domingo, 28 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2227: Questões politicamente (in)correctas (34): RTP: Guerra Colonial, do Ultramar, de Libertação ou de África ? (Paulo Raposo)

1. Mensagem do Paulo Raposo (1), com data de 19 de Outubro:

Olá, Luís.

Há muito que tenho estado afastado destas lides. Depois de ver o programa [da RTP1, Prós e Contras,] (2), estou a enviar os meus comentários ao que lá foi dito.

Guerra Colonial, do Ultramar ou de Libertação: Foram as opções que nos deram, mas o nome tem de ser consensual e nacional. Uma coisas são os regimes, outra é a Pátria.

Realmente a nossa Guerra em África teve o seu começo na II Guerra Mundial. Se esta foi um grande terramoto, a nossa foi a sua réplica.

Assim, comecemos. A Alemanha teve sempre na mira duas coisas, as suas grandes aspirações:

1 - A Gross Deutschland, ou seja, crescer a Alemanha para leste: para isso lançaram colonatos pela Rússia dentro e ao longo do rio Volga.

2 - Ter um porto de mar de águas quentes que estivesse fora do alcance dos ingleses. O único porto, antes dos Pirinéus, com essas características, é o porto de Bordéus.

Hitler foi tão popular, porque prometeu ao povo alemão estes dois objectivos e conseguiu.

Agora vejamos a vaga de fundo que isto causou. Para o exército alemão entrar na Rússia, o Estado Maior forjou umas cartas trocados com o Estado Maior do exército vermelho, dando a impressão que este facilitaria a entrada dos alemães por território russo com última intenção de derrubar o comunismo.

Arranjaram maneira de que estas cartas chegassem às mãos de Estaline por mero descuido. Estaline acreditou e em consequência decapitou os seus oficias superiores, ou seja, decapitou o seu exército.

A entrada dos alemães pela Rússia foi pão com manteiga até... O General Von Paulus chegou a S. Petersburgo e cercou a cidade a sul, e a norte foi cercada pelos finlandeses. Esperavam que a cidade se rendesse pela fome.

Acontece que os russos conseguiram, apenas por um fio, continuar a alimentar a cidade que resistiu comandada por Kruschef às ordens de Estaline. Neste premeio os alemães convidaram Costa Gomes e Spínola a visitar esta frente e possivelmente entraram em contacto com Van Paulus.

E aqui, em S. Petersburgo, levantou-se uma vaga de fundo que arrastou os alemães até ao Rio Elba. Parou aqui porque estavam as tropas inglesas e americanas, senão só teriam parado em Bordéus.

Foi no levantar nesta vaga de fundo que apareceu pela primeira vez a palavra Descolonização. Pois à medida que os russos avançavam iam descolonizando ou limpando os colonatos alemães a leste.

Diz-se também que, quando Von Paulus se rendeu, ele e o seu Estado Maior começaram a trabalhar para os russos ocupando o lugar dos oficias superiores russos executados.

Portanto a palavra colonato ou descolonização está carregada de ódio entre russos e alemães.

Não nos diz respeito, aqueles são potências continentais e nós estivemos sempre ligados às potências marítimas. É outro campeonato.

Portanto, recuso Guerra Colonial. Pode ser Guerra do Ultramar, está mais correcta mas não é consensual. Guerra da Libertação, muito menos. O nosso inimigo da altura chamava-lhe luta da libertação, não guerra.

Pois guerra implica duas forças beligerantes.De um lado estávamos nós e do outro?
Também não lhe chamaram Guerra Civil, porquê?Portanto acho para ser mais consensual será Guerra de África , ou do Ultramar, se quisermos incluir a invasão de Goa.
Vou tentar escrever sobre cada um dos assuntos que foram tratados no debate.


É a minha opinião que é tão válida como outra qualquer.

Luís, já que tens tido a paciência de nos aturar e a perseverança de manter esta chama, venho pedir um favor: Não podes lançar em CD os documentário e filmes que se produziram durante o nosso tempo de luta?

Um abraço amigo do

Paulo

Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
BCAÇ 2852 / CCAÇ 2405
Guiné 68/70
Tel 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo

2. Comentário de L.G.:

Paulo:

É bom saber de ti e de voltar a partilhar o teu gosto pela análise geoestratégica. Aqui fica a tua posição sobre a questão (que não é meramente semântica) do nome a dar à nossa guerra: Colonial ? Civil ? Do Ultramar ? De Libertação ? De África ? Como eu tenho aqui defendido, na nossa caserna virtual, a terminologia fica ao gosto do freguês, ou seja, de cada um... Eu não tenho qualquer direito de te impor o meu ponto de vista, e vice-versa.... Não é preciso repetir, até à exaustão, que somos uma tertúlia plural e tolerante... O que nos une não é a ideologia, mas a camaradagem...

Tenho no entanto a obrigação (editorial) de chamar a atenção por o facto (histórico) de que houve, por parte do Estado Novo, uma clara mudança de terminologia em 1951, face à percepção dos novos ventos da história: (i) recorde-se que o Acto Colonial (sic) é o primeiro documento constitucional do Estado Novo, promulgado a 8 de Julho de 1930, pelo Decreto n.º 18 570, numa altura em que Oliveira Salazar assume as funções de Ministro Interino das Colónias; (ii) o termo colónias sempre foi usado tanto pela Monarquia como pela I República; (iii) a II Guerra Mundial e as primeiras independências de antigas colónias britânicas (por exemplo, a Indía, em 1947) vão obrigar o Estado Novo a revogar o Acto Colonial, na revisão da Constituição de 1933 feita em 1951 (3).

Quanto ao teu pedido, não sei se estarei em condições de satisfazê-lo... O material audiovisual sobre a nossa guerra está disperso, o mais importante estando nas mãos da RTP e do exército... Eu acho que a nossa geração, que combateu na Guiné, em Angola e em Moçambique, tem direito a visionar esses documentários e filmes... Vamos estar atentos à série A Guerra, que começou a ser apresentada pela RTP... Quanto a nós, vamos estar atentos aos documentários que nos chegarem às mãos ou ao nosso conhecimento... Ainda há umas semanas atrás, o Carlos Marques dos Santos me mandou alguns pequenos filmes do ex-Alf Mil Cardoso, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)...Houve malta nossa que fez, na Guiné, pequenos filmes em 8 mm... Esse material pode ser hoje recuperado... Aqui fica, pois, o teu e o meu apelo.

Daqui vai , de Lisboa até à tua querida Ameira, aquele quebra-ossos... Para o Almansor de Montemor, com a amizade e a camaradagem do Luís.
_____________

Notas de L.G.:

(1) Paulo Raposo: ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Vd. post de 10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)

(2) Vd. post de 17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2184: A Guerra do Ultramar no programa Prós e Contras (RTP1, 15 de Outubro de 2007): o debate dos generais (Inácio Silva)

(3) Acto colonial 1930. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2007. [Consult. 2007-10-28].Disponível em http://www.infopedia.pt/$acto-colonial-1930.

Guiné 63/74 - P2226: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (13): Um filme sério, honesto, positivo, inacabado (Hélder Sousa)

Lisboa > Belém > Forte de Bom Sucesso > Monumento aos Combatentes do Ultramar > 28 de Outubro de 2007 > Apesar dos longos e duros 11 anos de guerra, não há hoje ódio entre portugueses e guineenses, é o sentimento com se que fica quando se ouve falar os ex-combatentes, de um lado e de outro, no filme As Duas Faces da Guerra.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72) (1)

Assunto As duas faces da guerra - Filme/Documentário

Caros Amigos


Li com muita atenção os vários comentários que foram feitos ao trabalho da Diana e do Flora (2) e não posso deixar de manifestar o meu acordo com o que na generalidade foi sendo divulgado, sendo certo que algumas das opiniões emitidas revelam ainda uma grande carga emocional, o que, valha a verdade, só vem em abono do que o Filme/Documentário contém em si mesmo e que é o de ser capaz de despertar as emoções e suscitar a reflexão/discussão.

Sem qualquer reticência ou reserva mental considero que achei uma grande honestidade na forma e no conteúdo do trabalho, principalmente depois de anotar e aceitar o que a Diana disse sobre o facto de se tratar de uma obra necessariamente incompleta pela enormidade das coisas que havia a referir, a exibir, a mostrar.

É certo que muitos de nós gostaríamos de ver mais, de ver traduzidas em imagens a beleza da paisagem estranha que tanto nos cativou, as dificuldades de atravessar as bolanhas, o tarrafo, a floresta-galeria, a angústia das esperas nas emboscadas, a incerteza das flagelações, enfim, também todo o trabalho de assistência às populações (independentemente se isso era parte da "psícola" ou também muito de nós próprios), mas isso seria certamente um outro filme.

É claro também (e já foi escrito no nosso Blogue) que alguns dos episódios passados durante os longos 11 anos de guerra dariam bons temas para bons filmes, épicos, dramáticos, heróicos, etc., (os americanos fizeram vários filmes sobre o Vietnam, quem não se lembra de "O Caçador", "Platoon", "Apocallipse Now" e outros) mas isso poderão ser propostas para outros trabalhos que não este que observámos. Uma coisa de cada vez! Quem sabe se não se lança agora a semente duma iniciativa desse género?

Por outro lado é bom não esquecer também que está em marcha o "Projecto Guiledje" o qual vai muito mais no sentido do futuro, ou seja, recordar a guerra, como e onde as "coisas" se passaram mas agora para consolidar a paz obtida e construir o futuro.

Conhecendo a postura anti-guerra manifestada pela co-realizadora e sabendo do divulgado impacto emocional que lhe causou o visionamento do monumento com os nomes dos jovens mortos em Geba, dois dos quais no dia do seu 20º aniversário, parece-me que houve, da parte dela e portanto da forma como se reflecte no trabalho apresentado, uma caminhada no sentido de respeitar aqueles que lá estiveram, que sofreram, que lutaram, que morreram ou ficaram feridos (no corpo e na alma), independentemente da posição que tinham sobre a justeza ou não da guerra, da sua presença ali, e que, para muitos, foi o verdadeiro local de consciencialização da necessidade de mudança que veio a acontecer.

Não acho, como alguns amigos manifestaram o receio, de que "mais uma vez fomos apresentados como os maus da fita", pelo contrário, não me lembro de ter visto algo que referisse a acção dos nossos jovens militares como "criminosa".

Vi sim, e muitas vezes, a referência ao "não ódio" entre as partes, mesmo no tempo em que os acontecimentos se desenrolavam, e também agora no tempo presente. Vi inclusivamente a teorização de que "guerra é guerra", agora já tudo passou!

Portanto, é um trabalho sério, honesto, positivo, inacabado (no sentido que pode ter mais matéria para discussão) que se recomenda vivamente para fomentar essa discussão, levar ao conhecimento de amigos, familiares e público em geral o que foram esses tempos que muitos de nós vivemos e a que raramente nos referíamos, até para, inclusivamente, levar as autoridades a colocar dignidade e respeito na memória de toda uma geração de portugueses que fizeram História e que agora escrevem a história dessa época.

Cumprimentos a todos os amigos e camaradas da Guiné e, já agora, aproveito para prometer ao Luís Graça que, se não me distrair, não volto a chamar lhe
"comandante"... para ele não ficar embaraçado!

Hélder Sousa

___________

Notas dos editores:

(1) Vd. posts de:

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

26 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

(2) Vd. último post desta série > 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2223: A nossa Tabanca Grande e as Duas Faces da Guerra (5): A minha luta diária com a Maria Turra, no HM241 (Carlos Américo Cardoso)

Guiné 63/74 - P2225: Antologia (65): Tribulações de um balanta, um conto de Fernando Rodrigues Barragão (1951) (A. Marques Lopes)




BARRAGÃO, Fernando Rodrigues
Tribulações de um balanta / Fernando Rodrigues Barragão
In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.- vol. 6, nº 22 (Abr. 1951), p. 399- 404


1. Mensagem do A. Marques Lopes, de 25 de Outubro:

Caros camaradas:

Neste período em que a guerra colonial e as guerras de libertação das
ex-colónias portuguesas têm estado em algumas parangonas ("Prós e Contras" e "A Guerra"), em altura em que muitos, e jovens, já viram "As Duas Faces da
Guerra", tão especial para nós que estivemos na Guiné, dou-vos a conhecer
este texto, que muito me espantou.

Na Guiné, sabemos, havia a Casa Gouveia (CUF), que explorava os seus
naturais na mancarra e no coconote, os comerciantes libaneses (Taufik Saads
e outros...) que os exploravam pelo comércio. Mas este texto fez-me lembrar
o Landorf, nazi fugido da Alemanha, que tinha um comércio em Geba e actuava como o "caixeiro" deste texto.

E o meu grande espanto vem do facto de isto ter sido publicado no "Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa", Volume VI, nº 22, de Abril de 1951, relatando
as agruras de um balanta esfaimado e a forma como um comerciante branco se aproveitou disso para o explorar. Frisa a submissão dos mais velhos, por
força da tradição secular, e os desejos de liberdade deste balanta jovem
face à exploração a que era submetido.

O autor é Fernando Rodrigues . Do descobrimento aos dias de hoje. Encontrei o texto no blogue Senegâmbia (Boletim Cultural da Guiné-Bissau e regiões vizinhas - Senegal, Casamansa, Gâmbia, Guiné-Conakri e Cabo Verde) que recomendo.

Abraços
A. Marques Lopes


2. Tribulações de um balanta, por Fernando Rodrigues Barragão


Com o olhar morto, sem simpatia nem rancor, olhou a companheira estendida a um canto.
Acabara de sová-la. De sová-la ferozmente, numa ira súbita que não explicaria. Nem o álcool pode ser acusado. Há muito que não bebe. Onde o dinheiro?

Mas sovara-a. Por nada. Talvez porque a fome o aperta num círculo de fogo. Talvez porque a desordem que lhe vai no espírito se sinta acalmada depois de uma violência qualquer.

Ele sabe que o arroz, todo o arroz da sua colheita farta, se esgotou de repente. Sabe porque o não vê e sente no estômago a sua falta. Mas não compreende.

Por mais voltas que dê, pensando e pensando, não compreende. Servindo-se de pequeninas pedras, fez as suas contas. Mas, a meio já a confusão era tanta que as repetiu. E foi repetindo, vezes e vezes, até desistir.

Só então, entrando em casa, abruptamente sovou o primeiro ser que encontrou.
Os gritos da mulher, rasgando a quietude da «morança» e ecoando longe, mais o enfureceram. E a impunidade - que os vizinhos são sempre surdos - deu-lhe asas e forças.

E agora, olhando aquele corpo estendido, parou. Parou e ficou atónito sem saber o que fazer das mãos calosas que o escaldam. Rosnou qualquer monossílabo a meia voz e saiu.

Cá fora, o sol, a pino sobre a tabanca, empresta-lhe bafos de forno. E põe centelhas em todas as coisas. Pinta de cores gritantes as raras ervas, o colmo fumegante, o chão poeirento e vermelho. Longe, nas «bolanhas» desertas, flutuam vapores ténues e ágeis.

Bovinos famintos e sedentos mugem desoladamente. Um porco, vestido de crostas, refocila o chão ressequido. Crianças nuas amodorram nas raras sombras. Voejam, no ar parado, moscardos zumbidores. Nada mais.

Sob o sol impiedoso, a tabanca tem o ar fanado e triste das coisas mortas. Das coisas irremediavelmente mortas. Uma dor morrinhenta, constante e má, aperta-lhe o estômago e provoca tonturas.

Por momentos, uma indecisão suave e embaladora, leva-o a vacilar. Depois, um repente atira-o para a vereda, dura de muitos passos, que leva à loja. O caixeiro, gordo e vermelho, fuma tranquilamente. Tem uma camisa leve, de estreitas riscas azuis, enxovalhada e suja, e barba de muitos dias.

Quando Clodjê entrou, atirou-lhe um olhar indiferente e interrogou-o com um gesto de cabeça, violento como uma agressão. Clodjê, as mãos apoiadas no balcão, um esgar de dor a contorcer-lhe o rosto ossudo, não respondeu de pronto. Passou o olhar pelas prateleiras desconjuntadas, pelos panos garridos, por toda a loja.

Depois, de jacto, como se procurasse ver-se livre das próprias palavras, atirou:
- Arroz. Empresta. A fome é muita.

O outro teve um sorriso calmo. Chupou, deliciado, uma fumaça funda e semicerrou os olhos numa concentração grave.
- Já não empresto mais. Acabou. Acabou tudo.

Clodjê demorou a perceber. Apenas as últimas palavras lhe ficaram a martelar os tímpanos, repetidas, até ecoarem, surdas e átonas, no cérebro nebuloso.
- Fome é dor cansada. Tem paciência ...

E a sua voz chorosa, suplicante, tinha o som morno de melodia estranha. E aflitiva.
De novo a dor, funda e funda, roía-o. As pernas, que a fome tornara frágeis, tremiam. Todo ele tremia no receio da recusa, na perspectiva angustiosa de ter de internar-se no mato para devorar o que quer que fosse.

Foi só quando deitou a ponta pela janela que o caixeiro ditou as condições. Sem pressas. Sem interesse. Eram uns chatos. Arroz, arroz. Que diabo faziam às brutas colheitas? Vendiam ? Pagavam os empréstimos ? Bom. Mas porque não lavravam mais ? Sim, porque não lavravam? Não tinham? Lérias! Ralaços! Bêbados!

Resmungava, sonolento e acalorado, arrastando os chinelos de manufactura indígena. E, cínico, saboreava o seu poderio sobre aquele pequeno feudo que esmagava. Repetiu as condições. Pagamento a dobrar, uma galinha de gratificação por cada «bushel» [1] de arroz, promessa de compra de aguardente.

Clodjê hesitou. Voltava a ter de lavrar só para pagamentos ... Recuou até à rua, procurou pedrinhas, embrenhou-se em cálculos. Para comer e semear ... duas, quatro ... talvez vinte «bushels». As vinte pedrinhas comprimiam-se sob a sua mão trémula. Contou mais vinte e juntou-as. Era já um montículo considerável que o tornava atónito e derramava calafrios nas costas em arco.

Devia ainda - recordou de súbito - a manta que comprara nas chuvas para não esticar de frio. Mais duas pedras engrossaram a soma. Teria de vender algum, para arranjar dinheiro. Quanto?

Balançou, na mão em concha, quatro ou cinco pedras. Olhava, besta de pasmo, para o caixeiro sorridente e para a sua mão hesitante. Depois, atirou-as para junto das outras. Passou as mãos no monte e olhou em volta. Tinha o ar torvo e pânico de animal encurralado. O caixeiro ria e o pretito, praticante de balcão, gargalhava com pequeno gritos sincopados e histéricos.

Clodjê fitou-o. Era um garoto enfezado e petulante, rescendente a perfume. O riso alvar e ruidoso, doeu-lhe. E uma raiva funda, dolorosa como a fome, mais dolorosa que a fome, cresceu e toldou-lhe o olhar. Os seus músculos, longos como cordas, desenharam-se sob a pele suada. Um formigueiro estranho, como coceira de sarna, esquentou-lhe o sangue em ondas grossas que subiram até à garganta.

Depois, inexplicavelmente, deixou escapar um riso gutural, forçado, que mais parecia um soluço. Resolveu-se a contar as pedras. Eram muitas. O desânimo tomou conta do seu corpo, machucou-lhe os ombros e atirou a cabeça de encontro ao peito opresso.
Não. Não dava jeito. Mal acabasse a colheita ficaria, de novo, a braços com a fome. Para as chuvas ainda faltava um tempo comprido. Luas e luas viriam antes que chegasse o tempo da sementeira. E todos os dias tiraria arroz para comer. Sabe que é assim. Quem passa fome com arroz em casa?

Quando a «bolanha» tivesse água, já pouco haveria para semear. E só para pagamentos eram aquelas pedras todas. Não. Não dava jeito!

O caixeiro viera até à porta e acendera outro cigarro. E ficou-se a sacudir a caixa de fósforos, compassadamente, com um solo de massas em rumba idiota. Clodjê dispersou as pedras com um pontapé distraído e deu alguns passos. Mantinha ainda o queixo colado ao peito. Os braços tombados balouçavam rente ao corpo, ao abandono.
No largo, o sol irisava o chão de pequenas centelhas faiscantes. E a tal ponto, que dir-se-ia que o solo havia sido tauxiado de seixos. O ar, morno. e irrespirável, vinha em lufadas. Um cajueiro, em frente, parecia vergar sobre o braseiro.

O rio, ao fundo, corria calmo, barrento e sujo, sob o mangal enorme e compacto. Duas garças olhavam as águas estupidamente. Sob o peso da perspectiva atroz, Clodjê caminha quebrado, os nervos tensos, o espírito alvorotado e confuso. Nos olhos parados, uma luz baça de melancolia. E fome!

Mas não. Não pode receber o empréstimo. Ficará, daqui a pouco quase sem semente. Terá uma colheita pobre, de míseras espigas que a loja absorverá. E aquela história das galinhas, dadas assim sem mais nem quê, turva-lhe, mais e mais, o raciocínio lento e emaranhado.

Sob o cajueiro imóvel, estaca de chofre, agarrado por uma ideia súbita que o sacode. E se, de noite, entrar no armazém? Deve ser fácil. Os portões enormes, seguros por um cadeado pequeno e ridículo, serão fraco obstáculo. Mas logo, volumoso e quente, cresce um receio. E a tal ponto o sufoca - esse receio pueril.- que sacode, angustiado, a cabeçorra enorme. O lojeiro queixar-se-á no Posto. E os trabalhos virão. Ainda há pouco pediu o empréstimo. Será o primeiro a ser procurado, ele sabe. E teme.

O lojeiro aumentará - tem a certeza - a quantidade do roubo. Quando o Encanha roubou, uma vez, dois cabazes de arroz, aquele «branco» cachorro foi ao Posto dizer que lhe faltavam dois sacos. E Encanha, que confessou, pagou mesmo dois sacos. O Chefe não acreditou na história dos dois «balaios»[2]. Ladrão não merece confiança. Ninguém mais ouve suas razões.

E se... Ah! Assim, sim. Porque só agora se lembra desta saída? Os olhos brilham. Os seus músculos relaxam-se. Uma avalanche de calma derrama-se sobre ele. Deixa de notar a luz hílare da tarde, as crianças que amodorram, o calor asfixiante que esmaga os homens e as coisas.

Agora, só tem olhos e sensibilidade para a ideia que lhe surgiu e se impõe. Um riso sereno rasga-lhe o rosto cansado. Irá ao Posto queixar-se do lojeiro. Contará aquela conversa das galinhas e da «cana» [3] . Não se deixará roubar. O Posto fará justiça. Quem sabe se até aquela história do pagamento a dobrar não é malandrice?

Pronto, irá ao Posto. Pelo caminho do mato, andando teso, chegará ao cair do sol. Exultava. De soslaio, olhou a loja. Pachorrento, o caixeiro coçava o peito cabeludo e bocejava alto, roído de preguiça. O aprendiz. de olhos vermelhos, efeminado e parvo, afagava a carapinha perfumada e piolhosa.

Sente que os odeia. Com ódio frio e lúcido que tem anos e anos e que geraçôes acumularam. Tem agora o passo rápido e elástico, o andar felino das horas boas.
Sob a calabaceira [5] enorme, dormitam quatro «grandes» [4]. Urna necessidade imperiosa de dar largas à íntima satisfação, leva-o até eles.

Sincopadamente, narra a ideia feliz e o intento inadiável. Riem-lhe os olhos, de novo brilhantes, e a boca sequiosa. Todo ele se distende e crispa em gargalhadas sonoras que anavalham a paz morna da tarde.

Mas os velhos não acompanham a sua alegria ruidosa. Ficam a olhá-lo, incrédulos e pasmados, levemente curvados em atitude hostil. O velho Ranga Inteque, indolentemente - que o calor pesa nos homens e esmaga-os - sacode a cabeça, branca e branca como se, sobre ela, houvesse poisado toda a sumaúma que o vento arrancou dias atrás, E baixo, quase em murmúrio - que o silêncio fechou o mundo e deu à tabanca o ar triste das coisas mortas - sentencia:
- Que tem o Posto com a tua vida? Branco de loja é «branco» mau, tu sabes ? Não, tu não irás.

Nada mais. Recuou para o silêncio, fechou os olhos e, serenamente, aspirou o tabaco que picara. Clodjê olhou-o atónito. O velho parecia ignorá-lo. Bem encostado ao tronco da árvore, fechara-se num mutismo de morto. Olhou os outros. Guardavam também um silêncio opressivo e tácito. Como se dormissem, tinham as pálpebras caídas, o corpo imóvel, a respiração compassada. Lentamente, recompôs-se da surpresa. Teve um leve erguer de ombros, e seguiu.

Os velhos não o compreendiam. Não podiam sentir a sua sede de libertação, a sua ânsia de .justiça. Pesavam, neles, séculos de fatalismo e de muda resignação. Não se habituariam, jamais, a contar com as autoridades.

Entrou em casa, atirou para os ombros a manta garrida, agarrou no terçado [6] e saiu de novo. A tarde em meio, animou-o. Chegaria antes da noite. Atravessou a tabanca, contornou a vedação e rumou direito às «bolanhas». Depois delas, quando passasse a prancha sobre o rio, a vereda abrir-se-ia no matagal.

O restolho queimava-lhe os pés. Dir-se-ia que, momentos antes, uma queimada gigantesca varrera a planície dourada. De longe em longe, minúsculos tufos de vegetação raquítica e amarelada faziam negaças aos bovinos infelizes. Do rio negro de lama subia um gemer monótono de remos.

De súbito, uma ameaça de vómito levou-o a contrair-se. Ondas de fogo, volumosas e coleantes, sobem-lhe do estômago revolto e enovelam-se na garganta. Em momentos, o sofrimento cavou sulcos profundos e estampou, nos olhos sem brilho, o estigma da derrota.

Acocorado, aperta a mãos ambas a cabeça que parece estalar a cada pancada que o peito recebe. Por momentos, tem a impressão que o velho Ranga, sereno e indiferente, está mesmo ali, falando naquela voz ciciada e fria que todos acatam. Sente agora que é mau escutar os «grandes».

O Posto é longe, muito longe, lá do outro lado do mato. Não chegará. Nem hoje. Nem nunca. O velho disse. E ali a dois passos, quase junto de sua casa, os armazéns abarrotam. Todos foram à loja e aceitaram. Nos outros anos foi ele também? Porque não aceitar agora?

Vida de negro é vida cansada. E lojeiro branco mau ... Os armazéns estão perto. Mas talvez o caixeiro já não o atenda. Esquecido de tudo, num esforço violento que arranca lágrimas, retrocede. E caminha agora aos sacões, como um cavalo mal ferrado em rumo à manjedoura. Uma névoa translúcida parece aureolar as copas e as casas, como se o mundo se houvesse fechado numa rodoma de vidro levemente embaciado. E uma pontada aguda e cáustica raspa-lhe o estômago.

Quando, trôpego e sem fôlego, entrou no estabelecimento, o caixeiro sorriu e teve uma piscadela cúmplice para o negrito perfumado e imbecil que o acolitava.

Fernando Rodrigues Barragão

_________________________

Notas de A.M.L. / L.G.:

[1] O “bushel” é uma medida de capacidade usada para os cereais, equivalente a, mais ou menos, 35 litros; ou, como medida de volume, equivalente a cerca de 27 quilos. (AML)

[2] O “balaio” é um cesto de palhinha ou verga. (AML)

[3] Aguardente de cana (LG)

[4] Homens grandes (LG)

[5] Baobá, embondeiro (LG)

[6] Uma espécie de espada curta e larga; catana (LG)

sábado, 27 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2224: Tabanca Grande (38): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux de Enfermagem (CCAV 3366/BCAV 3846, Suzana e Varela, 1971/73)

Guiné> Região do Cacheu> Susana> Vista aérea do Aquartelamento

Foto: © Major J.Mateus (BCAV 3846) (2007). Direitos reservados


1. Em mensagem de 18 de Outubro de 2007, o nosso camarada escrevia:

Boa noite:
Chamo-me Delfim Rodrigues e fui 1.º Cabo Auxiliar de Enfermagem na CCAV 3366 do BCAV 3846 que esteve em Suzana e Varela em 1971/73.

Amanhã vou estar na estreia do filme "As duas faces da guerra" (1) na Culturgest pois consegui que me comprassem um bilhete.

Apesar de não ter ainda pedido a minha entrada na Tertúlia, gostaria de vos conhecer pois estarei sozinho deslocando-me de Coimbra onde moro.

Gostaria de entrar para a tertulia, mas ainda não tenho as fotos digitalizadas, se me aceitarem, enviá-las-ei mais tarde.

Como não sou grande coisa a escrever não tenho preparado qualquer texto para vos enviar.

Delfim Rodrigues
1.º Cabo Aux de Enfermagem
CCAV 3366/BCAV 3846

2. Em 20 de Outubro o Editor Luís Graça escrevia no Post 2197: [...]
(xvii) Também tive a oportunidadade de conhecer novos camaradas, dos quais não fixei lamentavelmente o nome, no meio daquela multidão toda (espero que me contactem, e se apresentem ao resto da tertúlia). Um deles foi o Delfim Rodrigues, que veio propositadamente de Coimbra, e estava acompanhado de um amigo de Lisboa. [...] Dei um abraço ao Delfim e as boas vindas à nossa tertúlia.[...]


3. Em 25 de Outubro de 2007 CV respondia

Caro Delfim Rodrigues:

Estou a dar-te as boas vindas em nome do Editor Luís Graça, co-Editor Virgínio Briote e restante tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

É bem-vindo à nossa Tabanca Grande quem combateu na Guiné e quem se interessa pela actual Guiné-Bissau. Tu és indiscutivelmente uma dessas pessoas.

Já faz parte da nossa tertúlia o teu camarada, da CCAV 3366, ex-Fur Mil Luís Fonseca (2), que tem contribuído para o nosso Blogue com os seus apontamentos sobre os usos e costumes do povo Felupe.

De ti esperamos estórias e fotos para aumentar o nosso espólio histórico sobre as campanhas da Guiné entre 1963 e 1974.

Quando tiveres as fotos da praxe para a fotogaleria, manda-as para o endereço luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, em formato JPEG.

Recebe um abraço de todos os camaradas.
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(1) Vd. Post de 21 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2198: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (5): Agradecimento de Diana Andringa

(2) Vd. Post de 14 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2047: Tabanca Grande (32): Apresenta-se José Luís Soares da Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Suzana e Varela, 1971/73)

Guiné 63/74 - P2223: A nossa Tabanca Grande e as Duas Faces da Guerra (12): A minha luta diária com a Maria Turra, no HM241 (Carlos Américo Cardoso)

1. Mensagem de Carlos Américo Cardoso (1), um dos nossos camaradas que assistiu à estreia do filme As Duas Faces da Guerra (2):


Muito obrigado, Diana Andringa!

Ao ver o seu filme-documentário, sobre As Duas Faces da Guerra, voltei ao meu passado, e revivi situações que nunca em tantos anos pensei mais...

Como eu tinha uma imagem completamente diferente da Maria Turra!!!... Ouvia-a muitas vezes mas nunca lhe tinha visto o rosto, tinha uma luta diária com ela, confrontava as notícias da rádio do PAIGC (3) sobre os nossos feridos, nos livros de registo do raio x, [no Hospital Militar de Bissau,] para confirmar se era verdade ou se era propaganda do PAIGC... E depois claro, rebobinei o meu filme, comparei situações, vi imagens que já estavam esquecidas, umas estavam certas outras nem tanto... Enfim só adormeci de madrugada.

Mais uma vez obrigado
Cardoso R X
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Nota dos editores:

(1) Vd. posts de:

1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

20 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1977: Em busca de... (4): Camaradas do Hospital Militar nº 241, Bissau (1972/74) (Carlos Américo Cardoso, o Cardoso RX)

(2) Vd. post de 20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

(3) As emissões da Rádio Libertação, localizada em Conacri, começaram em meados de 1967. Maria Turra era a locutora de serviço (ou uma delas)... Sabemos hoje que era a mulher, angolana, do Dr. Páduo, médico português, militante do PAIGC, que trabalhava no hospital de Ziguinchor: vd. post de 27 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P2222: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (4): Aspectos positivos e negativos (Pedro Lauret)

As nossas desculpas ao Comandante Pedro Lauret pelo atraso na publicação do comentário sobre a série A Guerra (1).

O Capitão de Mar e Guerra na Reforma Pedro Lauret.

Nos anos decisivos da Guerra (1971/73), o então Tenente serviu no NRP Orion. Percorreu os rios da Guiné em missões de patrulhamento e apoio a tropas em operações, desempenhando um papel marcante em Gadamael.


Co-editor: vb
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Caros Camaradas e Companheiros de Tertúlia,

Quero deixar um pequeno comentário ao documentário de Joaquim Furtado, A Guerra.

Em minha opinião entendo haver aspectos muito positivos e negativos neste documentário.

Em primeiro lugar não se pode esconder que é um trabalho que se encontra em preparação há mais de dez anos com um orçamento invejável, aguardado com enorme expectativa.

Os aspectos positivos prendem-se com enorme qualidade de realização, recuperação de imagens e ritmo. São de salientar as entrevistas aos guerrilheiros da UPA, documentos de enorme violência, porventura mais cruéis que as próprias imagens dos massacres.

Devo criticar apenas na realização o facto de não terem sido utilizados mais grafismos, nomeadamente no que se refere a números. Por exemplo, entendo que era interessante sublinhar, graficamente, que em 1961 havia um dispositivo militar de pouco mais de seis mil homens, cerca de cinco mil de incorporação local, e mostrar a sua distribuição pelo território.

O aspecto negativo prende-se, não com este episódio, que tem para mim nota muito elevada (perdoe-me a citação de MRS) mas por este conteúdo ter constituído o primeiro documentário. Exibir, como primeiro episódio da série, os massacres de Março de 1961, vem justificar que o segundo episódio, que ainda não vi (estou a escrever este comentário às 15:00 de 23 de Outubro), possa mostrar Salazar a dizer “Para Angola rapidamente e em força”, e justificadamente mostrar toda a acção militar decorrente dos acontecimentos de Março de 1961.

Penso que o processo da Guerra Colonial e da descolonização não se inicia em 1961, mas tem na sua génese todo a nova realidade saída da II Guerra Mundial – ONU, carta das ONU, movimento de descolonização das potências europeias, Bandung, crise do Suez … Esta nova realidade internacional é bem compreendida pelo Estado Novo´que depressa elimina o Acto Colonial e o integra na constituição - revisão constitucional de 1951 - e por um passo de magia transforma as antigas colónias em província ultramarinas.

Os contactos havidos pela União Indiana relativamente ao estado Português da Índia a partir de 1947, contactos havidos pelo MPLA e PAIGC, no sentido de se obterem soluções pacíficas para territórios sob administração portuguesa, são também elementos essenciais para entender o que foi a Guerra Colonial.

Em minha opinião, a série de documentários de Joaquim Furtado, deveriam iniciar-se com a contextualização histórica e politica que envolve a Guerra. Iniciar a série com actos de enorme violência, descontextualizados, faz-me lembrar os Telejornais que, em dia de notícias de importância a nível nacional ou internacional, abrem com a agressão a um idoso no interior do país, ou com um qualquer acto de violência isolado, técnica comprovadamente eficaz para fixar audiências.

Pedro Lauret

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Nota de vb:

Pedro Lauret vai estar amanhã, Domingo, no programa do Pedro Rolo Duarte, Antena1, entre as 11 e as 12, para falar do blog da Associação 25 de Abril.

Em mensagem que nos enviou hoje, acrescenta:

"Quando gravei o programa tive oportunidade de falar também no nosso blog. Espero ter acertado com as palavras e que de alguma forma possam contribuir para a divulgação da nossa caserna.
Em off, fiz-lhe ver que há blogs que sem preocupação de comentar a actualidade têm uma enorme importância, como é o nosso caso. Tomei a liberdade de dar o contacto do Luís."


(1) Vd.post anterior desta série RTP: A Guerra, série documental (...) > 25 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2212: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (3): Portugueses da diáspora também querem ver (João G. Bonifácio)

(2)Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)


Capa e contracapa de O Nosso Livro da 2ª classe, usado nas escolas do PAIGC.

 

Reprodução da Lição nº 5 - Bandêra di Strela Negro, pp. 20-21.

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

1. Já aqui apresentámos a capa e a contracapa de O Nosso Primeiro Livro, o manual escolar usado nas escolas do PAIGC, editado em 1966, pelo Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC (1)... Algumas imagens digitalizadas do livro chegaram-nos pela mão do nosso camarada A. Marques Lopes, ex- Alf Mil At Inf (hoje Cor DFA, reformado, CART 1690, Geba) / CCAÇ 3, Barro). Um exemplar do livro foi facultado pelo António Pimentel, ex- Alf Mil Rec Info, CCS BCAÇ 2851, Mansabá em Galomaro (1968/70). O Marques Lopes vive em Matosinhos e o Pimentel vive no Porto.

Na altura escrevi aqui o seguinte: "Amílcar Cabral, inimigo não do Povo Português mas do regime político de Oliveira Salazar/Marcelo Caetano, fez mais pela língua portuguesa do que muitos portugueses que por lá passaram, com responsabilidades políticas e militares, ao longo de 500 anos de relações dos portugueses com os guineenses. Amílcar Cabral sabia que o português (para além do crioulo) era um das bases indispensáveis para a criação de uma identidade nacional...

"Pessoalmente fiquei chocado, quando ao chegar a Contuboel em Junho de 1969 para fazer o IAO com os meus futuros soldados africanos da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 - fulas, velhos aliados dos portugueses... -, constatei que eles não falavam (nem muito menos escreviam) português"...

Hoje é a vez de agradecer ao Paulo Santiago (que vive em Águeda e foi Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72). enviado, pelo correio. outro manual escolar do PAIGC, O Nosso Livro - 2ª Classe. Mandou-me, além disso, uma pequena nota que eu achei uma delícia:

"Luís: Penso que algumas das caixas que estão escritas, à mão, no livro, foram-no pela minha fulha [, Maria Luís,] quando frequentava a 2ª classe. Abraço. Paulo".

Em resumo: este exemplar, que o Paulo ainda não me disse como lhe chegou às mãos, ajudou crianças da Guiné, e pelo menos uma de Portugal, a aprender a ler e a escrever o português...

O livro foi "elaboradao e editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné" (sic). Tem o seguinte copyright: 1970 PAIGC - Partido Afrucano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares (!).

Foi, além disso, impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.

Reproduzimos hoje a lição nº 5, sobre a Bandeira do PAIGC. A letra do hino é em creoulo, mas a lição é em português (mas como todas as demais). Repare-se nas instruções para os alunos:

1º - Vamos aprender esta poesia para a recitarmos
2º - Vamos desenhar e colorir a nossa bandeira


No filme da Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra, recentemente estreado em Lisboa, são entrevistados dois militantes do PAIGC que estiveram muito ligados à elaboração destes manuais:

(i) Um português (ou caboverdiano ?), que o Jorge Cabral me apresentou no hall da Culturgest, no dia 19 de Outubro de 2007, e de quem infelizmente eu não consegui fixar o nome; vivia na Suécia, possivelmente como exilado político; era ele que fazia a revisão de texto dos manuais;

(ii) A esposa do Dr. Pádua, o alferes miliciano médico que desertou em Angola e aderiu ao PAIGC, sendo até 1966 (ano da chegada dos primeiros médicos e instrutores cubanos a Conacri) o único médico do PAIGC a trabalhar em hospital de rectaguarda, em Ziguinchor, no Senegal... A esposa do Dr. Pádua era angolana, e escreveu textos para estes manuais. Além disso, era locutora da Rádio Libertação, do PAIGC, em Conacri. Era ela a Maria Turra, a que já se referiram alguns dos nossos camaradas, confundindo-a no entanto com a segunda mulher do Amílcar Cabral (2).
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1899: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (1): O português...na luta de libertação

1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)

4 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1920: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (3): O mítico Morés

9 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1938: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (4): Catunco

(2) Vd. post de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

(...) Nota de L.G.:

(...) Maria Turra era a locutora de serviço da Rádio do PAIGC, localizada em Conacri: vd. artigo do jornalista Joaquim Vieira, na edição do Expresso de 21 de Abril de 1984 > Como os rapazes viveram a paz e a guerra:

(...) "Os tempos da fraternidade estavam afinal mais próximos do que alguém podia imaginar no batalhão. Onze dias depois da Páscoa, na manhã de 25 de Abril, começaram a chegar a Sedengal notícias de um golpe de Estado em Lisboa. As primeiras informações foram recebidas através das emissões em português de Rádio Conakry. Alguns soldados não sabiam o que era um golpe de Estado, e procuraram informar-se. Algumas horas depois, a locutora - que os portugueses tratavam por Maria Turra - anunciou a prisão de Américo Tomás e Marcelo Caetano. A gaja está mas é maluca, houve quem comentasse" (...).

Por Maria Turra também era conhecida, entre as NT, a viúva de Amílcar Cabral: Vd. também post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de
1974)(Magalhães Ribeiro)(...)

O Eduardo [Magalhães Ribeiro] diz que ficou famoso pela sua foto a arriar a bandeira verde-rubra , em Mansoa, na presença da Maria Turra (sic), como era conhecida entre os tugas - com o sentido de humor, que é típico da caserna, mas com respeito e até carinho - a viúva do Amílcar Cabral, que assistiu com outros destacados dirigentes do PAIGC a este momento histórico" (...).

Guiné 63/74 - P2220: Louvores e condecorações (4): Louvores atribuídos ao BCAÇ 2845 e às suas Companhias Operacionais (Albino Silva)



Albino Silva (1), ex-Soldado Maqueiro, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70

BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, Jolmete, Olossato, Bissorã, 1968/70)


Louvores atribuídos ao BCAÇ 2845 e às suas Companhias Operacionais

1. Por Despacho de 22 de Julho de 1968 do Exmo. Comandante do BCAV 1897 é louvada a CCAÇ 2367:

Porque apesar de estar ainda no início de sua Comissão de Serviço e de se encontrar no Olossato apenas à cerca de 3 meses, já se revelou, quer no aspecto operacional quer nos contactos com a população, uma subunidade de Escol, da qual muito há a esperar.

De elevado espírito de corpo que, logo aos primeiros contactos, se sente presente em todos os componentes. Bem preparada na paz para melhor servir a guerra, a CCAÇ 2367 já se revelou uma Subunidade de inegável valor combativo e os seus elementos, sob o comando dum Capitão experiente e decidido, mostraram um profundo desejo de cumprir, em todas as circuntâncias, já comprovado em alguns golpes de mão bem planeados e executados com perícia e determinação.


2. Referência elogiosa à CCAÇ 2366

Feita através da Nota n.º 2788-P.º 331.01 de 5 de Setembro de 1968 pelo Comando do Agrupamento 2951 e dirigida às seguintes Unidades: BCAÇ 1912, BCAV 1915, BCAÇ 1932, BCAÇ 1933, BCAÇ 2845 e BCAÇ 2851 e, enviada para conhecimento ao QG/CTIG.

Assunto: Referências Elogiosas ao comportamento de uma Companhia

a) - A CCAÇ 2366 terminou o seu treino operacional em Junho do ano corrente, sendo portanto uma Unidade com pouca experiência de combate.

Aquartelada em Jolmete, numa área díficil, pessimamente instalada, tem esta Companhia desenvolvido uma acção de tal modo dinâmica e com tão bons resultados que, sem desfavor, merece a honra de divulgação perante todas as Unidades do Agrupamento Oeste.

A busca do IN tem sido incessante, as saídas inopiadas em exploração de notícia regente são de uso frequente, o prolongamento das Operações impostas sempre que surgia uma oportunidade propícia é atitude corrente nesta Companhia.

Dignificante o modo como tem sido comandada, relevante o destemor dos seus Oficiais, grande brio dos Sargentos e altamente meritório o comportamento das suas Praças.

Por duas vezes sua Ex.ª o Comandante Militar prestou justiça e deu o seu incitamento ao pessoal da Companhia, e por uma vez este Comando teve ocasião de felicitar a CCAÇ 2366 pelos mesmos motivos.

b) - As acções em que a CCAÇ 2366 teve sucesso foram (salvo omissão provável, por deficiência de consulta) :

20 de Junho de 1968
Operação Aquiles

Em que com excepcional espírito de decisão, na exploração de informações colhidas durante a Operação, e revelando uma maturidade em experiência de combate que não possuia, fez ao IN 1 morto, vários feridos, apreendeu 1 pistola e mais material.

06 de Julho de 1968

Em Operação de sua iniciativa, após o regresso duma emboscada, destrói 2 tabancas, faz 2 mortos e 4 feridos e, captura munições e apreende 1 espingarda.

20 de Julho de 1968
Operação Alertar

Após captura de elementos desarmados inimigos, do seu interrogatório nasce um prolongamento da Operação, com os seguintes resultados: 1 morto, 3 feridos e captura de vários documentos.

Em observação feita pelo Comandante do Batalhão se declara que o IN está vivendo "num clima de insegurança, motivado pelo espírito de iniciativa e de agressividade mostrado por esta Companhia".

21 de Julho de 1968

Em exploração de notícias fornecidas por 3 elementos na Operação da véspera, foi executado um golpe de mão em Piosse. Acção violenta, enérgica e rápida, na qual foram feitos ao IN 3 mortos confirmados e vários feridos também confirmados.
A Operação foi muito bem planeada e muito bem conduzida e executada, tendo sido capturados documentos vários.

05 de Agosto de 1968

Montada por iniciativa da Companhia a Operação Armamar, fez ao IN 1 morto e 2 feridos, na sequência de uma acção agressiva, movimentada e variada , colhendo vários prisioneiros e obtendo mais informações.

09 de Agosto de 1968

Operação Acepipe, na qual é destruído um acampamento com 24 moranças, são feitos ao IN 6 mortos e vários feridos confirmados, capturada 1 pistola metralhadora e munições. Esta Operação, pelas suas características ousadas na exploração imediata de notícias, mereceu elogios de sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar e também deste Comando.

17 de Agosto de 1968

Por iniciativa da Companhia, fez-se um patrulhamento com 3 GCOMB a 8 Km do Quartel. Durante o mesmo, em exploração imediata de notícias, procedeu a um golpe de mão sobre 20 elementos armados IN, fazendo-lhes 4 mortos e 5 feridos, capturando 5 espingardas, 1 bandeira do PAIGC e recuperado 7 elementos.

26 de Agosto de 1968

Em patrulhamento por sua iniciativa, por ter encontrado vestígios de passagem do IN, em exploração imediata detectou um acampamento com 20 elementos armados, aos quais fez 4 mortos confirmados, 5 feridos e 1 preso.

Capturou 2 espingardas automáticas, munições, 9 disparadores de mina, 7 detonadores e um variadíssimo material de propaganda, fardamento e utensílios. Foi destruído o acampamento.

02 de Setembro de 1968

Nova e última acção da CCAÇ 2366, em golpe de mão (acção inopinada) sobre um acampamento IN, causando 3 mortos confirmados e 4 mortos prováveis, capturando 1 espingarda automática, 5 PPSH, 1 PM chinesa, 1 GND, bastantes munições, medicamentos, objectos de enfermagem e fardamento. Foi destruído o acampamento.

c) - Solicito a V. Ex.ª se digne divulgar por todas as Companhias o teor desta Nota.


3. Por Despacho de 8 de Novembro de 1968 do Exmo. Comandante do BCAÇ 2851, é citada a CCAÇ 2368.

Teve este Batalhão sob o seu Comando Operacional, para a Operação "Vamos Ver", a CCAÇ 2368.
A forma altamente consciente da responsabilidade da missão, com que actuou e, que se manteve intacta apesar de ter sido a Subunidade que deparou com o mais forte contacto com o IN, sofrendo baixas, tornam a CCAÇ 2368, credora do apreço que com muita satisfação, este Comando manifesta.
(O.S. N.º 86 do BCAÇ 2851 de 8 de Novembro de 1968)


4. Por Despacho de 2 de Maio de 1969 de Sua Ex.ª o COM CHEFE Interino das FAG é louvada a CCAÇ 2366.

Pela forma notável como sempre actuou ao longo de 11 meses de permanência no Sector que lhe foi atribuido. Inicialmente inexperiente, após um Treino Operacional realizado na Sede do Batalhão em que não teve oportunidade de contacto com o IN, esta Companhia tomou a responsabilidade do Sector de Jolmete em 5 de Junho de 1968.
Com o propósito firme de conhecer a sua área e acabar nela, de vez com o mito de invencibilidade do IN, dando-lhe caça implacável, foi gradualmente a Companhia estendendo a sua acção, irradiando por todos os lados, numa explosão de energia e de vontade.
Se é certo que foi feliz de início conseguindo com a captura de elementos IN a obtenção dos primeiros êxitos, não é menos certo que só à sua audácia se devem os subsequentes. "A Felicidade Ajuda os Audazes".
Ao longo de toda a sua permanência no Sector os sucessos foram-se acumulando: captura de elementos IN e recuperação de população, exploração imediata e inteligente dos mesmos, emboscadas, assaltos e destruição de inúmeros acampamentos e combatentes IN, captura de muito material e munições, etc.
Enquadrada de graduados ousados e desprezando o perigo, é de salientar a valentia , energia debaixo de fogo, entusiasmo contagiante e sem desfalecimentos, astúcia na mata, mentalização profunda de espírito de missão de todo o pessoal combatente, que lhe permitiu resistir ao inevitável desgaste físico consequente de tão grande movimentação.
De realçar também a muito meritória obra de acção psicológica junto das populações dispersas pelo mato e sob controle IN e a este subtraídas num exemplo de dissociação do binário população IN, e as quais uma vez acolhidas à proteção das NT em Jolmete, destas já não se quiseram afastar, sentindo-se amparadas e seguras, e ainda a actividade que, paralelamente à operacional, foi realizada no plano de melhoria progressiva de instalações, conseguindo ao fim do referido período de 11 meses uma remodelação total quase das mesmas o que permitiu ao pessoal um mínimo de conforto e segurança, quase inexistente de início.
Merece assim especial realce e merecido Louvor a actuação da CCAÇ 2366, da qual o seu Batalhão justamente se orgulha e também com justiça altamente conceituada entre todas as Subunidades do TO da Guiné.
A CCAÇ 2366 honra, assim o seu Batalhão, o Exército e a Nação Portuguesa.
(O.S. N.º 17/69 de 28 de Maio de 1969 do C.C. das FAG)


5. Por Despacho de 9 de Maio de 1969 de Sua Ex.ª o Comandante Militar do CTIG é louvado o 3.º GCOMB da CCAÇ 2368, destacado em Bachile

Pelo alto espírito de camaradagem com que efectuaram a evacuação dum Soldado Milícia gravemente ferido por acidente naquele Destacamento, ao ser verificada a impossibilidade de se efectuar a evacuação por meios aéreos, por ter caído a noite e a impossibilidade de transmissões com a Sede.

Conscientes do risco que iam correr, uma vez que não tinha sido feita a picagem do itinerário e dada a gravidade do ferido, com total desprezo pelo perigo, meteram-se a caminho dignificando a sua Farda,a sua Bandeira e a Unidade a que pertencem, resultando deste acto uma materialização da Acção Psicológica na população e de uma igualdade de Soldado Metropolitano e Milícia (O.S. 24 de 5 de Junho de 1969 do CTIG)


6. Por Despacho de 3 de Junho de 1969 de Sua Ex.ª o COMCHEFE das FAG é louvada a CCAÇ 2366

Pela forma de muitos aspectos invulgar como desempenhou a missão que lhe foi atribuída na "Op Aquiles I" a partir de 6 de Fevereiro de 1969, data em que passou a actuar sob Comando Operacional do CAOP.

Actividade operacional constante, espírito marcadamente ofensivo e sobre tudo determinação e audácia, foram carecterísticas salientes da sua actuação onde se destaca ainda, pelo que apresentou de espírito de missão, a permanente procura de contacto de que resultaram constantes inseguranças para o IN e êxitos para as NT, traduzidos pela quantidade de material capturado e pelo elevado número de baixas infligidas.

Todos os seus valorosos elementos não se eximiram nunca do perigo e ao sacrifício demonstrado com frequência ousadia e decisão e sempre comportamento honroso frente ao IN.

A confiança que o CAOP sempre depositou na actuação da CCAÇ 2366 foi uma justa homenagem ao valor desta força, que reitera com o presente Louvor, ao deixar de tê-la sob o seu Comando. (O. S. N.º 25 de 12 de Junho de 1969 do CTIG)

Albino Silva
Soldado Maqueiro
CCS/BCAÇ 2845
___________________

Nota do co-editor CV:

(1) Vd. Post de 26 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2217: Breve história do BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, Jolmete, Olossato, Bissorã, 1968/70 (Albino Silva)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2219: Tabanca Grande (37): Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil (BCAÇ 4610/72 e CCAÇ 13, 1972/74)

Henrique Jorge Cerqueira da Silva
Ex-Fur Mil
BCAÇ 4610 e CCAÇ 13
Guiné 1972/74


1. Em 24 de Outubro de 2007, o nosso novo camarada dirigia-se a nós com poucas esperanças de ser lido, mas enganou-se como se prova.

Amigos:
Nem sei como começar ou seja começo pela apresentação:
Henrique Jorge Cerqueira da Silva, com 57 anitos de idade, ex-Furriel Miliciano incorporado no Batalhão 4610/72 que esteve na região de Bissorã.

Posteriormente e em regime de voluntariado fui transferido para a CCAÇ 13. Aí permaneci até Julho de 1974.

Estive também colocado no Biambe (1) e fiz a formação das CCAÇs em Bolama.

Tenho como todos, várias situações marcantes, tanto de grande tristeza como até de algumas alegrias. No entanto e para já não partilho, pois que até nem sei como vai resultar este e-mail, é que isto da net ainda é um pouco recente para mim.

Bom, vou então enviar esta cena na esperança que em breve possa falar um pouco mais sobre os nossos gloriosos anos de juventude.

Um abração para todos que eventualmente me leiam, mas se não for lido, o abraço é na mesma enviado com muito sentimento de companheirismo.

Henrique Cerqueira
Ex-Fur Mil
Foz do Douro


2. Em 25 de Outubro de 2007 o co-Editor CV respondia:

Caro Henrique:
Estou a receber-te em nome dos tertulianos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Caro vizinho, bem-vindo à Tabanca Grande. Estávamos à espera de reforços para a CCAÇ 13, porque só cá tínhamos o camarada Carlos Fortunato, velhinho (1969/71), comparado contigo, periquito de 1972.

Já sabes que queremos que envies as tuas fotos da praxe (a velhinha, dos tempos de novo, quando combatias na Guiné e a actual, menos novo, mas em plena forma, espero), para virem a figurar na nossa fotogaleria.

Podes visitar a nossa página em http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/guine_guerracolonial_tertulia.html. Lá poderás consultar os nossos 11 mandamentos, pelos quais nos regemos. Poderás ver, ainda, fotos históricas das nossas campanhas por terras da Guiné, depoimentos, etc.

Claro que vais contribuir para o nosso património com as tuas histórias (estórias), quer sérias quer humoradas, de preferência ilustradas com as fotos que terás por aí e que julgavas que já ninguém iria ver.

Cá dentro impera a camaradagem que faz com que, independentemente do posto que tivemos e do que somos hoje, nos tratemos por tu.

Temos um laço que nos une que é a Guiné, hoje Guiné-Bissau, país soberano que respeitamos assim como às suas gentes. A estes nossos irmãos desejamos um futuro melhor do que o passado e até do que o presente que não têm sido muito promissores.

Ficamos à espera do teu primeiro trabalho e das tuas fotos (em formato JPEG) que deverás enviar para luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com.

Recebe um abraço da malta
Carlos Vinhal

OBS:- Ao elaborar a postagem, verifiquei que a foto actual tinha sido enviada. As minhas desculpas ao Henrique pelo lapso.
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Nota do co-editor CV:

(1) Vd. posts anteriores:

de 1 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2020: Memórias dos Lugares (1): de Elvas a Bissorã e de Lamego a Biambe, com CART 730 (Parte I) (João Parreira)

de 8 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2037: Memórias dos Lugares (2): de Elvas a Bissorã e de Lamego a Biambe, com a CART 730 (Parte II) (João Parreira)

Guiné 63/74 - P2218: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7): Afundem a armada de Madina



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Geba Estreito > Novembro de 2000 > Restos da "armada de Madina" ? Não, apenas velhas canoas, diz-nos o Albano Costa que por lá passou em Novembro de 2000...

Fotos: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.



Texto enviado, em 11 de Setembro último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Luís, aqui vai o VII episódio (1). Tens aí as boas fotografias do Geba estreito. Mando pelo correio os apontamentos do almirante Teixeira da Mota, parece-me muito bonito publicá-los pela primeira vez. Os livros seguem pelo correio, também. Esta semana já não posso mandar mais, tenho um relatório urgente até sexta feira para acabar. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7) > Afundem a armada de Madina!

A premonição de que vou estudar a história da Guiné

Fui chamado de urgência a Bambadinca, a coluna sairá por volta das sete, é um amanhecer límpido, glorioso, carregado de bons presságios. Leio finalmente a brochura que o comandante Teixeira da Mota me ofereceu em Bissau no início de Agosto passado, e que é da sua autoria. Chama-se “A primeira visita de um governador das ilhas de Cabo Verde à Guiné, António Velho Tinoco, 1575”. Ele escreveu na dedicatória: ao Mário Beja Santos, “Filho de Deus” para as gentes do Cuor. Como é muito ao estilo do insigne historiador, ele junta uma folha com os seguinte comentários:

“António Velho Tinoco foi o corregedor que condenou à morte o piloto açoriano trânsfuga Bartolomeu Baião, o qual lhe foi levado preso para a ilha de Santiago por um lançado da Guiné.

"Sobre o Baião tenho reunidos dezenas de documentos de Lisboa, Madrid e Londres que permitem reconstituir uma vida aventurosa, tipo capa e espada, de um piloto português - no que foi um entre muitos - que se valeu da sua arte náutica para roubar navios e intrujar ingleses e espanhóis (fugiu de uma prisão de Sevilha pelo telhado, e depois andou e ludibriar em Londres o embaixador de Espanha).

"Um colaborador em Sevilha acaba de me enviar mais uma boa dose de documentos sobre o mesmo, catados no Arquivo das Índias, e onde se explica como, quando comandava uma frota de corsário ingleses que andava à caça de navios portugueses, foi apanhado pelo rei da Ilha de Jeta, que depois o entregou ao lançado que o levou à justiça do bom António Velho Tinoco. O Baião não era Filho de Deus!"

Esta viagem do Tinoco é uma maravilha. Ele vem pela costa da Guiné, entra no rio de São Domingos, fala com o rei de Cacheu e aí ficamos a saber que Filho de Deus significa português. Daqui passa para o rio Grande que ao tempo era o conjunto de rias que hoje têm os nomes de Canal do Geba, Canal de Pedro Álvares, Canal de Bolola e Rio Grande de Buba, sendo certo que mais tarde sempre que se fala em Rio Grande se usa como sinónimo de Rio Grande de Buba. É no chão de beafadas, em Gambaro, que ocorre uma missa, em que o rei local pediu uma igreja, isto depois de Velho Tinoco ter sido recebido com trombetas de marfim e atabales e de se ter comido massapão. Depois o governador partiu para a Serra Leoa. Refere-se igualmente aos padres da Companhia de Jesus, logo que possa vou mandar esta referência ao padre Fazenda que insiste em saber mais pormenores sobre a presença dos Jesuítas em Cabo Verde e na Guiné, a partir do séc. XVI. Assento comigo próprio que logo que tiver disponibilidade hei-de estudar muito mais sobre a Guiné. A promessa está feita, tal a curiosidade por este passado totalmente desconhecido.

Ainda não sei que dentro de dias vou perder os óculos e ficar com o olho esquerdo afectado pelos ácidos da explosão da mina anticarro e vou parar seis dias a Bissau. Aí, completamente deprimido e sem querer ver ninguém, passarei todo o tempo disponível num espaço ameno chamado Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde irei vasculhar artigos científicos, curiosidades, relatórios dos governadores, cartas de capitães-mores, documentos sobre a vida religiosa, os movimentos migratórios, a vida administrativa, as histórias das campanhas militares. Lerei emocionado os relatos de Honório Pereira Barreto e ficarei a saber que existiu um missionário guineense chamado Marcelino Marques de Barros que escreveu o primeiro dicionário de português-crioulo, foi sócio da Sociedade de Geografia e morreu em Cernache de Bonjardim, bem velhinho. Eu não poderia saber que durante meses andarei a estudar este fascinante missionário e cientista.

Estou, pois, empolgado com o que acabo de aprender. Agora vamos até Caranquecunda, pica-se até Canturé e depois, com mais prudência, tal o receio que temos da horta de caju, bem fechada, seguimos até Finete. Pelas dez da manhã, sou recebido pelo major Herberto Sampaio. Vou ficar a saber que existe uma armada de Madina que me compete destruir, o mais rapidamente possível.


À procura da armada de Madina no Geba


-Oiça, Beja, os gajos de Madina passaram as marcas. No fim do mês passado, cinquenta mânfios entraram no Nhabijão Bedinca, vinham bem armados, espancaram quem lhes ofereceu resistência, roubaram vacas, arroz, milho, roupas e atravessaram o Geba nas calmas. Quem se queixou disse claramente que cambaram o Geba em canoas. Eu não acredito que foram para a bolanha de S. Belchior. É longe, podem ser avistados do Xime. Temos que saber urgentemente o que se passou e dar-lhes caça. Estamos convencidos que para além dos apoios que eles recebem nos Nhabijões têm canoas e não devem ser poucas. Daqui a meia hora chega uma DO e vamos fazer um RVIS sobre todo o Geba. Pergunte tudo o que quiser, a seguir vai lá e rebenta com os barcos. Quero também lembrar que foi recentemente atacada uma embarcação para lá de Mato de Cão que felizmente não teve consequências dramáticas porque o piloto afastou o barco para a outra margem, mesmo com feridos estilhaçados pelas roquetadas. Vamos saber se eles cambam o Geba para lá de S. Belchior.

E assim foi. Saímos de Bambadinca e começamos a sobrevoar essa longa tripa que é o Geba estreito. Primeiro a imensa bolanha de Finete, segundo até Malandim. Nada, nenhuns vestígios, natureza intocada. Depois a bolanha de Gambana até Mato de Cão. Aqui sim, diferentes sulcos impunham-se nos arrozais agora infecundos. A DO cirandava e desceu a escassos metros do espelho de água. Sim, havia ali um madeirame estranho, a despontar dos lamaçais do tarrafe. A pesquisa prosseguiu pela bolanha de Saliquinhé, em cujo o termo se evidenciavam novos sulcos, perto do último pontão antes de S. Belchior. Interessava agora verificar as bolanhas da outra margem do Geba. Com toda a minúcia, procurámos sinais na extensa bolanha de Samba Silate. Pois bem, quase como no seguimento do que tínhamos avistado do lado de lá em Saliquinhé, vimos um trilho que prosseguia até às imediações de Nhabijão Cau, bem dissimulado. E igualmente, mais adiante, em frente à bolanha de Gambana indiciava-se um outro sulco até perto de Nhabijão Imbume. Regressámos, e acordou-se que eu partiria imediatamente para examinar a bolanha de Gambana, deixando para o dia seguinte a bolanha de Saliquinhé. Nos mesmos horários, grupos de CCAÇ 12 fariam o mesmo reconhecimento nos trilhos junto ao Geba, do lado dos Nhabijões.

Para nós não foi nada fácil, o Geba estava na vazante, tivemos de nos socorrer de cordas na cintura para chegar ao tarrafe. Encontrámos cinco canoas invertidas presas a estacas por cordas, tudo bem enterrado e escondido com vegetação. Retiraram-se as canoas, foram desfeitas à bala. Tudo coincidia: era impossível ver as canoas das picadas que habitualmente percorríamos de e para Mato de Cão; as gentes de Madina apagavam as marcas dos pés com folhas de árvore, os caminhos só eram usados quando faltava a rocha. Eles tinham atravessado para cá com as suas presas, não tinham tido ainda ensejo de voltar à pilhagem. Do lado dos Nhabijões, em frente a Gambana, encontrou-se uma canoa e vestígios de pontos de ancoragem. No dia seguinte, repetimos a operação em Saliquinhé, com idênticos resultados. Provisoriamente, as gentes de Madina tinham perdido a sua armada no Geba estreito. Para os lados de Enxalé, a questão era bem diferente, como se sabia do antecedente: vindos de lá do Morés, mesmo com o apoio de gentes de Madina/Belel, era entre Enxalé e Porto Gole se atravessavam peças de artilharia e mantimentos, tudo feito com a maior das discrições e pouco sobressalto, já que os patrulhamentos eram praticamente inexistentes.

Dentro em breve, irá começar o reordenamento dos Nhabijões, onde colaborámos, a partir do momento em que passámos à intervenção em Bambadinca. A armada de Madina nunca desapareceu, mudou de portos, adoptaram-se outras atitudes, era impossível destruir as cumplicidades do sangue.


Confissões íntimas de Queta Baldé

Pedi ao Queta para conversarmos sobre diferentes assuntos, desde o colapso nervoso do furriel Casanova até à nossa transferência para Bambadinca. O Queta que é tão meticuloso, incapaz de subverter assuntos, hoje pega em pontas distantes e vai-me avisando:
-Nosso alfero vai ouvir coisas que até agora não tive coragem para lhe dizer, nem a mim próprio.

Olhando-me bem nos olhos, tomando fôlego e compassando as frases do discurso, Queta confessa-se:
-Todos tínhamos medo, era uma questão de domínio ou da vontade de Deus. No Burontoni, em 1967, vi um soldado ficar maluco quando um camarada morreu à sua frente. O nosso alfero Azevedo ficou paralisado e nunca mais deu ordens quando o nosso bazuqueiro Mário Adulai Camará morreu em combate. O furriel Casanova estava muito cansado, via-se que não era um problema de coragem, o seu coração já não estava em Missirá, era a vontade de Deus. E um dia os nervos cederam, ele sentia que não tinha nada a dizer-nos, e por isso partiu doente e todos percebemos que nosso alfero ficara numa grande tristeza, com mais coisas para fazer. A guerra faz uma grande pressão, não é a nossa maneira de viver natural, nós às vezes julgamos que Deus nos põe à prova com sacrifícios que o corpo não pode aguentar. Então gritamos e fazemos disparates, já não queremos combater mais, não se pode resistir ao sofrimento. Passados estes anos todos, já não tenho a certeza do que é ser herói ou ter medo.

Capa do romance de Ilse Losa, Sob céus estranhos. Lisboa: Portugália. s/d. Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Como está em maré de desabafos, Queta mostra perplexidade quando lhe volto a falar nas canoas escondidas nas margens do Geba, dá mesmo sinais de indignação:
-Eu sei que nosso alfero se recusa a acreditar que o PAIGC tinha aliados em Missirá e em Finete. Nunca aceitou que aquelas pequenas flagelações dos meses de Setembro, Outubro e Novembro eram só para o intimidar, aquele fogo sempre ao fim da tarde era combinado com os informadores. Durante o dia, havia pontos de encontro entre as patrulhas de Madina e os seus informadores no Cuor. Nem eu mesmo sabia que quando os civis diziam que iam visitar a família no Cossé ou iam a cerimónias ou aos choros, era tudo pretexto para passarem informações. Toda a gente tinha família no mato, pais, irmãos, gente do mesmo sangue que combatia nos dois lados. O PAIGC na verdade odiava os fulas pois nós éramos o povo que verdadeiramente os combateu. Por isso é que eles queriam a morte dos fulas.

Procuro desviar a conversa que ganha tons emotivos e proporções inquantificáveis e pergunto ao Queta porque é que o régulo Malã, naquele início de Outubro, quando soube que íamos partir , fora pedir ao comandante de Bambadinca para eu ficar no Cuor à frente de uma companhia de milícias, pedido extravagante, sabendo ele que existiam fortes laços entre mim e a malta do 52. A resposta de Queta não me deixou de surpreender:
- Malã e as populações do Cuor sabiam que era o Pel Caç Nat 54 quem ia para Missirá. Eles não gostavam desta tropa, pois no início de 1967 eram eles que estavam lá e não responderam ao ataque de Madina como devia ser. Nós os africanos tratamos os valentes como deuses, desprezamos quem não luta com toda a coragem. Mais tarde, Malã reconheceu que o 52 não podia estar mais tempo em Missirá e que aquele 54 era já um pelotão muito diferente do de 1967. Nós, no 52, também errámos, estávamos convencidos que íamos descansar para Bambadinca, afinal ficámos ainda muito pior!.

Combinei com Queta conversar para a semana sobre os preparativos da partida, os arranjos e as últimas obras, as conferências de material, as limpezas, as verificações de todos os livros de modo a passar a pasta para o Alves Correia sem faltas nem imprecisões graves. Como, felizmente, veio a acontecer.

Para além destes patrulhamentos, conto com a preciosa ajuda do Pires para deixarmos os livros das cargas e das contas em dia. Escrevo aos familiares do Casanova pedindo-lhes ajuda, ele está reticente a falar seja com quem for. A Cristina faz exames em Outubro, tudo parece estar a correr bem. Descobrimos de repente que o milícia Samba Embaló, vitimado pela a malária, está reduzido a pele e osso, teve que ser evacuado de helicóptero. As duas viaturas têm estado empanadas recuperaram subitamente a vontade de andar. Não tenho tempo de ir Bafatá saber do andamento da papelada indispensável ao casamento por procuração e, francamente, começo a estar empedernido diante de tanto correio que só traz desassossego e insídia. É agora que sinto que fraquejo, que estou abalado, suspendo no éter todos os meus compromissos para lá do oceano. Respondo com frenesim, convoco todas energias, é preciso deixar tudo feito, custe o que custar. Vou baixar as guardas à segurança, adoptarei comportamentos irresponsáveis. A resposta será dada com os amargores da mina anticarro, dentro de dias.

Capa do romance policial de Ellery Queen, O Crime da Raposa. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro)de Cândido Costa Pinto

Capa do romance policial de E. C. Bentley, O último Caso de Trent. Lisboa Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vamprio). Capa de Cândido Costa Pinto


Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Sob Céus Estranhos


Nunca tinha lido Ilse Losa, já ouvira falar dessa refugiada alemã que escapara à sanha e que escrevia histórias para crianças em língua portuguesa. Alguém me falara já de O Mundo em Que Vivi e Aqui Havia uma Casa. O romance Sob Céus Estranhos é sobretudo comovente pela a autenticidade que se pretende dar do judeu refugiado, da dignidade da sua sobrevivência, a sua capacidade de adaptação a pensar e agir em duas culturas distintas. Não sei qual é a dimensão autobiográfica do livro mas é impossível que este Josef Berger não seja uma réplica de Ilse Losa. Agarro-me a estes personagens do Porto, onde vai desembarcar Josef, as suas convenções de classe, a sua pobreza envergonhada, a pasmaceira das suas vidas. Josef vai resistir, dar aulas, escrever cartas comerciais, resistir à tentação de migrar para a América e casar com a Teresa. Quando termina o livro nasceu-lhes um filho que alterou tudo. Há uma pátria que ficou muito lá ao longe, na penumbra das recordações da infância e da adolescência. Este filho que acaba de nascer traz um apelo a novas raízes, até porque a guerra acabou, já nem há o pavor de que recomece a barbárie nazi, ao sonho de fazer uma editora, há amigos queridos, muitos outros pereceram nos fogos crematórios, é a Teresa e o nosso filho que nos lançam à procura de um outro futuro, ao lançar de novas âncoras. Não vale a pena esconder, Josef acredita num novo futuro mas vive sobre céus estranhos. Romance pungente que não vou esquecer tão cedo.

E leio romances policiais, pois claro. Primeiro, O Crime da Raposa, por Ellery Queen. O famoso detective volta de novo a Wrightsville para decifrar um crime que ocorreu há doze anos atrás e que se virá a descobrir que onde os homens consideram ter havido um crime não passara de um acidente. É Ellery Queen no seu melhor, voltando ao passado, reabrindo feridas de amores desavindos, denunciando mentiras e pequenas infâmias, reabilitando um falso culpado.

Aproveitei para reler O Último Caso de Trent, por Edmund C. Bentley, que muitos consideram ser o primeiro policial com estatuto de obra clássica, no séc. XX. Philip Trent é um jornalista e pintor que acidentalmente investiga casos policiais. Desta feita, é assassinado um multimilionário e tudo vai correr ao contrário da arquitectura do romance policial: o detective apaixona-se pela mulher do assassinado, ele que tantas dúvidas teve sobre o comportamento da senhora face aos meandros do homicídio; a sua previsão falha estrondosamente, ele julgara ter todas as provas contra o homicida, afinal o crime fora perpetrado por um seu grande amigo, que nunca estivera sob suspeita. Publicado em 1913, este romance é uma delícia, pela qualidade da prosa, pela virtuosidade com que se desenvolve a trama, e a espantosa surpresa do último acto.

São leituras a que me agarro para disfarçar a inquietação incontrolável da minha vida interior, da energia física levada à desmesura. Vem aí uma tragédia, eu não dou por nada. Parece que é assim em todas as guerras.

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Nota de L.G.:

(1) Vd.post anterior > 19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2195: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (6): Hoje perdi o meu braço direito, o Casanova