Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Guiné 63/74 - P4722: Depois da guerra, o stresse... da paz (4): Os dois piores anos da minha vida (João Tunes)
Na foto, o João Tunes e o Leopoldo, ou melhor, o João Tunes "transmitindo a Leopoldo Amado aquilo que, nestas situações, pode fazer de melhor um amigo e admirador: absoluta confiança no reconhecimento dos seus esforçados méritos"... O João é assim, um amigo exigente e frontal, mas sempre solidário...
Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem, com data de 15 do corrente, enviada pelo João Tunes, membro da nossa tertúlia, desde Setembro de 2005 (é, portanto, um histórico). É um colaborador assíduo do nosso blogue, sobretudo até 2007. Costumo apresentá-lo como ex-Alf Mil Trms, tendo andado, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Canchungo (ou Teixeira Pinto), Catió, Guileje, Bissau...Está, todos os dias, mesmo em tempo de pandemia de Gripe A (H1N1) no seu posto de trabalho, o blogue Água Lisa (6).
Caro Luís: Há quanto tempo não conversamos. Mas cá volto com candidatura a publicação no blogue, se o "politicamente correcto" editorial vigente assim o permitir.
Eu acredito e aceito tudo, excepto bruxas que não duvido que existem. Como sabes, para mim e quanto a mim, os meus dois anos na Guiné foram os piores da minha vida. Infelizmente, não apareceu ninguém para se oferecer ir no meu lugar, à minha volta a malta fardada só tinha olhos para ver se tinha prémio de ir para Timor, Macau, Cabo Verde ou o jack pot de não ir para lado algum, e se a canhota tinha de fumegar então fosse em Angola ou Moçambique, Guiné niqueles.
Mas lá, na Guiné, convivi com camaradas que acabaram por gostar, uns tantos até meteram o "chico". E havia, pelo menos, três maneiras de se meter o "chico":
(i) o propriamente dito, isto é, seguir a via profissional das armas e barões assinalados;
(ii) outra que era a assimilação do gosto pela guerra, descobrindo um guerreiro adormecido dentro de si, mas que implicava, explícita ou implicitamente, a justificação histórica e política da presença colonial portuguesa imposta pela força;
(iii) finalmente, a via da cafrealização, adoptando como ronco os costumes de fulas, balantas, mandingas ou manjacos, em carnavais de europeus travestidos de africanos, estereotipando as bajudas de mama rija como objectos eróticos e como se a sexualidade assim obtida fosse resultado do encontro de duas livres escolhas, transformar em prazer estético e folclórico o pôr-do-sol, o poilão, os macacos e os jacarés, uma cafrealização que era uma transmutação aparentemente adaptativa mas que mais não era que a afirmação, por via do poder, de uma pretensa superioridade eurocêntrica através do talento de se ser capaz de imitar o preto (sem que o inverso se pudesse verificar em contra-prova no mesmo plano).
Tudo isso aceitei e aceito. Porque aprendi na guerra que ela é a melhor e mais incontrolável forma de revelar um homem e precisamente por isso tudo se deve fazer para que um homem, todos os homens, não se revelem numa guerra pois as surpresas podem assustar.
Tento não me guiar pelo politicamente correcto de que falas e que não estou certo de sobre isso ter o mesmo entendimento que tu (depois do tanto que leio no blogue, fico com a ideia que o politicamente correcto ou dominante é ter gostado de lá ter estado, que devíamos lá ter estado, foram tempos porreiros, só não ganhámos a guerra porque ela não chegou ao fim) mas não faço questão de eventuais desencontros sobre os termos. A minha ternura solidária para com os meus camaradas da Guiné ensina-me a olhar todos por igual, pois cada homem é o seu mundo. Eu procuro aprender com o meu, os dos outros são gestões privadas em que não me meto. Só quero que sejam todos muito felizes.
Em homenagem aos vários diferentes, proponho a transcrição de uma peça histórica, um memorando enviado em 1960 por Amílcar Cabral e os seus companheiros ao governo de Salazar sobre o futuro da Guiné. Esse documento não teve resposta. E dessa falta de resposta nasceram todas as nossas viagens fardadas até à Guiné, para gosto de uns e desgosto de outros.
Com o habitual e forte abraço, segue o texto, Memorandum enviado ao governo português pelo PAIGC em 1960 (Poste de 9 de Julho de 2009, de Diana Andringa, no blogue Caminhos da Memória, de que o João Tunes é colaborador). [Devido à extensão do documento, não o vou publicar hoje, reservo-o para um próximo poste; fico, em todo o caso, o link, permitindo o acesso imediato ao histórico texto do PAIGC, tão pouco ou nada conhecido entre nós].
2. Comentário de L.G.:
Pois é, João, há quanto tempo não conversamos!... Dantes, eu ainda tinha o bom hábito de te telefonar de vez em quando. Agora falta-me o tempo, e sobretudo o (pre)texto... Mas não vale a pena arranjar desculpas nem alibis.
Pois é, o blogue aproximou-nos desde meados de 2005 e, às vezes, tem-nos separado... Deixa-me dizer que tenho saudades tuas. Da tua poderosa escrita, da tua frontalidade, da tua coerência de pensamento... Agradeço-te muito teres respondido, desta vez, à minha provocação, de resto canhestra ou ambivalente: como não vejo o mundo a preto e negro, e queria ter sol na eira e chuva no nabal, incentivei os tabanqueiros a falar da experiência da Guiné como um todo, embora com um enfoque especial na guerra... Mas também do regresso a casa, logo da paz, e do necessário coping da transição entre a guerra e a paz (sobretudo interior)(**)...
Há sempre que contar, do outro lado da blogosfera, com grandes e talentosas polemistas como tu... Digo do outro lado da blogosfera, como se tu não pertencesses, de pleno direito e de corpo inteiro, à nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como preferires). Mas, como eu também gosto de te dizer, tu tens aqui o estatuto do outlier (em termos estatísticos), ou melhor, do marginal-secante: intersectas dois sistemas de acção, tens o teu próprio blogue, colaboras noutros blogues, tens as tuas outras causas e bandeiras...
Sei que, para além do teu Benfica, não juraste fidelidade a mais ninguém... O nosso blogue (que tu continuas a insistir em chamar blogue do Luís Graça) não tem nem pode ter a veleidade de ser uma tribuna de quem quer que seja, muito menos o porta-estandarte de causas, por muito justas, boas ou necessárias que elas sejam: eu, por exemplo, não publico aqui tudo o que me apetece, da minha lavra e autoria...
Como gostas de dizer, somos amigos mas não tu não és nem nunca fostes um yes sayer... Não temos, felizmente, nenhum acordo de concordância sobre questões política ou ideologicamente (in)correctas. O único acordo (tácito) é o que enferma do espírito com que nasceu o blogue: podemos discordar um(uns) do(s) outro(s), mas respeitamo-nos... Sempre!
Sei que achas que eu abri demais o flanco... e que muito provavelmente deveria ser muito mais directivo e exclusivo como blogmaster. Continuo a pensar que a vida é a arte do possível... e que o nosso maior denominador comum é o facto de termos estado na Guiné, como miliatres, entre 1963 e 1974.
Como poeta, acredito na utopia (o lugar perfeito e ao mesmo tempo que não existe). É a única concessão que faço à ideologia... Sempre fui e continuo a ser um desalinhado, à esquerda... Igrejas, só tive uma, a que me baptizou... Aos quinze, tornei-me orfão, incapaz de me colar aos ismos... Faço um esforço por pensar por mim, e ser independente (que veleidade!), mesmo quando a independência é politicamente inoportuna, incorrecta, socialmente não desejável, etc.
Tudo isto para te dizer, meu caro João, que não sei responder à tua pergunta (tramada!), sobre o politicamente (in)correcto... Não sou capaz de raciocionar nesses termos... Mais importante: adorei o teu regresso ao nosso convívio, mesmo sabendo que não és um tipo fácil (isto é, que não faz fretes a ninguém). A tua lucidez a mim faz-me bem, a outros pode fazer comichão... Je m'en fous...
Posso às vezes discordar do teu estilo comunicacional, mas tu fazes-nos falta... Sei que a nossa Tabanca Grande pode ser, às vezes, demasiado granel e intelectualmete pouco estimulante para pessoas como tu ... Mas, acredita, ela é também o micro-retrato sócio-antropológico do teu e do meu país, um país que, afinal, não escolhemos, mas que amamos, cada um à nossa maneira. Não é o Portugal que tu ou eu ou todos nós gostaríamos de ter... Da minha parte, não tenho ideias definitivas sobre o Portugal que qostaria de ter, só para mim (que egoísta!). E mesmo que as tivesse, não as exporia aqui. Por pudor...
Por outro lado, sei da tua ternura pelos camaradas da Guiné, mesmo quando não estás intelectualmente sintonizado com eles... Tal como os irmãos, os camaradas (na guerra) não se escolhem...
Claro que vou publicar o teu escrito, como sempre o fiz... (Por uma fracção de segundo, fiquei triste só de pensar que tu podias pensar que eu não to publicaria....). Mas sou eu que te levo pela mão, desculpa a metáfora: serei eu o teu editor... É uma honrosa tarefa que fiz questão de ser eu a desempenhar... Até por que te devia a gentileza de um comentário.
Recebe um grande Alfa Bravo de um camarada que te estima e tem apreço pela tua coragem, física e moral... (Não preciso de evocar outros predicados teus para justicar o ABraço). Luís
PS - Não devia, mas não resisto a, comentar o termo cafrealização, que acho uma delícia... Ao fim e ao cabo faz parte do glosssário do meu ofício, de antropólogo e sociólogo... Logo, sinto-me em casa, para fazer uma abordagem sócio-antropológica do conceito ou da ideia...
Há séculos que somos cafres, o que estamos cafrealizados... No Séc. XVI, os nossos homens, os tetravós dos nossos tetravós, andavam embarcados, na aventura do ouro da Mina, da pimenta da Índia, do imaginário do mar sem fim... Abriam a autoestrada da globalização, eram os primeiros europeus a chegar ao longínquo oriente, depois de baterem, milha a milha, toda a costa de África... Éramos um milhão e picos... Tínhamos perdido mais de um terço da população com a peste negra de 1348-1353... Quem cá ficou para cuidar das nossas mulheres e das nossas crianças e cultivar os nossos campos, a partir de meados do Séc. XV e sobretudo depois da euforia das índias e dos brasis ? ... O preto da Guiné (Senegâmbia)... 15 % da população de Lisboa era de origem africana, em pleno do Séc. XVI... A nossa pool genética é também bérbere (e não árabe), judia, africana... Também somos cafres, meu camarada!
Diz o dicionário: (i) Cafre = indivíduo pertencente aos Cafres, povo banto da Cafraria, na África meridional, o qual vive sobretudo da agricultura e da caça e cuja designação tem origem da palavra árabe cafir, que significa «infiel»; por extensão, os africanos subsaharianos, os pretos...
(ii) Cafreal = relativo a negro africano (v.g., frango à cafreal, ou de cafriela)...
(iii) cafrealização (não vem no dicionário) = tornar-se cafre, viver como um cafre, adoptar os usos e costumes dos cafres...
Na Guiné, durante a guerra colonial, vimos de tudo um pouco... Soldados, milicianos, oficiais do quadro cafrealizaram-se... Conhecemos camaradas (oficiais do quadro, a milicianos, soldados do contingente geral) que compraram bajudas para poderem climatizar os seus pesadelos à noite... Ou simplesmente como investimento, obrigando-as a prostituirem-se para os seus camaradas...
Conhecemos homens que se apaixonaram e tiveram belas estórias de amor com a negrinha da Guiné, retintamente preta ou da cor do ébano... Comerciantes brancos (poucos) que fizeram a sua vida em África, constituiram família (numerosa), mas que nunca nos mostraram a sua esposa, fula, mandinga, papel... que fazia um deliciosos chabéu de peixe ou carne, ou o famoso frango à cafreal...
Conheci um, em Bambadinca, cujo casa frequentei... Estava na Guiné desde os 17 anos, tinha um bando de filhos, nunca vi a cara da esposa, que era a cozinheira (não sei se tinha mais do que uma...).
A história do nosso alfero cafrealizado é também a nossa história, a metáfora de um povo que, para sobreviver, soube plasmar-se, adaptar-se, aculturar-se, cafrealizar-se (um termo pejorativo, usado pela elite ocidental para classificar comportamentos regressivos dos civilizados em África: o antropólogo, o missionário, o administrador, o soldado, o comerciante...).
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes do João Tunes, publicados na I e II Séries do nosso blogue:
11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) (João Tunes)
15 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXC: João Tunes, o novo tertuliano
25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)
27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes
4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)
12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)
17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)
17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXVI: E os patriotas guineenses, torturados e assassinados em nome de Portugal ? (João Tunes)
24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCI: Todos camaradas, mas uns mais do que outros ? A propósito do assassínio de Amílcar Cabral (João Tunes)
24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCII: O limpo e o sujo, nós e os pides (João Tunes)
24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: Fazer a catarse antes de vestir a toga de juiz (João Tunes)
27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCV: O 'turra' Luandino Vieira recusa Prémio Camões (João Tunes)
30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXVII: A 'legenda' do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!
2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou
3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)
16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1037: Não cuspir no rancho, mas RDM... nunca mais ! (João Tunes)
9 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)
20 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1090: Op Mar Verde: O cabo enfermeiro paraquedista que foi no Grupo Sierra, do Capitão Morais e do Tenente Januário (João Tunes)
4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1245: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)
4 de Dezembro de 2006 >Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)
18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1441: Questões politicamente (in)correctas (20): Sempe camaradas, nunca censores (João Tunes)
27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
22 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1619: Questões politicamente (in)correctas (27): Teixeira Pinto, a Coroa e a República (João Tunes)
22 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1621: Questões politicamente (in)correctas (28): Salazar, um dos últimos reis de Portugal (David Guimarães / João Tunes),
24 de Maio de 2007 >Guiné 63/74 - P1783: Tese de doutoramento de Leopoldo Amado: Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (João Tunes)
3 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1916: Álbum das Glórias (16): O Doutor Leopoldo Amado... ou a segunda derrota de Spínola (João Tunes)
30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2008: Dando a mão à palmatória (1): A fotografia dos saudosos majores Pereira da Silva, Passos Ramos e Osório (João Tunes / Editores)
3 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2325: Massacre do Chão Manjaco: Todos iguais na morte, mas nos relatórios uns mais iguais do que outros (João Tunes)
10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2516: Blogue-fora-nada: O melhor de...(4): Pedido de desculpas às Senhoras do MNF muitos anos depois (João Tunes, oficial e cavalheiro)
1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3008: O caso do embaixador de Portugal em Bissau (4): Não ao linchamento popular... (João Tunes / J. Mexia Alves)
2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3962: Nuvens negras sobre Bissau (5): Um adeus a Nino (João Tunes)
(**) Vd. postes de:
15 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4690: Depois da guerra, o stresse... da paz (1): Em Binta, vivi uma experiência única (José Eduardo Oliveira)
17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4698: Depois da guerra, o stresse... da paz(2): Não foi o melhor tempo da minha vida... (João Bonifácio)
17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4704: Depois da guerra, o stresse... da paz (3): José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil, CCAÇ 675, Binta, 1965/66
terça-feira, 21 de julho de 2009
Guiné 64/74 - P4721: Documentos (8): ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica”, Páginas 0 a 4 (Magalhães Ribeiro)
1. Do arquivo pessoal do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974.
Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
20 de Maio de 2009 > Guiné 64/74 - P4721: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (5): O nº 48, Dezembro de 1972, dedicado à 'visita da OUA às regiões libertadas no sul'
Guiné 63/74 - P4720: Histórias de José Marques Ferreira (4): Uma estranha emboscada, CCAÇ 462, 1963/65
Guiné 63/74 - P4719: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (17): Segundo ataque ao Olossato
Caros editores,
Não sei quem está de serviço, mas sei que de certeza merecia estar de férias. Aqui vai mais um episódio da história da CCaç 2402, para ser lida por aqueles que não estão na praia a tomar banho.
Um abraço a todos,
Raul Albino
CCaç 2402 - Segundo Ataque ao Olossato
Edifício da administração da companhia destacada no Olossato (nesta altura a CCaç 2402)
Relato sintético do ataque:
A 18 de Janeiro de 1970, pelas 17,00 horas, deu-se o segundo ataque ao aquartelamento do Olossato, efectuado por um numeroso grupo inimigo.
Mais uma vez o nosso Capitão Vargas Cardoso não estava presente, encontrando-se em Bissau, possivelmente a tratar de assuntos da Companhia ou em consulta externa. Estas coincidências não podiam ser acidentais. Era mais que certo que o inimigo tinha informadores bem colocados que transmitiam essas ausências do Comandante da Companhia, procurando o inimigo desencadear os seus ataques nesses períodos, esperando encontrar a guarnição enfraquecida ou pelo menos descoordenada. Nas ausências do nosso Capitão, ficava no comando o alferes mais antigo, nesse dia estava o Alferes Brito a assumir essa função.
O inimigo flagelou o quartel e povoação durante cerca de 50 minutos, utilizando fogo de Canhão S/R, Morteiros 82 e 60, Metralhadora Pesada, Lança Granadas Foguete e armas ligeiras automáticas, das direcções de Mabar, Cansambo e Maca.
As nossas tropas reagiram prontamente pelo fogo de Morteiro 81 e 60, Lança Granadas Foguete e Metralhadora Breda, bem como pela manobra de um grupo de milícias que saiu na perseguição do inimigo. Face a esta reacção o inimigo não conseguiu obter grandes êxitos, embora devido à surpresa ainda tivesse incendiado duas moranças da povoação, ferindo 7 nativos, ficando um deles em estado grave. O inimigo conseguiu ainda raptar 3 homens da população que se encontravam em trabalhos agrícolas.
O aquartelamento sofreu pequenos danos materiais.
O que este ataque teve de original, digno de referência:
Neste ataque ao Olossato deu-se um episódio interessante que vale a pena contar.
Já depois do ataque ter passado, entra-me espavorido no quarto o Alf Brito. Gritava-me ele:
- Anda depressa que está na sala do soldado uma granada de morteiro 82 que não rebentou. Como tu és especialista em minas e armadilhas, vai lá tu resolver o assunto!
Bom, lá fui com ele ver o que se passava e fiquei pasmado quando me deparei com uma granada de morteiro 82, em cima da mesa de ping-pong, com o focinho – parte da frente da granada que contem o detonador – partido, podendo rebentar a qualquer momento.
A espoleta poderia reagir ao mais pequeno toque, rebentando, ou pelo contrário, ter ficado irremediavelmente danificada. Esta granada partiu o focinho porque atingiu o telhado da sala do soldado, que era feito em telha de Marselha. A telha não teve resistência suficiente para provocar a detonação, pelo que a granada fez um buraco no tecto, partiu a parte dianteira e caiu desamparada em cima da mesa de ping-pong.
Mesa de ping-pong onde caiu a granada que não explodiu, danificando ligeiramente o tampo
Vendo aquilo virei-me para o meu colega Brito, que estava um pouco nervoso pela responsabilidade de estar na situação de comandante do quartel, e disse-lhe:
- Olha, eu como especialista de explosivos, fui instruído para em situações de material instável – como era o caso desta granada – esse material deva ser destruído no próprio local, não devendo ser removido por se desconhecer em que estado ficou a munição. Isso, de facto, é uma incumbência minha ou de qualquer outro especialista desta área, mas como não é isso que com certeza tu queres, pois a sala do soldado ia pelos ares, o que tu pretendes é que a granada vá lá para fora para ser então neutralizada, não é?
Tinha-se reunido à nossa volta um conjunto de mirones, militares e nativos, a observarem a situação, cheios de curiosidade temerária. Então continuei:
- Levar a granada para a rua, é uma coisa que não requer especialização e tu próprio o podias fazer. Basta pegar nela ao colo, fazer votos para que não nos rebente nos braços e levá-la lá para fora para a rua, para o especialista tratar do assunto.
O nervosismo dele aumentou, especialmente devido à plateia que ali se reuniu a escutar o nosso diálogo. Aí eu acrescentei:
- OK! Eu levo a granada, mas afasta-te com toda essa gente, porque se a granada explodir que provoque o mínimo de baixas.
Cada vez mais nervoso, ia-me dizendo a tudo que sim. Afastou o pessoal que nos rodeava e qual não foi o meu espanto quando eu, já com a granada no colo, me apercebi que o meu colega Brito não se descolava de mim um segundo, acompanhando-me sempre até ao local onde depositei a granada, alheio aos meus conselhos para se afastar.
Em suma, se a granada explodisse morríamos os dois inutilmente, porque ele, possivelmente depois do que eu lhe disse, não estava bem com a consciência se me deixasse correr aquele risco sozinho.
Devo confessar que eu, no lugar dele, tinha-me afastado mesmo.
2. Comentário de CV
Raul, tenho a certeza absoluta que farias exactamente o mesmo que fez o teu camarada Brito. A solidariedade em tempo de guerra não se compadece com as regras de segurança.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4345: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (16): Emboscada nocturna no Olossato
Guiné 63/74 - P4718: Efemérides (23): Em 20 de Julho de 1969, eu estava no Uíge em pleno oceano, a caminho de Farim... (Carlos Silva, BCAÇ 2879)
Partida, no T/T Uíge, do pessoal do BCAÇ 2879 e do BCAV 2876, com destino à Guiné... Nesse dia a Apolo 11 ia a caminho da Lua (um pouco mais longe que a distância entre Lisboa e Bissau, cerca de 400 mil Km, em números redondos...), aonde chegaria (e alunaria) a 20, domingo... com regresso à Terra, a 24, quinta-feira...
O T/T Uíge, com o pessoal do Batalhão dos Cobras (onde ia incluído o nosso camarada e amigo Carlos Silva) levou um pouco mais de tempo que a Apolo 11... Chegou a Bissau e desembarcou, na sexta-feira, dia 25, diz a história do BCAÇ 2879. Não sei se, ao longo da viagem, os nossos camaradas se aperceberam do feito, que era para a humanidade, este "passo de gigante", parafraseando a célebre frase mstrong, as primeiras palavars do primeiro homem a pôr a pata na lua ("That's one small step for man; one giant leap for mankind": Como há alguém chamou a atenção, o astronauta queria dizer: a small step for a man, um pequeno passo para um homem, ele, Neil Armstrong, mas um salto de gigante para o Homem, a humanidade, a espécie humana: one giant leap for mankind... Tal como os portugueses, há mais de 500 anos, dobrando o Bojador e indo muito para além da dor, do sangue, suor e lágrimas dos pequenos/grandes heróis anónimos que foram os nossos antepassados). (LG)
Foto: © Carlos Silva (2009). Direitos reservados (Com a devida vénia...)
Navio Uíge> c. 20 de Julho de 1969 > De pé, da esquerda para a direita: Alf Sampaio, Cap Vasco Lourenço, Alf Carmo Ferreira, da CCaç 2549; Cap Covas de Lima, da CCaç 2547; de cócoras, da esquerda para a direita: Alf João Casanova e Alf Gil André, da CCaç 2548; Alf Carvalho, da CCaç 2549; e Alf João Rebelo, da CCaç 2548. Foto do Alf Gil André.
Foto (e legenda): © Carlos Silva (2009). Direitos reservados (Com a devida vénia...)
1. Resposta do Carlos Silva à pergunta, "Camaradas, onde é que vocês estavam em 20 de Julho de 1969 ?" (**)... O Carlos é o autor do sítio Guerra na Guiné 63/74, por Carlos Silva... (A página mais completa sobre as unidades que passaram pela Região de Farim, nomeadamente entre 1969 e 1971). Foi Fur Mil na CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71)...
É também conhecido como o Régulo de Farim, um grande amigo da Guiné e dos guineenses. Advogado, é um dos fundadores e dirigentes, com o Carlos Fortunato, da Ajuda Amiga - Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento. (**)
Luís: Aqui vai a resposta à tua pergunta:
Lisboa, sábado, 19-07-69
Embarque do Bat Cav 2876 e do meu Bat Caç 2879
Domingo, 20-07-69, Uíge, em pleno Oceano
Uma das fotos do VL [Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549,] também está no último livro dele, Interior da Revolução.
Também podes ver no Blogue, num dos Postes do Bat Caç 2879, [o Batalhão dos Cobras] (**)
Um abraço
Carlos Silva
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Notas de L.G.:
(*) Vd. nota histórica sobre a Gare Marítima Rocha Conde de Óbidos, "o nosso pórtico de entrada na Guiné", no sítio do IPPAR - Instituto Português doPatrimónio Arquitectónico:
"Projectada a partir de 1934 e construída entre 1945 e 1948, a Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos insere-se no programa de modernização dos serviços do Porto de Lisboa.
"Concebida numa estrutura de betão armado, apresenta um primeiro andar reservado aos passageiros e o piso térreo destinado aos serviços do cais. Composta por dois corpos, a Gare apresenta um vestíbulo principal e uma ampla nave. O terraço-varanda prolonga-se na direcção nascente para além das linhas do edifício.
"Como acontecera com a Gare Marítima de Alcântara, também aqui Pardal Monteiro chamou José de Almada Negreiros para animar com pinturas murais as paredes do do grande vestíbulo. Modernamente desenhada, esta Gare apresenta fachadas rasgadas por envidraçados pontuados com pequeno óculos. Aqui as linhas curvas conjugam-se em harmonia com os valores ortogonais de estruturas numa volumetria proporcionada e com sentido de escala. Sandra Vaz Costa, 2001" (...)
(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)
Último poste da série Efemérides: 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)
(***) Vd. postes de:
8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2417: Tabanca Grande (51): Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem 1969/71) Guiné 63/74 - P1976: Tabanca Grande (27): Carlos Silva, mais um 'apanhado do clima' (CCAÇ 2548, Jumbembem)
Vd. também poste de 23 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4402: Convívios (133): BCAÇ 2879 e Outras Unidades (Farim, 1969/71), convivem em Castelo Branco, 30 de Maio (Carlos Silva)
(****) Vd. postes da série História do BCAÇ 28769, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras:
15 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2440: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes para Farim: O Batalhão dos Cobras (1) (Carlos Silva)
20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2464: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (2) (Carlos Silva)
24 de Janeiro>Guiné 63/74 - P2477: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim : O Batalhão dos Cobras (3) (Carlos Silva)
30 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2491: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (4) (Carlos Silva)
1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2496: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (5) (Carlos Silva)
10 de Fevereiro > Guiné 63/74 - P2520: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (6) (Carlos Silva)
11 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2525: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (7) (Carlos Silva)
Guiné 63/74 - P4717: Efemérides (22): 20 de Julho de 1969, domingo, dia de ronco com manga de chocolate... (José Teixeira, CCAÇ 2381, Buba)
1. Mensagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70 (*):
Luís: Boa noite. Aguçaste-me o apetite para ir consultar o meu diário e deu nisto.
Efectivamente, foi dia 'di ronco, cum manga di sakalata'.
Quanto ao pato que originou este 'encontro', viu-o passar à distância. Outros se banquetearam.
O Texto do encontro com o colega, já passou no blogue e a parte descrita no Diário também, nas primeira série. A ligação ao dia em que o homem pisou a lua, só hoje constatei.
Abraço fraterno .
Resposta à pergunta 'Camarada, onde estavas no dia em que o primeiro homem pisou a Lua ?' (**)
Do meu Diário > Buba, 22 de Julho de 1969 (*)
Domingo, dia 20, saí para o mato pela tarde a patrulhar a estrada nova e emboscar o IN em seguida. De certeza que fomos seguidos pelo IN, que nos deixou montar a emboscada e abriu fogo de seguida. A nossa reacção foi rápida e os indivíduos calaram-se. Uma granada caiu bem perto de mim mas não feriu ninguém, aliás, nenhum dos meus camaradas foi ferido pelo IN. Apenas o homem do morteiro 60 se feriu na mão com o morteiro. Retirámos silenciosamente sem mais novidades e chegámos a Buba pelas 20 horas onde toda a gente esperava ordens para avançar em nosso auxílio.
Este pequeno ataque não foi pera doce para mim. Quando notei que o camarada do morteiro estava ferido(Tinha a mão rasgada por não ter utilizado o prato e o morteiro ao disparar enterrou-se na terra escorregando-lhe pela mão), passei mensagem que não havia feridos graves e dispus-me a tratá-lo para evitar a hemorragia.
O Comandante na sua pressa de se afastar da zona de perigo, mandou retirar e quando nos apercebemos estávamos a 300/400 metros dos companheiros de luta, com o IN na retaguarda o qual também não se tinha apercebido da nossa situação. Iniciámos uma fuga a alta velocidade. Valeu-os o colega do lança-rockets que se apercebeu e fez passar algumas granadas por cima de nós obrigando o IN a manter-se em defesa.
Tarde de Domingo com sorte...
Trinta e sete anos depois do regresso reencontrei o camarada Nuno Rosa. Para além da grande alegria pelo encontro, selada com um forte e comovido “aperta costelas”, surgiram logo de imediato as estórias do costume. Lembras-te daquele ataque … e daquele… das formigas que nos acordaram de noite … das malditas abelhas… etc, etc.
Algumas das estórias já estavam no sótão da memória, provavelmente cheias de pó. Outras, continuam activas a bailar no consciente, só que há pormenores que nos escaparam. Assim as estórias tomam outra dimensão, talvez mais realista e sobretudo, após este desfiar de flashes por vezes bem dolorosos, acabam por se deslocarem para o sótão, até ao descanso eterno do “guerreiro”.
Estávamos em Buba, no fim do Verão de 1969. O Joaquim Agostinho, com 26 anos devorava etapas na Volta A Portugal. Era o ciclista prodígio, o fora de série que tinha sido descoberto em Torres Vedras. Como o grosso do pessoal da CCaç 2381 era Ribatejano, não se falava de outra coisa na caserna. [Vd. vídeo no You Tube]
Era domingo, mais propriamente dia 20 de Julho. Logo após o almoço, depois de um sábado passado em patrulhamento para os lados da bolanha dos passarinhos, surge nova ordem de mobilizar para um patrulhamento para os lados de Sinchã Cherno e emboscar algures na estrada que se andava a construir até Aldeia Formosa (Quebo), muito perto do local onde cerca de um mês antes tínhamos sofrido uma emboscada, junto a um campo de minas, uma das quais roubou a perna ao Miguel. Este, logo após o acalmar do fogo levantou-se e ... descobriu que estávamos a pisar um campo, onde foram levantadas 27 minas A/P e localizados buracos, tipo campas abertas com cruzes e com papéis escritos do género: "Tugas é isto que vos espera”; “Ida para a vossa terra”, etc.
Houve uma, a primeira. A que ele descobriu, roubou-lhe uma perna. Ali muito pertinho da “curva do Vilaça” ( Quem andou por lá na época, sabe de que curva estou a falar)
Bolsa de enfermeiro às costas, cantil cheio. Os efeitos da velhice não só dava, em resultado das experiências vividas, para um redobrar de atenção e um poder de reacção e desenrasque maior, como também, em certas ocasiões para um aventureirismo exagerado com graves riscos para a pele.
Naquele dia, partimos à desportiva, bem dispostos, bem bebidos, quando muito, chateados pelo quebrar da rotina, pois em Portugal ao domingo não se trabalha.
No primeiro local seguro (?) que encontrámos, montámos tenda, quer dizer, a emboscada, e preparámo-nos para ficar ali o resto da tarde. De repente ouve-se um tiro muito perto e o ruído de algo a cair de uma árvore. Como velhinhos ficámos quietos na expectativa, apenas redobrámos de atenção, e eis que surge um dos furriéis com um magestático pato bravo, com seis/sete quilos, que o mesmo tinha abatido a tiro de G3.
A isto chama-se brincar em serviço, pelo que, levantámos de imediato a emboscada e partimos para outro sítio algures mais à frente.
Sem saber que estávamos a cair para a boca do lobo, lá nos colocámos de novo em posição de combate. Agora sim, um pouco abandalhados. O homem que levava o prato do morteiro 60 não ficou junto ao homem que o levava e o municiador do lança-roquetes trocou o lugar por mim. O Nuno com o seu colete de roquetes estava preocupado, pois faltava-lhe o municiador, o qual também trazia uma fornada de granadas. Ao comentar a sua preocupação eu respondi-lhe:
- Não te preocupes que se os turras atacarem eu minicio-te.
O IN que estava emboscado um pouco à frente, deixou-nos pousar e aproximou-se com cuidado (Creio mesmo que se avançássemos mais uns cem metros, tínhamos caído no seu campo de mira).
De repente o ambiente aqueceu com o IN a cair em cima de nós com toda o seu potencial de fogo, ao qual se segui a nossa resposta rápida. Uma das primeiras roquetadas IN foi rebentar numa árvore por cima da minha cabeça. Os seus estilhaços barreram as folhas das árvores e este vosso camarada procurou de imediato um lugar mais seguro. O roqueteiro bem olhou para trás, à minha procura, mas eu tinha voado para junto de uma árvore, mais segura.
Acabado o desafio, um autêntico Porto/ Benfica de que resultou um empate, ambos os contendores pensaram em fugir, o que foi a minha sorte.
Chega-me a informação de que há um ferido. Logo me aproximo e verifico que o homem do morteiro não hesitou em enviar umas morteiradas, colocando o cano do morteiro na terra mole, de que resultou ter ficado com um rasgão na mão, pois o morteiro ao enterrar-se pelo impacto, pela terra dentro deixou marcas. Passo a palavra de que há um ferido ligeiro e logo ali me disponho a fazer o tratamento como era o meu dever, ficando connosco outro camarada, com G3, mas sem munições.
O alferes é que não esteve com meias medidas e decidiu retirar de imediato. Acabado o tratamento, logo verifico que estávamos sozinhos. Duas hipóteses, ou ficar quietos, aguardar algum tempo e depois regressar a Buba, ou correr atrás dos camaradas que iam a 300/400 metros algures na mata!
Como já era fim de tarde, resolvemos procurar seguir os colegas, que entretanto, para mais rapidamente se afastarem, seguiam já na estrada que se avistava ao longe. Até porque ouvíamos ruídos e vozes por perto (penso que era o IN a afastar-se, caso contrário podiam ter feito ronco e apanhar-nos à mão ou enviar-nos para casa no sobretudo de madeira).
O nosso roqueteiro, o Nuno Rosa, relembrou-me agora, que na altura teve um pressentimento de que estava a ser seguido e olhou para trás. Três dos seus camaradas vinham lá longe. Então ajoelhou, colocou as últimas granadas, pois, como bom ex-comando, nunca gastava todas as munições que levava, e, bateu a mata que ficava à nossa retaguarda, impedindo o IN de qualquer veleidade.
Os outros camaradas continuaram apressadamente o seu caminho com o alferes à frente e o Furriel a sonhar com o arroz de pato, que nunca mais largou.
Assim ficaram quatro homens desarmados, no meio da mata; um morteiro sem granadas, um roqueteiro sem roquetes , um atirador sem munições e um enfermeiro sem arma (há muito que a dera a guardar ao quarteleiro) num fim de tarde domingo que toda a gente queria calmo e pacífico.
Quando em 2005 tive oportunidade de voltar à Guiné, estive muito próximo deste lugar, mas confesso que nada me veio à memória.
Obrigado, Nuno, por teres partilhado esta aventura comigo.
Quarenta anos depois, verifico que nesse dia o mundo esteve em festa. Uma festa bem diferente da que eu vivi, que nem pato tive para comemorar e só muito mais tarde soube que os americanos tinham imitado os portugueses de antanho e como, para descobrir já não havia mares, foram aos ares e encontraram a Lua.
Zé Teixeira
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.
Vd. último poste do Zé Teixeira > 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)
(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)
Guiné 63/74 - P4716: Em busca de... (80): CCP 121 - Apelo vindo do Brasil (Cassiano Rocha da Costa, natural de Castro Daire)
Guiné 63/74 – P4715: Agenda Cultural (22): “Os tempos de guerra-De Abrantes à Guiné", 23 de Julho, Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes
Camaradas,
No próximo dia 23 de Julho (quinta Feira), pelas 21 horas, vai ter lugar na Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes, a apresentação do meu livro “Os Tempos de Guerra - De Abrantes à Guiné”.
Ficam assim convidados os tertulianos que quiserem estar presentes.
Para mais esclarecimentos o meu e-mail é:
Um Abraço,
Manuel Traquina
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(*) Vd. poste anterior, desta série em:
15 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 – P4687: Agenda Cultural (21): Djumbai Storias di Mindjeris, 19 de Julho, no Anteneu Comercial de Lisboa (Instituto Marquês Valle Flor)
Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo
Querido Pepito, queridos amigos da AD e da Guiné-Bissau, irmãos e irmãs: para quê mais palavras, se esta imagem vale por mil palavras ? Metaforicamente falando, está aqui a tua Guiné, a vossa Guiné, a nossa Guiné, a aprender a andar, a cair e a pôr-se de pé, como jovem nação que é... É a minha leitura, ou sugestão de leitura, se mo permitem: sem cinismos, sem paternalismos, com a com + paixão com que eu, à distância de milhares de quilómetros, vos vejo, e às vossas boas obras... Força, amiga, força, irmã!... Que o caminho se faz caminhando, parafraseando o grande poeta espanhol António Machado ("Caminante no hay camino, se hace camino al andar", poema popularizado pelo cantor catalão Joan Manel Serrat) (*).
Numa sociedade patriarcal e machista, como a sociedade fula do tempo da guerra colonial, seria de todo improvável poder encontrar uma aprendiz de biciclista...
Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento. Direitos reservados (Com a devida vénia...)
Guiné > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guileje > 3 de Março de 2008 > No regresso a Bissau, o Nuno Rubim, o capitão fula, aqui de costas, contempla pela última vez o antigo aquartelamento e parte mantenhas com habitantes locais (que agora residem em Mejo)... Dois deles deslocavam-se de bicicleta, um meio de transporte, ainda hoje, um luxo que não está ao alcance da maioria da população...
Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.
1. O nosso irmãozimnho de Fajonquito continua a deliciar-nos com o seu talento de escritor e a frescura das suas memórias de infância e adolescência, passadas na zona leste da Guiné-Bissau, junto à fronteira com o Senegal, em contacto com os diabos brancos (entre meados de 1960 e 1974, em Cambaju e Fajonquito) ...
Há dias o Cherno Baldé mandou-nos mais dois textos, datados de Novembro de 2006, de que publicamos hoje o último, o Velho Marabu de Sumbundo... No próximo texto, escrito recentemente, ele fala-nos das suas aventuras de menino e moço em Fajonquito (1970-1975
O VELHO MARABU DE SUMBUNDO... ou a história de uma revelação fantástica
por Cherno Baldé
No período decorrido entre os anos de 1972/75, vivendo em Fajonquito para onde mudámos no ano de 1968 na sequência da transferência do meu pai (**), acompanhava este com frequência, em deslocações às aldeias vizinhas, durante os fins-de-semana.
Nessa altura, o meu pai tinha sempre consigo uma bicicleta como meio de transporte para esses casos. Eram, na maioria dos casos, bicicletas usadas que ele raramente montava, não só pela idade que não permitia muito esforço físico, mas também a necessidade ou a obrigatoriedade de falar e cumprimentar cada pessoa com que nos cruzávamos. Eram mantenhas prolongadas que nunca mais acabavam, durante as quais cada um tentava sondar o outro sobre assuntos dos mais variados de seu interesse, coisas de adultos no mundo rural de Fuladu de então. Eu, ao lado, ouvia e ouvia, era quase sempre o mesmo discurso que, na minha opinião de criança apressada, não servia para nada.
Não foi uma única vez, foram várias vezes que ele me levou consigo. Nunca percebi bem, porque razão nos levava consigo nessas andanças. A bicicleta e eu não tínhamos quase nenhuma utilidade prática, éramos simples objectos de decoração da sua importância cuja presença nem sequer era notada. Ele raramente falava comigo, limitando-se a monologar consigo mesmo durante a caminhada, e as pessoas com que nos cruzávamos nunca me dirigiam a fala sequer, salvo quando nos cruzávamos com um grupo de mulheres mais tagarelas. Elas sim, elas sempre se dirigiam a mim depois de cumprimentar o meu pai, perguntando da minha mãe ou dos meus irmãos.
Na sociedade Fula, as mulheres estavam mais próximas das crianças e formavam assim um grupo que raramente penetrava no espaço fechado e reservado dos homens. Altivos e soberbos, estes, aparentemente, não tinham em muita conta as mulheres, as quais pertenciam, juntamente com as crianças não circuncisas, ao mundo dos não iniciados e que, pelo seu comportamento leviano e infantil, só mereciam indiferença.
Uma vez, acompanhei-o à aldeia mandinga de Sumbundo, distante cerca de 13 km de Fajonquito, a nordeste]. O trajecto que levava para lá chegar passava por várias aldeias, Canhámina, Sintchã Coli, Djambur, Fanca, Sare Wali e Walikunda, dependendo das voltas que quisesse fazer.
Daquela vez foi com alguma surpresa, para mim, que entrámos na aldeia de Sumbundo. A primeira vista, parecia diferente das outras aldeias vizinhas, era uma aldeia enorme e densamente povoada, e ao contrário das aldeias dos Fulas, a presença de gado bovino nas imediações era diminuta, quase nula, mas em contrapartida haviam muitas cabras e burros à solta e à volta das casas, pastando ou amarrados junto das suas casotas de palha.
O meu pai era muito conhecido na zona devido às suas actividades comerciais e também pelas ligações antigas que a nossa família tinha com aquela gente. Por isso, passou ainda por todas as moranças da aldeia antes de se dirigir a casa do velho Marabu (***). Quando entrámos, o velho estava sentado ao pé da cama na pele de um carneiro. Dispensaram vários minutos para os habituais salamaleques de velhos conhecidos. Passaram depois para outros temas. Eu assistia silencioso sem compreender o sentido da conversa, sentado ao lado do meu pai, absorto nas minhas cogitações. O barulho das crianças e os gritos das mulheres ocupadas nos seus afazeres domésticos entrava casa adentro sem incomodar todavia os dois homens concentrados nos seus assuntos.
Finalmente, o meu pai, visivelmente satisfeito, e voltando a si, olhou longamente para mim, o que ele fazia raramente, percebi então que a consulta tinha chegado ao fim, todavia dirigindo-se ao velhote, informou-o que eu estava na escola a aprender a leitura e a escrita dos brancos mas que ele não estava sossegado pois queria que eu fosse, também, à nossa escola tradicional a fim de aprender o Alcorão.
O velho Marabu percebeu a aflição (o dilema) do meu pai e também aquilo que ele queria dizer naquelas poucas palavras e olhou meigamente para mim e concentrou-se nos seus instrumentos. Tirou um papel branco duma sacola aos seus pés, meteu-o numa pasta que tinha a seu lado e embrulhando-o com um pano pô-lo em cima da pele de carneiro. Pegou no seu rosário e durante alguns minutos, com o olhar posto no vazio e manobrando o rosário com os dedos da mão direita, fazia as contas deste deslizar uma a uma, murmurando algumas palavras ininteligíveis.
Sem dar muita importância à questão inicialmente posta, disse ao meu pai que ambos eram conciliáveis, isto é, uma e outra coisa eram boas, pois tanto fazia que eu fosse à escola europeia ou à corânica, ou ainda às duas ao mesmo tempo, estava predestinado a sair-me bem. Só mais tarde, reflectindo no assunto, vim a perceber a importância de que revestiram aqueles poucos minutos para o futuro da minha vida.
As palavras de um reputado Marabu tinham um peso enorme nas decisões dos homens dessa época. Olhando nos olhos do meu pai de forma prolongada, acrescentou ainda que eu era pessoa dotada de uma “cabeça larga” e faria 77 anos de vida nesta terra. O significado de “cabeça larga” entre nós podia ser interpretado de variadas formas e estava ligado a conotações tanto positivas como negativas. O “cabeça larga” podia ser uma pessoa que tinha acesso ao mundo invisível, que podia ver aquilo a que aos seres normais estava vedado ou ter acesso a acontecimentos futuros, a fenómenos que ainda não tinham acontecido, mas também podia ser associado ao domínio da feitiçaria e consumo da carne humana. Ah, o homem se desacreditou completamente, pensei comigo.
Esta revelação a que o velho Marabu parecia dar maior relevância na sua tentativa de vasculhar o meu futuro não foi bem recebida por meu pai, pois este deu sinais em como que já queria se despedir. Antes de dar a mão a meu pai, o Marabu desembrulhou calmamente a pasta que continha o papel branco, retirou de lá a folha e deitou-a em cima da pele de carneiro à sua frente, como que para dar força às suas palavras. Curiosamente, vimos que o papel que antes era completamente branco e limpo, agora, inexplicavelmente, estava toda manchada de tinta, representando uma curiosa grafia em letras árabes num dos lados.
O meu pai não disse mais nada, levantou-se acto contínuo e disse-me para o anteceder na saída. Ele era assim mesmo, ouvia aquilo que lhe apetecia ouvir e detestava o resto. Aquela manobra de prestidigitação do velho parece que não tinha despertado nenhuma curiosidade nele, ou porque lhe era por demais familiar ou porque não queria ouvir detalhes que pudessem ofuscar e/ou desfazer a magia da energia positiva do momento.
Já passavam das cinco horas da tarde quando nos pusemos a caminho de casa. Esta era sempre a melhor parte, para mim, pois no regresso vínhamos sempre montados na bicicleta e agora não havia muita conversa no caminho, cumprimentava as pessoas sem descer da bicicleta e às vezes nem sequer parava pois já o sol estava a esconder-se lá para oeste e não havia tempo a perder, ele pedalava, pedalava, e eu lá atrás gozava com o prazer da corrida e da brisa que soprava no meu rosto de criança feliz escondida no grande bubu do meu pai.
No entanto, para dissipar qualquer dúvida não resisti à tentação de perguntar-lhe sobre o significado das palavras do velho Marabu, aliás, queria deixar bem claro a meu pai que o velho se tinha enganado pois que eu era completamente cego, quer dizer não era nenhum “cabeça larga” como tinha sugerido o Marabu. Mas, quando o fiz, ele limitou-se a sossegar-me dizendo que aquele velho mandinga já não estava bem da bola por isso não valia a pena se martirizar com suas alucinações de velhice.
Mais tarde, na minha vida de homem já maduro, esta consulta trivial sem importância voltaria várias vezes na minha cabeça, pensando nas palavras que ouvi e naquela magia ou arte fenomenal que se me deu assistir e ver com os meus olhos de criança. E, sempre que depois me acontecia por premonição ver numa visão ou em sonhos factos que depois se confirmavam passado algum tempo, lembrava-me das palavras do velho Marabu que me atribuía capacidades extraordinárias e questiono a mim mesmo se não seriam estas visões que o Marabu tinha vislumbrado através do seu rosário mágico.
Os 77 anos de vida que ele me deu ainda estão por se confirmar, mas já constituíram para mim uma importante fonte de confiança na minha longevidade. Todavia, se antes me parecia ser uma boa idade para morrer, com o tempo e a pressão da idade, estou tentado a mudar de opinião e, penso, que o velho Marabu talvez, se tenha equivocado, afinal, 77 anos é tão pouco tempo para viver.
Voltando à questão da cabeça larga, no dia 17 de Dezembro de 2006, passados mais de 20 anos de separação, veio visitar-me um antigo colega de infância, que actualmente reside na cidade senegalesa de Ziguinchor, de nome Algássimo Baldé. Na nossa conversa amena, na presença da minha esposa, Geralda, relembrou-me duas coisas que teria dito a seu respeito e que na sua opinião se tinham confirmado.
- Primeiro, disse-me ele, você me tinha dito que mais tarde eu seria calvo, estou aqui hoje à tua frente para te mostrar a minha cabeça completamente calva. Segundo, você me tinha dito que eu era pessoa muito trabalhadora mas que tinha pouca sorte, infelizmente, isto também se revelou verdade, trago aqui comigo um extracto de um jornal que conta a história de como os rebeldes daquela zona nos assaltaram e me roubaram numa única noite todos os bens que tinha acumulado durante mais de 20 anos de trabalho árduo e meticuloso. Depois de passar por ser um dos mais ricos da zona da baixa Casamança (área de Ziguinchor), agora sou obrigado a trabalhar de motorista de táxi para dar sustento a minha família. E durante todo o percurso que fizemos, eu e mais outros prisioneiros, levando em cima das nossas cabeças o espólio desses bandidos, não pensei em outra coisa que suas palavras. Parecia ouvir o martelamento das tuas palavras como se fosse ontem “Você é pessoa muito trabalhadora mas tem pouca sorte na vida”.
Eu nem podia acreditar naquilo que ouvia, e nem sequer me lembrava de ter feito aquelas vaticinações incríveis que ele tinha gravado na sua cabeça para sempre. Seriam os sinais evidentes da luz que o Marabu tinha visto na minha infância? Não sei dizer.
Bissau, Novembro de 2006
[Fixação / revisão de texto / bold a cores: L.G.]
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Notas de L.G:.
(*) Vd. poste de 26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3243: Blogpoesia (26): 35 anos de Guiné-Bissau: A minha contribuição para a tua festa, meu irmão, minha irmã (Luís Graça)
(**) Vd. postes da série Memórias do Chico, menino e moço:
19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio
30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói
6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968
13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda
Vd. também postes de:
18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)
(***) Marabu: sacerdote muçulmano, que leva uma vista ascética, e é venerado, em vida e depois da morte, como um homem sábio e santo...