar.

Açores > Ilha de São Miguel > 1967 A família Teves Lemos acolheu-me maravilhosamente. Ele era despachante, ela doméstica, de uma bonomia insuperável. Foi através deles que conheci a Cremilde Tapia, madrinha da minha filha mais nova. Na fotografia aparece o meu soldado mariense José Braga Chaves, ele tinha um dedo torto que o Dr. Furtado Lima, conceituado cirugião local, operou. Estivémos sempre em contacto durante a guerra, visitei-o depois, estava ele já a trabalhar no aeroporto da Nordela.

Fotos e legendas: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2007:

Luís, aqui vai o episódio n.º 10. Já aí tens a capa do livro da Agatha Christie, o livro do Jacques Martin segue pelo correio. Penso que terá interesse mandar-te duas fotografias referentes ao meu período açoriano. Seguirão segunda feira. Estou nas lonas, vou passar três dias em Casal dos Matos a arrancar ervas e a preparar novos episódios desta Operação que está em Outubro de 1969 e irá até Agosto de 1970. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista - Parte II (10) > O MEU AMIGO AÇORIANO EM BISSAU
por Beja Santos
(1)

(i) O acidente de Canturé


Parto um dia mais tarde para Bissau, dado que a 17 de Outubro, ao princípio da tarde, registou-se um lamentável acidente em Canturé, à volta do 404 completamente destruído. Tivemos notícias dos acontecimentos em Missirá porque ouvimos rajadas de espingarda, era um fogo todo igual, parecia um festejo de gente eufórica, a que se seguiu um silêncio sepulcral.

Ainda incapaz de me mexer, com o tímpano do ouvido direito a zunir e a resistir a todos os analgésicos, peço ao furriel Pina para ir ver o que se passa. Ele chega ao anoitecer com a notícia de que Bacari Soncó e dois milícias de Finete, a arder de curiosidade, aproximaram-se da viatura armadilhada pelo Reis e os seus sapadores, durante a manhã, e ficaram estilhaçados, se bem que sem gravidade, desatando a fazer fogo, convencidos que estavam a ser emboscados.

Com o Pires arrumo os últimos papéis, sempre com a preocupação de que o Pel Caç Nat 54 possa chegar a qualquer momento e nós queremos que encontrem toda a contabilidade e todos os registos em dia. Escrevo no meu eterno caderninho de viagem, para negociar com o comando em Bambadinca:

- Pedir uma ajuda extraordinária para as idas a Mato de Cão, de preferência tentar conciliar uma ou duas secções de um grupo de combate da CCaç12 com uma ou duas secções de Missirá e Finete;
- Autorizar um avanço dos vencimentos dos milícias de Finete, não há sacos de arroz, o espectro da fome espreita, só nos faltava agora o descontentamento dos estômagos;
- Analisar a dispensa de uma bazuca a Finete e aprovar as obras de dois abrigos;
- Pedir ao David Payne que passe um dia em Missirá, tal o número de incapacitados, militares e civis, que precisam urgentemente de tratamento.

Antes do jantar, Ussumane Baldé vem ajudar-me a fazer a mala e a ver o estado da farda n.º 2. Não posso andar de calções, o joelho direito inchou, os coágulos de sangue têm ligaduras, é puro exibicionismo andar a mostrar estas feridas. Depois do jantar escrevo os últimos aerogramas, as dores são tantas que peço ao Adão maqueiro um comprimido para dormir.

Em Finete, na manhã seguinte, combino com Bubacar Baldé, o substituto de Bacari, a necessidade de improvisar um esquema de apoio às forças que vão a Mato de Cão. É necessário igualmente negociar as patrulhas de vigilância até Gã Gémeos com o furriel Pires, nos dias em que o Sintex for a Bambadinca. Chegado ao batalhão, converso com o major Cunha Ribeiro que anui no plano das idas a Mato de Cão, a título provisório. O Payne promete ir a Missirá nos próximos dias e descansa-me quanto ao estado de Bacari e os dois milícias que estão na enfermaria, onde os vou visitar. Bacari tem um olhar entristecido e envergonhado, como quem cometeu uma galgada na pior altura.

E lá parto para Bafatá com a trouxa e alguns livros. Desconfio que o mais grave poderá ser o tímpano, seja como for o olho direito não me deixa ver bem, sinto uma profunda irritação, quero igualmente ir a uma consulta de estomatologia, há por ali dois dentes cariados que me provocam um profundo mal estar.

O voo está atrasado uma hora, aproveito para ir à cidade ver os discos e os livros no estabelecimento do Eduardo Teixeira. Como o dinheiro é muito pouco e a duração da estadia é uma incógnita, limito-me a comprar Um crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, e um livro de novelas de Somerset Maugham. São obras que li no passado, não as esqueci, vou prontamente relê-las.

Enquanto espero a vinda do Dakota, sem nenhum interesse em falar da guerra com quem me rodeia, a um canto enfronho-me na excitante viagem do Expresso do Oriente a partir de Istambul, via Belgrado, até Calais e Londres. Hercule Poirot vem da Síria até Istambul, vai contactando com uma curiosa fauna internacional, há um norte-americano que pretende contratar os seus serviços, Poirot recusa, nessa mesma noite o norte-americano será apunhalado e quando for descoberto o seu corpo exibirá doze feridas bem desiguais. Vai começar o inquérito a cargo do excêntrico detective belga.

Entro exactamente no avião quando começa esta incursão, onde a admirável Agatha Christie revela o seu talento pelos registos psicológicos. A maior parte das respostas, depois de nós sabermos que o assassinado fora um dos sequestradores que mais emocionara a America, gira à volta do nome Armstrong que, saberemos no final, tem um peso capital no móbil do crime. Enquanto o Dakota desce para Bissau, enleio-me num dos mais fabulosos grandes finais de desfecho imprevisível: afinal, todos os passageiros vieram fazer parte do júri. E é com estas boas lembranças que chego a Bissalanca o no aeroporto de Bissau peço uma boleia até ao HM241.

Capa de um clássico, Um Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. Lisboa: Livros do Brasil (Colecção Vampiro). Quando eu tinha 20 anos, a ópera era Fidélio, de Bethoven, o teatro era As três irmãs, de Tchekhov e o livro policial era Um crime no Expresso do Oriente, por Agatha Christie. Comprei-o em Bafatá na manhã de 18 de Outubro, já o tinha lido uma vez, o assombro nunca se desfez.

Hercule Poirot vem da Síria e apanha em Istambul o Expresso do Oriente, via Belgrado, até Londres. Fatalmente que houve um grande crime no combóio mítico: um criminoso lendário, o assassino da menina Amstrong, aparece mortalmente apunhalado com doze ferídas. Poirot dirige o inquérito e as conclusões podiam ser duas: um assassino que veio roubar e se escapuliu na neve ou doze passageiros que vieram fazer justiça, desde uma princesa russa até a maior actriz dramática norte-americana. O livro é de 1933, a tradução desta edição portuguesa é de Gentil Marques e a capa é do magistral Cândido da Costa Pinto. Deu filme, que permitiu Ingrid Bergman ter mais um Óscar.

Foto e legenda : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


(ii) O oftalmologista que veio de Ponta Delgada

Marquei três consultas para ver se trato tudo quanto me dói no corpinho abalado: os olhos, o ouvido e os dentes. Vou começar pelo oftalmologista, logo no dia seguinte. A tarde vou passar na vadiagem, sobretudo a vasculhar livros no Taufik Saad, e depois vou à Catedral de Bissau.

A espera é longa, dizem-me que o médico está no bloco operatório desde o amanhecer, parece que chegaram helicópteros com vários feridos, tão graves que vários médicos não têm mãos a medir. Sempre com o nariz metido nos livros, acabei o assombroso policial desse mítico Expresso do Oriente paralisado na Jugoslávia, e onde Poirot tem duas versões para o crime: um homicídio por razões de furto em que o criminosos se escapuliu na neve ou um júri de doze pessoas que vieram sentenciar um canalha que assassinara uma criança. É claro que o leitor intervém e aprova a solução optada pelo detective.

A desoras, sou recebido no consultório por um gigante de cerca de quarenta anos, expressivo de mãos, voz bem timbrada, transparece estar exausto mas é atencioso. Preenche a minha ficha, detecto-lhe imediatamente o acento açoriano. Examina-me os olhos e alivia a conversa ao fim de alguns minuto:
-Não é nada de grave, devem ter sido uns ácidos dessa tal mina, há aqui restos de poeiras e por isso o olho está tão inflamado. Vamos agora ver a sua graduação, dentro de dias vai ver novamente bem. Que todas as situações que aqui me aparecem fossem como a sua.

Entretanto, e como era inevitável, falámos de S. Miguel, preciso de falar de um mundo fora da guerra, ele também. Conto-lhe a minha história, como cheguei a Ponta Delgada, em Outubro de 1967, as recrutas que dei nos Arrifes, o quarto alugado na rua de Lisboa, os jantares no café Nacional, os serões no Gil, o conhecimento e a amizade da Maria e do Marino Lemos, a Cremilde Tapia, o Dr. José Maria de Medeiros, o Melo Bento e outros mais.

Ele também me conta a sua história, deixou a família com muito sofrimento e ali está como o único oftalmologista para militares e civis. Fala-me preocupado dos tracomas e outros sofrimentos, que vê diariamente, fico a saber que um tracoma precocemente diagnosticado salva a vista do doente, mas, pressionado pelos muitos mais que aguardam consulta, despede-se propondo que jantemos juntos essa noite. Aceitei prontamente, tenho uma grande vontade de falar sobre a minha vida açoriana, encontrar uma mesma frequência modulada, sobre as ilhas atlânticas.

Lá fomos jantar ao Solar do Dez, começámos com a sopa de ostras com muito limão, comemos marisco e uma boa papaia, tudo regado com vinho branco. Tínhamos tanto para dizer que fomos os últimos a sair, já cheios de sono. Eu sentia que estava a cimentar uma amizade com o José Luís Bettencourt Botelho de Melo, todos aqueles relatos expressivos me fascinavam, o encanto e o sabor das descrições e dos registos humanos tocavam-me no coração. Os comentários tinham sempre um final bem humorado, não faltando mesmo a pilhéria. Quando nos despedimos, ele mostrou-me a Mariazinha, um revólver que trazia no bolso traseiro das calças. Combinámos, a cambalear de sono, que eu não regressaria a Missirá sem novo encontro, desse por onde desse.

No dia seguinte, fui mostrar o tímpano ao otorrinolaringologista. Havia tratamento a fazer e assombrei-me com as porcarias que vi na minha lavagem aos ouvidos. Tinha dois dias de espera antes de ir ao dentista, ganhei coragem fui telefonar à Cristina, não lhe escrevia praticamente depois dos acontecimentos da noite de 16 de Outubro. Foi uma conversa contida, desdramatizando o sucedido. E escrevi-lhe no café Avenida:

Sei que dificilmente me perdoarás o que se tem passado, o meu silêncio dos últimos dias, estou em crer que a conversa que acabámos de ter ao telefone te deixou muito assustada. Arrependo-me de ter escrito à tua mãe, devido à crueza com que lhe falei da emboscada e da mina anticarro.

Estou mais aliviado com o estado dos meus olhos, tenho uma receita para ir ao oculista, a irritação parece estar a passar, o médico descansou-me, não haverá consequências. Tenho, no entanto, um tímpano dormente, oiço com ressonâncias, há aqui um grande desconforto. Mas o médico também me tranquilizou, não vou perder acuidade auditiva, não podes imaginar as excrescências que me saíram dos ouvidos.

Ainda não te falei que o Bacari Soncó, no dia seguinte à emboscada e à explosão da mina, cedeu à curiosidade, aproximou-se da viatura armadilhada e ficou ferido, mais dois soldados. Felizmente que não há nada de grave.

Sinto-me um náufrago em Bissau, não tenho vontade nenhuma de andar a contar esta história e a arrastar a minha perna, que ainda me dói. Estou a tomar um medicamento para absorver os coágulos de sangue no meu joelho, ao saltar da viatura, depois da explosão, dei uma pancada brutal no tablier, o Payne assegura que é um hematoma, dentro de dias estarei muito melhor.

Está prometido que amanhã te telefono. Agora vou visitar o Cruz Filipe, para saber do Casanova, que quero ver esta tarde. Logo que trate dos dentes regresso a Bambadinca. Desculpa não falar das cartas que me tens enviado, tu não sabes o suplício do correio que recebo da minha família, sinto a tristeza dos teus avisos, o som atordoador das tuas súplicas. Nada posso fazer, temos os dois que saber resistir. Há mais de um ano que contemos as nossas lágrimas e que suportamos a nossa saudade. Não desfaleças.



(iii) Uma visita ao Casanova, o primeiro mergulho na história da Guiné e um ecnontro inesperado com o o Alferes Comando Saiegh



Encontro o Cruz Filipe que já visitou o Casanova e me diz sem equívocos:
-Vai demorar a restabelecer-se. Está profundamente doente. Você não tem nada que se culpabilizar, não é obrigado a saber tudo sobre manifestações da doença mental, todos vocês vivem sobre pressão, o cansaço, a tensão permanente excedem por vezes os sinais que a convivência permanente não deixa perceber. Vá ver o seu amigo. Amanhã contamos consigo para jantar.

Faço todo o possível por me apresentar sorridente frente ao Casanova. Está rígido, ao princípio o seu olhar avivou-se quando me viu, depois reduziu-se ao silêncio com a expressão parada, fixou-se num ponto, olhando a janela, hirto. Não lhe falo de Missirá, digo que estou aqui exclusivamente para me tratar e para lhe fazer companhia. Falo pausadamente, invento um mundo onde não existe o Cuor e muito menos a guerra. A distância a que ele se encontra acaba por me fazer vergar, a emoção dos últimos dias, acaba por fazer ruir as minhas defesas veio a recordação dos gritos dos meus feridos naquela tarde de 16 de Outubro que tanto me apavoram, levanto-me, abraço-o e prometo voltar amanhã, mesmo sentindo a sua indiferença total.

Aproveito uma boleia, vou até ao museu de Bissau, mas antes procuro saber se no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa é possível comprar um livro de história da Guiné. Sou recebido por um senhor que me mostra uma biblioteca e me convida a ver os títulos. Terá sido o comandante Teixeira da Mota a galvanizar este projecto cultural, este manancial de documentos, relatórios e livros onde a vida administrativa, a colonização, o tráfego de escravos, as guerras e as campanhas militares, as descrições geográficas, está tudo primorosamente catalogado.

Ainda tenho um pouco mais de uma hora à minha frente, remexo e começo a tomar notas. Chamou-me à atenção um livro sobre a guerra do Geba, de Basso Marques onde se escreve “No território de Geba, com o fim da demonstração do poderio e força do Governo, haviam-se já efectuado já algumas campanhas - a última no período decorrido de Agosto a Setembro de 1869 - todas infrutíferas porém... Alguns comerciantes indignos vendiam pólvora e munições aos mandingas de Bambadinca que em canoas de poilão as levariam depois aos rebeldes...”.

Ponho de parte para ler amanhã o conjunto de documentos sobre a campanha contra Abdul Injai, a referência a um artigo sobre o islamismo, os jornais que falam sobre o desastre de 19 de Abril de 1891, um período de rebeliões em que houve um massacre em Bissau, e retenho um título do General Ferreira Martins sobre as guerras de conquista, entre 1883 e 1885, onde ele observa: “São tão diferentes as origens, os caracteres, as religiões e as qualidades ou costumes bélicos dos variados povos que habitam a Guiné Portuguesa, povos que desde remotos tempos sustentaram uns contra os outros, encarniçadas lutas, que nunca foi nem será de recear uma aliança formal entre todos eles”.

Capa do livro de banmda desenhada, de Jacques Martin, La Tiare d'Oribal. Paris: Casterman, 1966. (Colection Alix, par Jacques Martins)... "Luís, nãos ei se acreditas ,as foi comprado na Guiné. Tudo era possível mcom aquela guerra, era tempo em que o francês se falava quase como o português".

Fotos e legendas: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Escureceu completamente, prometi voltar amanhã de manhã. Desço a avenida, como se fosse para a Catedral ou à casa Gouveia ou ao cais. É junto ao cinema que encontro o Saiegh que me dá a notícia que é alferes da 1ª Companhia de Comandos Africana e que vai para Fá, dentro de dias. Combinámos um encontro para depois de amanhã e, curioso, ele pergunta-me o que é que eu levo na mão, quer saber porque é que eu me interesso por histórias aos quadradinhos que ele nunca me vira ler. Comprara na casa Tofik Saad um álbum intitulado La Tiare D’Oribal, de Jacques Martin. O desenho parecera-me muito bom, se bem que ingénuo, um traço como o de Hergé ou o de Edgar Jacobs. O herói chama-se Alix, é um gaulês que vive em Roma em 50 antes de Cristo, no tempo do triunvirato de César, Pompeu e Crasso. A tiara de Oribal é a coroa de um poderosíssimo rei que vive algures na Mesopotâmia, um jovem pretendente confronta-se com um usurpador sem escrúpulos, inevitavelmente Alix vai ter um papel fulcral no desfecho do regresso e entronização do jovem rei Oribal. Ainda não sei, mas vou-me tornar um fã desta banda desenhada.

Volto ao Quartel General, numa das sala de estar procuro ficar só, escrevo um aerograma à minha Mãe e outro ao Ruy Cinatti. Depois leio umas páginas de Somerset Maugham e vou procurar dormir sobre a acção dos medicamentos. Estou excitado com a história da Guiné que comecei a ler. Vou continuar amanhã as leituras, cheio de entusiasmo. Lembro-me do Casanova e do Saiegh. Sei que antes de adormecer me encomendei a Deus e rezei por estes dois companheiros de Missirá, a quem tanto devo.
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Nota de L.G.:

(1) 16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Vila > 1968> Foto 26: A praça do mercado, vista de quem vinha da pista [tirada à porta da casa do sr. Barros Correias]. À direita o Mercado, ao fundo à esquerda a casa do Sr. Brandão e à direita debaixo da mangueira o Bar Catió e bem ao fundo o quartel.



Foto 4: Igreja Paroquial de N. Sª. de Catió

Foto 24: Interior da Igreja de Catió, altar-mor de Nossa Senhora.


Foto 25 : Interior da Igreja de Catió, altar lateral direito do Sagrado Coração.

Foto 31: Habitantes e militares convivem na rua fronteira ao Bar Catió.

Fotos e legendas: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados


1. Ficha Técnica

Título: Pami na Dondo – A Guerrilheira (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos (Coronel)
Capa: Filipa Barradas
Coordenação gráfica: Cercica
Edição: Do autor patrocinada pela junta de Freguesia do Estoril
Distribuição: Junta de Freguesia do Estoril
Execução gráfica: Cercica – Cooperativa para Educação e Reabilitação de Cidadãos de Cascais, CRL
Rua Principal, 320 – 320 A – Livramento
2765-383 Estoril
Depósito legal nº: 228120/05
1ª Edição: Julho 2005


A meu neto: Guilherme Figueiredo
A todos os Veteranos de Guerra
A todas as mulheres: Mães, companheiras, amantes e amigas que tiveram a angústia da partida, e sofreram a dor de não os ver chegar

À memória dos meus amigos e companheiros António Pedro Lema, Gonçalves Vaz, Vieira Barcelos e Jorge Martinho

O meu reconhecido agradecimento pela colaboração prestada:
Sra. Dra. Amélia Casaleiro
Sra. Dra. Maria da Graça Fernandes
Sra. Dra. Sofia Fitas
Sra. Dra. Manuela Gil, Vereadora da Cultura
Sr. Coronel Carlos da Costa Campos
Sr. Luciano Mourão

PREFÁCIO, por Carlos da Costa Campos, Coronel (2)

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PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA
por Mário Vicente

Revisão do texto e subtítulos: Luís Graça.


Parte I - O balanta Pan Na Ufna e a sua filha Pami Na Dondo


Pan Na Ufna já tinha perdido a conta aos balaios de arroz que colocara na basculante, carregados pelo humano formigueiro. Não tinha interesse: bastava gritar o nome da entregadora ou entregador e o peso acusado na balança. Atento, Sr. Luís Ramos apontaria no papel borrão. Posteriormente, por permuta com outros bens ou por dinheiro verdadeiro, limpinho ali na mão - notas sujas amarfanhadas -, fazer o encontro e quitação de contas.

Esperto, o senhor Luís pagava mais um peso (escudo) por cada dez quilos de arroz que a concorrência. Certo era que o formigueiro não findava: longos e sinuosos seus caminhos, desconhecidos os princípios e fins dos seus carreiros. Desde manhã - sol a despontar por sobre o ilhéu de Cantone até cair sobre a foz do Tombali - ao escurecer. Das mais longínquas Tabancas, balaio à cabeça ou de canoa pelos rios, aproveitando as marés. Assim, no fim das colheitas, era passado o dia e parte da noite a caminho dos armazéns do Sr. Ramos, representante da Casa Brandoa, pertença da União Fabricante.

Trabalho de alto risco. Havia por vezes vingança da concorrência sobre a pobre formiga, desfazendo com pata de elefante - bota cardada - o seu carreiro. Chegou haver mesmo situações de confiscação e cremação dos pequenos e parcos celeiros, por tão alvitrante atrevimento.

Mas, naquele dia, Pan Na Ufna não comentava nem queria saber dessas situações; desinteressado mesmo, a sua cabeça mantinha longe o carreiro.

Que quereria o padre Francelino, para o chamar à igreja? Fervilhante, a sua mente ia formulando todas as especulações plausíveis e impossíveis. A sua massa cinzenta já tinha trabalhado mais naquele dia que num mês de grande movimento:

Não!... Não podia!... Ou seria? as conversas com o Sr. Ramos sobre ter uma Pátria... Seria?... Ter uma Pátria só Nossa? Bonito! Mas todos juntos também não era mal. Só que todos deviam ter Lei igual! Não! Não!... não seria essa a razão da chamada! Que é que padre tem com isso? Espera?! Seria por ter batido na mulher mais nova? - conjecturava.

Ele não queria!... Verdade!, mas... quando bebia mais um golo de aguardente de cana, ou vinho de palma, lembrava sempre aquela malvada que não lhe dava filho fêmea, só filho macho, meio tonto como a mãe. Sanhá sim, que tinha dado filho menina. Esperta a aprender e na escola, - graças a Sr. Luís Ramos e padre Francelino - ser sempre a primeira.

O musculado corpo, a escorrer suor gorduroso do esforço baixa-levanta balaio, estava insensível. A cabeça de Pan continuava sem descobrir a indecifrável chamada do padre Francelino.

O melhor seria beber um golo de cana, para esquecer a cabeça!? Não!... Isso também não! Se o padre lhe cheirasse à cana tinha logo conversa dura de certeza. Não aguentava mais! Fez uma pausa e foi falar com o senhor Ramos.

O responsável da Casa Brandoa ouviu o seu auxiliar com atenção e, sorrindo, respondeu-lhe brincalhão:
- Não tenhas problema! Vais ver que o padre quer que tu abandones o teu IRÃ, e que vás adorar o CRISTO dele.
- Um milagre!... Converter um Balanta!

Assim brincando mandou Ramos sossegar o aflito ajudante. Mas as horas não passavam e os minutos eram eternidade. Luís Ramos, atendo à desorientação em que se encontrava o seu empregado, mandou-o ir embora falar com o Padre, meia-hora antes do encerramento do estabelecimento.


O missionário italiano Francelino e o patrão Luís Ramos


Subindo a desnivelada rua de terra vermelha batida que dava acesso à Igreja de Catió - caminho fustigado por enxurradas de tornados em época de chuvas, ressequido e escaldante em tempos de seca -, Pan Na Ufna, na sua suada caminhada, regrediu nos tempos, e a sua mente tresmalhou-se no passado: relembrou seus falecidos progenitores quando ainda menino e depois blufo, lá para os lados do Xuguê; seu pai fora Homem Grande e chefe de Tabanca de muito saber, de idade e vida feito.

Pan sentiu saudades... teve vontade de ser menino. E sentiu a atracção da terra mãe, embrenhando-se por matas e capinzais, nas suas brincadeiras de criança e caçadas de adolescente. O seu coração transmitiu aos olhos o humedecimento da saudade.

Chegou à Igreja e entrou sem efectuar qualquer preceito, pois até a sua convicção animista, atribuindo às coisas alma análoga à pessoa humana, consubstanciada na crença politeísta, pouco ou quase nada lhe dizia. É assim a evolução do homem, o contacto com a cultura é irreversível.

Não encontrou ninguém. Saiu e, contornando o Cristão edifício, aproximou-se da casa de habitação do padre Francelino, Italiano de nascença, - alto, esguio, barbas e cabelos brancos-, há longos anos missionário por terras de África.

Abeirou-se do muro do jardim e também não vislumbrou ninguém. Hesitante, bateu as palmas e gritou:
- Padre Francelino!?...

De imediato, numa pronúncia italo-portuguesa, ouviu-se a voz do padre.
- Per Cristo!... Aqui estou!

Lançando o olhar no sentido auditivo da voz, Pan teve uma aparição Bíblico-Guerreira: sotaina branca, cofió preto enterrado na alva cabeça, na mão direita empunhando ao alto uma velha catana, apareceu-lhe o padre que lhe gritou:
- Olha, fratelo Pan! Corpo de bó está bom? Como vais tu, irmão em Cristo? Biene!... E Sr. Ramos, saúde boa? Desculpa, amigo mio... estava capinando no outro lado! Entra!... temos muito conversa.

Pousando a catana sobre uma velha e já meio desfeita mesa de madeira, abriu o ferrugento portal do pseudo-jardim, para acesso do requisitado visitante. Descobriu a branca cabeleira, retirando o enterrado cofió. Do bolso direito da sotaina, retirou um amarfanhado lenço - cujo branco tinha virado cinzento-, com o qual foi limpando as gotas de suor da testa e rosto, e continuou a falar:
- Amigo meu! Sou muito contente, teu filha Pami é uma inteligência. Temos de falar muito. Muito mismo!

A forma como o padre Francelino falava com Pan, transmitiu-lhe um certo alívio, deixando-o mais calmo. A tempestade gerada em sua cabeça foi-se aos poucos esfumando, até terminar quando uma hora mais tarde saiu da casa do padre.

Já na rua, agora completamente descomprimido, pensou que valia a pena uma pinga de cana, para festejar o alívio da cabeça e não só, mas também as palavras bonitas e os louvores que ouvira, referentes a sua menina Pami Na Dondo. Pelo que, em vez de rumar a casa, se dirigiu ao Zé Libanês, onde bebeu um copo de cana de festejo, outro de alegria e outro mais por lhe saber bem.

Saiu, e na rua sentiu já um pouco o efeito do álcool. Rumando a Catió Balanta, tomou o caminho de casa, completamente absorto na conversa que tinha tido com o padre. Consigo mesmo ia falando quando em voz alta lhe saiu:
- Um Pátria Nosso!

Passou pelo cipaio Jaló e ficou temeroso, não tivesse aquele ouvido a escapadela. Mas esqueceu! Estava contente. Padre Francelino sabia tanto ou mais que sr. Ramos e ambos estavam do mesmo lado.


Pami Na Dondo não será freira


Em casa a bianda estava pronta, arroz e galinha pilada com mancarra. Comeu. Pensamento vagueante, três vezes passou com carinho a mão sobre a cabeça de sua filha Pami. O álcool ajudou e os olhos tiveram pérolas. Dormiu com Sanhá, e com ela fez conversa giro.

Manhã cedo, compareceu nos Armazéns Brandoa muito antes da sua abertura.
- Então, que queria Dom Francelino? - perguntou Luís Ramos em tom jocoso, estranhando o madrugar do seu auxiliar.
- Assunto importante! Coisa mesmo séria, sr. Ramos!...

E Pan relatou ao seu patrão toda a conversa que tivera com o padre: o pedido que aquele lhe fizera para pôr nome Cristão, e baptizar segundo as leis da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana sua filha Pami, autorizando a sua saída para um colégio de freiras em Itália; a entrada em outros temas, após a conversa sobre a sua filha, descrevendo como o padre enveredara por caminhos da política, e, dissertara sobre o problema da revolta dos Papéis; a criação da União Nacional dos Trabalhadores da Guiné, e finalmente, a história da recente matança de Pidjiguiti, quando os estivadores reivindicavam melhores salários; terminando na análise em que o Povo da Guiné se encontrava.

E, como o padre lhe dissera a ele, reproduziu para Luís Ramos:
- Não tem demora! Revolução está aí!

O patrão ouviu tudo em silêncio e no final sorriu. Colocando o braço sobre o forte tronco do seu funcionário, deu-lhe duas palmadas de amizade e segredou-lhe:
- Estás a ver! Não conseguiu pôr o pai no altar, mas quer pôr lá a filha!

Luís Ramos sorriu. No entanto, a sua cara foi-se transformando, até ficar com ar completamente sério e apreensivo. Com a mão direita pegou no braço esquerdo de Pan, e fez pressão, até ficarem os dois frente a frente. Olhando olhos nos olhos o auxiliar, disse-lhe em tom sério:
- Pan! Numa revolução é sempre natural a morte. Seja de que lado se estiver!
- Queres aderir ao PAIGC? Queres fazer a guerrilha? Queres ter uma Pátria Nossa?

Os homens firmaram bem o olhar um no outro. Pan, emocionado com as palavras de Luís Ramos, olhos humedecidos, retorquiu com firmeza:
- Quero,sim!... Quero uma Pátria Nossa!

Patrão e empregado ficaram cúmplices a partir daquele momento. A meio da manhã, o cipaio Jaló apareceu nos armazéns. Pan estremeceu e sentiu medo, mas o cipaio apenas falou com o patrão. Nada de anormal, coisa de rotina. Queria informações sobre o pessoal que se abastecia nos armazéns. O contacto já tinha começado.

As conversas entre Luís Ramos e Pan Na Ufna começam a girar sempre em torno do mesmo tema. Os contactos e interpelações junto do formigueiro começam a dar os seus frutos, e novos carreiros são abertos.

Composta de mudança a vida, umas vezes andando em frente, outras retrocedendo, vai-se mutando. Por razões desconhecidas, mas perceptíveis e entendíveis, o padre Francelino é transferido, e abandona a Província Portuguesa da Guiné. Este involuntário abandono vai ter reflexos na família de Pan Na Ufna.

Pami na Dondo não será freira. Consegue a quarta classe de alfabetização e salva-se da excisão do clitóris (fanado). No entanto fica com algo precioso. Precisamente o saber ler, escrever e interpretar, no que se tornará útil para a família, principalmente para seu pai. Lê todo o pedaço de papel que encontra. O velho dicionário que lhe é deixado pelo padre Francelino na sua partida, transforma-se na Bíblia e enciclopédia da menina Balanta.

Aprende o feminino: adjectivo próprio da fêmea, seres não masculinos em género gramatical. Assim, percorreu desde a fêmea ao feminismo, a mística palavra mulher. O sofrimento o desconforto do Ser considerado menor, inferior. O segredo oculto, em patriarcal e feiticista sociedade que a rodeia, não a deixando evoluir na igualdade. A certeza apenas de ser fêmea reprodutora, e escrava da bolanha.

Compreende que Bajuda, em português, é o estádio da jovem que ainda mantém o hímen, portanto ainda não foi desflorada. Estado virgem, em que não houve a ligação, penetração com o parceiro macho. Mas consegue desmistificar a ligação amor da subordinação ao macho.

Muitos conhecimentos apreendeu sobre o seu próprio corpo. Pesquisando, ficou a saber que no dia que sentisse e ocorresse um corrimento sanguinolento entre as pernas, oriundo da vagina, seria menarca. Obra do desprendimento de óvulo não fertilizado. Pelo que estaria a partir dessa altura apta para ser fecundada. Disponível fruto maduro, para a apetência objecto - usufruto - do macho. Ignora ainda, a sublimação e o sentir da palavra mãe, companheira, amante e amiga. Não só o nome e funcionamento dos seus órgãos genitais aprendeu, mas do homem também.

Só... nos tórridos e húmidos dias do equador à sombra da mangueira, Pami vai percorrendo o seu mundo maravilhoso, através do velho dicionário. Nele, não foi só sobre o seu corpo que a menina aprendeu coisas maravilhosas. Em cada palavra aparecia um mistério, em cada mistério um mundo extraordinário de saber e alegria, através da leitura das velhas folhas fazia descobertas encantadoras.

Amor: Os nossos sentimentos e a sua força, que nos induzem e incitam para os objectos dos nossos desejos, afeição ou paixão!? Afectação, monopolizadora de algo para nós, possessivamente. O inverso! Doação total e incondicional. Aquilo que somos e valemos nós próprios. Palavra simples e pequena, mas que resume toda a grandiosidade do que deveria ser a relação humana.

Horizonte: Todo aquele vastíssimo espaço da superfície terrestre abrangido pela nossa vista. Linha de contacto aparente entre o céu e a terra. Natureza, pura imagem dos sonhos que criamos, realidade do que de bom ou mau nos rodeia. O infinito indefinido, que existe para além.

Instrução: Acto ou efeito de dar conhecimentos ou recebê-los. A experiência tornada em saber. Erudição, adestração, esclarecimento constante, do aprender até morrer. Preparação para a Cultura, o saber que nos sobra depois de tudo desaprendermos.

Lágrima: Líquido produzido pelas glândulas lacrimais, que em gota qual pérola, rola muitas vezes pela face, que consoante os sentimentos - efeitos de causa -, se tornam em sangue e dor de sabor a fel, ou de alegria e amor com sabor a mel.

Beijo: Acto de união da boca (lábios) com qualquer parte do corpo em toque sublime que define os sentimentos do momento. Junção íntima de acto de amor, ou veneração respeito de alguém. Asqueroso toque traidor de amigos, imitadores de Judas Escariotes.

Medo: Essa coisa invisível, mas intensamente sentida pela ideia inquietante perante o perigo real ou aparente. Apreensão, pavor, em que a mente se destrama na maior facilidade, trespassada pela lança da incerteza.

Sublimação: A transmutação de instintos e tendências egoístas e não espirituais, para o altruísmo, doação total.

Raça: O conjunto comum de caracteres hereditários que formam um agrupamento natural de homens, independentemente da cultura, costumes ou língua.

Etnia: Conjunto de indivíduos que podendo ser de países e ou raças diferentes, estão unificados por uma língua ou civilização comum.

Circuncisão: Ablação da membrana do perpúcio nos homens, pondo a glande a descoberto; corte nos lábios da vulva e clitóris - castração - na mulher.

Assim se encanta, deliciando-se com estas leituras. Assim vai a miúda balanta, enriquecendo o seu saber - conhecimento de toda a Natureza -, e a sua cultura, com o seu maravilhoso livrinho, grande legado do padre Italiano.

Entretanto, o cabo-verdiano Ramos recebe a notícia que seu filho, a estudar em Lisboa, vai ser incorporado num Centro de Instrução de Sargentos Milicianos do Exército Português. Luís Ramos, um pouco desorientado, abandona a Casa Brandoa, regressando a Bissau.

Pan Na Ufna vê-se a braços com grandes responsabilidades e toma a grande decisão de entrar na clandestinidade. Finalmente, chegou a hora! Prepara a fuga com sua família para o Cantanhês e ingressa na guerrilha. Pela calada da noite, a família ruma ao ilhéu de Infanda, onde as canoas esperam, para os transportar para lá do Cumbijã.

Uma nova vida começa!

Continua
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Notas de L.G.:

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2297: Notas de leitura (3): Biografia de Amílcar Cabral (João Tunes)

1. Mensagem do João Tunes, com data de 20 de Novembro:

Camaradas editores (1),

Se recomendação me é permitida, faço-a relativamente a um livro recentemente editado (O Fazedor de Utopias, uma biografia de Amílcar Cabral, António Tomás, Ed. Tinta da China) que não só é uma excelente biografia de Amílcar Cabral, nada no estilo do culto da personalidade, como um meio de, à distância, se reviver com espírito crítico o contexto em que decorreu a guerra na Guiné, completando-nos com o conhecimento que então não tínhamos – o do outro lado.

Sobre o conteúdo do livro, pronunciei-me aqui, no meu blogue Água Lisa (6): .

Saudações do João Tunes.


2. Água Lisa (6) > 11 de Novembro de 2007 > Cabral além do mito = Mais Cabral


Arrisco considerar o livro de António Tomás, jornalista e antropólogo angolano, dedicado a biografar (ou radiografar?) Amílcar Cabral (*) como a obra mais elucidativa para a compreensão serena e desmistificada dos movimentos de libertação africana que lutaram contra o domínio colonial português.

Contra a empresa da porfiada pesquisa de António Tomás contava-se à partida o risco de tocar, com um dedo que fosse, no mais intocável dos dirigentes anticoloniais, porque indiscutivelmente Cabral foi, entre todos, o mais capaz, o mais inteligente, o mais culto e o mais eficaz (no quadro das condições comparativamente mais difíceis) no abalo do domínio colonial português. E, ultrapassando o quadro desse império sob abalo, Amílcar foi um dos grandes dirigentes, talvez repartindo o pódio com Mandela, que mais contribuíram para pensar, dignificar e prestigiar África.

Se juntarmos o facto evidente que os sucessos do PAIGC foram determinantes para as independências de todas as colónias portuguesas (as que lutaram muito, as que lutaram pouco, as que lutaram bem, as que lutaram mal, até as que nada lutaram) e para o próprio pulverizar do regime da potência colonial, mais o martírio de Cabral, assassinado na véspera da celebração da sua vitória guerrilheira, juntando ao eco pungente das balas da brutalidade traiçoeira o benefício de se eximir a demonstrar os dotes de estadista na concretização dos seus projectos para o Estado Guiné-Cabo Verde (?), passando da utopia à realidade, temos o quadro acabado do mito quase perfeito.

A seu favor, António Tomás tinha, além do seu talento e da sua honestidade histórica, apenas três pequenos trunfos: ter nascido depois de Cabral ter desaparecido o que lhe permitia alguma impertinência para com o mito (assim fosse capaz, como foi, de se libertar do preito perante um ilustre mais velho), não ser guineense nem caboverdiano proporcionando-lhe um descentramento da idolatria nacionalista, estar folgado relativamente aos figurinos dos estereótipos ideológicos das abordagens da questão colonial (assumindo uma africanidade madura sem necessidade das âncoras exclamativas das charangas épico-libertadoras).

Todos os escolhos foram vencidos, com mérito, por António Tomás, resultando um quadro de desafio no pré-conhecimento de uma figura política e histórica marcante, pesem embora as deficiências impostas pelas largas lacunas nos suportes testemunhais e documentais que a investigação teve de defrontar. E, para além da aproximação à figura concreta de Cabral, ao seu percurso, obra e contradições, com genialidades e simplificações utópicas nunca fundamentadas (e posteriormente desmentidas nos resultados, nomeadamente a ideia base da unidade Guiné e Cabo Verde), a própria dicotomia colonial / anticolonial adquire uma invulgar transparência serena (do que beneficiam, inclusive, os portugueses).

Finalmente, duas notas de senão. Primeira, para o incompetente trabalho de revisão desta primeira edição (são frequentes as repetições seguidas de vocábulos). Segunda, na parte final do livro, António Tomás é arrastado por um erro da PIDE quando confunde, sobre a ofensiva final do PAIGC, Guidaje com Guileje (reproduzindo um conhecido erro do relatório da PIDE sobre os ataques contra as praças militares portuguesas), o que é mais um exemplo da necessidade permanente de cotejar os dados quando se consultam os arquivos da PIDE.

João Tunes


(*) O Fazedor de Utopias, uma biografia de Amílcar Cabral, António Tomás, Ed. Tinta da China.


3. Comentário de L.G.:

João:

O meu/nosso muito obrigado. Foi oportuníssima a tua chamada de atenção e recomendação. Ontem o livro foi oficialmente lançado. Já foi inserido no nosso blogue um texto sobre o livro e o autor. O teu comentário é importantíssimo por que é de quem já leu o livro e tem outra autoridade para fazer uma recensão crítica. Foi um prazer, de resto, o de revisitar o teu blogue e a tua escrita, sempre incisiva, viva e empolgante.

Recebe um Alfa Bravo deste teu camarada, amigo e admirador. Luís
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2292: Bibliografia de uma guerra (25): Amílcar Cabral, fazedor de utopias: uma biografia escrita pelo angolano António Tomás

Guiné 63/74 - P2296: Notas de leitura (2): Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (José Martins)

José Martins
ex-Fur Mil Trms
CCAÇ 5
Canjadude
1968/70

1. Não, não é engano. Estamos publicar este trabalho hoje, com alguma vergonha, mas cientes que o nosso camarigo José Martins nos desculpa este atraso que não é fruto de esquecimento ou desconsideração. As justificações agora não interessam.

A propósito do Livro Pami Na Dondo, a Guerrilheira, do nosso camarada Mário Fitas (1), o José Martins fez mais um dos seus trabalhos de pesquisa e elaborou uma lista de Unidades que estiveram em Cufar ou na sua Zona de Acção (ZA).

Assim, iremos publicar futuramente este extenso trabalho, em duas ou três partes, para não se tornar maçador a quem lê, mas que pode ser útil a quem gosta de guardar estes bocados de História. (CV)



Capa e contracapa do livro Pami Na Dondo A Guerrilheira


Dedicatória do autor MÁRIO VICENTE Fitas Ralhete, camarada que muito estimamos ter entre nós.



2. Passemos à mensagem do José Martins, de 10 de Julho de 2007

Caros Camaradas:

Como tinha prometido ao Mário Fitas, na altura em que troquei com ele algumas impressões sobre o livro, aqui vai o meu humilde comentário, ao qual acrescentei as Unidades e os homens que andaram por aquelas paragens.

Para o Virginio Briote, aquele abraço de parabéns, melhor, de parabéns estamos nós pelo cargo que agora ocupa no blogue. É uma mais valia ... sem direito a tributação em impostos.

Um abraço para todos

José Martins

PAMI NA DONDO – A GUERRILHEIRA,

É um livro da autoria do nosso camarada de armas e amigo Mário Vicente [Fitas Ralheta] apoiado, e há que louvar, pela Junta de Freguesia do Estoril, recordando-nos alguns dos muitos episódios vividos pelos militares que, sempre inconformados, partiram para a guerra em África.

Este romance, misto de ficção e realidade, que me parece muito mais realidade que ficção, coloca-nos como que perante um tríptico.

Um tríptico, porque no seu conjunto existem três partes, que em vez de serem distintas, se cruzam entre si, apresentando-nos a realidade do que se viveu antes e durante as campanhas da Guiné.

Pela voz do Alferes Palmeiro, durante aquelas longas conversas que se faziam, após o jantar, nas longas e intermináveis noites em que o silêncio envolvente convida à reflexão, é traçada em linhas gerais a evolução daquela terra formada por várias etnias, costumes e culturas, constituindo o quadro principal, isto é, um mosaico sobre o qual começa e acaba tudo aquilo que àquela terra se refere.

Numa das abas temos os gentios ou indígenas, como nos ensinaram na escola, que vão aceitando a presença dos Ramos (comerciantes) ou dos Francelino (missionários católicos) ou dos Lassas (soldados de Cufar), mas que não deixam de pensar em “Pátria Nossa”, como o Pan Na Ufna, que transmite à filha - Pami Na Dono - essa ideia que, um e outro, acabam por transformá-la na sua própria vivência, dedicando a sua vida a essa mesma causa.

No terceiro painel temos as nossas tropas. Mas a grande novidade, neste romance, é que os factos, que a nós se referem, são transportados para a tela pelos olhos olhos da guerrilheira, entretanto feita prisioneira.

Pami é feita prisioneira pelas nossas tropas, num golpe de mão sobre a base situada entre a bolanha de Cobumba e o rio Cumbijã. É ela que, observando tudo o que se passa à sua volta, identificando a forma de ser e de estar daqueles homens, que transporta para a tela a expressão do que foi a Companhia de Caçadores 763 e, por semelhança, todas aquelas que estiveram não só em Cufar (que se situa sensivelmente nas coordenadas 15º 07” Oeste e 14º 18” Norte), mas em todos os teatros de operações.

Fechemos as abas do tríptico sobre a tela principal!

Ficamos com a história da terra e dos homens que nela combateram, cada um lutando por aquele ideal que julgava ser o melhor!

Ficamos com o pensamento naquela terra que odiámos e que, após longos anos de separação, amamos sem limites.

José Martins
Odivelas, 5 de Julho de 2007
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Notas dos editores:

(1) Mário Fitas foi Fur Mil Op Esp, da CCAÇ 763 (Cufar 1965/66); é autor dos dois romances sobre a guerra da Guiné

Vd. posts de:

12 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2043: Bibliografia de uma guerra (22): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1893: Notícias de Cadique (Mário Fitas, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1884: Tabanca Grande (16): Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

Guiné 63/74 - P2295: Hino de Gandembel, cantado no almoço da mini-tertúlia de Matosinhos (A. Marques Lopes / Carlos Vinhal)

Almoço da mini-tertúlia de Matosinhos e o Hino de Gandembel interpretado pelo camarada Almeida, da CCAÇ 2317 (Gandembel/Balana, 1968/69).


Foto 1> O nosso camarada Almeida interpretando o Hino de Gandembel, acompanhado (à viola ou à guitarra?) pelo A. Marques Lopes. Ao meio, um espectador menos atento. Imperdoável.

Foto 2> Logo na primeira fila vêem-se o Zé Teixeira, o Álvaro Basto e o António Pimentel.

Fotos: © Xico Allen / A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados.

Texto de Carlos Vinhal:

De acordo com um comunicado oficial do nosso camarada A. Marques Lopes, no passado dia 21 de Novembro aconteceu mais um almoço, das quartas-feiras, da mini-tertúlia de Matosinhos (1). Marcaram presença o Álvaro Basto e seu pai, o António Pimentel, o Almeida (da CCAÇ 2317), o Marques Lopes, o Rocha, o Xico Allen e o Zé Teixeira.

Como é costume, aconteceu na Casa Teresa e não teria nada de especial, não fosse a presença do Almeida, que presenteou o comensais com uma espectacular interpretação, à capela, do Hino de Gandembel (*). Dentro de dias iremos inserir no You Tube e no nosso blogue uma outra versão, musicada, que o Idálio Reis nos mandou à dias, em CD-Rom, gravada pelo Almeida (que mora na Maia).

De tal forma o Almeida impressionou a assistência que foi logo, ali mesmo, combinada uma repetição da perfomance, na próxima quarta-feira, no mesmo local, desta feita com uma gravação ao vivo de imagem e som.

Não é demais lembrar que neste almoço é bem-vindo qualquer ex-combatente da Guiné, residente em qualquer parte do País.

O facto de se intitular mini-tertúlia de Matosinhos (**) não fecha o convívio a quem quiser participar nestes almoços, até porque a Dona Teresa e o marido recebem bem e agradecem a visita.

Em cima dois instantâneos do acontecimento com as legendas/comentários do co-editor.
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Notas do co-editor CV:

(*) Aqui podem ouvir a versão interpretada pelo nosso camarada Gabriel Gonçalves

(**) Vd. último Post sobre a Tertúlia de Matosinhos de 9 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2040: No almoço da tertúlia de Matosinhos com o António Batista, o nosso morto-vivo do Quirafo (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P2294: De Madina para Missirá... com amor: a mina da despedida (Luís Graça / Humberto Reis / Beja Santos)

1. Na véspera de sair do destacamento de Missirá, com os seus homens do Pel Caç Nat 52 - para ser colocado em Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70) - o Alf Mil Mário Beja Santos é vítima de uma mina anticarro, no percurso de regresso a casa, na estrada Finete-Missirá, perto de Canturé... Ele e mais duas secções (1)...

Não foi às cinco na tarde, como no trágico poema de Garcia Lorca - que vocês podem ler (e reler, de preferência em voz alta) no blogue do nosso amigo e camarada João Tunes, em post já antigo de 5 de Março de 2005, Água Lisa (2) - , mas já ao anoitecer, no Cuor, a norte do Rio Geba, na Guiné, às 18h, do dia 16 de Outubro de 1969...

Diz a lenda que a mina era para o Beja Santos e trazia um bilhete do Corco Só, o comandante da base do PAIGC em Madina/Belel... Nunca ninguém leu o alegado bilhete, pregado numa árvore e que se terá volatizado... Mas se o Corca Só fosse um verdadeiro cavalheiro e conhecesse os romances e/ou os filmes da série James Bond - o que era de todo improvável - teria escrito, ao melhor estilo da luta de libertação, o seguinte bilhete: De Madina para Missirá... com amor (1).

Como regra (de outro) da nossa tertúlia e do nosso blogue, não fazemos juízos de valor sobre o(s) comportamento(s) de cada de um de nós, enquanto militares ou combatentes. Um camarada não pode ser juiz de outro camarada. Limitamos-nos aqui a narrar, a reconstituir os factos, a colar os pedaços das nossas memórias fragmentadas (e ainda doridas)... Sobre as peripécias desse trágico dia, trocámos alguns e-mails:


1. Mensagem de L.G., para o Humberto Reis, com data de 16 de Novembro último:

A mina em que o caiu o Beja Santos, a 16 de Outubro de 1969, marcou-nos a todos. Foi à hora de jantar... Sei que organizámos uma coluna de socorro que atravessou a bolanha de Finete, o teu (e na altura meu) 2º Gr Comb da CCAÇ 12 , mais os gajos do Pel Rec Info... Não sei se o furriel dos morteiros também foi... Houve vários voluntários... Eu tenho ideia de ter saído à noite convosco, mas já não posso jurar...

A tua foto [do Unimog destruído] (1) só poderia sido tirada no dia seguinte, por razões óbvias: estás tu e o Carlão, mais um dos nossos nharros... Sei que a viatura ficou armadilhada... Era um 404 ou ou 411 ? Faço sempre confusão... O Beja Santos diz que era um burrinho, e pela foto parece que era...

Ele omite a coluna de socorro que partiu de Bambadinca nessa noite, depois do jantar... Acho que ficámos lá, em Finete, e voltámos no dia seguinte... Os feridos só podem ter sido evacuados na manhã seguinte... Diz-me de que é que te lembras... O Tony também deve saber... Vou tentar despertar-lhe a memória... Ao Fernando Calado também é altura de lhe abrir o bico, até por que ele é citado pelo Beja Santos... Fico a aguardar o teu depoimento, e já agora o do Levezinho e do Calado... A propósito, republiquei a carta de Bissau ao Tony (que eu não sei se ele alguma vez leu, no blogue)(2).


2. Resposta, com data de hoje, do Humberto Reis

Luís: De facto foi o 2º Gr Comb [da CCAÇ 12] que atravessou a bolanha de Finete à noite, quando se soube do que tinha acontecido. Aliás lembro-me de alguém, se calhar até fui eu, ter feito uma hora antes, um comentário do género "o Beja Santos é maluco", pois ia sair de Bambadinca para Missirá já de noite.

Terá ido alguém da milícia de Finete connosco até ao local do acidente e ficámos lá toda a noite a dar de beber aos mosquitos e regressámos de manhã. O condutor morreu durante a noite em Finete.

Já não me lembro como é que a viatura veio para Finete. Julgo que era um 411, o burrinho, o mais pequeno que tinha motor diesel (o grande, o 404, era a gasolina).

Julgo que o furriel dos morteiros, o Lopes de Angola, não foi. Ele foi quando num domingo à noite, estávamos a jantar na messe e pensámos que a ponte estava a ser atacada, mas afinal era Amedalai (Já aqui contei esse episódio em que fomos vários vestidos à civil, que era como estávamos a jantar, e as viaturas com os condutores e algumas praças apareceram automaticamente à porta da messe, já prontas a marchar sem ninguém os ter chamado. A isso chama(va)-se ser camarada).

Aquele abraço

Humberto Reis


3. Comentário de L.G.:

Humberto: Eu sei que isto é a pequena história, a petite histoire, como dizem os franceses... E que os historiadores, oficiais ou oficiosos, irão ler, por cima da burra, com condescendência, sobranceiria, desprezo, as coisas que hoje escrevemos... É a história com h pequena, mas é nossa...

Dizes bem: isso era ser camarada, sem mais adjectivos, sem pompa nem circunstância... Fizemos isso [, nós, a CCAÇ 12 e o Pel Rec Info, ] pelo Beja Santos e pelos seus nharros, como ele e o Pel Caç Nat 52 fariam o mesmo por nós e pelos nossos nharros...

A aparente omissão desta coluna (imediata) de socorro, na narrativa do Beja Santos (1), é natural e compreensível: a nossa memória é selectiva, de resto o Mário não tinha cabeça para tudo o mais que se passou a jusante e a montante da explosão da mina...

Obrigado, mais uma vez, pelo teu oportuníssimo esclarecimento... Parte da tua estória bate certa com a minha...

Um abração. Luís


4. Comentário (final) Beja Santos:

Assunto - Repor a verdade!

Luís e Humberto: No episódio da mina de Canturé refiro explicitamente que recebi uma tocante solidariedade de Bambadinca, o Cunha Ribeiro foi determinante para pôr tudo em movimento, parti imediatamentre com o David Payne para Finete, vocês vieram depois, com o Reis sapador.

A viatura era um 404, indiscutivelmente, vinha carregado com toneladas de material, felizmente, senão a desgraça teria sido muito maior.

Sim, fui maluco e irresponsável, saindo àquelas horas para Missirá. Essa culpa ninguém ma tira!

Um abraço, Mário.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

(2) Vd. post de 14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)