quarta-feira, 22 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...



Angola > Leste > O alf mil paraquedista Jaime Silva, do BCP 21 (1970/72), em 1970,  a norte do Rio Cassai.


 Angola >  Norte - Montes Mil e Vinte > 26 de junho de 1970 > Heli SA-330 Puma na  recuperação do 3º Pel da 1ª CCP /BCP 21 (1970/72)... Nesta operação morreu um soldado do meu pelotão, 
o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020. 


Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III  no apoio ao 3º pelotão,  1ª CCP /  BCP 21.

Fotos (e legendas) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Jaime Silva (ou, de seu nome completo, Jaime Bonifácio Marques da Silva) tem cerca  de 8 dezenas de referências no nosso blogue. No passado dia 7 aceitou participar numa conversa sobre a sua  experiência como antigo combatente (*).  O evento realizou-se no ISCSP - Instituto de Ciências Sociais e Políticas, e teve a presença (inicial) do reitor da Universidade de Lisboa. 

Contrariamente aos restantes convidados (Luís Graça, Hélder Sousa e Marta Martins Silva, jornaalista), o Jaime Silva fez questão de ler uma comunicação previamente escrita.  Mandou-nos agora esse texto, fazendo questão de o partilhar com a Tabanca Grande, a que ele pertence desde 31 de janeiro de 2014 (**). 

Acrescente-se o seguinte à laia de nota biográfica: foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72), tem uma cruz de guerra por feitos em combate, viveu em Angola até 1974, é professor de educção física reformado, foi autarca em Fafe, em dois mandatos, nos aos 90.  com o pelouro de desporto e cultura, vive atualmente na Lourinhã, donde é natural. 



O segredo de ... (43):  Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCPC 21 (Angola, 1970/72): na guerra não valia tudo (***)


ISCSP/ULisboa,  7 maio 2014


1. Começo por agradecer, à prof associada Sónia Frias, do ISCP/UL, o honroso convite para estar presente neste evento, que é também comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril.

E quero, em especial, sublinhar e saudar o facto de a a guerra colonial ser finalmente, discutido na academia e ser tema associado e visível nos festejos do 25 de abril.

2. Introdução

Ao longo da minha vida, por inúmeras vezes, fui convidado para dar testemunho sobre a minha participação e vivência na guerra colonial. No entanto, é a primeira vez, com este objetivo, que me dirijo a uma comunidade académica e, por esse motivo, decidi escrever um texto com o objetivo de enquadrar o meu percurso de vida - a minha circunstância, até chegar às portas da guerra em Angola, onde, durante dois anos e meio, comandei, como alferes miliciano, um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas e sempre no “gastalho”. 

O texto tem um caracter autobiográfico em que relato alguns dos momentos mais marcantes que vivi na guerra.

3. A minha circunstância:

- Este ano de 2024 Portugal comemora os 50 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974 e o final da guerra colonial que rebentou há 63 anos no Norte de Angola, a 16 de março 1961.

o Jornal Público, na edição de 28 de abril, editou um artigo da jornalista Teresa de Sousa, que destaca a intervenção do deputado do Livre, Rui Tavares, na Assembleia da República em dia 25 de abril.

“Rui Tavares recordou-nos a todos de uma forma pessoal e simples o que era o Portugal bafiento, repressivo, mesquinho, paupérrimo da ditadura.

(…) A pobreza era descarada e generalizada. O obscurantismo
era imposto pela censura e pela ideologia. A violência escondida. A liberdade individual era nula. O medo era a arma mais poderosa.”


- Voltando à minha circunstância, eu nasci em 1946 e cresci neste Portugal de “pobreza descarada e generalizada” , numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho do Lourinhã.

Nesse tempo, uma grande percentagem das crianças não terminavam a 4.ª classe (vindo, os rapazes, a concluí-la, mais tarde, na tropa) e, muito menos, prosseguiam os estudos

- Calhou-me, na minha sorte, ter uma catequista, esposa do agrário para quem o meu pai trabalhava de sol a sol,  que, depois de me apresentar ao pároco da freguesia, convenceu os meus pais a deixarem-me ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50.

Tinha doze anos quando transpus o portão de acesso a uma “casa” desconhecida. Nos primeiros tempos senti-me completamente fechado, desenraizado e perdido, ambiente bem retratado por Vergílio Ferreira na obra "Manhã Submersa" e, depois, no filme de Laura António.

4. A entrada no serviço militar

Em 1968, decidi sair do seminário e, quando em junho daquele ano, com 22 anos, transponho a porta de saída, só tinha uma certeza (ainda não era senhor de decidir sobre o rumo a dar à minha vida):  tinha de cumprir o serviço militar obrigatório, imediatamente.

Por via da formação do seminário acedo a frequentar o COM – Curso de Oficiais Milicianos.

Logo em setembro (de 1968)  recebo a convocatória para me apresentar em Santarém, para a inspeção militar, cujo resultado foi ficar “Apurado para todo o serviço militar” e com guia de marcha para me apresentar no quartel em Mafra, na EPI (Escola Prática de Infantaria), para frequentar o 1.º Ciclo do COM.

Entretanto, no final de outubro de 1968 sou desafiado, por um amigo, para desertar para França, "a salto". Como era preciso pagar 10 contos ao “passador” (ceca de 3800 euros, a preços de hoje) e,  como eu não os tinha, fiquei entregue à minha sorte! Ir para a guerra.

5. Selecionado para os comandos,  decido pelos Paraquedistas.

 Gorada a hipótese de desertar, a 8 de janeiro de 1969 dou entrada na EPI, onde completo o 1.º Ciclo – a recruta e, depois, o 2.º Ciclo – na especialidade de atirador de infantaria.

Em junho de 1969, termino o 2.º ciclo do COM e, antes de recebermos a guia de marcha para nos apresentarmos nas novas unidades militares, fui selecionado, com mais de uma dezena de cadetes, para me apresentar no Centro de Instrução de Comandos, em Lamego, tropa que se supunha ser só constituída para voluntários.

Fiquei siderado! Nunca me tinha oferecido para nada na tropa, nem tentado destacar-me, em coisa nenhuma durante a instrução.

No final, o grupo selecionado junta-se e há um que toma a palavra para nos desafiar:

–  Nós já não conseguimos escapar à mobilização para a guerra, por isso, é melhor oferecermo-nos para os Paraquedistas.

 E enumerou, a favor da opção – Paraquedistas  – um conjunto de fatores muito mais favoráveis em relação à nossa ida para os comandos em Lamego. 

Além do ordenado e outros fatores, o principal argumento foi: como os paraquedistas pertenciam à Força Aérea, isso permitia que tivessemos sempre o apoio imediato dos Helicópteros no transporte para as operações no mato e melhor apoio nos momentos nos dos combates mais duros e nas
evacuações dos feridos e mortos. 

E, no final, remata. 

 Além disso, ainda, vamos ter o prazer de saltar da porta de um avião em andamento, o que será fantástico”!.. 

Vim a verificar, mais tarde, que ele tinha razão.

E foi, para não ir para os comandos, que em julho de 1969, um grupo de cinco cadetes, vindos da EPI, deram entrada no RCP – Regimento de Caçadores Paraquedistas, em Tancos, para iniciarem, durante seis meses, um novo ciclo de instrução militar, sempre com um único objetivo: treinar para a guerra... “Instrução dura, combate fácil” – era o lema!

Terminado este ciclo de especialidade, fomos todos mobilizados para a guerra e no dia 8 de fevereiro de 1970 embarcámos para Angola, para o BCP 21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas),  os três primeiros alferes milicianos.

A partir dessa data e até 30 de julho de 1972 estive sempre no “gastalho” - em guerra comigo, contra o inimigo e nunca mais a esqueci. 

Foi uma experiência brutal, atroz e, em parte,  irresolúvel, para quem regia a sua vida por princípios humanistas e cristãos: apontar para matar, para eu próprio e os meus camaradas que comandava não morrêssemos, foi uma experiência brutal e marcou-me vivamente.

Por isso, nunca esqueci:

(i) Eu não esqueci..., a 29 de maio de 1970, o meu batismo de fogo.

Foi na primeira operação de combate em que tive a responsabilidade de comandar o meu pelotão. No decorrer da operação vi o cabo Onofre correr na direção de um guerrilheiro armado e capturá-lo à mão. Este indicou-nos um trilho que nos levou ao local onde, mais tarde, encontrámos diverso material de guerra, material médico e escolar e outras provisões. Mas antes, ao aproximarmo-nos do objetivo, somos travados e atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.

Um mundo surreal!

(ii) Eu não esqueci...  o primeiro estropiado do meu Pelotão, o  soldado Santos, que pisou uma mina antipessoal, minutos depois dos helicópteros nos terem lançado no alto de um morro na zona de Santa Eulália. 

Foi uma visão aterradora dos efeitos da guerra. Foi a primeira vez que vi a perna de um homem esfacelada.

A perna tinha desaparecido abaixo do joelho, o enfermeiro injetou-o com morfina, um camarada levou-o às costas morro acima e, eu, enquanto contactava o helicóptero, via rádio, para o evacuar, olhava, incrédulo, para o que restava da tíbia e do perónio, cujo sangue jorrava e deixava um rasto vermelho no capim verde. 

Vinte minutos depois, empurramos o Santos para dentro do Héli e, lembro-me, de lhe gritar: 

 Aguenta, já te safaste! 

O Santos continuava a gritar: 

 Ai! Minha mãe que eu vou morrer! 

O Santos safou-se.

Nesse momento, lembrei-me do meu camarada Peralta que nos motivou a vir para os paraquedistas. Estava bem informado e tinha razão.

A mesma sorte não teve o meu primo Arsénio, soldado pertencente a uma companhia do exército,  que, na mesma zona, pisou, também, uma mina. Eram cerca das dez horas da manhã quando se deu o acidente e só, as quatro da tarde, teve o helicóptero para o evacuar para o hospital, onde veio a morrer!

(iii) Eu não esqueci... o único morto do meu pelotão,  o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020. 

O meu grupo foi transportados num helicóptero SA 330 e, simultaneamente, com a nossa aproximação ao objetivo, dois aviões de combate - T6 da FA (Força Aérea), lançavam quatro bombas de napalm sobre a base guerrilheira. 

De seguida, saltámos do helicóptero e corremos para a base guerrilheira, onde fomos recebidos com um grande tiroteio e, pouco depois, o Ramos apanha com um tiro certeiro nas carótidas que lhe ceifou a vida.

(iv) Eu não esqueci.... os dois feridos do pelotão: o 2.º sargento Galvão, a 10 de agosto 1970 na região da serra Vamba;  e o soldado Lamas,  a 6 de novembro de 1970, na região do rio Cassai, no Leste.

(v) Eu não esqueci... o cabo Lourenço, do 4.º Pelotão e meu amigo.

Morreu em combate na última operação e já com a sua comissão de serviço no final.

(vi)  Eu não esqueci...
a operação em que decidi não atacar. Na guerra não vale tudo.

Lembro-me, bem, dessa operação no Leste, a norte do rio Cassai.

Progredimos durante dois dias e, na madrugada do segundo, descobrimos um trilho. Enquanto estava a avaliar a situação, vejo um grande grupo de mulheres e crianças que vinham do rio com as cabaças cheias de água à cabeça, filhos às costas, dirigindo-se na direção do seu acampamento.

O soldado que estava na minha frente dispara uma rajada, sem consequências. Mando parar o fogo. As mulheres atiram os utensílios ao chão, agarram nos filhos espavoridas de medo, correm na direção da base e gritam numa grande algazarra para alertar os guerrilheiros: "tropa, tropa!"...

Os guerrilheiros disparam algumas rajadas, mas como entre nós e os guerrilheiros estavam as mulheres e crianças, decidi não assaltara base, evitando uma mortandade evidente que ocorreria se ordenasse o ataque.

De seguida, montei uma emboscada no local que, pelas características do terreno e pela minha experiência, previa que seria o ponto de fuga dos guerrilheiros. Passados pouco tempo, vejo vir, na nossa direção, um guerrilheiro armado que protegia um grupo com cerca de dez crianças que, em fila, fugiam do local.

Pelas crianças, dei ordens para ninguém abrir fogo e deixar o grupo prosseguir em paz.

(vii) Eu não esqueci...
a última estadia no Leste com a minha companhia, decorria o mês de abril de 1972, quando o meu pelotão foi destacado para assaltar uma base do MPLA. 

A PIDE entregou- nos um guia, pertencente aos Flexas, que se entregou às nossas tropas denunciando o local onde, antes, com os seus camaradas, tinha combatido contra a tropa portuguesa. Levou-nos direitinho à base dos ex-camaradas e, do combate, resultou a morte de cinco guerrilheiros e mais alguns feridos e a captura de várias armas.

(viii) E eu não esqueci, ainda.... no mês de abril, os breves momentos em que assisto ao interrogatório de um guerrilheiro capturado por um agente da PIDE/DGS. 

Foi em Léua, no Leste de Angola. A meio da tarde aterraram, no nosso destacamento, quatro helicópteros, donde saiu um agente da PIDE e o guerrilheiro. A chegada dos Hélis tinha como objetivo transportar um grupo de combate para assaltar uma base guerrilheira que, segundo o pide, o guerrilheiro iria confessar e dizer onde se situava.

 Foi destacado o meu pelotão para a assalto e, a determinada altura, o comandante da esquadra e Helicópteros chama a atenção para o adiantado da hora e que, dificilmente haveria luz do dia para efetuar o percurso de ida e volta.

Esperámos, mas do pide não havia novidades. O meu comandante ordena-me, então, que vá perguntar ao agente para saber se ainda demorava muito o interrogatório. Chego ao local e transmito a mensagem ao pide que, face ao silêncio absoluto do guerrilheiro, ainda não tinha conseguido “sacar-lhe” nenhuma informação e, incomodado pelo seu fracasso, julguei, diz-me: 

 Espere aí, sr. alferes, ele vai já bufar tudo. 

De seguida pergunta-lhe:

– Como te chamas? 

Um silêncio absoluto por parte do guerrilheiro e, ato contínuo, o agente rapa de um pau – tipo taco de basebol – e acerta-lhe com força no nariz e pergunta: 

 Como te chamas?

Depois, face ao silêncio daquele homem, repete o mesmo golpe nos joelhos, nas canelas e nos tornozelos e, eu, perplexo saio dali, imediatamente. Felizmente para o guerrilheiro – homem de grande coragem - que não traiu os seus camaradas - e para o meu grupo de combate, a operação foi abortada. Para nós, foi menos uma no pelo!

Nunca esqueci, apesar da Guerra, que não valia tudo! 

Durante os dois anos e meio da minha comissão de serviço obrigatório, nunca o meu grupo de combate cometeu alguma atrocidade perante a população civil capturada, violou mulheres ou matou qualquer guerrilheiro gratuitamente, fora, evidentemente, nas situações de confronto direto entre nós: em que sobrevive quem dispara primeiro!

Mas eu vi!.. Eu presenciei! Nem sempre alguns dos meus camaradas procederam, assim!

Em julho sai da tropa, passei á “peluda”. Depois da tropa, licenciei-me em Educação Física no INEF e fui em 1978, ainda, o primeiro licenciado da minha aldeia!

Neste ano que se comemora o 25 de abril e, simultaneamente,  faço 52 anos que terminei a minha comissão em Angola - a guerra continua! Não consegui escapar! Foi o que me calhou na rifa da vida.

Se em setembro de 1968 tivesse os 10 contos para pagar ao passador e desertar para França, a minha vida teria sido diferente?

Talvez, não sei!

Obrigado

Lourinhã, Seixal,  5 de maio de 2024

(Revisão / fixação de texto: LG)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25485: Os 50 anos do 25 de Abril (17) : Conversas sobre "Portugal-África. Guerra Colonial. Madrinhas de Guerra", com Marta Martins Silva e 3 antigos combatentes, Hélder Sousa, Luís Graça e Jaime Silva. 3ª feira, dia 7 de maio, no ISCSP-ULisboa, Campus Universitário do Alto da Ajuda

Guiné 61/74 - P25548: Banco do Afeto contra a Solidão (29): Hospitalizado em Beja, o luso-italiano Lino Bicari, de 88 anos, antigo missionário do PIME (Bafatá, 1967-1971), professor do nosso Cherno Baldé, grande amigo e companheiro do nosso capelão Arsénio Puim


Guiné-Bissau > s/d (c. 1975/80) > Bafatá > O professor Lino Bicari e um grupo de alunos que praticavam futebol. Ele foi professor tam
bém do nosso amigo Cherno Baldé,  quando este frequentou o Ciclo Preparatorio e o Liceu Hoji-Ya-Henda,  em Bafatá, de 1975 a 1979  (*), Fotograma de vídeo da RTP, que passou no Telejornal, no dia 17 de abril de 2024. (Com a devida vénia...)


Região Autónoma dos Açores > Ilha de São Miguel >  Maio de 2019  > O reencontro de dois amigos da Guiné, ao fim de 48 anos: à esquerda,  o ex-missionário italiano Lino Bicari (casado com uma portuguesa, vivendo hoje no Alvito, no Alentejo);  e, à direita, o Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), expulso depois do exército e do CTGI, em maio de 1971 (deixou o sacerdócio em finais dos anos 70; e dedicou-se à profissão de enfermagem).

Lino Bicari  é da mesma idade: nasceu em 1935, na Sicília, Itália. Missionário do PIME - Pontifício Instituto para as Missões Exteriores,  chegou à Guiné em maio de 1967.  Além da teologia, tinha formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e em etnologia. 

Assumiu logo o cargo de Diretor do Internato da Missão Católica em Bafatá. (Será responsável pela formação dos professores das escolas das missões de Catió, Bubaque, Biombo, Comura, Suzana, Farim, Bambadinca e Bafatá.)

(...) "Nesta primeira passagem pela Guiné, estabelece uma relação próxima com o capelão militar de Bambadinca, o Padre Arsénio Puim, que acabará por ser preso e expulso do Exército pelas suas posições de denúncia da guerra, nomeadamente numa homilia realizada em 1971 que marcara Bicari de forma perene." (...)

Volta à Itália em 1971, desvincula-se do PIME e, já depois da declaração unilateral de independência da Guiné-Bissai, em 24 de setembro de 1973, adere ao PAIGC (em cujas fileiras milita até 1987). Tornou-se responsável pelo Hospital Regional do Boké, na Guiné-Conacri,  e, além da saúde, trabalhou também na área da educação  e da cultura. Radicou-s em Portugal em 1990. Afirmou-se sempre como um militante político, não guerrilheiro.

Foto (e legenda): © Arsénio Puim (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Por mensagem de anteontem, 20 do corrente, às 23:26, o nosso grão-tabanqueiro Arsénio Puim agradeceu, a todos nós, as referências que lhe fizemos por ocasião do seu 88º aniversáro natalício (**):

 (...) "A ti e a todos quantos me recordaram e se me referiram com amizade, um enorme obrigado muito sentido. Recordo ainda muitas vezes os nossos tempos da Guiné e os nossos companheiros, com quem tive sempre uma convivência amiga e correta." (...)

Por outro lado, deu-nos notícias tristes do seu amigo Lino Bicari, que em 1970/71 era missionário do PIME (Pontifício Instituto das MIssões  Exterioes), em Bafatá.

(...) "Luís, recebi, talvez há duas horas, um telefonema da esposa do Lino Bicari, que só sei que se chama Fernanda [Maria Fernanda Dâmaso] , mas que conheço bem. Transmitiu-me que o Lino está internado no Hospital de Beja devido a doença oncológica e se encontra em estado muito grave, com uma perspectiva de vida muito curta. Fiquei triste, pois trata-se de um grande amigo, desde os tempos da Guiné e até ao presente. Lino Bicari é um homem extraordinário, raro sobre a face da terra." (...) 
 
O Arsénio Puim, ao tempo alferes graduado capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), sempre teve um grande apreço pelo Lino Bicari (e vice-versa):

(...) "Conhecemo-nos na Guiné em 1970 – era eu capelão militar em Bambadinca e ele era padre missionário em Bafatá – numa altura em que o capelão chefe, pe. Gamboa [, Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo, ] promoveu um encontro durante dois dias dos capelães da Zona Leste – Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – precisamente na Casa dos Padres Missionários Italianos de Bafatá.

"Mais tarde voltei duas ou três vezes à Casa dos simpáticos missionários italianos, aproveitando sempre esta estadia para um reconfortante convívio sacerdotal e um renovar de forças no exercício da minha missão de capelão.

"Na sua simplicidade, Lino Bicari é sem dúvida um homem de altos ideais humanos e dum currículo muito rico, corajoso e autêntico. Desenvolveu uma acção profunda e muito válida ao serviço do povo da Guiné (e não só) concretamente na área do ensino e educação e da saúde, quer enquanto missionário quer, depois, sob a vigência do Partido e do Governo do PAIGC. Uma história de vida rara! " (...) 

2. O Arsénio e o Lino voltaram a encontrar-se quase meio século depois, ... nos Açores (***)

Há tempos o nosso camarada e amigo Abílio Machado  mandou-nos um link com uma pequena reportagem da RTP sobre a história de vida deste homem, luso-italiano, que vive em Alvito, Alentejo, desde 2015 (vídeo: 5' 03'')

https://www.rtp.pt/noticias/pais/padre-lino-bicari-professor-e-convertido-ao-paigc_v1565214

Sabemos que ele também doou ao Museu da Resistência e da Liberdade, no Aljube, o seu espólio (Fundo Lino Bicari)... onde tem documentação diversa, correspondência, publicações, recortes de jornais, etc.  

Andamos a ver e se encontramos algo de mais pessoal... que possamos publicar (temos a sua autorização).  E falta-nos, seguramente, testemunhos sobre a vida na Guiné-Bissau ao tempo do partido único. Mas também antes, da parte dos missionários estrangeiros, que passaram pela antiga Guiné portuguesa.

De qualquer modo,  o papel dos missionários italianos do PIME na Guiné tem já algum  destaque no nosso blogue... Sabemos que infelizmente não tiveram as "melhores relações" com as autoridades portuguesas, à época da guerra colonial na Guiné: três deles foram expulsos, Mário Faccioli, de Catió; António Grillo, de Bambadinca; e Salvatore Cammilleri, de Tite;  e eu deles, o Antonio Grillo, esteve inclusive preso durante 4 meses em Bissau e em Lisboa, acusado de "atividades subversivas".

O Lino Bicari e a sua família merecem, entretanto,  a nossa solidariedade neste transe difícil por que estão a passar (****)... Só podemos desejar o melhor para ele, esperançados também que no hospital de Beja, do Serviço Nacional de Saúde, se possam fazer milagres.

Obrigado, Arsénio, pelas tuas palavras amigas e solidárias. Continuarás sempre a ter a nossa estima, consideração, amizade e camaradagem. Tenho pena que o Lino Bicari já não tenha saúde para poder partilhar connosco os tempos que viveu, na Guiné, quer como  missionário (1967-1971) e depois como militante (não guerrilheiro) do PAIGC (1973-1987). Transmite à sua companheira as nossas melhores saudações.

_______________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 20 de outubro de  2018 > Guiné 61/74 - P19120: (De)Caras (121): O ex-padre italiano LIno Bicari foi meu professor em Bafatá, depois da independência, e casou com uma prima minha, Francisca Ulé Baldé, filha do antigo régulo de Sancorlã, Sambel Koio Baldé, fuzilado pelo PAIGC (Cherno Baldé, Bissau)

terça-feira, 21 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25547: O Cancioneiro da Nossa Guerra (22): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de XII a XXVII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)







Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da defesa do aquartelamento construído de raiz, e que será depois abandonado e destruído em 28 de janeiro de 1969, por ordem do Com-Chefe, gen António Spínola. Destaque para o morteiro 81 e o obus 10.5. Fotos do arquivo de Idálio Reis e demais camaradas da CCAÇ 2317.

Fotos (e legendas): © Idálio Reis (2007) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Posição  relativa de Ponte Balana e  Gandembel,  rios Balana e Balanazinho, estrada Aldeia Formosa - Gandembel- Guileje - Gadamael - Cacine, e fronteira com a Guiné-Conacri. Gandembel ficava, em linha reta, a 3,5 km da fronteira, estando por isso facilmente ao alcance do morteiro 120 (que tinha um alcance de 5,7 km, e foi uaado pels primeira vez no CTIG, justamemte contra  Gandembel, em agosto de 1968)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", um poema épico-burlesco, paródia de "Os Lusíadas", que passa agora a integrar a série "O Cancioneiro da Nossa Guerra" (*)

Fonte: Os Gandembéis, o nosso cancioneiro, as nossas músicas e poetas. In: REIS, Idálio; A CCAÇ 2317, na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana, ed. autor,. s/l, 2012, pp. 196-217.

Explica-nos o Idálio Reis, o cronista da CCAÇ 2317: 

"(Esta) narrativa (...) que os autores chamaram de 'Os Gandembéis' (...), é escrita em circunstâncias  inteiramente distintas do Hino, onde o último local de permanência, em Nova Lamego, ofertava um clima de paz, de sossego e tranquilidade. A sua leitura, feita nos dias de hoje,  parece trazer uma inefável doçura, dada a exemplar ilustração  da história da nossa Companhia. Trata-se de um texto, composto e adaptado por '2 humildes anónimos', que procurou  fundamentalmente narrar a ação (épica) que um punhado de homens que então compuseram a CCAÇ 2317, tiveram que passar  em terras da Guiné, mas onde prevalece, pelas razões invocadas nestas memórias, os sitios contíguos ao rio Balana " (op cit., pág. 201).


OS GANDEMBÉIS > 
Canto I (Estrofes, de XII a XXVII)
 


XII
Já o raio Apolíneo visitava
As terras de Gandembel acendido,
Quando o Moura c'os seus determinava
Que o quartel depressa fosse construído.
A gente na mata muito trabalhava
Como se fosse o engano já sabido;
Mas pôde suspeitar-se realmente
Que o turra nos detetou facilmente.


XIII
Quais para a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande acomodado
As forças exercitam, de inimigas
Ao inimigo turra assanhado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
A tanto os soldados andam trabalhando
E c'o a arma amiga sempre vigiando.


XIV
Eis, um dia, no quartel o fogo se levanta
Com furiosa e dura artilharia:
O canhão pela mata o brado espanta
E o morteiro o ar retumba e assobia.
O coração das tropas se quebranta,
C’o ataque grande o sangue lhes resfria.
Já foge o escondido, de medroso,
E morre o incauto aventuroso.


XV
Não se contenta a gente portuguesa
Mas, sentindo a vitória, destrói e mata;
O soldado, a peito descoberto e sem defesa,
Contraataca, reage e desbarata.
Da ofensiva ao turra já lhe pesa
Que bem cuidou comprá-la mais barata
Destarte, enfim, o português castiga
A vil malícia, pérfida e inimiga.


XVI
Ao 15 de julho somos chegados
Que há muito ali estávamos passando,
Por sítios nunca d’outrem penetrados
Prosperamente os ventos assoprando.
Nessa noite, estando mui cansados,
Nos postos os sentinelas vigiando,
Subitamente o turra aparece
E com canhões e morteiros os ares escurece.


XVII
Tão temeroso vinha e carregado,
Que pôs nos corações um grande medo;
Disparando onze canhões, de longo brado,
E tentando o assalto ao grã Rochedo;
Morre o Araújo, ó triste fado, (6)
Um valoroso a menos neste vil degredo!
Já blasfema da guerra, e maldizia,
O Velho inerte e a mãe que o filho cria.


XVIII
Uma reacção medonha s'alevanta
No rude soldado que trabalha,
Com grande tiroteio a turra gente espanta,
Como se visse em hórrido batalhão
Disparam armas e granada tanta,
Pois não têm nesta noite quem lhes valha,
Acolhendo-se à vala que conhecem,
Só as cabeças no cimo lhe aparecem.


XIX
Vem setembro, e uma nova granada
Se nos mostra no ar, passa e assobia;
Vem outra e outra, ó cousa danada,
Que os céus quebranta e a terra fendia.
Com mágoas de raiva, a gente assustada
Sai dos abrigos e à vala se acolhia;
Estragos fez tão dignos de memória
Que não cabem em verso ou larga história.


XX
Qual míssil estrondoso se veria
No Vietname, o espaço sulcando
E a morte espalhando na terra fria,
Assim o cento e vinte vai troando. (7)
E vós, ó medalhados, triste ironia,
Não cuideis mentira o que estou falando.
Vejam agora os sábios da Escritura
Que segredos são estes da Natura!


XXI
Tão grande era de carga, que bem posso
Certificar-vos que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do Mundo:
Com estrondo enorme, horrendo e grosso,
Que mais parecia vir do outro mundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.


XXII
Oh! Caso grande estranho e não cuidado!
Oh! Milagre claríssimo e evidente!
Oh! Descoberto assalto e inopinado!
Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo, sabiamente,
Se lá de Cima a guarda Soberana
Não acudir à fraca força humana?


XXIII
Ei-los subitamente se lançavam
Com as suas armas ligeiras que traziam;
Outros com torpedos arrebentavam
O arame farpado, e deitados se acolhiam;
Dum lado e doutro súbito saltavam
E na porta d'armas vozes se ouviam:
“Entra!! Entra!! Ó tropa vai embora!”
E cada um pensa chegada a sua hora.


XXIV
Sonoras vozes incitavam
Os ânimos belicosos ressonando
Dos turras os tiros que o ar coalhavam,
E os very lights a mata iluminando.
As bombardas horríssonas bramavam,
Com as granadas de fumos a luz tomando;
Avolumam-se os brados acendidos
À mistura de sangue, dor e gemidos.


XXV
Trava-se a dura e incerta guerra:
De ambas as partes tudo se abala;
Uns leva a defesa da própria terra,
Outros a esperança de ganhá-la.
Logo o grande Lopes (8), em que se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
À bazuca se arremete e a terra, enfim, semeia
De sangue dos que tanto a desejam, sendo alheia.


XXVI
Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E de outros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o assalto o exército nefando,
Correm rios de sangue desparzido,
Com que também da mata a cor se perde
Tornada vermelha, de branca e verde.


XXVII
Destarte o turra, atónito e turvado,
Toma sem tento as armas mui depressa.
Já foge, e de desesperado
O sinal de retirada arremessa.
O obus não pára, mas o soldado
Da arma ligeira, o fogo cessa.
Com tanto esforço e arte e valentia
Assim luta o soldado desta Companhia.


(Continua)

(Revisão/ foxação de texto: IR/LG)
____________

Notas de IR/LG:

(6) Alf mil inf José Araújo, comandante do Pel Caç Nat 69,  acabado de chegar há 12 dias  a Gandembel, morto no "medonho" ataque de 15 de julho de 1968. De seu nome completo, José  Juvenal Ávila Figueiredo Araújo, nascido no Funchal e ali sepultado.

(7) Morteiro 120mm, do IN: usado pela primeira vez, em Gandembel, contra as NT, em agosto de 1968.

(8) Possivelmente o sold nº 079045767, António Fonseca Lopes, atirador.
__________

Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 19 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25541: O Cancioneiro da Nossa Guerra (21): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de I a XI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)

Guiné 61/74 - P25546: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II - A caminho das montanhas



Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Liquiçá (em tétum,  Likisá) é um município, visível neste mapa, com a capital na  cidade do mesmo nome, a 32 km a oeste de Díli, a capital do país. A cidade de Liquiçá tem 19 mil habitantes. Nas montanhas fica Manati / Boebau, onde a ASTIL construiu uma escola para crianças do pré-escolar e 1º ciclo.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 





Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Por ocasião de um almoço de um grupo de amigos de Timor-Leste, no restaurante Foz: em primeiro plano, Rui Chamusco e Gaspar Sobral, cofundadores e líderes da ASTIL.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (partiu  de Lisboa a 5 de maio de 2016 e deixou Dili em 7 de julho, de volta a casa) (*). 

O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.

 A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018,  a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo). 

A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, é exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal.  Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral.

Dessas crónicas de 2016,  sob a forma de diário, decidimos publicar a maior parte dos apontamentos,  dado o interesse documental que nos parece ter  para os nossos leitores que, como nós,  ainda sabem pouco da história e da cultura dos nossos amigos e irmãos timorenses.



Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte II:  a caminho das montanhas

por Rui Chamusco


(Continuação)

 Dia 14 de maio de 2016, sábado  – Dia de muitas emoções

Já estava previamente combinado. O Gaspar, aproveitando a sua estadia em Timor, quis reunir todo a família. É que ele atualmente é o irmão mais velho dos 5 ainda vivos. E como a irmã mais nova, a Benedeta, fez 52 anos há dias,  aproveitaram a ocasião para celebrar os dois acontecimentos. 

Agora imaginem a agitação e o reboliço quando todos estavam presentes: bebés, crianças, jovens, adultos, netos, tios, primos, cunhados, sogros – uma panóplia de parentescos capaz de embaralhar qualquer um. 

E no meio de tudo isto o malae (que sou eu) tentando adaptar-se a esta grande família dos Sobral que, segundo se crê, é a única existente em todo o território timorense. Tarde e noite muito animada pelos cumprimentos efusivos que a toda a hora aconteciam, e também, por que não, pelo som e as canções das crianças acompanhadas por mim no acordeão. 

À noite cantaram-se os parabéns à Bene que nos deliciou com o saboroso bolo de anos. Depois foi a ceia para mais de 50 pessoas. 

Para terminar o Gaspar fez o grande (fala que se farta) discurso da praxe – um momento emocionante que algumas vezes o levaram às lágrimas. Segundo entendi, tratava-se de um apelo à unidade da família, tentado justificar alguns desentendimentos havidos, apelando ao perdão e à união da família Sobral.

“Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé”

De manhã, mais uma viagem em mota para mandar fazer as fardas para a Adobe. Saltando poças e charcos porque tinha chovido muito no dia anterior, lá fomos rumo a Dili a caminho do alfaiate. Mesmo junto à berma da estrada, numa barraca das habituais, ali estava o artista rodeado de trapalhadas (farrapos, cadernos de apontamentos, fita métrica, máquinas de costura e outras coisas mais). Feito o negócio, vai de tirar as medidas certas à garota para que daqui a oito dias se possam vir levantar.

Mais uma pequena viagem e outra paragem para comprar sapatos e meias e algum material escolar. Loja chinesa. com certeza.

Depois foi a grande surpresa: visita ao David, um timorense que eu apoiei nos seus tempos de estudante em Coimbra e que eu só conhecia de voz por telefone. 

Também ele ficou surpreendido pois nunca pensou ser visitado na sua casa por alguém que ele sempre desejou conhecer. Várias vezes marcamos encontro em Portugal mas nunca se concretizou. Momentos agradáveis com a presença de bastantes familiares que iam chegando. 

Hoje o David trabalha com a primeira dama, mulher do primeiro ministro. E, claro, disponibilizou-se logo para o que for preciso, com vontade de que a gente se encontre em Dili.

Chegando a casa e já arrumadas as compras decidimos telefonar a D. Basílio, bispo de Baucau. Outra grande surpresa, sobretudo para ele, pois nunca teria pensado que o Rui estivesse em Timor. Basílio e eu fomos colegas de trabalho durante dois anos, na equipa de pastoral da comunidade emigrante de Gentilly nos arredores de Paris. Há 34 anos que não nos vemos. Está combinado um encontro nos próximos dias, em Dili. Espero dar- lhe aquele abraço que em tempos nos unia e fortificava. “Bien sûr”!...

Dia 15  de maio de 2016, domingo – A visita do Felisberto Oliveira da Silva

Hoje, domingo, tivemos a visita do vizinho Felisberto. Já falei deste senhor como figura e personalidade invulgar, a fazer lembrar o sábio filósofo que, de livros nos côvados dos braços, passeia a sua interpretação da vida, falando com convicção das suas experiências de vida e das sua ideias e pensamentos sobre os mais diversos temas.

Homem inteligente, com sentido crítico acentuado que Deus lhe concedeu e com acontecimentos ricos de significado. Eu e o Gaspar parecíamos dois alunos ávidos do seu saber. Durante uns bons minutos deu-nos a conhecer pontos essenciais da vida atual, sempre documentado por capítulos e versículos da Bíblia que sabia de cor. 

Fala razoavelmente o português porque fez parte durante três anos da unidade policial portuguesa que serviu em Timor; fez um curso intensivo de formação para ser professor, profissão que também exerceu; foi comandante das tropas da resistência; foi prisioneiro dos indonésios e agora, segundo testemunhas, passa o tempo lendo muito, escrevendo e partilhando as suas ideias. Já tenho o seu aval para quando quiser lhe telefonar ou o visitar. Parece que frequentemente é visitado para ser entrevistado. A sua coerência é muito apreciada. Das suas ideias não abdica seja perante quem for, mesmo em face dos indonésios.

Uma grande lição de vida!...

Dia 16 de maio de 2016, segunda feira – Ida à embaixada e outros sítios

Mais uma vez de táxi, a caminho da embaixada de Portugal porque o Gaspar não descansa enquanto os nossos nomes não forem lá registados. Não vá o diabo tecê-las, vale mais prevenir que remediar. À chegada ao edifício deparamo-nos com um grande grupo de timorenses que procuram obter o cartão de cidadão português, a fim de puderem entrar na Europa, Portugal e Inglaterra sobretudo, para estudar ou trabalhar.

Pois é! Aqui em Timor Portugal ainda tem algum significado. Falar português confere estatuto de gente importante que dá acesso a portas e caminhos por que muitos anseiam.

Um grande desejo é de ir estudar para Portugal. Gente que vem das universidades portuguesas tem quase garantido um bom emprego.

Na embaixada, lugar esquisito pois pouco conforto apresenta, pouca atenção nos deram: simplesmente o número de telefone da embaixada e o e-mail, aconselhando-nos a fazer o registo por correio eletrónico.

Depois fomos ao Páteo, beber um café dos nossos e fazer algumas compras, algumas bem portuguesas como o garrafão de vinho Castelões e latas de sardinhas Ramirez.

Longe da pátria, tudo sabe bem, nem que seja uma côdea de pão para matar saudades.

Telefonema para Austrália

Mais outra surpresa. Quando saí de Malcata,  prometi à família que, aproveitando a vinda a Timor, iria visitar o primo Quim, a residir na Austrália. Hoje foi o dia escolhido para lhe telefonar. Com sucesso, pois fui atendido de imediato. Conversámos de algumas coisas e ficou combinado de que, antes de regressar a Portugal, lhe iria fazer uma visita. Ficou com o meu contato para poder-me telefonar.

Já não vejo o primo Quim há mais de 30 anos, pelo que o nosso encontro vai ser com certeza emocionante, a lembrar os nossos tempos de infância,  os lugares de Malcata, as pessoas que já partiram e as que ainda vivem. Espero ansiosamente pelo encontro…

As influências e as cunhas

Ontem esteve connosco uma jovem de Luiquiçá, parente da família Sobral, que há três anos terminou o ensino secundário com a média de 19 valores. Não conseguiu entrar na universidade porque não tinha lá dentro ninguém da família. Segundo as más línguas, é assim que aqui funciona o acesso ao ensino superior. É muito difícil entrar lá dentro, sem alguém de referência.

É pena que assim seja pois há por aqui muito talento perdido. Normalmente quem vai estudar para Portugal, Indonésia ou outros países são filhos de ministros, de presidentes; muitos sem preparação intelectual para poderem progredir nos seus estudos. 

Daí que muitos voltam para Timor sem nada feito ao fim de alguns anos, para ocupar cargos públicos para os quais não estão bem preparados. Dizem os críticos que isto mais tarde ou mais cedo vai dar buraco pois a incompetência de muitos funcionários públicos é bem evidente

Aqui como noutros lados do mundo desaproveitam-se os dotados, os capazes, os inteligentes para dar lugar à banalidade, às cunhas, às influências. Ai Timor, Timor! Muito caminho te espera… Desejo-te todo o bem do mundo.

Noite 17 de maio de 2016, terça feira – Uma noite no hospital

Outra experiência diferente. Ontem a Adobe quando regressou a casa vinda da escola manifestava alguma tristeza provocada com certeza pelas dores. Estava com febre e pedia aconchego da mãe e do pai. Metade do comprimido para a febre deixou-a arrebitada mas, por volta das 1.30 da manhã, começo a ouvir o seu choro e as vozes do pai e da mãe que tentavam desesperadamente consolá-la. Levantei-me à pressa e quando apareci em cena já estavam com ela ao colo para a levarem ao hospital. Claro que me dispus logo a ir também. Assistida prontamente por quem estava de serviço, com boa observação médica que lhe administrou os respetivos remédios. Esteve em observação e tratamento até às 6.00h da manhã, hora do regresso a casa.

Pois é, nem sempre a vida é cor de rosa. Quantas vezes, para sermos solidários, temos de passar noites em branco. Quantas vezes temos de carregar as dores dos outros… Já alguém fez isso por nós, portanto não há nada de heroico nesta ação. Fica-nos a satisfação de um dever cumprido, de uma obra de misericórdia aplicada. (...)


Dia 18  de maio de 2016, quarta feira - Afinal, os bispos também mentem. Que Deus lhes perdoe!....

Hoje é o dia combinado para o encontro com o D. Basílio, por proposta sua, Ficou de ligar para dizer a hora mais conveniente. Se quem espera desespera, bem desesperado fiquei pois durante o dia todo não houve qualquer contato da sua parte. O encontro foi para as urtigas. Não sei se ainda o vou encontrar, mas se for caso, vai ter que me ouvir.

É assim que se respeitam os amigos? Afinal os bispos também mentem. Que Deus lhes perdoe!...


Dia 19 de maio de 2016, quinta feira  - Mais histórias (acontecimentos reais ) que nos fazem pasmar

Logo de manhã cedo começamos a ouvir relatos que deviam constar no catálogo das obras de misericórdia. À minha frente estava Bartolomeu Pinto, um rapaz entre os trinta e quarenta anos, simpático e que canta e toca guitarra muito bem, mostrou-nos as cicatrizes do antebraço, braço e cabeça. 

Sem que ninguém o esperasse, este jovem foi atacado por um senhor à catanada, só por estar a mexer no presépio. Foi no dia 23 de Dezembro de 2007. Esteve dois dias em coma, depois foi recuperando progressivamente. As forças da ordem, que por acaso era a GNR, quiseram prender o agressor, tendo a vítima declarado que não queria que ele fosse para a prisão. Não tinha nada contra ele e que “se Deus lhe perdoa sempre por que é que ele não lhe devia perdoar.” 

Vejam esta nobreza de sentimentos, próprio do Ano da Misericórdia que este ano a Igreja celebra. Apesar de tudo, o ministério público acusou o réu que, em julgamento,  apanhou dois anos de prisão. Bartolomeu nada pode fazer para que o condenado tivesse de cumprir a pena. Mas quando saiu da prisão foi ter com ele para o abraçar. Grande Bartolomeu! Obrigado pela lição do perdão,,,

Mesmo em atalho de foice, outro exemplo de perdão. Não fixei o nome do herói, mas trata-se de um combatente da resistência a quem um invasor indonésio cortou a mão.

Quando se esperava um sentimento de vingança,  este senhor respondeu a quem o questionava: “se encontrar esse indonésio vou cumprimentá-lo e dar-lhe um aperto de mão. Que importa ter perdido a mão. Importante mesmo é a nossa independência”. 

Sem explicação humana. Este povo é mesmo assim: muito crente, capaz de lutar e de perdoar as ofensas, ( assim como nós perdoamos?...


Dia 20 de maio de 2016, sexta feira –  Dia da Restauração da Independência

Hoje é dia da restauração da independência. Mas não foi por isso com certeza que hoje o pessoal da casa foi à missa às 6.00h da manhã, menos eu e o Gaspar. Perguntei porquê a missa tão cedo e responderam-me que aqui sempre foi assim.

Fomos outra vez a Dili, para levantar as fardas de Escola da Adobe. Azar! Estava fechado, talvez por ser o dia da restauração da independência. Mas o alfaiate mandou-nos lá ir hoje. Não se lembrou ou mentiu. Em poucos dias já levei dois tampos (mentiras).

Aqui, à minha frente, está o Gaspar a discursar, sempre o mesmo discurso, sobre o estado das coisas em Timor. Fala com razão mas a forma de o dizer não é a mais própria. Quer caçar moscas com vinagre. Não sei se terá algum êxito. Não sei se se esquece do que já disse, mas o facto de se repetir vezes sem conta cansa que se farta o pessoal (os ouvintes). 

Os irmãos dizem-lhe que tenha cuidado com o que diz porque as paredes ouvem e a situação pede contenção. Parece que “as secretas” estão em ação e, quando assim é,  todo o cuidado é pouco. Eu cá para mim estou-me nas tintas. Vamos resolver os nossos assuntos, quanto antes melhor, por que me estou marimbando para as quezílias internas.

Amanhã vamos para a montanha, para Boibau. Muita apreensão pois para além da aventura há quem diga que é uma loucura. A distância é curta mas o caminho é terrível, cheio de buracos, subidas e descidas. A ver vamos!... Mas mais ou menos 3 horas de caminho temos de contar. 

Dia 21 de maio de 2016, sábado - A caminho da montanha

 Eram mais ou menos 14 horas quando o jipe do Anô ficou pronto para arrancar: 6 pessoas dentro, mais as trouxas que cada um decidiu levar. A emoldurar o momento estava o rancho de crianças, à volta de 15, que ajudavam a fazer a festa. Foi uma despedida repleta de alegria. 

Depois foi andar, andar, andar  por mares (caminhos) nunca antes navegados numa casca de noz a rebentar por tudo o que era sítio, sob um calor húmido e abafado, resistindo às contrariedades que a cada passo se nos deparavam. Uma verdadeira prova de resistência a qual nem todos aguentaram. 

Enquanto eu cantava de galo, sempre bem disposto e a causar surpresa aos timorenses da comitiva, o amigo Gaspar foi uma desgraça, incapaz de suportar o seu corpo e a sua mente até ao fim. Queixas, vómitos, má disposição – muito reles,  afinal. Para quem duvidava da minha forma física,  foi uma chapada na cara. Toma, Gaspar! Para as outras vezes não ponhas em causa as capacidades dos outros. Valeram-te as viagens de moto. Caso contrário nem sei como chegarias a Boebau.

A receção no casebre Sobral onde vive a família do Don José foi acolhedora, ainda que eu tenha sido mirado de alto abaixo por todos. Não sei se gerei desconfiança ou medo, particularmente às crianças. Embora muito recomendado pelos familiares do Gaspar, há sempre alguma reserva em face de um malae (estrangeiro), mesmo que chegue com boas intenções. 

Todos são informados, em grupo ou individualmente, que a nossa visita se deve a um projeto de solidariedade de construção de uma escola, e que viemos para falarmos sobre o assunto. No domingo, dia seguinte, visitamos os túmulos/jazigos dos avós paternos do Gaspar, que estão em fase final de recuperação. Momentos emotivos com todos os presentes. 

O sr. Sobral era a autoridade máxima da região, uma espécie de comandante de posto, com tudo o que necessitava para tal função (armas, símbolos de chefia…etc…) uma pessoa estimada e respeitada por todos. Eu próprio fui testemunha. Justifica-se portanto o investimento em preservar as suas memórias. Bem o merecem.

Depois, sempre a subir e eu à frente por entre o capim até outro casebre onde nos esperava outra família. Aí  foi servido a cada um um coco que um moço de pé leve foi colher lá nas alturas. O coco que melhor me soube em toda a minha vida. 

Novas conversas sobre o projeto, que nos levaram a marcar uma reunião às 3 da tarde para tomarmos uma decisão: “Uma escola ou uma igreja", como alguém pretende?...

Convidamos o chefe do suco de Leotalá (presidente da Junta) que nos facilitou os cadernos de registo de crianças. À hora marcada começamos a reunião. Com o assunto já bem estudado e perante a pergunta “O que vos faz falta em Boebau Escola ou Igreja?"  

Todos foram unânimes: “queremos a escola, porque há muitas crianças que não vão às escolas circundantes”. 

Segundo os cadernos do suco, vivem em Boebau / Manati mais de 400 crianças das quais só 110 frequentam as escolas. A razão principal da falta à escola é o tempo que se demora no caminho, mais ou menos 5 horas diárias a pé que as crianças têm de fazer. Entenderam o sacrifício desta gente? 

Então ficou decidido, com o apoio de todos e em particular do chefe de suco, que irá ser construída uma escola, mais ou menos o projeto que trouxemos de Portugal, ficando o Anô encarregado de adaptá-lo às condições reais do local de construção. 

Com o orçamento a apresentar (mais ou menos 30.000 euros), a ordem é de avançar de modo a que a escola possa ser inaugurada em Janeiro de 2017, início do ano letivo em Timor. O trabalho mais difícil da nossa visita a Timor, tomada de decisões, está feito. 

Vamos continuar a lutar e a desenvolver o nosso projeto, seja em Timor seja em Portugal. Queremos fazer alguma coisa por esta gente tão necessitada mas tão querida. E Vamos conseguir!...



Alguns episódios na montanha

(i) Francisco da Conceição e a sua mulher parece que estavam já a nossa espera: a Marcelina, o Abeca e eu. 

Os cumprimentos efusivos da praxe, a conversa puxa conversa, o ritual da mama (mascar betel, areca e cal), equiparado ao vício do tabaco e histórias de vida que nos fazem pasmar. 

O sr. Francisco, homem pequeno e franzino vive aqui com a sua segunda mulher, sem filhos. No tempo da invasão indonésia a sua primeira mulher e os seu cinco filhos foram mortos. Mesmo assim, manifesta alegria de vida que nem a sua pobreza (miséria) consegue esconder. Pergunto-me: o que é preciso para ser feliz?... 

Junto às casas aqui próximas colocaram um posto de alta tensão. No entanto ninguém tem luz elétrica nestas paragens. Socorrem-se de “pequenos painéis solares que proporcionam uma débil luminosidade, incapaz de carregar um telemóvel". Por outro lado o senhor Francisco queixa-se que a pequena plantação de betel está a diminuir desde que existem ali implantados os postes. 

Aqui como noutras partes do mundo os pobres são explorados sem qualquer tipo de compensação. O pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico. Para onde vamos?


(ii) O Eustáquio mostrou-nos lá do alto os montes e vales por onde andou escondido e errante com a mãe e alguns irmãos durante três anos. 

Remarcou em particular o monte onde foram apanhados pelos indonésios (uma casa com telhado verde no cimo de um monte) e o local de passagem do rio onde se deu o ”milagre” da casa que os protegeu de noite e que desapareceu ao romper do dia. 

A convicção do relato é tão forte que duvidar do que conta é um risco. O Eustáquio tinha 11 anos de idade percorria todos aqueles montes até Liquiçá para comprar sal que depois ia vendendo pelo caminho. Ainda hoje é frequente o negócio das crianças que passam com frequência pelos arruamentos e veredas dos bairros locais,  apregoando e vendendo produtos diversos.

(iii) Os obstáculos do caminho são uma constante. 

Hoje no regresso da montanha deparamo-nos com uma sinalização que nos indicava perigo. Uma vara e um senhor que ao avistar o gipe pagero azul chamou à atenção do aluimento duma passagem sobre troncos.

 Depois de inspecionado o perigo saímos da viatura e o corajoso e habilidoso Anô arranca sobre a faixa disponível conseguindo chegar são e salvo à outra margem. 

Nada mais houve a registar para além dos buracos constantes destas vias. Mas soubemos depois que o caminho estava intransitável e que corria uma informação falsa a nosso respeito: “foi um pagero azul que provocou a situação.” Sabemos também que não há estrutura nem serviços estatais que resolvam estas situações. Têm de ser os habitantes locais. E viva o povo!...

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 20 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25544: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: As primeiras emoções e impressões

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!

 

Contos com mural ao fundo > Cá se fazem, cá se pagam!?

por Luís Graça

 

De repente viste-o de perfil. Reconheceste-o logo. Estava sentado, na sala de espera da consulta de oftalmologia. De telemóvel na mão, como quem aguarda uma chamada. Estranha coincidência, pensaste tu. Já não o vias há anos.  Muito antes até da pandemia (agora há o antes e o depois da pandemia, dá jeito para balizar as nossas memórias da “peste”, do latim “peius”, a pior doença…).

Aproximaste-te dele. Sorrateiramente. Por detrás. E sopraste-lhe ao ouvido:

O Mundo é Pequeno…

Era a nossa senha. Ele reconheceu-te de imediato, e respondeu-te com a contrassenha:

− … e a Nossa Tabanca é Grande!

Deram os dois um “alfabravo” efusivo. Um abraço,  na gíria da tropa ou calão de caserna. Eram dois antigos combatentes do tempo da Guiné. 

− Também tu,  por aqui ?!  − perguntou-te, agradavelmente surpreendido.

− Fui ontem operado a uma catarata… E tu ?

− Diabetes!... – respondeu-te ele, lacónico,  entre o descontraído e o conformado.

− Só te faltava mais essa!

− Sabes como é, com a idade juntam-se todas as mazelas, as do corpo e as da alma.

− Estamos a pagar a fatura da Guiné!

E, de repente, interrompeu-te:

− Olha, espera aí, está na hora da Doutora Glicemia !

Percebeste que ele desviava o olhar para o ecrã do telemóvel, depois de receber um toque, impercetível para ti:

− Ah!, a glicemia!...

− Está a “vermelho”… Tenho que ir trincar qualquer coisa…

Sugeriste-lhe que fosse avisar as meninas, antes de ir comer uma sandocha   ao bar do hospital, logo ali no piso zero. E lá foi ele deixar o recado… para, logo de seguida,  regressar ao seu lugar… Vinha a comer um bolo. Reconfortado, e com ar de quem tinha agora todo o tempo do mundo e podia conversar, enquanto não o chamavam para a consulta.

− Já estou melhor – comentou, sorridente, afável.

E logo ali, tu e ele, recordaram aquele fatídico dia treze de janeiro em que, com um intervalo de duas horas, tinham caído ambos em duas minas anticarro. Às portas de Nhabijões, um gigantesco reordenamento populacional, no Leste da Guiné, perto de Bambadinca.

Duas minas!!!... Ele às onze, tu às treze!... Treze do dia treze, que nem sequer era sexta feira. Mas que foi de azar para vinte e tal homens… Há mais de 50 anos atrás. 1971.

− Um pandemónio! – comentaste tu.

Tinhas vindo no “gosse-gosse”, a toda a mecha, com o teu pelotão que estava de piquete na sede do batalhão, em socorro das primeiras vítimas.

− O vosso soldado condutor, que ia a meu lado, teve morte imediata.

− E tu foste logo helievacuado para o hospital.

Pobre S…, comentaram os dois. Aos vinte e um meses de comissão,  a escassos dois meses de regressar a casa e de, finalmente,  ir conhecer a filha nascida  pouco tempo depois de ele embarcar para a Guiné. 

− E ele a pendar que Nhabijões era um serviço maneirinho, sem grandes sobressaltos...

E ali estava o M…, em carne e osso, que um gajo do PAIGC, ele próprio oficial do mesmo ofício, sapador, quis mandar para os quintos do  inferno. O alferes miliciano M…, especialista em minas e armadilhas, destacado em Nhabijões a chefiar a equipa de reordenamentos. Escolhido só porque tinha frequentado  o curso de engenharia do Técnico!... E era mais velho, três anos, do que a generalidade dos outros oficiais milicianos.

Na altura,  Nhabijões era o maior reordenamento em construção na “Spinolândia”. Era, para mais, uma das “meninas bonitas” do “Caco Baldé”: quando lá passava, tinha que ir meter o bedelho, observar o avanço dos trabalhos.  Mandava poisar o helicóptero, dava dois dedos de conversa com a tropa e os civis (que eram “turras”), e lá seguia ao seu destino.

Spínola adorava andar de heli e todos os pilotos se sentiam honrados em levá-lo a bordo,  a seu lado.

− E sem pedir licença a ninguém!... Afinal, ele era o dono daquilo tudo… − observou o M…

E riu-se com o sorriso, bondoso e ingénuo, que sempre lhe conheceste. E já que estavam em maré de confidências, aproveitou para te contar uma história que tu ainda não sabias.

Depois de algumas semanas  (talvez um mês e tal ou dois) no “estaleiro”, e após a alta do hospital, o HM 241, em Bissau,  apresentou-se ao serviço,  em Bambadinca, sede do batalhão a que ele pertencia. Ainda lhe faltava um ano e tal para a acabar a comissão. 

Bateu a pala ao novo “senhor da guerra”, um spinolista (que não era de cavalaria, mas tinha fama de durão), acabado de chegar da região do Oio, para comandar o batalhão. (O anterior comandante tinha “levado com os patins”, por punição do general, o comandante-chefe.)

O novo tenente-coronel  quis “chegar, ver e vencer”, como o Napoleão. Pôs todo o mundo em alvoroço,  a desgrudar o rabo das cadeiras das secretarias, e ele próprio deu o exemplo, indo com a malta operacional da CCAÇ 12 para o mato para reconhecer o seu setor.

À frente do segundo comandante, major de artilharia, perguntou ao M…:

− E você, nosso alferes, o que é que está aqui a fazer ?!

− É sapador, meu comandante, estava no reordenamento de Nhabijões…− apressou-se  o major a esclarecer.

− Estava ? !... E já não está ?!... Vai já na próxima coluna para Sinchã… (Qualquer Coisa, que o M…  não percebeu.)

− Mas..., o meu comandante dá-me licença ?!... É  que eu acabei de regressar do hospital…

− Apanhou uma mina anticarro – acrescentou o 2º comandante.

O tenente-coronel não quis ouvir mais explicações. Visivelmente irritado com tanta gente de baixa na CCS (Companhia de Comando e Serviços), virou-se para o major e intimou-o:

− Tire-me já daqui este inútil!

E assim foi… No dia seguinte, aproveitando a maré, lá seguiu o M…, ainda convalescente, com guia de marcha,  rio Geba abaixo,  com destino a Bissau. Apanhou o “barco turra”, no cais fluvial de Bambadinca, com ordem de se apresentar no  Batalhão de Engenharia, em Brá.

Reclassificado, passaria depois aos “serviços auxiliares”. Deram-lhe 33,3% de incapacidade…

Perguntaste-lhe depois como é que ele tinha vindo à consulta, já que parecia não estar acompanhado por ninguém.

− Desta vez vim de Uber, mas habitualmente é a minha mulher que me traz de carro. 

E lá ficaram os dois à conversa, rememorando a última meia dúzia de anos em que andaram desencontrados, com a pandemia pelo meio…

Em jeito de balanço de uma vida, o M.., que era beirão, acrescentou, entre embevecido e sarcástico:

− Como vês, uma vida! 80 anos, uma guerra, uma mina que me ia quase matando, deficiente das forças armadas,  professor de matemática no ensino secundário,  reformado, três casamentos, três filhos, três netos… E, agora, a flor de cerejeira que me faltava para compor   o ramalhete: uma diabetes!... E, olha, juro-te que nunca fiz mal a Deus!

− Eu também não, confesso,  mas só pode ter sido por termos feito aquela maldita guerra… Deus, se calhar,  não estava do nosso lado, como nos tinham afiançado.

− Achas ?!... Se assim foi, e como se diz na minha terra, Deus castiga  sem pau nem pedra!

− Eu também acho que foi castigo!... Mas porra, logo uma mina!... Eh, pá, eu não sou crente, mas tenho as minhas superstições. Na Guiné aprendi a ter muito respeitinho pelos irãs.  É que havia os bons e os maus. O Amílcar Cabral lixou-se porque não soube distingui-los. Eu usava os amuletos como os meus soldados e os gajos do PAIGC!... Sempre achei que mal não fazia, antes pelo contrário...

− Alguém nos rogou uma praga!

− Mas hoje sei, ao menos, quem nos tramou, quer dizer, quem nos pôs as minas, a tua e  a minha, à saída de Nhabijões.

− Sabes mesmo quem foi ?!...

− Sim, sim… E olha que traziam código postal.

Explicaste depois ao M…, quem tinha sido: o Mário Mendes, comissário político (ou comandante de bigrupo ?), e o seu sapador, aproveitando a calada da noite... E com a cumplicidade dos habitantes de Nhabijões,  que nessa manhã não quiseram apanhar a boleia do Unimog da tropa que ia buscar o almoço a Bambadinca… (Estavam a par da marosca, os sacanas!)

Um ano e tal depois, a  malta da CCAÇ 12, o mesmo pelotão que tinha apanhado com a potente mina que estoirou com a GMC, limpou o sebo ao Mário Mendes.

− Num duelo digno dos melhores filmes do Faroeste!

− Então, estamos quites!... Cá se fazem, cá se pagam! – arrematou o M…, em jeito de conclusão.

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...