terça-feira, 28 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2070: Bibliografia de uma guerra (16): Contributos para a História de Portugal, de José Milhazes, em Moscovo (2)

Somos mais de 100 ex-combatentes, de quase todas as patentes (de soldado a coronel), que passou os melhores anos da nossa vida nas bolanhas da Guiné. De G3 nas mãos, a lutar pelo "Portugal uno e indivisível", que foi o que nos diziam na altura.
O nosso blogue, conforme consta do nosso "livro de estilo", não defende nem ataca qualquer posição que cada um possa ter sobre as razões da guerra. O objectivo do foranada é sermos nós a contar a história que vivemos, antes que outros o façam por nós. Relatos, experiências vividas, as nossas fraquezas e as nossas forças, o IN de então, o PAIGCV, com a Guiné e o seu Povo como fundo.


É também um lavar de feridas. Mais de trinta anos passados sobre o fim da guerra, muitos de nós ainda dormem mal. Alguns não hesitam em dizer que ainda hoje sentem vergonha de em tal guerra terem participado. Outros, dizem que cumpriram o que Portugal lhes mandou.
É importante, para nós, procurar todas as fontes possíveis e juntá-las neste enorme "puzzle", que foram aqueles 11 anos de guerra. Tudo o que diga respeito à Guiné daqueles anos nos interessa.
E ao José Milhazes o nosso obrigado pelo contributo que tem vindo a dar para a História de Portugal.

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Amílcar Cabral no secretariado do PAIGC, em Conacri


A captura dos assassinos de Amílcar Cabral, em plena costa da Guiné

José Milhazes, através do seu blogue, relata-nos

A Operação do "Experiente" na Costa da Guiné

O assassinato de Amílcar Cabral, dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGCV), na cidade de Conacri, capital da República da Guiné, a 20 de Janeiro de 1973, continua envolvido em muito mistério, mas a chave de alguns segredos encontram-se nos arquivos ou nos testemunhos de militares soviéticos que acompanharam esse acontecimento de perto.

Em Novembro de 1972, a pedido do Governo da Guiné-Conacri, no porto de Conacri atracou o contra-torpedeiro soviético "Experiente"(???????), da Armada do Norte, que devia patrulhar a costa desse país africano. O navio de guerra era comandado pelo capitão de fragata Iúri Ilinikh.

Na noite de 20 para 21 de Janeiro de 1973, entraram inesperadamente no "Experiente" o comandante das Forças Armadas da Guiné-Conacri e o conselheiro militar soviético, o major-general Fiodor Tchetcherin. Eles trouxeram a notícia que, por volta das 23 horas, numa das ruas de Conacri, um grupo de desconhecidos tinha assassinado Amílcar Cabral.
A sua esposa e alguns membros do Comité Central do PAIGC foram feitos prisioneiros e levados para lanchas que se dirigiram para a Guiné Portuguesa.
As visitas inesperadas pediram, em nome do Presidente do país, Séku Turé, e do embaixador soviético em Conacri, A.Ratamov, ao capitão de fragata que fizesse sair o "Experiente" a fim de capturar as lanchas.

Às 0 horas e 50 minutos do dia 21 de Janeiro, o contra-torpedeiro pôs-se em marcha com marinheiros soviéticos e soldados guineenses a bordo.
Ilinikh enviou para o Estado-Maior da Armada Soviética vários relatórios, mas apenas recebeu instruções para não empregar armas.
Às 5 da manhã, foram detectadas duas das três lanchas que saíram de Conacri.

O contra-torpedeiro aproximou-se de uma lancha e prendeu-a com cordas. A segunda lancha rendeu-se ao ver-se na mira de canhões de 130 milímetros. Soldados guineenses entraram nas lanchas, libertaram os reféns, desarmaram os seus ocupantes e conduziram-nos para o “Experiente”.
Às 15 horas, o contra-torpedeiro regressou a Conacri, rebocando as duas lanchas. A terceira foi capturada por soldados guineenses.

Primeiramente, Iúri Ilinikh foi afastado do cargo devido a ter actuado sem autorização de Moscovo, mas, depois do relatório do major-general Tchitcherine, Ilinikh recuperou o comando do "Experiente" e recebeu elogios pelas suas “acções ousadas e decididas”.
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Notas do co-editor:

Texto de José Milhazes.
Foto de Amílcar Cabral, in "Uma luta, um partido, dois países", de Aristides Pereira. Com a devida vénia.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2069: Bibliografia de uma guerra (15): Contributos para a História de Portugal, de José Milhazes, em Moscovo (1)

À procura da história. Mensagem enviada ao José Milhazes em Moscovo.

Chamo-me Virgínio Briote e sou um dos editores do http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
Tenho lido os seus trabalhos sobre o envolvimento da extinta URSS nas ex-colónias portuguesas e quero manifestar o nosso apreço pelo indiscutível valor do seu trabalho.
Autoriza-nos a publicar algumas das suas peças no nosso blogue?


Cumprimentos,
vb


Resposta pronta do José Milhazes.

Caro Virgínio Briote, retire do meu blog tudo o que achar necessário e publique.
Cumprimentos,
JMilhazes

Contributos para a História de Portugal

"União Soviética treinava guerrilheiros na Crimeia"



Na aldeia de Perevalnoe, no quilómetro 21 da estrada Simferopol-Aluchta, na Crimeia, esteve instalado, entre 1965 e 1990, o Centro de Treino Nº 165 para Preparação de Militares Estrangeiros junto do Ministério da Defesa da União Soviética.
Aí, no Sul da Ucrânia, durante 25 anos, militares soviéticos prepararam cerca de 18 mil combatentes de países como Afeganistão, Etiópia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Madagascar, Mongólia, Cuba, Mali, Vietname, Laos, Cambodja, Nicarágua, Iemen, Líbano, Líbia, Palestina, Zâmbia, Tanzânia, Congo, São Tomé e Príncipe.
O primeiro grupo, constituído por 75 guerrilheiros, veio precisamente da Guiné-Bissau e foi recebido pelo tenente-coronel Vladilen Kintchevski, então comandante do Centro de Treino.
"Recordo-me quando eles desciam pela escada do avião, eram todos pretos como a fuligem" - declara Kintchevski ao diário russo "Komsomolskaia Pravda", e acrescenta: "Tínhamos de arranjar um tradutor que falasse na língua dos guineenses. Descobrimos que só um máximo de dez falava português e que os restantes falavam em dialectos tribais. Mas não havia nada a fazer, tivemos de lhes ensinar a arte militar".
Em Dezembro de 1970, aquando da celebração do 50º aniversário da formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o campo foi visitado por Amílcar Cabral, secretário-geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde.
"Primeiramente, é preciso ensinar contra quem disparar e só depois ensinar como disparar" - dizia o coronel Antipov, que leccionava marxismo-lenismo nesse centro de preparação militar.
Porém, os alunos nem sempre se mantiveram fiéis a essa máxima. Por exemplo, dois dos guineenses treinados no Campo de Treino Nº 165 participaram, a 30 de Janeiro de 1973, no assassinato de Amílcar Cabral, depois de terem sido recrutados pelos portugueses.
Outro caso dramático. Vinte guerrilheiros foram detidos quando chegavam ao seu país, o Zimbabwe, e enforcados. A polícia descobriu de onde vinham, porque um deles trazia no pulso um relógio "??????" ("Oriente") com a inscrição "??????? ? ????" ("Fabricado na URSS").
Anualmente, a União Soviética gastava por cada aluno entre 7 e 9 mil rublos (1rublo era igual a 60 cêntimos americanos).
Actualmente, nesse Campo de Treino está aquartelada a 84ª Brigada Mecanizada do 32º Corpo do Exército da Ucrânia.
Os treinos dos guerrilheiros eram realizados na Crimeia devido ao facto de esta região ser a mais semelhante, do ponto de vista morfológico, climatérico, etc. , aos países de onde eles vinham.
Títulos e texto recolhidos daqui.
Com o nosso agradecimento ao José Milhazes.

domingo, 26 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2068: Da Suécia com saudade (6) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (6): Milícias e Soldados guineenses ao serviço do colonialismo

1. Da Suécia com saudade, o nosso camarada José Belo, traz até nós, desta vez, um tema já aflorado em tempos no Blogue.

Trata-se de um assunto melindroso que dá azo a muitas discussões e diferentes correntes de opinião. Porque pautamos pela diversidade e liberdade de conceitos, não temos qualquer pejo em trazer ao conhecimento da Tertúlia o trabalho deste nosso camarada.

Podem e devem rebater e/ou concordar, no espaço destinado para o efeito, clicando em comentários, no rodapé desta Postagem.


2. Milícias e Soldados guineenses ao serviço do colonialismo

Nas poucas vezes que tenho revisitado o meu querido Portugal, nestes trinta e tal anos de um misto de exilado e migrado (exigrado), surpreendo-me sempre com a quantidade de guineenses que encontro no lisboeta largo do Rossio.

Quem são estes homens? Quem foram estes homens? Que histórias existem por de trás dos grupos que conversam, partem mantanha, ou, sentados nas escadarias do teatro D. Maria têm os olhos perdidos em horizontes distantes?

Restos humanos arrastados para estas paragens distantes pelos maremotos da história colonial?

Que solidariedade sentem por parte dos seus antigos companheiros de armas? Compartilharam connosco todos os perigos. Todos os roncos. Sofreram ao nosso lado inúmeros mortos e feridos.

Nos rebentamentos de minas misturámos, literalmente, o nosso sangue. É difícil negar, que eles, estavam sempre nos lugares mais perigosos da luta. À frente das colunas, à frente dos grupos de assalto, à frente de muita tropa branca, ensinando na prática, o que as instruções em Portugal tinham esquecido!

Muitos de nós estamos vivos graças a alguns deles - há, isto de esquecimentos convenientes.



Com o passar dos anos, e o enorme coração português, as realidades cruas da infernal guerra colonial, são, lenta e insinuosamente, substituídas nas nossas recordações, por tonalidades mais lusitaneamente romantizadas.

Nos nossos verdes vinte anos de idade confrontámos a África. No exotismo dos costumes, da natureza, das doenças tropicais, tudo somado ao choque violento das inesperadas confrontações com a morte, os feridos, os amputados e os psiquicamente destroçados.

Quantos dramas tivemos que saber suprir? Quantas terríveis experiências pessoais? As consequências?...

Acabámos por não ter tempo - espaço para dar toda a devida atenção ao drama paralelo que era a cara verdadeira da Administração Colonial. A exploração! A opressão! A violência! Sempre latentes por detrás dos Chefes de Posto, dos Cipaios, da Polícia do Estado e mesmo de alguns comerciantes-colonos que ainda por lá parasitavam!

Quantas preponderâncias? Quantas opressões? Quantos crimes cometidos à sombra de convenientes denúncias?

Nós, na ingenuidade das nossas juventudes, hasteávamos respeitosamente a Bandeira Nacional nos aquartelamentos. As histórias que então me contaram sobre as compras de mancarra por parte de alguns comerciantes de Ingoré, fariam sofrer de inveja muitos dos latifundiários do nosso Alentejo de então.

Era este o meio de onde acabavam por surgir os voluntários para as milícias, e posteriormente, para as tropas africanas. O Estado Português, o Exército e a Administração Local, seriam os responsáveis pela propaganda. Não era essa a função do Otelo numa das repartições do E. M. em Bissau?.



Tudo devidamente acompanhado de incentivos económicos e sociais. Mas, em verdade, a escolha pertencia aos voluntários. A alternativa encontrava-se no mato a bem poucos metros de distancia do outro lado do arame farpado!



Lutavam, tanto do lado colonial, como no movimento de libertação, representantes de todas as etnias da Guiné. Procurou-se assiduamente criar condições para motivar etnias completas a mudar de campo.
Nunca se conseguiu criar, na generalidade, fronteiras rácicas entre os combatentes. Nalgumas zonas as percentagens variavam acentuadamente, mas nunca foi uma guerra entre etnias na sua totalidade.


Não era por acaso que a organização política e militar do PAIGC, sem esquecer a sua fundamental componente das relações internacionais, era uma das mais eficientes, e respeitada, de entre os movimentos de libertação.

O descalabro da então apregoada descolonização exemplar, não a ideal, mas a possível, mais não foi que uma consequência directa do contexto político existente e não menos do herdado. Os esforços de poucos, quanto a assumir responsabilidades para com estes guineenses ao serviço da política colonial, não foram, obviamente, suficientes para os proteger.



Muito se poderia escrever e se escreverá, sobre os esforços e diligências concretas, documentadas, por parte do Carlos Fabião sobre o assunto. Na sua passagem de mais de uma década pelo mato da Guiné, ele, melhor que ninguém, estava ligado, de raiz, à criação das milícias e sua problemática.

Criei com ele amizade pessoal, desde o tempo em que este comandava o sector operacional de Buba, o que me veio a permitir, nos anos 74/75, colocar-lhe algumas perguntas pertinentes sobre o que se poderia ter feito, o que se não fez e o que, na verdade, se procurou fazer.

Verifica-se, infelizmente, que dos interessados nos factos relacionados com as mortes destes africanos, uns colocam as suas pré-ideias à frente do que realmente se procurou fazer, outros procuram analisar este período tão caótico com o coração!

Há, no entanto, alguns factos reais e importantes, que ainda não consegui encontrar no que de muito se tem escrito sobre o assunto. Quer se concorde, ou não, os acontecimentos pré- revolucionários (?) que então se sucediam em Portugal, não eram conducentes a permitir o desembarque em Lisboa de umas boas centenas de (o que de logo seriam apelidados por certos grupos) mercenários e criminosos ao serviço (passado) do colonialismo e a serem utilizados num futuro próximo. POR QUEM?

O exemplo concreto do passado com o tão medalhado Marcelino da Mata, nos acontecimentos do RALIS, deu uma boa amostra desta realidade, para muitos incómoda de enfrentar.

Por outro lado, países africanos contactados, recusaram terminantemente, como seria de esperar, a receber estes colaboradores activos do colonialismo português. E não menos importante, mas por muitos esquecido, o voluntário, imediato e espontâneo cessar fogo por parte de algumas das guarnições portuguesas no mato da Guiné, que veio a colocar umas boas centenas de soldados na posição de reféns, de facto, das forças locais do PAIGC.


Uma logicamente muito complicada situação no terreno, para permitir estabelecer exigências! As execuções, os fuzilamentos e alguns massacres acabaram por acontecer.

Uma prolongada guerra de libertação nacional, com sacrifícios indiscutíveis por parte dos guerrilheiros e seus apoiantes, criava condições mais que suficientes para um ajuste de contas com os que tinham as mãos bem manchadas por tanto sangue de guineenses.

Como português, não sinto orgulho no sucedido a tantos destes africanos que lutaram lado a lado e tantas vezes À FRENTE das nossas tropas.


Fotos: © José Belo (2007). Direitos reservados.

Por respeito a todos os que lutaram, e lutam, pela liberdade dos povos, (incluindo o meu, na sua já bem longa História de séculos), recuso-me a romantizar ou menosprezar a ESCOLHA que esses guineenses efectuaram.

À luz da História e dos Direitos do Homem, foi uma escolha... errada!

Stockholm/2007.
José Belo
Ex-Alf Mil da CCAÇ 2381 (1968/70)
Buba, Quebo, Mampatá e Empada
________________________________

Nota de CV

Sobre o assunto, vd. postes de:

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira

Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2062: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (5): O General que não gostava de bigodes

Guiné 63/74 - P2067: Convívios (25): CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72), Alfeizerão, 23 de Setembro de 2007 (Paulo Santiago)



O nosso camarada Paulo Santiago vem dar conhecimento do convívo da CCAÇ 2701 no Restaurante Quinta das Carrascas (Zé da Génia), sito na EN8 entre Alfeizerão (5Km) e Alcobaça.
Este convívio terá lugar no próximo dia 23 de Setembro.

De salientar que este convívio é extensível ao todos os camaradas do Pel Caç Nat 53.

Os interessados deverão contactar o Lourenço (por favor não confundir com o Proveta) para os números:

Tlm - 917398375 e de casa - 262999617

 > 
Distintivo da CCAÇ 2701, perpetuada numa parede da Estalagem do Saltinho .

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2066: Em busca de... (9): Malta da CART 1746, a unidade do Alf Mil Gilberto Madail e do 1º Cabo Manuel Moreira (J. M. OIiveira Pereira)

1. Mensagem do nosso camarada José Maria de Oliveira Pereira, que presumo seja oriundo de e/ou residente em Ourém:

Sou um ex-combatente da CART 1746 e procuro, há muito tempo, contactos de ex-camaradas.

Ao ver este site e reparar que falavam no Gilberto Madail, que pertenceu à CART 1746 (1), e que era meu superior, fiquei com alguma esperança de que me pudessem enviar contactos de camaradas da minha companhia.

Fico a aguardar uma resposta. Desde já agradeço a disponibilidade prestada.

O ex-Combatente

José Maria de Oliveira Pereira

Contacto telefónico : 917794330
E-mail: paula.dias@mail.cm-ourem.pt

2. Comentário do editor do blogue: Camarada Oliveira Perereira:

Embora de férias, li a tua mensagem na minha caixa de correio. Apresso-me a deixar aqui o teu pedido na esperança de que a malta da CART 1746 te contacte directamente ou através do nosso blogue.

Infelizmente não temos tido muitas notícias nem publicado muitas estórias sobre a tua unidade. Temos, pelo menos, três posts sobre a tua CART 1746, sendo dois com referências ao então Alf Mil Gilberto Madaíl (1). Também já aqui publicámos uns versos do teu camarada Manuel Moreira, que é natural de Águeda. Volto a qui a reproduzi-los (2).

O Manuel Moreira é amigo e conterrâneo do camarada Paulo Santiago, membro da nossa tertúlia . Talvez o Paulo te possa ajudar a entrar em contacto com o Manuel Moreira. Se quiseres, podes fazer parte deste grupo de antigos combatentes e amigos da Guiné. Basta mandares duas fotos tuas (digitalizadas, em formato.jpg, sendo uma actual e outra do tempo da tropa) e dizeres algo mais sobre ti e a tua comissão na Guiné. Desejo que tenhas boas notícias da malta da CART 1746 através dos nossos amigos e camaradas da Guiné. És, naturalmente, bem vindo até nós. Luís Graça.


CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês (3).
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p'ró jantar
E uma pinga a acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar,
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968.
________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)

(2) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1009: Cancioneiro do Xime (1): A canção da fome (Manuel Moreira, CART 1746)

(3) A CART 1746 (1967/69) veio de Bissorã para o Xime. Aqui tinha um destacamento na Ponta do Inglês . Este ponto estratégico, sito na margem direita do Rio Corubal, foi abandonado pelas NT em Novembro de 1968. Na altura era guarnecido por forças da CART 1746, a unidade de quadrícula do Sector L1 (Bambadinca): vd post de 19 de Março de 2006 >Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2065: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (8): Furriel Amorim, morto em combate

1. Mensagem do Raul Albino, ex-Alf Mil, CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (, Mansabá e Olossato, 1968/70) em 22 de Agosto:

Caro Luís e editores
Espero que as tuas férias estejam a ser repousantes. Qualquer um de vocês merece dois meses de férias (pagas a peso de ouro).
Aqui vai o 8.º texto das Memórias da CCAÇ 2402.
Espero que chegue em boas condições ao destino.
Um abraço a todos
Raul Albino


2. Furriel Amorim – Morto em Combate

Em 6 de Novembro de 1968 teve lugar uma operação, sem nome, de patrulhamento conjugado de emboscadas na região de Igate/Peconha, onde estava referenciada uma base do IN, a partir da qual, quase diariamente, saíam elementos que atacavam os trabalhos na estrada Bula-Có, logo ao nascer do dia.



Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > Coluna em deslocação de Bula para Có.



Teve a duração de um dia e um efectivo de dois grupos de combate (nesta operação específica, o 1.º e 4.º grupos).
A missão era emboscar o IN, no seu regresso à base na Peconha.
Porque o 3.º Grupo de Combate que eu comandava ficou nesse dia de serviço ao aquartelamento, não serei o mais habilitado a descrever o que aconteceu neste dia infeliz para a nossa Companhia, tendo recorrido a alguns testemunhos de quem esteve presente na Operação e quis participar nesta narrativa.

Logo no início, esta Operação teve algo pouco habitual. Por razões que desconheço, o nosso Capitão Vargas Cardoso decidiu sair com os dois grupos de combate nesta Operação, passando a comandá-la no terreno. Digo pouco habitual, porque não era pressuposto o nosso Comandante de Companhia sair em operações no exterior, nem a isso estava obrigado pela sua hierarquia. Foi portanto da sua inteira iniciativa esta saída para o mato.




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé, da esquerda para a direita: Aspirantes Francisco Silva e Raul Albino, e Capitão Vargas Cardoso (assinalado com um círculo a amarelo).

Fotos: © Raul Albino (2007). Direitos reservados.


As únicas imagens que retenho na memória com grande consternação, foi o regresso das nossas tropas na sua chegada à porta de armas. Era uma fileira de militares esgotados e abatidos, não tanto pelos contactos com o inimigo, mas principalmente pelo seu estado de saúde. Entravam em pequenos grupos amparando-se mutuamente, com os rostos irreconhecíveis, deformados pelo inchaço provocado pelas ferroadas das abelhas. Em alguns nem se viam os olhos e tinham de ser conduzidos por companheiros como se fossem cegos.

Durante toda a comissão poucas coisas me impressionaram tanto como esta visão do efeito causado pelo ataque das abelhas nas feições e no moral dos combatentes.

Como esclarecimento fica aqui a informação de que o Furriel Amorim, que recebera formação nos Comandos, tinha vindo em rendição individual dois ou três dias antes desta Operação, para substituir um furriel meu que fora evacuado por doença.

Como havia um grupo mais desfalcado do que o meu, não me foi atribuído, indo reforçar o 4.º Grupo de Combate. Foi efémera a sua passagem pela Companhia.

Era casado com uma professora primária em A-Ver-O-Mar/Póvoa de Varzim e esperava ser pai pela primeira vez em Dezembro.

Mas passemos à descrição sucinta da Operação propriamente dita.

Pelas 10,40 horas um pequeno grupo IN caiu na emboscada montada pelas NT, junto à antiga tabanca da Peconha. Reza a descrição oficial que logo aos primeiros tiros foi gravemente ferido o Furriel Amorim, pertencente ao 4.º Grupo de Combate.

Simultaneamente uma rajada terá atingido um enxame de abelhas que investiu furiosamente, pondo em debandada o grupo IN e as NT que estavam emboscadas. Pior coisa não podia ter acontecido e isso marcou esse dia fatídico e tudo aquilo que se seguiu.

Com o furriel ferido e a emboscada abortada pelo ataque das abelhas, foi pedida de imediato, por rádio, a evacuação por helicóptero do Furriel Amorim. A evacuação demorou bastante a ser feita e pelas 12,05 horas o furriel viria a falecer.

Já de regresso, as NT, já com manifestações nítidas de inchaço nos rostos, foram por sua vez emboscadas pelo IN, calculado entre 20 a 30 elementos ainda segundo a versão oficial, utilizando Morteiro 60, Lança Granadas Foguete, Metralhadoras Ligeiras e armas automáticas, durante cerca de 20 minutos. As NT reagiram pondo o IN em fuga.

Neste segundo contacto saiu ligeiramente ferido o nosso Capitão Vargas Cardoso, tendo sido evacuado de helicóptero com o falecido Furriel Amorim, pelas 14,15 horas. Segundo notícia posteriormente obtida pelo BCAV 1915, o inimigo terá sofrido na 2.ª emboscada dois mortos e vários feridos.

Seguem-se os depoimentos de alguns intervenientes nesta operação. Curiosamente o testemunho mais importante, o do Cap Vargas Cardoso, só recentemente chegou à minha posse. Está a ser trabalhado e irá ser incluído no 2.º volume das Memórias de Campanha da CCAÇ 2402. Será posteriormente enviado ao blogue se ele assim o autorizar.

Depoimento de António Coutinho da Silva:

Quando o Furriel Amorim chegou à nossa Companhia, via-se que era um homem activo, falava com o pessoal e estava sempre ansioso por saber situações de guerra, até que chegou o dia de ir para o mato com o meu pelotão (4.º) fazer uma patrulha na estrada de Có para Bula, na região da Peconha.

Estávamos emboscados, quando um milícia nativo subiu a uma árvore para vigiar a zona. Quando viu o inimigo, desceu da árvore e avisou o pessoal de que o inimigo estava perto.
Preparámo-nos para o contacto e quando o Furriel Amorim se levantou com a arma em posição de fogo, o inimigo foi mais rápido e uma rajada veio a atingi-lo gravemente. Apesar de todos os esforços dos nossos enfermeiros nada pôde ser feito, acabando por morrer perto de mim. Foi um momento que nunca mais esquecerei.
Paz à sua alma!

Depoimento de José Manuel Rodrigues Ferreira:

Quando do ataque das abelhas, também passei um mau bocado, perdi a arma G3 e duas granadas de bazuca, na aflição do momento.

Depois de deitarem fogo ao capim e quando tudo se acalmou, fui com um guia à procura da arma e das granadas, mas acabei por encontrar a arma com a coronha toda retorcida pelo fogo.

Depoimento de Armando Cruz Pimentel Pereira:

Há recordações que não posso esquecer, como por exemplo, aquela operação em Có onde o Furriel Amorim veio a morrer.

Ele tinha a mania de não se deitar e isso foi-lhe fatal ao receber uma rajada no corpo e como se isso não bastasse mandaram uma roquetada para uma árvore onde se encontrava um enxame de abelhas, que a muitos deixou a cara inchada pelas ferroadas. Alguns deixaram de ver e tivemos de os trazer pela mão.

Fomos novamente atacados e eles nem viam sequer o suficiente para se atirarem ao chão e protegerem-se.

Teve de vir um helicóptero para levar o morto e também o Capitão. Só aí ficou confiante o Capitão de que era verdade o que eu dizia que as divisas e o lenço verde no mato luzia ao longe. E ali ficou ele, perplexo, sem saber o que fazer, já nem sequer reagia com a poeira que não o deixava ver. Fui então socorrê-lo porque ali podia morrer.

Já no quartel foi-me ver para me agradecer, abraçando-se a mim e chorando por o ter ido socorrer, mas eu não fiz mais que a minha obrigação, foi isso que lhe disse e na verdade senti.

Depoimento de António Joaquim Rodrigues:

Além do segundo ataque a Có, o outro momento que mais me marcou foi a operação que fizemos à Peconha.

Eram dois pelotões e andámos toda a noite para chegarmos ao local de manhã cedo. Aí montámos uma emboscada em forma de L.

Detectei um enxame de abelhas numa árvore grossa e disse ao Alferes Caseiro: - Vamos ficar aqui? Se houver algo estamos tramados com as abelhas!

Assim aconteceu, a minha Secção foi mais para a frente, como era a primeira ficámos à beira do carreiro onde os turras passavam. Nesse dia a minha Secção era comandada por um furriel que era a primeira operação que fazia connosco. Infelizmente ficou ferido.

Nós tínhamos uma sentinela em cima de uma árvore para ver ao longe. No momento em que foi rendido, os turras surgiram, o Capitão só teve tempo de dizer pela rádio: - Caseiro, põe-te à tabela!

Eles mandaram uma roquetada para a árvore onde estava o enxame de abelhas que, espavoridas pelo fogo, picaram todos os que se encontravam ao redor, a ponto de alguns colegas desmaiarem.

O Bilito só dizia: 
- Rodrigues vai chamar o enfermeiro!

Ao que eu lhe respondia:
 - Tem calma, eu também estou mordido e há colegas piores do que tu!

Tive então de ir buscar o enfermeiro para fazer curativo ao furriel ferido, que, salvo seja, apanhou uma rajada no corpo, devido à qual acabou por falecer.

Depois fomos fazer um reconhecimento, porque muitos deixaram no terreno granadas, cartucheiras, barretes, etc.

Momentos depois fomos atacados de novo já em regresso ao quartel. Foi pedido apoio aéreo, mas o helicóptero chegou muito tarde, acabando por evacuar o já falecido Furriel e o nosso Capitão para Bissau.

Depoimento de Manfredo José Abrunhosa da Silva:

Eu estive presente no momento em que o Furriel morreu e assisti à grande tragédia que foi a sua morte.

Nós estávamos no meio da mata, quando fomos avisados por um vigia de que o IN se dirigia para nós. De imediato tentámos estar numa posição que nos defendesse do ataque dos inimigos e ao mesmo tempo estarmos prontos para o atacar.

O Furriel estava no meu grupo e levantou-se um pouco para ver se o IN estava próximo. Ele foi atingido de imediato por uma rajada de metralhadora. O seu lado esquerdo tinha sido completamente atingido, o sangue saltava cada vez que ele respirava, os nervos pareciam que lhe saíam do braço onde ele tinha empunhada a sua arma. Foi terrível assistir a tal sofrimento.

Depois do Furriel ter sido atingido, nós levámo-lo para a sombra de uma árvore onde esperámos pela ajuda do helicóptero. Neste entretanto, o Furriel foi assistido por militares-enfermeiros que fizeram tudo para o salvar. O esforço dos enfermeiros foi inglório, pois os ferimentos eram muitos e profundos. O seu estado era muito grave, mas tudo foi feito, dentro dos possíveis, para o salvar. O Furriel morreu antes de o helicóptero chegar.

Decidimos então levar o corpo do Furriel para o acampamento, mas caímos noutra emboscada. A mim não me mataram porque Deus protegeu-me. Eu rastejei e virei-me para trás para dar indicação a um colega que estava a 5 metros de mim, para lançar o dilagrama que era uma granada lançada pela própria espingarda G3. Ele lançou a granada e depois reinou o silêncio. Depois ouviram-se insultos, fomos chamados de assassinos, de bandidos e mandaram-nos embora para Lisboa.

Pouco tempo depois chegou o helicóptero que transportou o corpo do Furriel. A acompanhar o corpo do Furriel foi o nosso Capitão Vargas Cardoso.

Foram maus tempos, mas felizmente já passaram. Feliz fico eu por tudo ter ficado para trás.

Raul Albino
________________________

Nota do co-editor CV

Vd. último post da série de 16 de Agosto> Guiné 63/74 - P2053: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (7): O Pelotão dos Bravos na Ilha de Jete

Guiné 63/74 - P2064: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (12): Evocando todos os militares do 53




1. O nosso camarada Paulo Santiago, ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, em mensagem de 18 de Agosto, dizia:

- Segue mais uma memória. Hoje evocando, já o devia ter feito, todos os militares do 53 que tive o orgulho e a honra de comandar.



Foto do Pel Caç Nat 53> Comandada pelo ex-Alf Mil Paulo Santiago

2. Como já escrevi há tempos atrás, o Pel Caç Nat 53 era bastante heterogéneo quanto a etnias, o que não impedia haver um excelente espírito de corpo. Tenho grandes saudades daqueles homens, principalmente dos africanos, imaginando os que ainda vivos e vivendo na Guiné, as imensas dificuldades a enfrentar no dia a dia. Felizmente encontrei alguns em Fevereiro de 2005.

Comecemos pelo Fur Mil Duarte, já no 53, quando da minha chegada, era o meu braço direito, meu substituto no comando, natural de S.Pedro do Sul e actualmente residente em Viseu. Era também conhecido, alcunha apradinhada pelo Julião da CCAÇ 2701, por Passarinho e ainda esteve no Saltinho com a CCAÇ 2406. Ajudou-me imenso na minha integração no Grupo de Combate e na minha adaptação à Guiné. Extrovertido e excelente jogador de futebol, sendo que, no 53, exceptuando o comandante e poucos mais, havia os melhores jogadores e a melhor equipe das redondezas. O Duarte foi rendido pelo Fur Mil Mário Rui, em fins de 71, quando me encontrava em Bambadinca. Continuamos a encontrar-nos, tendo-me convidado para o casamento, a que fui com prazer, da filha mais velha.

O Fur Mil Mário Rui, tinha sido colocado na 2701 dois meses antes da minha chegada à Guiné, pertencendo ao 4.º Pelotão, comandado pelo meu saudoso camarada e amigo Alf Mil Valentim Oliveira, tendo transitado, como disse atrás, para o 53 em fins de 71. Onde páras Mário Rui? O número de telemóvel que tinha, há muito que está emudecido.Tenho um carinho especial por este meu camarada. Era uma pessoa alegre, simpática e exímio tocador de viola, guitarra, para os puristas. Foi extremamente afectado pela tragédia do Quirafo, o auxilio aos sobreviventes, a recolha dos mortos, marcou-o para sempre, paralisou-lhe os dedos provocando o calar da guitarra. Quando cortámos com o proveta Lourenço e mudámos para o Reordenamento de Contabane, ocupando a 1.ª casa, para quem vinha da fronteira, o Rui era meu companheiro de quarto. Tomava vários calmantes durante o dia, terminando, ao deitar, com uma dose de Vallium. Eu, cheio de wisky, ouvia os pesadelos que tinha durante a noite, o que não impedia a sua operacionalidade, como contarei noutra memória, quando de um ataque a uma tabanca perto do Saltinho. Fiquei com muita pena, quando fui rendido e o Rui, que já tinha mais tempo de comissão, continuou à espera de substituto. Se algum camarada souber do paradeiro do Mário Rui Rodrigues, natural de Cebolais de Baixo (ou de Cima), Castelo Branco, dê-me uma apitadela.

O Fur Mil Martins, transmontano, natural de Bragança, era um tipo muito certinho, muito introvertido, não bebia, convivíamos pouco, mas é um camarada que não esqueci.

Por último havia o Fur Mil Dinis, açoriano da Terceira, com aquela pronúncia caracteristica, conheci-o em Bambadinca, ao iniciar a instrução da minha 2.ª Companhia de Milícias, na primeira quinzena de 1972. Em 6/01/72, dia em que fiz 24 anos, apareceu um heli no Saltinho, estando já previsto o meu regresso a Bambadinca, em coluna, via Galomaro, mas como ainda tinha tempo, com a cumplicidade do Clemente e a boleia oferecida pelo piloto, regressei a Bambadinca, via Bissau, onde andei três dias nos copos e no Pilão, indo de DO 27 para aquela Sede de Batalhão acompanhado pelo Major Anjos de Carvalho, que tinha vindo ao QG tratar de um qualquer assunto. O Fur Mil Dinis chegara ao Saltinho no dia 7 e de imediato, foi enviado para Bambadinca como instrutor de um dos pelotões de milícia. Era um óptimo camarada, gostava de ouvir aquela pronúncia. Tal como o Martins, nunca mais soube dele, mas gostava de os encontrar.

Vamos aos 1.ºs Cabos.

O Mamadu Sanhá, beafada, ainda hoje Cabo da Guarda Fiscal, tive muita pena de não o encontrar em Bafatá, em Fevereiro de 2005. Foi ferido em combate, em 4 de Dezembro de 1971, em Galomaro, quando uma das secções do 53 se encontrava destacada, naquela Sede de Batalhão, comandada pelo Fur Mil Martins. Escreveu-me há tempos uma carta, que muito me emocionou, agradecendo uns euros que lhe enviei através do Sado.

O Verdete de Maiorca, Figueira da Foz, temo-nos encontrado.

O António Cosme de Vilarinho do Bairro, Anadia, que pouco tempo depois de chegar à Guiné, soube da trágica notícia da morte da irmã e cunhado, quando uma noite, andando a regar milho, cairam num poço, deixando dois filhos menores, criados e educados pelo tio, após o regresso da Guiné. Foi em Junho de 2006, juntamente com o Carlos Clemente, minha testemunha abonatória, num processo por agressão corporal, que malevolamente me levantaram e do qual, felizmente, saí absolvido. Já por duas vezes, nos juntámos em casa do Cosme, eu, o Verdete e o Pina, outro dos meus 1.ºs Cabos, infelizmente falecido há pouco mais de um ano.

O Umaru Baldé, também 1.º Cabo, fula.

Fechando com o Cristóvão Mantudo dos Santos, papel e o mais instruído do Pel Caç Nat 53, tendo frequência do 5.º ano do liceu.

Evocando agora os soldados, começando pelo Putchane Obna, balanta, também conhecido por Cunha, bebedor inveterado, o único a quem dei um forte murro (o Martins Julião assistiu) encontrei-o a dormir no posto de sentinela mais sensível do quartel.
O Fieme, mandinga, o Morna, balanta, por quem tinha também uma especial amizade, grande bebedor, mas contava-me histórias deliciosas.
O Bari, penso que mandinga, o Samba Jau, fula, o Tuai Camará, fula, o Quebosse Embonda, outro bebedor, balanta como é óbvio, o Bobo Embaló, fula, o melhor futebolista do Saltinho, tinha uma Cruz de Guerra.
O Bubacar Só, fula, mais conhecido por Buba, encontrei-o em Fevereiro de 2005 em Bambadinca, o Queta Mané, mandinga, o Dauda Camará, fula, o Baró Turê, mandinga, sei que vive em Lisboa, mas não tenho contacto.
O Iero Seidi, fula, ferido em combate na mesma data e local com o Sanhá, já morreu, estive com o filho em Bambadinca em 2005.
O Samba Seidi, fula, o Fodé Sané, fula, não fazia na altura serviço operacional, fora gravemente ferido, anos antes, para os lados do Xime. Tinha uma Cruz de Guerra. Era bom alfaiate, reparava-me as fardas, limpava-me a arma, mesmo sem pedir e a mulher era a minha lavadeira, irmã do Jamanta da 1. ª CCOMS.
O Bacari Baldé, fula, o Iaia Dabó, mandinga, protagonista de uma história de amor proibido, contada em memória anterior, o Bobo Djaló, fula, o Abdulai Uaga, balanta, mais conhecido por Bagaço, o homem do morteiro 60, usava um boné de bombazine cor creme, quando ía para o mato, mesmo com algum álcool, colocava a granada onde queria.
O Queta Embaló, fula, o Correia, balanta, o Suleimane Baldé, mais tarde 1.º Cabo, actual Régulo de Contabane, ainda há poucos meses esteve em minha casa. Continua a tratar-me por meu comandante. Jamais esquecerei a recepção que a Fatema, mãe dele, me fez e ao meu filho, em Fevereiro de 2005 em Sincha Sambel.
Mamadu Jau, uma força da natureza, um dos meus guarda-costas, tratava uma MG 42, como eu uma G3. Encontrei-o em Bambadinca em 2005.
O Abdulai Baldé, fula, o meu mais encarniçado guarda-costas, tive muita pena de não o ter encontrado em 2005, só em Bissau na véspera do regresso, soube que tinha passado ao lado da tabanca onde agora vive. Disseram-me que tinha sido um dos fiéis aliados do Brigadeiro Ansumane Mané e, que este se dirigia para a zona do Saltinho, quando foi assassinado à paulada. Procuraria refúgio junto daquele meu ex-soldado e de outros amigos que tinha para aqueles lados.
Outro dos meus guarda-costas era o Amadú Baldé, fula, passou depois para comandante de um pelotão de milícias . Também me desencontrei dele em Fevereiro de 2005.

Para terminar, faltam dois homens, o Fali Dembo, fula e o Jorge, alfacinha de gema, era o transmissões do 53.


Fevereiro de 2005> Paulo Santiago em Bambadinca> Na foto: Mamadu Jau, Paulo Santiago, Bubacar Só e, de cócoras, o filho do Iero Seidi

Fotos: © Paulo Santiago (2007). Direitos reservados

Acho que tinha de falar de todos estes homens, que durante muitos meses me acompanharam, 24 sobre 24 horas. Com eles aprendi muito e também lhes devo muito, há uns que pela sua personalidade ou por qualquer outro motivo, recordo com mais facilidade, mas todos estão presentes no meu coração.

Paulo Santiago
ex-Alf Mil
CMDT Pel Caç Nat 53
______________________________

Nota do co-editor CV

Vd. último post da série de 8 de Agosto, Guiné 63/74 - P2036 - Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (11): Dr Brocas, o contador de estórias, que era gago.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2063: Álbum das Glórias (24): O pretoguês Queta Baldé, uma memória de elefante e um grandecíssimo camarada (Beja Santos)


Lisboa > Julho de 2007 > O Queta Baldé e o Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.



Região de Bafatá > Xime > 1997 > Tabanca de Amedalai, de onde é natural o Queta Baldé. Foi, no nosso tempo, sede um destacamento de milícias, alvo de frequentes ataques do IN. Pertencia à Zona de Acção do Xime. Situa-se entre o Xime e a ponte do Rio Udunduma na estrada para Bambadinca.

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados


1. Texto enviado em 26 de Julho último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Viva Queta Baldé, uma memória indefectível, 
um grandecissímo camarada da Guiné!


Comentários: Como vêem, o Queta, a memória que me falta e me ilumina as minhas recordações sombrias, existe. É português, nasceu há 71 anos atrás em Amedalai, que é também o chão do meu querido Mamadu Djau. Foi milícia na Ponta do Inglês e Finete, depois da aprendizagem em Bolama foi com o pEL cAÇ nAT 52 para Porto Gole e depois Missirá, e depois Bambadinca, e depois Fá Mandinga.

Pertenceu à 2ª Companhia de Comandos Africana, andou fugido a seguir à independência, vive agora na Amadora, depois de ter sofrido muito até se ter feito reparação da sua lealdade. Não conheço ninguém que diga "bandeira portuguesa" como ele, é um pacto de sangue que excede a gratidão que tem a Deus por estar vivo. E, meu Deus, o que é que eu seria a desfiar as minha memórias sem os aerogramas à Cristina e a memória do Queta?

Como é que estas coisas se agradecem? Tirámos esta fotografia no Luís Soares, ele entregou-me embaraçado a fotografia dizendo que o Queta está muito escuro... Respondi-lhe que não é por acaso que falamos dos pretos da Guiné que são igualmente os soldados mais leais à face da terra.

domingo, 19 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2062: Da Suécia com saudade (5) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (5): O General que não gostava de bigodes

O nosso camarada José Belo, ex-Alf Mil que pertenceu a Os Maiorais da CCAÇ 2381 (1968/70), Buba, Quebo, Mampatá e Empada , retrata nesta estória a mentalidade dos Combatentes de Gabinete que não compreendiam como no mato o pessoal se sujava tanto e cheirava tão mal. Seria por não haver ar condicionado?

Usar bigode e barba era arrojado, porque o Comandante da Unidade tinha autoridade para consentir ou não o seu uso.

Como sempre, a estória chegou até nós por intermédio do Zé Teixeira (CV) (1).

O General que não gostava de bigodes,
por José belo

Tenho tentado redescobrir alguma da papelada que, mais de trinta anos atrás, escrevi sobre alguns detalhes da passagem pela Guiné. Aqui mando mais um testemunho do que por lá se chafurdou!

O Império caía de podre. Não eram os nossos camuflados tão sujos, enlameados e suados que cheiravam mal.

Certo Oficial-General do Estado Maior do Exército (EME) encontrava-se de visita à Guiné. Passeou-se de helicóptero por vários Comandos de Batalhões e, entre eles, o de Buba. Depois de almoço de ronco, o senhor General botou discurso. O tema eram os esforços dos que, como ele, nas repartições de Lisboa, tudo faziam e principalmente sacrificavam, para que a tropa do mato dispusesse das melhores condições para o desempenho das suas missões de guerra (sic).

Ouvem-se ruídos na parada do aquartelamento. Chegava a coluna de reabastecimentos de Aldeia Formosa, escoltada por uma Companhia de Atiradores. Não eram muitos os quilómetros que separavam Buba de Aldeia Formosa. Eram muitas as minas, fornilhos e emboscadas.

Demorava-se dois dias. Dois infernais dias! Mortos, feridos, viaturas destruídas, eram o preço dos géneros transportados. Comandava normalmente aquelas colunas, um Capitão de Artilharia, já na sua terceira Comissão de guerra e segunda no mato da Guiné. Era um Oficial destemido e cumpridor, que pelo seu exemplo, tinha para além da admiração e respeito, a amizade dos que serviam sob as suas ordens.

Como habitualmente, as forças da escolta formaram na parada. Cobertos de lama, rotos, esgotados, mas em impecável formatura militar. Era necessário saber-se comandar, para naquelas circunstâncias se obter aquele resultado.

Ao ver o General, que entretanto chegara à porta da Messe, situada em edifício alto com domínio sobre a parada, o Capitão fez as tropas formadas prestarem as honras devidas ao Oficial Superior.

Impecável manejo de armas.

Após a Companhia dispersar, o Capitão acompanhado pelos Alferes, dirigiu-se à Messe para merecida cerveja fresca. Quando já aí se encontrava, conversando com os oficiais do Batalhão que pretendiam saber notícias sobre as peripécias da coluna, o senhor General levantou-se da mesa, onde, a sós, conversava com o Comandante do Batalhão e dirigiu-se ao grupo dos recém-chegados. Olhando o Capitão com expressão fria e superior, em contraste com o ambiente de calor amigo que se fazia sentir à volta do grupo, disse em voz razoavelmente elevada:
- Oh homem, vocês estão bem porcos. E francamente, quanto ao seu bigode... olhe que não gosto nada dele!

Fez-se profundo silêncio. Ainda hoje me pergunto, que complexos, que frustrações, que poder de impotente, existiam em conflituosos choques dentro daquele homem, em tão inoportuna manifestação de hierárquica estupidez, considerando as circunstâncias.

O Capitão, poisando o copo de cerveja no balcão e colocando-se frontalmente, em rígida posição de sentido, disse:
- É óbvio que vossa excelência não gosta de bigodes pois, pelos vistos, não os usa! Quanto ao estarmos emporcalhados, saiba vossa excelência que por estes matos da Guiné aparece e passa muita lama!

Estávamos então, AINDA, em fins de 1969!

Este REAL Capitão (*) de Artilharia já faleceu, com o posto de Coronel.

São recordações como esta, que nos ajudam a dar as verdadeiras perspectivas do que por lá andámos a chafurdar!

Um grande abraço.
J. Belo
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Nota de J.Teixeira:

(*) Tratava-se do Capitão Rei, Comandante da CCAÇ 1792
__________

Nota do co-editor CV:

(1) Vd. post anterior Guiné 63/74 - P2041: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil CCAÇ 2381, 1968/70) (4): Aventuras de Maiorais

Guiné 63/74 - P2061: A odisseia esquecida de Gandembel / Balana (Nuno Rubim / Idálio Reis)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > 1968 > Início da construção do aquartelamento > No comments! (As grandes fotografias dispensam legendas)

Foto: © Idálio Reis (2007). (Editada por L.G.). Direitos reservados.



1. Mensagem do Nuno Rubim, na sequência do post de 19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis): 28 de Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

Caro Luís

Concordo plenamente contigo !!! Vamos pensar num meio de apoiar o camarada Idálio Reis a preservar ( publicar ?) documentalmente, reunido cronologicamente, todo esse importantíssimo acervo escrito e fotográfico !

E a prova segue em attach ... Desde Janeiro deste ano que insisto com ele ...

Um abraço

Nuno Rubim

2. Mensagem do Idálio Reis para o Nuno Rubim, com data de 7 de Junho de 2007:


Assunto - Torpedos bengalórios

Meu caro Nuno Rubim

Alegrou-me esta sua ciber-visita, porque ademais mostra que está apegado a esta visceral questão (parece que cada vez mais candente) da guerra da Guiné. Porque o Luís Graça tem editado a minha estória de modo algo compassadamente (1), tenho o prazer de lhe anexar as partes que então lhe enviei.

E porque o faço para si? Peço-lhe para dar pouco valor histórico ao memorial da CCAÇ 2317, que se encontra no Arquivo [Histórico] Militar. Ele não narra a grande generalidade dos factos então passados e, quando o faz, comete omissões ou erros.

Dos 372 ataques/flagelações que Gandembel sofreu, o maior foi a 15 de Julho (de 1968) e, com consequências mais desastrosas, bem diferenciado dos 2 que tiveram lugar na 1ª quinzena de Setembro. É que quando se quer quantificar o arsenal que o IN fez utilizar, somente lhe posso reconhecer que foi variado e imenso, ter a sensação do tempo dispendido, avaliar o tipo de armamento posto nesse teatro e tentar reconhecer os resultados. Fui incapaz de reconhecer quanto armamento ou efectivos se cercaram de Gandembel.

A utilização dos torpedos bengalórios fez-se incidir muito em especial em 15 de Julho, em que se tornou bem visível que houve destruição do arame farpado em frente ao paiol.

Quanto ao comandante da Companhia, o então capitão Barroso de Moura, desculpe este meu desabafo, mas hoje julgo que foi o pior de todos nós. A Companhia de Gandembel teve um capitão em part-time, pois facilmente se esquivava para Bissau. E vencido 2/3 da comissão, regressou a Lisboa para se guindar a posto mais elevado do Exército.

Foi homem que jamais vi, nem mesmo à nossa chegada se dignou a estar presente. Nunca apareceu nos convívios e também deixou poucas saudades ao pessoal da Companhia. E que direi eu, que um certo dia me puniu com 2 dias de prisão, agravado para 7 dias, e que me impediu de gozar qualquer período de férias?

Viria a ser substituído, já a Companhia em Nova Lamego, por um capitão do quadro de nome Pinto Guedes e que fora integrado ab initio na CCS. Este tomou a atitude então mais consentânea às circunstâncias, de nunca se intrometer nos seus destinos.

Sempre ao seu dispôr. Um forte e cordial abraço do Idálio Reis.

3. Resposta do Nuno Rubim:

Caro Idálio Reis:

Muito obrigado pelos dados que me enviou.

O drama de Gandembel merece ficar para a história e o camarada poderia talvez escrever uma monografia ilustrada sobre o assunto. Seria um importantíssimo contributo para o estudo da guerra colonial.

O meu trabalho, no quadro do Projecto Guileje, limitou-se à recolha de informações (documentos e fotos) sobre as unidades que lá serviram, mas depressa realizei que não poderia dissociar essa informação das unidades envolventes. Mas não faço análises, embora uma ou outra vez tente explicar a razão de ser de alguns acontecimentos ocorridos.
Esse trabalho de interpretação há-de ser feito (julgo eu...) no futuro. Por isso todo o material que recolhi (e o que ainda espero recolher), quer de fontes nossas, quer do PAIGC, ficará depositado no centro de documentação do núcleo museológico a instalar pela AD em Guileje.
Mas já propuz ao Pepito (Carlos Schwarz ), que aceitou a ideia, de que lá fiquem expostas ampliações de algumas das mais significativas fotografias, bem como alguns mapas, para além do diorama e das miniaturas dos meios de combate.
Quanto aos Torpedos Bengalore, nenhuma das listas que possuo, quer nossas quer do PAIGC, os menciona.

Sobre o que me fala dos intervenientes no processo, pois acho que o melhor é um dia falarmos pessoalmente sobre isso. Terei muito prazer nisso.

Grande abraço
Nuno Rubim

___________

Nota de L.G.:
(1) Além do post supracitado, vd. os anteriores (que de facto foram saíndo no nosso blogue com bastante irregularidade, por razões que não são imputáveis ao autor, mas sim ao editor, nomeadamente devido à riqueza e à abundância do material fotográfico que é preciso, no entanto, editar).

sábado, 18 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2060: Bibliografia de uma guerra (14) : o testemunho de Pedro Pinto Pereira. "Memórias do Colonialismo e da Guerra", de Dalila Cabrita Mateus (Virgínio Briote)


Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus . Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).

Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


Testemunhos da Guiné, de quem esteve do outro lado, são raros, como se a guerra naquela terra tivesse sido um caso menor.  Pelo interesse e valor histórico, com a vénia devida a Dalila Cabrita Mateus (DCM), trancrevo excertos do longo e interessante depoimento prestado por Pedro Pinto Pereira (PPP) à autora, em Setembro de 2001 (páginas 547 a 569).
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Pedro P. Pereira nasceu em Bissau em 1926. Em Bissau concluiu o 5ª ano dos liceus. Em Portugal tirou um curso de Guarda-Livros. O seu tetravô, Honório Barreto, foi Governador. O avô foi director da Alfândega. E o pai, comerciante e vogal da Câmara de Bolama, terá sido arruinado pela Casa Gouveia, da CUF.

(....) Um primo seu, James Pinto Bull, foi secretário provincial e deputado pela Guiné à Assembleia Nacional. Um outro primo, Benjamim Pinto Bull, académico, foi agraciado com a Ordem do Infante. E um filho seu foi ministro da Administração Pública na Guiné (Kumba Yalá).

Foi preso pela PIDE em Março de 1966. Os agentes apoderaram-se, então, de duas medalhas com a efígie de Salazar, de que se confessa admirador. Uma emissão do PAIGC na Rádio Senegal afirmou que "até mesmo os seus cães...como o Pipi Pereira...foram parar ao campo de concentração" (1).
Levaram-no para a 2ª Esquadra da PSP, onde passou 335 dias. Em Fevereiro de 1967, por despacho do então ministro do Ultramar, Silva Cunha, foi-lhe fixada residência no Campo de S. Nicolau (Angola), onde permaneceu até Setembro de 1969.

Após a independência da Guiné, foi detido (pelo PAIGC) sob a acusação de ter sido fundador do Movimento de Libertação da Guiné (MLG).

Em 1976, intentou uma acção contra Portugal, sob a acusação de ter sido ilegalmente preso. Em 1992, Portugal foi condenado pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem a pagar-lhe 800 contos.

(1) IAN/TT (Torre do Tombo), Arquivos da PIDE, Processo 641/61, PAIGC, 3º volume, "Emissão do PAIGC na Rádio Senegal, 8.02.1972, fls. 112 ss.
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Nota do co-editor Virgínio Briote: o depoimento de Pedro P. Pereira é extenso, a sequência é muitas vezes alterada, acontecimentos dos anos 60 misturam-se com alguns recentes, as opiniões pessoais abundam. Para melhor enquadrar os factos históricos, os que são dos nossos tempos, procurei sequenciá-los, respeitando o discurso do Pedro Pereira.
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" O primeiro governador da África Negra foi o meu tetravô, Honório Pereira Barreto. Embora não use Barreto, porque o governador apenas se "juntou" com uma prima minha, recusando-se a casar. Por isso, o meu avô não pôde usar o apelido. Mas foi o primeiro filho de Honório Barreto, que o mandou estudar em Portugal.

(...) mas não posso deixar de ter orgulho em ser descendente de Honório P. Barreto, que foi um grande governador, um grande defensor de Portugal. Grande mesmo, embora talvez prejudicando o próprio país, a terra que o viu nascer e que é a Guiné.

(...) naquela altura, quiseram tomar as ilhas de Bolama. Os ingleses foram lá com dois vasos de guerra e mandaram chamar o governador ao palácio. Sabe o que o governador fez? Foi a bordo de pijama e chinelos. eles é que deviam desembarcar e ir ter com o governador. Ele não se sujeitou àquele atrevimento de o mandarem chamar ao barco.

inauguração da estátua de Ulisses Grant (*) em Bolama (imagem in águalisa, de J. Tunes)
(...) O meu avô era de Cabo Verde, da Praia. Foi director da Alfândega da Guiné, primeiro substituto do juiz (...).

Mas o avô dele era biafada, de uma tabanca chamada Beduco.

(...) teve várias profissões (o pai, Vítor Gomes Pereira). Foi, por exemplo, comerciante: no seu tempo comprava 80 por cento dos produtos (mancarra, coconote), quando a CUF comprava 20 por cento. Então fizeram-lhe uma guerra terrível.

(...) Bastou dar o monopólio da exportação à Casa Gouveia, da CUF. Meu pai, natural da Guiné, era comerciante, empresário, comprava a mancarra e vendia-a para a Alemanha.

(...) Porque fui preso? Que me viram em casa de um rapaz chamado Mário Baldé, cujo pai fora criado na casa de meu pai. (....) Fui preso no dia 12 de Março de 1966. E acusado também de dar dinheiro para o partido, o que era mentira. Bem, tinha uma certa admiração pelo primeiro partido que existiu antes do PAIGC, que era o MLG (Movimento de Libertação da Guiné). O chefe desse partido era o Zé Lacerda, filho de um capitão português que viveu muito tempo em Bolama.

(...) Houve um desentendimento quando o Amílcar Cabral chegou à Guiné, como engenheiro agrónomo. De modo que dois rapazes de Cabo Verde, o Fernando Fortes e o Infante Souto Amado, foram ter com o Amílcar, e lá se fundou o PAIGC; também era a única maneira de Cabo Verde se tornar independente.

(...) (a sede da PIDE em Bissau), era ao pé do campo da bola, na altura o Estádio Nacional. Quem saía do Estádio para ir para a Praça do Império, era naquela rua. A primeira casa à direita de quem vai.

(...) (esteve em interrogatórios na Pide) Dois dias e tal.

(...) (o meu primo) Era o dr. James Pinto Bull. O pai dele era de origem inglesa, era da actual Serra Leoa. O Pinto era da irmã da minha mãe, e o Bull, do pai.

(...) (virei-me para o subinspector) O senhor já me devia ter dito (de que era acusado). Você fez isto e aquilo, mostrando-me as provas. Ou então mande-me para minha casa.(...)

Então isto é assim? Disseram-me que ia a tribunal, mas onde está o advogado, onde? Já passaram dois dias, e o meu advogado onde está? Veio cá para tratar comigo de uma procuração, e o senhor correu com ele, porque ele lhe perguntou o que é que eu tinha feito.

Este advogado era o dr. Macaísta Malheiros, que depois foi juiz.

(...) Mas voltando atrás. Não se atreveram a bater-me, mas eu também fui muito corajoso. (...) (estive) Sempre, durante trezentos e trinta e cinco dias preso na 2ª esquadra.

(...) Ouviu falar do dr. Henrique Medina Carreira? Foi ministro depois do 25 de Abril. É filho de António Barbosa Carreira, que só tinha a 4ª classe.
Esse Henrique Medina Carreira fez primeiro o curso de agente técnico de engenharia electrotécnica, depois foi para a Guiné trabalhar nos correios, esteve lá dois meses a trabalhar, mas foi ter com o pai e disse-lhe que se queria ir embora para estudar.

O pai respondeu-lhe que não tinha dinheiro, que dali não saía. Então ele foi ter com uma pessoa amiga do pai, um grande comerciante em Bissau, Mon Ali Amon, que também foi preso comigo.

(...) Mandaram chamar o Duarte Vieira, esse que tinha sido servente nas Obras Públicas e que chegou a tenente miliciano do Exército Português. (...) O tal Duarte Vieira, pediu a máquina de escrever e escreveu, escreveu, chamando-lhes nomes. Levou tanta pancada, que lhe quebraram a cabeça. Foi depois sepultado no cemitério.

(...) Mataram-no sim. Mas disseram que fugiu, que batera com a cabeça e morrera.

(...) (a acção contra Portugal) Meti. Foi o dr. Orlando Marcelo Curto que meteu a acção. Aqui em Portugal perdi três vezes. (...) Recorri sim, para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem. E ganhei.

(...) Em 1976, mas só a ganhei em 1992, dezasseis anos depois.

(...) (quem assinou o despacho) Foi o dr. Silva Cunha, ministro do Ultramar e da Defesa. Foi ele que assinou a nossa deportação para Angola.

(...) Éramos catorze.

(...) O inspector Reis Teixeira disse que íamos para São Nicolau, que o governador-geral de Angola até tinha feito a proposta de voltarmos para a Guiné (Arnaldo Schulz, o então governador da Guiné, ter-se-á oposto). Estive em São Nicolau 56 meses.

(...) Que assistira ao fabrico de uma bomba. Quando eles (PIDE) é que tinham deitado uma bomba em Farim, onde mataram muita gente (**).

(...) (quem lançou a bomba?) Foi a PIDE que mandou, tenho a ceteza disso. Lançou a bomba para depois dizer que nós até matávamos africanos. Ali não havia quartéis, só havia casas comerciais, onde era fácil lançar bombas e fugir. Porque é que não lançavam as bombas nos quiosques, frequentados pelos militares portugueses? E iam deitar onde só estava a população?Queriam arranjar pretexto para fazer prisões. Havia, então, uma festa numa tabanca e morreram mais de cem pessoas. Isto passou-se no dia 1 de Novembro de 1965.

(...) Comigo foram o Fernando Fortes, o Souto Amado, e muitos mais. Esteve lá um europeu connosco, o Cordeiro. Ele era duro, insultava a PIDE na rua abertamente. Ele tinha dois cães, a um chamava "pide" e ao outro o nome de um inspector que estava lá.(...) Era um grande técnico de raios X.

(...) Saí em 18 de Setembro de 1969, às 5 horas da manhã. (...) E fui recebido pelo governador da altura, o general Spínola, quatro dias depois de lá estar.

(...) Olhe, já me esquecia de lhe contar. Na altura em que a PIDE me foi prender, roubaram-me medalhas de bronze com a figura de Salazar. Ainda hoje sou um grande admirador de Salazar. Sou admirador da sua honestidade, do seu valor. Até fui a Santa Comba Dão para conhecer a casa dele!

(...) (porque fui preso pelo PAIGC) Por ter fundado o partido MDG (Movimento Democrático da Guiné). Estive preso vinte e seis meses. No tempo de Nino Vieira também não me davam autorização para exportar, dava-na a toda a gente, menos a mim."
__________

(*)"Ulysses Grant foi um general e estadista americano, nascido em 1822 e falecido em 1885. Andou na Guerra do México, em 1847, e participou activamente na Guerra da Secessão, lutando ao lado dos Nortistas, tendo dado o golpe de misericórdia aos Sulistas em 1865. Candidato a Presidente dos Estados Unidos, venceu por maioria esmagadora, tendo governado de 1868 a 1876, como 18º Presidente. De 1877 a 1880 fez uma viagem triunfal em volta do mundo, onde foi sempre calorosamente recebido."

"Pois foi este famoso estadista que defendeu abertamente a posse da Guiné para Portugal. Em memória de alguém que, sendo grande, soube advogar com generosidade uma causa justa, o Governo Português encomendou a Manuel Pereira da Silva a respectiva estátua."


in Joaquim Costa Gomes - Três Escultores de Valia: António Fernandes de Sá, Henrique Moreira e Manuel Pereira da Silva. Ed. Confraria da Broa de Avintes.


(**) Confirmado o incidente, a PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar, afirma que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC.

(AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

O interessante é que Pedro Pinto Pereira, um adepto do regime e admirador de Salazar, atribua o incidente à própria PIDE. Aliás, fazendo-se eco da versão que, na altura, circulou entre a população africana, como o reconhece a própria Polícia (DCM).

Guiné 63/74 - P2059: Um disco oferecido pelo MNF, às NT, no Natal de 1973 (Álvaro Basto/Carlos Vinhal)

Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf, CART 3492/BART 3873, Xitole, 1971/74 (1)


1. Em conversa, aquando do almoço da minitertúlia de Matosinhos, no dia 8 de Agosto, no qual tivemos como convidado especial o nosso amigo Batista, dizia-me o Álvaro Basto possuir um LP que o Movimento Nacional Feminino (MNF) tinha oferecido no Natal de 1973. 

 Achei que tal objecto seria interessante mostrar aos visitantes da nossa Página, porque significava muito do que na época se fazia para levantar (?) o moral das nossas tropas. Quem não se lembra das coisas mais desinteressantes, disparatadas e pouco úteis que nos ofereciam então ?! Desde medalhinhas de santos, em alumínio, maços de tabaco (de marcas que nós apelidavamos de mata-ratos), isqueiros (tipo petromax) e quejandos. 

 Confesso que não considero assim o caso vertente, pois ainda se pode reproduzir este vinil nos velhos gira-discos. Além disso, contém, no verso da capa, dedicatórias de figuras públicas da época, algumas das quais já falecidas, o que lhe confere um estatuto de raridade.

Foto 1> Frente da capa do disco


Foto 2> Verso da capa do disco, onde se podem ler (?) as dedicatórias 

 Fotos: © Álvaro Basto (2007). Direitos reservados.


2. Por que não são legíveis as dedicatórias, aqui vão reproduzidas, com a identificação dos seus autores. 

 - Que o Menino Jesus vos ponha no sapatinho uma menina muito bonita. Amália

 - Com as saudações de simpatia do Jorge Alves 

 - Um abração do amigo que nunca vos esquece. Camilo Oliveira 

 -Do coração um beijinho muito sincero da amiguinha Hermínia Silva 

 - Com um abraço e até o mais breve possível Raúl Solnado 

 - Com admiração e respeito por todos vós. Um regresso muito breve. Fernanda Maria 

 - Para os soldados portugueses com abraço e afecto do amigo Ricardo Chibanga 

- Também quero jogar nesta equipa da amizade do Movimento Nacional Feminino. Por isso chuto daqui um grande abraço para a malta toda. Eusébio 

 - Por maiores que sejam os oceanos que nos separam, nada consegue vencer o amor que me liga a todos vós, meus irmãos. Florbela Queiroz-


3. E por que não indicar as faixas do disco? 

 Face A: - Abertura - Lisboa; Trás-os-Montes; Moçambique; Ribatejo; Madeira; Beiras; Timor e Açores 

 Face B: - Alentejo; São Tomé e Príncipe; Minho; Cabo Verde; Coimbra; Macau; Porto; Guiné; Algarve; Angola e MNF - Fecho. Como se depreende, música para todos os gostos e quadrantes geográficos. 

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Nota do co-editor CV: (1) Vd. Post de 26 de Junho> Guiné 63/74 - P1888: Tabanca Grande (19): Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf, CART 3492/BART 3873 (Xitole, 71,74).

Guiné 63/74 - P2058: Estórias do Zé Teixeira (21): Fermero ká tem patacão prá paga, toma minha mudjer (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira, 1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70). Sendo enfermeiro militar, proporcionou ajuda sanitária à população das tabancas por onde a sua Companhia passou. Dedicando todo o seu saber e desvelo à causa que tomou sobre os seus ombros, viveu estórias tocantes como esta.


Fermero ká tem patacão prá paga, toma minha mudjer

por Zé Teixeira (1)

De O meu diário

1969, 5 de Janeiro

Estou de volta a Mampatá , após uma coluna (de ida e volta) a Buba. Se todas as colunas decorressem como esta, não me importava de fazer colunas. Cerca de 400 homens em movimento.

Admiro esta população. Quando souberam que eu ia a Buba, vieram despedir-se de mim. As bajudas abraçavam-me… sei lá. Dá gosto viver com esta gente.

1969, 13 de Janeiro

Chamarra é o meu novo hatitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste e chocante. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o africano é homem que sendo compreendido e ajudado, se dá numa amizade sincera. Muitos pediam que eu ficasse (*), outros para ir até lá, as bajudas beijavam-me, etc., etc...

Ao reler o diário que teimosamente fui escrevendo em cima dos acontecimentos, com o objectivo concreto de extravasar para o papel o que me ia na alma naquele exacto momento, esbarrei com estes dois pequenos textos, os quais posso afirmar encerram ou definem, quanto foi para mim agradável viver meio ano no convívio com aquela simpática gente, num “oásis” plantado em pleno teatro onde se praticava a mais dura guerra de guerrilha.

Passados que são trinta e nove anos, o meu pensamento mergulhou de novo em Mampatá Forreá. Pequena tabanca no sul da Guiné-Bissau situada a cerca de cinco quilómetros de Aldeia Formosa (Quebo). Cruzamento de quatro estradas (picadas), qual delas a mais apetecível para se passear acompanhado, no mínimo, com a G3 bem abastecida e em grupo destemido e disposto a vender cara a vida.

Não havia muito por onde escolher: uma direccionava-se para Gandembel, passando por Chamarra e Ponte Balana, continuando depois pelo corredor da morte até Guiledje.

Outra corria para Buba, passando por Uane (destruída e queimada pelo IN, onde tinham sido apanhados e feitos prisioneiros cinco camaradas em Maio último), Nhala e a temível bolanha dos passarinhos na Lagoa de Cufada.

Uma terceira, que lançando-se da direcção de Colibuia e Cumbijã, tabancas abandonadas recentemente, se partia em duas seguindo uma para Guiledje e outra para Buba, passando por Sinchã Cherno onde, quinze dias antes, eu vivera o drama de não poder valer a um camarada que partiu para o eterno aquartelamento, para desespero de todos nós.

A última, embora tivesse o seu fim em Bissau, passando por Aldeia Formosa, Saltinho, Xitole e Bambadinca, ficava-se por Aldeia Formosa, desde o fatídico dia 24 de Junho, em que o IN atacou Contabane, incendiou a tabanca, pondo a tropa e a população em fuga com a roupa que tinham no corpo.

Muitas cenas vividas me vieram à memória. Vou começar pela primeira.

Recordo a minha tímida chegada, integrado no 3.º Grupo de Combate para aqui destacado temporariamente em Agosto de 1968. Tinha como responsabilidade garantir a assistência, como enfermeiro, aos militares meus camaradas, ao pelotão de milícia e à população.

A forma como a população nos acolheu foi excelente. Tratava-se de uma pequena tabanca onde os habitantes não chegariam aos quinhentos, sem quartel, ficando os militares em abrigos construídos artesanalmente com troncos de madeira espalhados em redor da aldeia, para protecção da mesma.

Recordo o milícia que se dirigiu a mim, logo à minha chegada, dizendo que o pai “estava manga de doença”, “bariga e na dê” e “bariga ramassa” – suponho que me queria dizer que o pai tinha muitas dores de barriga e os intestinos presos.

Como ainda estava presente o enfermeiro que iria render (isto de aprendiz de enfermeiro passar a médico às três pancadas, não foi fácil para mim), pedi-lhe apoio para este problema e tive como resposta: - Este gajo é um chato. Tens ali uns comprimidos. Dá-lhe apenas um por dia. Não lhe dês o frasco, pois se o fizeres no dia seguinte está aqui de novo com a mesma ladainha e tu nãos tens remédio para o calares.

Cumpri as instruções do colega e o homem lá foi tirar as dores ao pai. Coitado.
Manhã cedo, lá estava o Suleimane: - “Fermero, parte quinino pra minha pai. Bariga na dê”.

Armei-me em xico esperto e acompanhei-o à morança para ver o pai, qual médico sabichão, sem conhecimentos, sem instrumentos, apenas com um frasco de pírulas castanhas que eram recomendadas para tirar dores em geral e nos pós-operatórios, aconselhando uma toma mínima de três por dia. Medicamento milagroso, cujo nome, por traição da memória, não consigo relembrar, mas que muito me ajudou a debelar dores a brancos e a pretos, que nos dezassete meses que se seguiram me procuraram, à procura de remédio para as suas maleitas, na ausência quase permanente de um médico.

Após uns minutos de difícil conversa, dado que o velho doente se exprimia apenas no seu dialecto, o filho palrava algumas palavras em português à mistura com crioulo que para mim ainda era chinês e eu fazia perguntas em português de Portugal, consegui deduzir que o homem não fazia o saneamento da tripa cagueira há mais de oito dias. A barriga parecia uma dura pedra. Ao fazer a apalpação como tinha visto o médico a fazer, provoquei a saída forçada de uma estrondosa e mal cheirosa bomba de gases, que por uns instantes perfumaram o ambiente, valendo-nos a porta que não havia e o telhado que era de capim, para desanuviar o ambiente.

Este acontecimento, acompanhado pela tomada de um dos comprimidos milagrosos, gerou temporariamente um aliviar das dores do velho, mas isso para mim não era solução.
Dirigi-me ao comandante do destacamento, o alferes José Belo, que depois de me ouvir atentamente, concluiu comigo que era urgente o doente ser visto por um médico, coisa rara por aquelas bandas, pelo que havia de ser pedida uma evacuação urgente, dado que a avioneta do correio só viria na Sexta-Feira e estávamos na Segunda.

Uma mensagem rádio para Aldeia Formosa, dali para Buba, suponho, e de lá para Bissau, com retorno a tentar saber da razão da urgência em pedir uma evacuação para a população. Resposta do alferes Belo: - Sou alferes atirador e não médico, o meu enfermeiro diz que não se responsabiliza, eu também não.

A meio da tarde recebemos novo rádio a comunicar a vinda da avioneta e lá vamos nós com o velho, a caminho de Aldeia Formosa, sem as devidas e normais cautelas, próprias de quem está em zona de guerra, sem azar, por aquele dia.
Embarcou pai e filho com destino ao hospital de Bissau, ficando eu aliviado em consciência e livre de um chato que deixou de me pedir “mesinho para pai di mim”.

Uns dias depois o filho regressou. Pude saber que o pai fora operado de urgência e estava recuperar bem.
Dois meses depois regressa o velhote, com outra cara, sem dores e até ao meu afastamento de Mampatá, nunca mais deu problemas.

Foi uma entrada de leão a minha, em Mampatá, por força das circunstâncias, mas que de algum modo marcou toda a relação entre a população nativa e a tropa, nos seis meses que por ali estacionamos. Ficou para mim o melhor quinhão, naturalmente. O Suleimane, quando o pai regressou curado, dirigiu-se a mim para me agradecer do seguinte modo: - ”Fermero, ká tem patacão prá paga. Toma minha mudjer. É tua mudjer”.

... E ficamos os dois abraçados.

Zé Teixeira
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Nota do autor

(*) Soube já em Chamarra que o alferes da milícia e chefe de tabanca Aliu Baldé e o sargento da milícia Amadu foram a Aldeia Formosa pedir ao Major Azeredo, para eu ficar em Mampatá, enquanto houvesse tropas da minha companhia no Sector – tinha ficado o 2.º Grupo de combate em Chamarra.

Como tal não era possível dado que em Mampatá tinha sido colocado um segundo pelotão de milícia com um africano como enfermeiro, fui então colocado na Chamarra com prejuízo para o meu colega, que foi com a Companhia para Buba, montar segurança na construção da estrada, tendo eu sido mandatado para ir uma ou duas vezes por semana a Mampatá atender e assistir a população.
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Nota do editor:

(1) Vd. último post desta série> 12 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2042: Estórias do Zé Teixeira (19): A vaca que deu sorte.