terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7433: Facebook...ando (3): Uma dramática ida de Buba a Gandembel (Raul Brás, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 2381, Buba, 1968/70)



Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa < CCAÇ 2381 (1968/70> Viatura Unimog 411, mais conhecida por burrinho, destruída por mina A/C na estrada Aldeia Formosa - Gandembel. "A fotografia é de autoria do camarada Estorninho, é ele que está na foto, e foi tirada em Aldeia Formosa... Dá para ver o estado em que ficou a viatura, mas não o cansaço que tínhamos, mal dormidos, comida tinha sido uma ração de combate para cada homem, devido ao percurso ser curto. Mesmo com as coisas a correr do pior,  nada ficou para trás" (R.B.).


Foto: © Arménio Estorninho (2010). Todos os direitos reservados



1. Mensagem do Raul Brás, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2381, “Os Maiorais”, que esteve em Buba, Quebo, Mampatá Empada nos anos de 1968/70 (*). O Raul, que é nosso camarigo, tem também conta no Facebook. É daí que retiramos, com a devida vénia, o relato que ele faz de uma dramática coluna a Gandembel, em finais de Julho de 1968.


Uma coluna de Buba a Gandembel

Parti de Buba, dia 25 de Julho de 1968, pelas 6 horas da manhã, com destino a Aldeia Formosa, eram apenas 30 quilómetros, mas (…) no primeiro dia apenas se conseguiu fazer 12 quilómetros, ao pôr-do-sol, aconteceu o pior…  Durante a coluna já se tinham detectado algumas minas anticarro, [foi preciso montar e desmontar o pontão móvel, devido aos pontões destruídos]. 


A última mina  não foi detectada e rebentou no Unimog que transportava as Transmissões. O Operador de Rádio, duas horas depois,  já não se encontrava no mundo dos vivos, o Unimog ficou como apresenta a foto (acima), que é de autoria do camarada Estorninho.

Aí pernoitámos, fez-se dia, viaturas em movimento, 30 minutos depois cai o flanco direito numa emboscada, o inimigo vem à retaguarda atacar a cauda da coluna. Comunicações não havia, desde que tinha acontecido o pior.

Pelas 10 horas da manhã passaram os Fiat mas,  por acaso, até esse momento ninguém tinha conhecimento de tal coluna. Aí com o rádio Banana, consegue-se entrar em contacto. Meia hora depois aparecem os bombardeiros T6.

Chegou-se pela noite a Aldeia Formosa. Dia 28,  então, a coluna vai a Gandembel. Os nossos comandantes de pelotão reuniram cada um com o seu grupo de combate, e aí nos transmitiram  todos os cuidados que tínhamos que ter em todo o percurso, intervalo uns dos outros o maior possível, no caso de haver emboscada, deitar-se no chão o mais rápido possível, aí ficar no mesmo sítio alguns segundos, e depois rastejar até um abrigo que nos desse mais confiança, para não acontecer o mesmo que tinha acontecido um mês antes (…). 


Noutra coluna, antes da minha, tinham as nossas tropas caído numa emboscada, ficaram lá 13 camaradas. Fornilhos eram pelo menos 16. Um Unimog dos pequenos cabia lá à vontade, num dos buracos. A perna de um camarada encontrava-se em cima das árvores, o corpo de outro camarada encontrava-se no meio da mata, só mais tarde, com a continuação das colunas, é que foi retirado, apenas em esqueleto, e com as cartucheiras à cintura. Foi o camarada Caliça, da 2381, os Maiorais, que o foi retirar. E era assim Gandembel. E quantos Gandembéis nós não conhecemos por essa Guiné fora ?! (***)


Um abraço a todos
Raul Brás
_________________


Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5806: Tabanca Grande (202): Raul Rolo Brás, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 2381 “Os Maiorais”, Buba/Quebo/Mampatá/Empada, 1968/70


(**) Vd.poste de 2 de Dezembro de 2010 >Guiné 63/74 - P7369: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (19): Factos mais importantes da CCAÇ 2381 no Subsector de Aldeia Formosa


(...) Aldeia Formosa > Factos mais importantes relacionados com as actividades desenvolvidas pela CCaç 2381 no Subsector de Aldeia Formosa e a actividade do IN, no período que mediou de 18 de Julho de 1968 a 21 de Janeiro de 1969. (...)


Ano de 1968
Julho
Dias 25/26



(...) 2 Gr Comb  seguiram em coluna auto de Buba para Aldeia Formosa, a fim de assumirem imediatamente o Comando dos Destacamentos da Chamarra e Mampatá.  Durante a coluna, feita pela antiga estrada Buba – Sinchã Cherno – Bolola – Missirã –Ieroiel – Mampatá – Aldeia Formosa, há vários meses não patrulhada nem utilizada pelas NT, foram detectadas e levantadas 9 minas A/C, e, sofreram as NT 2 emboscadas, que causaram 3 feridos às nossas forças. Foi deflagrada uma mina A/C por uma viatura causando a sua parcial destruição, 1 morto e três feridos ligeiros às NT.

Saliente-se o esforço despendido nesta coluna pelas nossas forças, que durou 36 horas para se vencerem escassos 30Kms. Foram encontrados todos os pontões destruídos (7 pontões!!!), tendo que se montar por todas as vezes o pontão móvel que seguia na coluna. 4 das minas detectadas como se apresentavam com dispositivo de anti-levantamento tiveram que ser destruídas. 



Numa estrada estreita que permitia a custo a passagem de uma viatura pesada, piorou com os buracos resultantes das minas deflagradas, tendo-se que se abrir passagem através da mata com o consequente esforço e dispêndio de energias. 


Salienta-se também o facto de na coluna seguirem 3 obuses de 14cm com aproximadamente 7 toneladas cada, que atascaram diversas vezes, atrasando bastante a coluna. Apesar de tudo, a distância foi vencida sem nunca o moral das NT ter decrescido, nem aquando do rebentamento de 1 mina ter causado um morto e privado de comunicações, pois a viatura destruída era precisamente a das Transmissões. (...)


Vd. também O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381), publicado na I Série do blogue:


1 Janeiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968 


(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968

Comecei a Guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro, às seis da manhã, e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco, às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.

A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia.

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada.

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde !... Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.

Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem ? Que culpa tenho eu ?

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...

Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caiu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer.

Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu, entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.

Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate mal chegou para o primeiro dia. À frente havia IN, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.

Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia que protegia os flancos, descobriu-os e, sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a rectaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da retaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.

A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses 14, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de heli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.

Agora que sinto o barulho do matraquear das armas, que sinto o silvar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que, em vez de se amarem, se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor ?

Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN estava em cima de uma palmeira à minha frente, a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador.

Que eu jamais faça guerra... Que eu ame sempre. (...)



(***) Último poste da série >  4 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7377: Facebook...ando (2): Duas fotos do Durval Faria, Nossa Senhora do Rosário, Lagoa, São Miguel, RA Açores, que pertenceu à CCAÇ Esp 274 / BCAÇ 356, CTIG, 1962/64

Guiné 63/74 - P7432: Estórias avulsas (45): Reabertura da picada Galomaro-Duas Fontes-Saltinho (António Tavares)

Galomaro > António Tavares no Gabinete de Reabastecimentos do BCaç 2912


1. Mensagem de António Tavares* (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), com data de 12 de Dezembro de 2010:

Caro Vinhal,
A picada para o Saltinho via Galomaro-Duas Fontes tinha sido abandonada pelo BCaç 2851 após vários problemas criados pelo terreno e o INIMIGO.

O BCaç 2912 reabriu a picada (era a bandeira dos nossos Comandos) e após os trabalhos possíveis chegou o dia da coluna de reabastecimentos à CCaç 2701 que foi um fracasso total com viaturas civis e militares atoladas, viradas, feridos, mantimentos roubados, inutilizados... um caos em custos materiais e monetários que felizmente não se traduziu em perdas humanas nem contacto com o IN.

Foi a primeira e última coluna de reabastecimentos, pelo BCaç 2912, nesta picada, que eu, o Sargento de Reabastecimentos, felizmente não participei naquela aventura.

Esta picada foi "utilizada" pelo BCaç 2851, BCaç 2912, BCaç 3872, e por todos teve de ser abandonada.
Os reabastecimentos continuaram pelo difícil triângulo Bambadinca-Xitole-Saltinho.


Em Galomaro (1970/72), trabalhei bastante com a logística desta coluna comandada pelo Alf Mil Reabastecimentos, Jesus, do BCaç 2912, dada a importância do acontecimento e reabertura desta picada para o COSSÉ …tinha que se dar pompa.

As viaturas civis eram alugadas em Galomaro, duas a Francisco A Regala, e Bafatá. Havia recomendações do COMCHEFE para o aluguer da viatura de um Guinéu que tinha perdido outra viatura numa emboscada entre Bafatá e Nova Lamego.

As viaturas eram pagas ao quilómetro, que para o mesmo percurso variavam, isto é, o percurso, por exemplo, entre GALOMARO-BAMBADINCA podia ser pago ao custo (?) no total de 40 ou 50Kms, cada viagem, conforme a aprovação do COMCHEFE em Bissau.

Reclamações não faltavam dos camionistas! Nos casos mais aberrantes reclamávamos ao COMCHEFE justificando as distâncias pelos mapas cartográficos mas quase sempre em vão!

Coitados, tinham de aceitar de cara alegre as incongruências da tropa!

Quem estava nos Comandos em Bissau é que “sabia”, ”sentia”, ”gozava” os dissabores das tropas nas matas.

Brincávamos com o Alf Mil Jesus, dizendo-lhe que tinha sido ele a dar azar porquanto pela sua primeira viagem a comandar uma coluna de reabastecimentos, JESUS não tinha dado a bênção ao Jesus para levar tudo em condições a bom porto, leia-se CCaç 2701, no Saltinho.

HERÓIS, desta teimosia (todos sabiam as adversidades para vencer aquele terreno) dos Comandos na reabertura da picada, foram os HOMENS do BCAÇ 2912 que trabalharam com abnegação na reconstrução da picada, mas o recompensado… o Comandante do Batalhão que foi louvado pelo COMCHEFE.

Pessoal da Secção de Reabastecimentos. Da esquerda para a direita: Soldado Condutor Auto Matias, 1.º Cabo Castiço, Fur Mil Tavares, Alf Mil Jesus e Major Sousa Teles, 2.º Comandante do Batalhão.

Um abraço
António Tavares
ex-Fur Mil SAM
Foz do Douro
11 de Dezembro de 2010
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7278: Estórias avulsas (99): Flora e Fauna de Galomaro (António Tavares)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7193: Estórias avulsas (98): Memórias de uma noite terrível em Canquelifá – 1971 (Francisco Palma)

Guiné 63/74 - P7431: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (35): Maravilhas do blogue... 36 anos depois (Nelson Herbert/Magalhães Ribeiro)


1. O nosso Amigo e Jornalista da Voz da América (VOA), Nelson Herbert (foto à esquerda), que acompanhou atentamente a série “Cerimónia da transição da soberania nacional na Guiné”, recentemente lançada nos postes P7388, P7393, 7400 e 7404, tendo prestado, a meu pedido pessoal, a sua melhor e imediata colaboração na identificação correcta das pessoas que aparecem em algumas das fotos, trocou comigo algumas profícuas e interessantes mensagens e, numa delas, dizia o Nelson a propósito da referida identificação: “Todas as faces da foto em questão, as três primeiras pessoas pertencem a uma mesma família mestiça... a família Sá, com profundas raízes em Mansoa...“.
36 anos depois

Logo que li o apelido da família “Sá”, fiquei espantado, pois o único homem do PAIGC com quem eu contactei e travei amizade em Mansoa, algures nos fins do mês de Agosto de 1974, e até tenho uma foto com ele, tinha como apelido Sá. 

“É demasiada coincidência” - pensei eu.
Nessa altura, por incrível que pareça, eu, um Operações Especiais, estava a substituir o vagomestre da companhia (que havia sido evacuado para a Madeira, de onde era natural, devido a doença hepática), quando um dia me bateu na porta um homem mulato e, fazendo a continência, pediu-me licença para entrar e falar comigo.
Olhei melhor para ele e para a farda e vi logo que das NT, ele não era!
Estendeu-me a mão cumprimentando-me efusiva e respeitosamente como se me conhecesse há uns anos, seguindo-se, mais palavra menos palavra, o seguinte diálogo:
- Bom dia, chamo-me Antero Sá e sou um comandantes operacionais do PAIGC, que actuava aqui na zona de Mansoa, em idos tempos de guerra.
- Ai sim? – disse eu, expectante.
Como eu ia começar a fumar ofereci-lhe um dos meus cigarros, que ele aceitou, agradecendo.
- Se achas bom, leva o resto do maço de tabaco (... SG ventil, devia ter uns 5/6 cigarros).
Voltou a agradecer e o modo respeitador, educado e de admiração, como ele aceitou os cigarros e me agradeceu aquele instintivo e espontâneo gesto jamais o esquecerei. Disse-me que os levaria para distribuir pelos seus homens que estavam acampados junto da Tabanca, aguardando que lhes entregássemos o quartel, comentando:
- Tudo o que nos chega, ou nos dão, distribuímos irmãmente entre nós todos. Se houver um só cigarro, um dos homens acende-o e vai passando para o outro, que dá a sua passa, e, por sua vez, passa a outro… e outro… até ele acabar. Com a alimentação também é assim, o que há para comer é dividido em partes iguais pelo pessoal.
Notei nas suas palavras que a fartura não era o forte para as bandas daquela malta do PAIGC. Por uma questão de constrangimento, respeito e dignidade, não lhe perguntei se estavam a passar dificuldades, nem era preciso fazê-lo.
Pensei: “Tudo o que aqui temos no depósito de géneros (na altura estava bem fornecido), quando formos embora, vai ficar a estragar-se e, tenho a certeza absoluta, estes 'gajos' estão a passar dificuldades.”
No dia seguinte, ao fim da manhã, estava eu a preparar uma sanduíche de chouriço, já quase havia esquecido o Sá, quando me vieram dizer que estava um turra à porta-de-armas que pediu para me falar.
Quando lá cheguei, vi que ele ali me esperava. Cumprimentamo-nos e ele puxou de um maço de cigarros NOPINTCHA, com 2 cigarros dentro, dizendo-me:
- Quero retribuir a oferta de ontem. O meu pessoal diz que o tabaco que mandaste, é muito macio e como vi que és um apreciador, vim-te trazer este para experimentares.
- Obrigado - disse-lhe eu.
Como não tinha mais nada que dizer, saiu-me:
- Acompanhas-me numa sandes de chouriço e uma cervejinha?
Ele olhou-me frontalmente e respondeu:
- Claro que aceito, vamos a elas!
No fim de comermos e cavaquearmos de assuntos trivialíssimos, evitando sempre aprofundar o tema guerra, perguntei-lhe se ele não queria levar o resto do delicioso chouriço para dar aos seus homens. Ele aceitou logo e voltou com a conversa da divisão:
- Levo sim, muito obrigado. Vou dividi-lo pelo resto da minha rapaziada.
Um dia, contou-me que havia sido incorporado no Exército Português, mas devido a desconfianças permanentes, interrogatórios pidescos e maus tratos por suspeitas da sua eventual colaboração (?) com o PAIGC, ele acabou por desertar e passar-se para as fileiras do PAIGC.



Na véspera da entrega do aquartelamento o Sá ofereceu-me, como prova da sua amizade o seu boné militar, o emblema do PAIGC, uma bandeirinha da Guiné-Bissau e as duas munições que estavam no topo dos carregadores das suas armas (uma de AK47 e outra de uma Simonov), que, felizmente, não chegou a disparar sobre as NT.
O tempo voou e até ao dia 9 de Setembro, em que entregámos oficialmente o quartel ao PAIGC, todos os dias conversávamos sobre as mazelas e consequências do violento passado e as melhores previsões do futuro da Guiné-Bissau.
Depois, nunca mais soube nada dele, até ao passado dia 9 de Dezembro de 2010.
Na foto pode ver-se eu e o Sá junto de um Unimog, que, por ordem superior emitida de Bissau, foi entregue ao PAIGC para as deslocações do seu pessoal e que o Sá, para evitar eventuais confusões, identificou com tinta na porta PAIGC. Em cima, sentado da parte de trás da viatura, está sentado creio que um dos filhos dele.
Magalhães Ribeiro

2. Em 9 de Dezembro o Nelson Herbert, enviou-me mais uma mensagem que dizia:

MARAVILHAS DO BLOGUE
SÓ HOJE, NAVEGANDO PELOS MEANDROS DO BLOGUE...CHEGUEI AO POSTE EM QUESTÃO... O COMANDANTE DO BIGRUPO DO PAIGC QUE ACTUAVA EM MANSOA... E CUJO PARADEIRO ESTOU TENTANDO APURAR, RESPONDE PELO NOME DE ANTERO SÁ... MEMBRO DE UMA INFLUENTE FAMÍLIA MESTIÇA, DE MANSOA, CUJO PATRIARCA, O SR. SÁ, ERA UM CONHECIDO COMERCIANTE PORTUGUÊS NAQUELA VILA OU CIDADE...
Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansoa > O Eduardo com um quadro do PAIGC. Foto do nosso co-editor, reproduzida no Correio da Manhã, edição supracitada. Posteriormente, o Eduardo disse-me que se tratava do comandante do bigrupo de Mansoa, de nome Antero Sá  (a viver actualmente em Portugal).
Trata-se de um indivíduo mestiço, natural de Mansoa, que pertenceu às NT (exército, presumo), e que terá desertado para o PAIGC, na sequência de um alegado e grave conflito com um superior hierárquico.
O Eduardo conviveu com ele "ainda umas semanas"... Tornaram-se amigos: ambos eram "rangers", um do lado, outro do outro...
O Eduardo, quando substituiu temporariamente o furriel vaguemestre da CCS do BCAÇ 4612/74, chegou a arranjar alguma comida e cigarros para os homens do bigrupo do comandante Sá...

Espero que o Eduardo aceite o meu convite para escrever sobre este período de sobreposição das duas forças, em Mansoa, nas últimas semanas antes da sua partida para a Metrópole... Ele tem mais umas dezenas de fotos deste período de convívio com o inimigo de ontem, em Mansoa...
Nelson Herbert

3. Em 9 de Dezembro o Nelson Herbert, enviou-me mais uma mensagem que dizia:
Caro Magalhães

Sim o seu amigo da foto, responde pelo nome de Antero Sá... e esteve na guerrilha do lado do PAIGC... Pertence à mesma família mestiça da foto, alias creio ser o único homem... no meio de tantas mulheres da família Sá... Uma família mestiça, cujo patriarca, o Sr. Sá era português com uma mercearia e comércio em Mansoa... proprietário de alguns camiões... e sobre alguns membros da família sempre pairaram suspeitas de colaboração a guerrilha... isto pelo facto dos camiões da família, terem em varias ocasiões, ido poupados de ataques ou emboscadas do PAIGC... E isso só por si... suscitava as tais interpretações próprias da época...
O Antero Sá foi sim militar português...
Quanto ao seu paradeiro, já iniciei os contactos junto dos sobrinhos e espero localiza-lo brevemente e pô-lo em contacto consigo... Acredito no entanto que esteja a viver em Portugal!
Mantenhas
Nelson Herbert

4. Pois a concluir esta rocambolesca estória, o Nelson Herbert só sossegou quando lhe enviaram e ele me comunicou o número de telefone do Antero Sá, ainda a viver na Guiné-Bissau, (e que eu ainda vou utilizar esta semana a ver se consigo falar com ele novamente 36 anos depois), que lhe foi indicado por um grande amigo dele e a quem volto a agradecer aqui, publicamente, este gesto de amizade e camaradagem.
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Nota de M.R.:

- Segundo fui informado, com confirmação do próprio via telefone, após atribulada vida de guerreiro na Guiné, o Antero Sá vive desde 1975 em Portugal.

Guiné 63/74 - P7430: Convívios (287): Novo Encontro da Tabanca da Linha (3) (José Manuel Matos Dinis /Miguel Pessoa/Mário Fitas)


1. O nosso Camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos, em 12 de Dezembro de 2010, a seguinte mensagem, com fotos de Mário Fitas e Miguel Pessoa:
Almoço da Magnífica Tabanca da Linha

Aguardava-se com grande expectativa o almoço de confraternização realizado no passado dia dez, uma sexta-feira, dia aziago para os que vivem de crendices, potenciado pela recordação do último que se realizara e merecera fartos comentários sobre a qualidade alimentícia, e o preço esportulado, todos coincidentes no que em linguagem comum se designa por barretaço.
A expectativa alargava-se a outras áreas de acção terrorista, com as anunciadas presenças do Dinis e do António Graça de Abreu, que têm brindado o estimado público com ameaçadores postes e comentários, enrijecendo a luta dos pontos de vista sobre a guerra santa, de quem ganhou e quem perdeu, sobre os vilões e os heróis, sobre complexos esquerdizantes ou reaccionários, com mais ou menos propósito, pois como todos sabiam, e mostravam-se apreensivos, em tempo de guerra não se limpam as armas. Luta-se com tudo, até à dentada. E foi assim que a coisa se resolveu.

Contavam-se as espingardas, e misturavam-se os simpatizantes na óbvia tentativa de se neutralizarem, quando os litigantes se encararam e correram um para o outro de braços abertos a selar uma paz, provisória, que permitisse refazer forças pela aliança estratégica no ataque ao almoço. Abancaram os senhores da guerra onde os outros permitiram, que isto de resolver os problemas do estômago não tem favoritos.
Conversaram os participantes sobre os mais variados temas, trazendo à evidência que a história da Guiné ainda está por fazer, mormente, no que às refeições dizia respeito, essa indesmentível fonte de moral e capacidade, que um certo bardo ainda não acabou de as cantar.
Todos juntos, eram mais de vinte e dois, incluindo três simpáticas senhoras, as esposas do Marques, do Humberto Reis e do Miguel Pessoa, a nossa Giselda.


Após o repasto, quando as conversas reatavam de vitalidade, o Zé Carioca fez uma nova prelecção sobre os objectivos e necessidades para uma associação de solidariedade para com os jovens guineenses, que lhe anda a matutar no toutiço há muito tempo e, agora, pretende concretizar. A dedicação apresentada com alguma nervoseira, mereceu palmas.
Tiraram-se retratos para a posteridade, anunciou-se a pretensão do Alberto Branquinho querer comprar uma casa na linha, com vista para o mar, ou outro privilégio que convença a esposa à mudança, e, vim a descobrir, só para fazer parte integrante dos membros da Magnifica.


Notaram-se faltas: em primeiro lugar a do impulsionador desta Tabanca, o Rogério Cardoso que se debate com dores no meio das vértebras (a ver se alguém providencia uma bagaceira que lhe restitua a alegria de viver); em segundo lugar, o sempre requisitado Luís Graça, que não resistiu aos apelos de uma belíssima aluna para lhe fazer um exame (não é para todos, sosseguem, isto de fazer exames às melhores alunas, é só para quem tem muita experiência e continua a praticar); em terceiro lugar, menciono todos os restantes atabancados e voyeurs, que não sabem o que perderam.

Espero ter cumprido a minha parte com discrição, pois nem sequer mencionei o vinho que, pecaminosamente, o Fitas derrubou sobre o Rosales, sabe-se lá porquê, pelo que dou por terminada esta tarefa, e vou fazer uma sesta que me ponha em paz com as volúpias bem combinadas do robalo com o tintol.
Abraços fraternos
JD
2. Também o nosso Camarada Humberto Reis (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 12 - Contuboel e Bambadinca -, 1969/71, enviou um resumo das actividades deste convívio, com algumas das suas fotos:
Camaradas,
Aqui vão umas fotos da almoçarada de Natal realizada hoje, dia 10, da raparigada e rapaziada da Tabanca da Linha.
Foi no Restaurante de comida transmontana "O Infante" na estrada de Algés para Linda-a-velha. Não identifico o pessoal todo mas alguns são mais mediáticos que outros.
Reconhecem-se o Fernando Marques da CCaç 12, a esposa Gina, a Giselda, o Miguel Pessoa, o Gabriel Gonçalves tb. da CCaç 12, o Moreira da CCS do Bart 2917, o Graça de Abreu, o José Dinis, o José Carioca e o Mário Fitas dos Lassas de Cufar.

Aquele abraço
Humberto Reis
__________
Nota de M.R.:

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7429: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (37): Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 20 de Novembro de 2010:

Amigo Carlos Vinhal
Um bom dia.

Como as anteriores, mais uma passagem verídica de “Viagem…” que à altura me viria a afectar bastante em alguns dos dia-a-dias seguintes e que sai agora, ao fim de trinta e nove anos, do exclusivo conhecimento dos intervenientes.

Para ti Vinhal e para os que tiverem a paciência de ler, o meu abraço.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (37)

Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

Ao meu 2.º GRCOMB foi finalmente atribuído um descanso de dias na actividade operacional de intervenção, passando a operar em serviços e patrulhamentos, aliados a emboscadas na povoação e imediações, o que para nós era uma espécie de férias que nos começou a diminuir a tensão psicológica, levando-nos porventura a baixar um tanto a guarda, o que a acontecer, podia traduzir-se no facilitismo e no erro fatal.

Por muito pouco esse erro… não aconteceu,ficando-me de emenda, como responsável!

No meu 2.º GRCOMB, logo após as primeiras Operações na Guiné, tínhamos instituído que quem fizesse anos seria dispensado de qualquer serviço nesse dia, podendo inclusive e eventualmente, beneficiar também da dispensa de um amigo. Era de certo modo uma maneira de premiar o Pessoal mais que merecedor e ao mesmo tempo prevenir qualquer situação de fragilidade emocional potencialmente de risco, em especial na mata, onde a segurança devia ser sempre uma constante. Na situação em concreto (neste descanso), os graduados revezavam-se nas saídas, considerando a ausência ou diminuta periculosidade das mesmas.

A época das chuvas caminhava para o seu termo, não obstando a que fortes bátegas de água, mais ou menos prolongadas, se abatessem dos céus alagando tudo e que, ao esparramar-se no chão levantava uma espécie de nevoeiro, como se de um aspersor se tratasse.

Assim está o tempo nesse final de tarde em que íamos fazer um patrulhamento com emboscada nocturna pela Povoação e periferia próxima, com regresso previsto, salvo erro, pelas uma ou duas da manhã

Um e depois outro elemento do grupo pedem por licença de anos e pela presença no convívio de alguns amigalhaços. A autorização é-lhes concedida, já que foi considerada uma saída sem ou diminuto risco. Ao Castro (Fur Mil) digo-lhe que dado o pouco Pessoal que ia alinhar, não era preciso vir, pelo que ficou a descansar. O Barros creio que estava para… a Família!?!

Na parada, sob chuva séria, um 2.º GRCOMB (?!) composto por cerca de uma dúzia de elementos com armamento leve e sob o meu comando (só levava a Walter) apresenta-se ao Cap. Branco que, vendo o pequeno número de Homens, me interroga se estamos todos. Mediante a minha resposta afirmativa recebe a apresentação e arrancamos debaixo do aguaceiro.

A zona pré determinada para emboscar era algures entre o perímetro da Povoação e a Ponte Alferes Nunes. Pelo caminho íamos patrulhando a periferia.

Noite adentro e o dilúvio não abranda, ensopando-nos até aos ossos, apesar da protecção dos ponchos. Ainda um tanto afastados da zona de emboscada reparo em duas moranças isoladas à face do caminho e para não nos castigar mais, resolvo e dirijimo-nos para a protecção dos seus beirais zincados. Pareciam inabitadas.

Digo à rapaziada para se abrigar mas, por estarmos fora de zona não queria barulho de molde a acordar ou sermos pressentidos pelos eventuais moradores, já que se o “baldanço” chegasse aos ouvidos do Comando, na certa me lixava. O Cor Pára Durão não era para brincadeiras!!

A Rapaziada anuiu satisfeita e por lá fica abrigada, em conversa sussurrada à mistura de umas cigarradas. Avisados de que vou fazer a segurança e verificar o terreno, afasto-me por um trilho na perpendicular, entre capim alto, que a uma trintena de passos se divide à minha direita com um outro que parece ir na direcção da povoação. Logo a seguir a essa bifurcação, resolvo posicionar-me do lado direito, aninhado sobre os calcanhares e dissimulado no capim, quase à face do trilho, de molde a poder perscrutá-los, ficando coberto pelo poncho e em observação por uma nesga do capuz cerrado sobre a cabeça.

O tempo vai passando e da Rapaziada atrás de mim, não ouvia qualquer barulho, talvez por terem seguido o meu pedido ou por o som ser abafado pelo ruído do aguaceiro.

A chuva continua a cair com força e a dada altura parece-me distinguir a uma vintena de metros, vultos silenciosos na noite que se aproximam, vindos em fila pelo trilho na minha direcção! Surpreso, empunho a Walter, encolho-me e fico estático. Os olhos aguçam-se-me tentando perceber se é população, o que seria estranho àquela hora. Ligeiros continuam a avançar na minha direcção e começo a distingui-los melhor… parece-me… trazem armas… também um RPG! Grande porra, são turras… estou fod …!!


Sem hipótese de ir para junto dos meus, puxo-me lentamente um pouco para trás, aninho-me mais no capim com a Walter já em posição de fogo e fico pronto a disparar com o primeiro na mira. Tenho a noção de que um ou dois tombariam sem que em princípio e dado o meu posicionamento, algo me acontecesse ! O pensamento voa para os meus Homens que, se eu disparar ficarão no enfiamento dos tiros de resposta e serão apanhados de surpresa, na certa com graves consequências. Pena não levar granadas!

Um “flash” mostra-me três hipóteses possíveis: não me detectam e continuam em direcção ao Pessoal, só me possibilitando disparar quando a maioria já por mim tivesse passado, fazendo assim com que a resposta fosse na minha direcção (em principio não me atingiria) e como tal em direcção oposta aos Rapazes, que ao mesmo tempo ficariam alertados e interventivos.

A segunda hipótese, com sorte a melhor, seria eles virarem à esquerda pelo trilho sem me detectarem. A acontecer isso… não haveria tiros.

A terceira hipótese, ser detectado… a acontecer seria um cu de boi !!

A decisão está tomada, só disparo se for detectado ou se eles se dirigirem na direcção dos meus Rapazes. Resta aguardar. Preparado e estático, rezo para que não se ouça a Rapaziada desprevenida.

Continuam a aproximar-se ligeiros e em silencio… dez metros, cinco metros, um metro… estou em tensão, mas calmo e frio… começo a contá-los… vão-me passando pela frente quase me roçando, dezassete elementos com espaçamentos curtos - quinze metralhadoras visíveis, confirmados dois RPG e não um - que começam a virar à esquerda, só Deus sabe porque e vão desaparecendo na noite.

Estávamos safos, graças a Deus. Três ou quatro minutos se tanto que me pareceram uma eternidade, se tinham escoado. De imediato movimento-me e instruo o Pessoal, que de nada se tinha apercebido. Pelo “banana” AVP1 contacto o Comando, alertando para eventual flagelação e informando do observado.

O mote estava lançado… movimentações bélicas iriam acontecer… outra dor de cabeça ia começar !

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7314: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (36): Teixeira Pinto, uma nesga do Paraíso

Guiné 63/74 - P7428: Parabéns a você (187): Agradecimento de Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872

1. Mensagem do nosso recente aniversariante Luís Dias*, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, com data de 13 de Dezembro de 2010:

Camarigos Editores
A vida é, também, esta oportunidade de ter amigos que se lembram de nós e que no caso da Nossa Tabanca Grande se manifesta no não deixar passar em claro a data de aniversário de cada um de nós. Aos editores agradeço os parabéns, em especial ao Carlos Vinhal, pelas suas palavras (foi o editor que me recebeu quando da minha entrada no blogue).

Sou, “finalmente”, um sexagenário, um produto da maravilhosa colheita de 50. O tempo passou bem depressa, desde os tempos em percorria as ruas e becos de Alfama com os putos do meu tempo, em correrias desenfreadas, brincando aos índios e “cowboys”, ou participando em jogatanas apaixonadas de futebol e de hóquei. Foi o tempo de aprender, de acampamentos de escuteiros, de escutar e observar os valores, princípios e exemplos dos meus pais, dos primeiros namoros no Castelo de S. Jorge, de crescer e iniciar a caminhada pela vida.

O facto de ter feito anos a um Domingo proporcionou-me a possibilidade de juntar elementos mais chegados da família e um grupo de amigos (como também salientou o Vinhal) e de conviver num espaço que eu muito admiro: Jardim Zoológico de Lisboa, que continua lindo e assentar arraial no Restaurante Buffalo Grill (passe a publicidade).

Tive a oportunidade de agradecer pessoalmente à minha mãe (felizmente ainda viva, embora com a saúde debilitada), a forma como me criou e acompanhou ao longo desta vida, dando-me aquele carinho, aquele amor, aquele apoio, que só uma mãe sabe dar, quer nas horas boas, quer nas horas em que a vida não me correu tão bem. Rezei uma prece pelo meu pai, que já partiu há uns anos atrás (que saudades eu tenho dele) e agradeci a Deus o ter chegado a esta idade e esperar que me permita continuar nesta vida por muitos anos mais.

Depois do almoço a malta mais madura esteve em minha casa para beber uma garrafa Dimple (mais uma das velhinhas garrafas de uísque que ainda sobreviveu dos diversos “ataques” de amigos que vinham a minha casa e me iam pedindo para as abrir). Estava na minha posse há 38 anos, mas passou à história. Ainda me restam três heróicas e resistentes (Logan, Something Special e President), mas a seu tempo também marcharão.

Aproveito a oportunidade para agradecer a todos os camarigos que me parabenizaram através do blogue, de e-mails, sms e telefonemas (nomeadamente: Carlos Filipe, Santos Oliveira, Amílcar Ventura, António Graça Abreu, José Marcelino, António Tavares, Manuel Marinho, J. Belo, Torcato, Artur Soares, Adriano Moreira, Luís Faria, Juvenal Amado, Magalhães Ribeiro, Mexia Alves, J.Dinis, César Dias, Sousa de Castro, Eduardo Campos, Mário Miguéis, António Paiva, Mário Gualter Pinto, António Marques, B. Sardinha, Luís Graça, Luís Borrega, Jorge Picado, José Câmara, Felismina Costa, Helder Valério e Fernando Barata); fiquei com mais uns amigos no meu coração e abracei-os todos num brinde em minha casa.

Desejo expressar a todos elementos da nossa Tabanca Grande o desejo de longa vida, muita paz, prosperidade, com os votos de um Feliz Natal e um Bom Ano Novo.

Luís Dias

P.S. Caro Luís Graça em resposta à tua pergunta e face ao interesse sobre armamento, nomeadamente sobre a Kalashnikov versus HK-G3, em breve remeter-te-ei um histórico sobre os Fuzis de assalto, origens, o lado do bloco soviético e o lado ocidental, a actualidade, as “bull pup”, o futuro dos fuzis de assalto.
A talhe de foice, também o meu Benfica, resolveu dar-me uma pequena alegria cumprindo a função social e de marketing, ao enviar-me um sms de parabéns e especialmente ao ganhar ao SC Braga, hoje à noite, como lhe competia. Um dia em cheio, com excepção do raio da chuva que caiu durante o dia (o tempo a carpir lágrimas!!!).
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7422: Parabéns a você (186): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Tertúlia / Editores)

Guiné 63/74 - P7427: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (34): A fama que vamos tendo por aí (César Dias)

1. Mensagem de César Dias* (ex-Fur Mil Sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71), com data de 11 de Dezembro de 2010:

Carlos,
Envio-te este e-mail que recebi só para veres a fama que vamos tendo por aí, este foi um camarada da recruta que seguiu depois para Angola, mas ficou doido com a dimensão do nosso blogue, disse-me que por ali podem fazer a história da guerra da Guiné.

Um abraço Carlos
César Dias


2. Olá César
Aqui vai o teu mail que enviei para os meus amigos.
Esta foi a minha prosa.

Abraço
Hipolito

3. Assunto: Maior Blog-Guerra Colonial-Guiné

Meus Amigos
Um ex-camarada da Recruta enviou-me um mail com este Blog que acho fantástico.
Nele está uma foto em que este vosso amigo se encontra. Foi no Juramento de Bandeira.

Na foto do dia 24 de Novembro, estou ao lado do camarada com a elipse a azul.
Situações do acaso. Este meu ex-camarada soube de mim através de algo que enviei para a revista do Combatente. Viu o meu nome (pouco comum) e o meu mail. Contactou-me e agora temos posto a nossa vida em dia.

Abraço
Hipolito



Recapitulando. Na foto: A encarnado Tony Levezinho, a azul César Dias e a amarelo Hipólito http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search?q=%22P7325%22


4. Comentário de CV:

Que se pode acrescentar?
Contra ventos e marés somos aquilo que somos e não aquilo de que nos querem apelidar.
Este comentário tem destinatário, pelo que a tertúlia deve ignorá-lo.

O camarada Hipólito fica no nosso Blog, nesta foto, assinalado a amarelo, ao lado do nosso camarada César Dias, por sua vez assinalado a azul.

Pela minha parte, pelo que fizeste do teu (nosso) blogue, obrigado Luís Graça.
CV
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7279: Parabéns a você (172): César Vieira Dias, ex-Fur Mil Sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71 (Editores/Tertúlia)

Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7420: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (33): Tradutora pede ajuda ao nosso blogue para as expressões zone-call e clock-code, usadas em especial pela artilharia (José Martins)

Guiné 63/74 - P7426: As nossas mulheres (11): Mulher é ...mulher (José Brás)

1. Andam os editores a tratar de um assunto delicado, um texto enviado por um camarada que nos suscita algumas dúvidas quanto à forma e ao conteúdo.
Pedimos opiniões a alguns camaradas, entre os quais incluímos o nosso tertuliano José Brás.

Depois de alguns considerandos, explanando a sua opinião, brindou-nos com este texto, para cuja publicação pedi a devida autorização.

Eis o exemplo de palavras, que ordenadas, nos transmitem uma sensação de melodia, harmonia e beleza.




2. Mulher é ...mulher!

No meu fraco modo de ver, acho que a mulher é a mais acabada síntese da beleza que só o universo encerra.

Mulher/mãe, mulher/irmã, mulher/amante, mulher companheira desta coisa complicada e lindíssima que é o viver, não merece peças daquelas e infelizmente é o que tem tido mais em vastos lugares do mundo, por vezes ao lado da nossa porta.

Séculos correram na crença do tal sexo fraco, da ideia de uma cópia mal feita de homem, incapaz de se encarregar de muitas e, sobretudo, de grandes tarefas.

Orgulhoso de seu erecto falo, o homem levou séculos para perceber a superioridade sexual da mulher, face à fal(ácia) da sua tão precária potência.

Encurralado pelo preconceito de macho, o homem nem percebeu que estava a deitar fora o melhor da festa, na recusa do que havia trazido da barriga da mãe mas que achava mais próprio de fêmea, a ternura, a sensibilidade, a vontade de partilhar, com isso, encurtando o acto meio comprado e consumido à pressa.

Podem bater-me, se assim o entenderem, porque não me coíbo de dizer que em minha opinião, a mulher é um ser mais perfeito e mais capaz do que o homem.

Não o digo apenas porque na minha longa experiência de piloto e de instrutor de voo, as mulheres foram os melhores alunos que tive. Entendendo mais rapidamente a matéria teórica, mais corajosas na aventura do voo, com maior sensibilidade para entender ao espaço, o movimento no espaço e os gestos necessários para manobrar.

Digo-o também por ter ouvido a Sobrinho Simões quando fala disso.

Digo-o também por ter ouvido a José Júlio, um dos maiores espadas da "toureria" portuguesa, de grande nome nas praças espanholas, anos a fio no topo do "escalafon" em duelo com os grandes nomes do seu tempo, hoje dirigindo uma escola de toureio em Vila Franca . Diz ele que a mulher tem maior noção do tempo e do espaço da lide, maior plasticidade nos passes e coragem que nunca é inferior à dos homens, sendo pena que os namorados lhe acabem por impor fim a uma carreira,

Poderia dar muitos outros exemplos mas não o farei porque me parecem suficientes estes que aqui trago.

Mulher, branca, negra, amarela... é ser para partilhar vida em igualdade de direitos e deveres de cidadania, de companheirismo e de amor.
E isso nada tem a ver com falsos conceitos de recusa da "mais velha profissão do mundo".

A mulher vende o corpo por muitos e secretos motivos individuais e também por consequências sociais que a empurram para tal prática.

No fundo, porque hoje me está a apetecer gramar com muitas críticas de milhentos camarigos que não me acompanham neste pensar, eu adianto ainda que é o corpo que qualquer operário vende quando, pelo trabalho e pelo salário, cria riqueza tangível ou intangível.

E digo mais ainda. É muito mais que o corpo que o poeta vende, quando coloca no mercado o produto das suas ânsias individuais, a sua alma e a sua subjectiva interpretação da vida e do mundo.

E nunca ouvi que lhe chamassem prostituta!
E a fechar...


3. Queria

Queria falar-te amor
deste veludo interior
que me afaga
nos sentidos
destes dedos/raizes
escalavrados aéreos/elos
do corpo fugitivos
na ânsia que sentem
pelo abismo
queria falar-te eu
mas no tom
de quem espalha a confiança
como um deus antigo
ou então
com a voz rouca
de incerteza
o gesto demorado
do pudor
os olhos vadiando-te
o corpo/mar
a ti mulher
depósito grandioso
e secreto
da ternura
queria eu falar
do meu amor
mas como
se nos separa já
a distância
à estrela da manhã?


José Brás
Toronto, 1987


4. José, permite-me que transcreva no teu poste uns versos que guardei há muitos anos, de José Gomes Ferreira**

CABARET
(À infalível prostituta, a um canto)

Se eu quisesse, tornava-te humana
Fazia-te chorar
as lágrimas que trago em mim
E beijava-te na boca
a menina que ainda existe
no fundo dos teus olhos
Mas não quero
Prefiro ver no teu corpo
o desenho da minha indiferença.
E sentir-te na pele
tudo o que há de vil na minh'alma
...e já não cabe em mim

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7396: (Ex)citações (117): Transição da Soberania da Guiné, Idiotas e Ressabiados (José Brás)

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6667: As nossas mulheres (17): Um pouco de mim (Ana Duarte)

(**) Em tempo: Informação prestada pelo nosso camarada Alberto Branquinho, porque eu desconhecia o autor dos versos que guardei durante dezenas de anos.

- Imagem retirada da Internete. As devidas vénias ao seu autor

domingo, 12 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2010:

Malta,
Acabou-se a vagabundagem, Fodé Dahaba é o condutor dos eventos. Comecei o dia em apresentações, consegui uns minutos para ir até à Missão do Sono, depois a ponte do rio de Udunduma, Amedalai, Taliurá, Ponta Coli, Xime e Ponta Varela. Nos intervalos, bebi água, comi bolacha Maria, banana-maçã e goiaba.
Enquanto comprava fruta fui abordado por Demba Embaló, que me disse ser guarda-costas do Jorge Cabral e obrigou-me a escrever: 19662, espero que não seja nenhum código secreto, talvez um número mecanográfico.
Outro Demba, Demba Djau, anunciou-se: “Pertenci ao 1.º Pelotão da CCaç 12, peço a todos que me escrevam”.
E agora Lorde Torcato de Mansambo que se acautele: um tal Mamadu Baldé, que se apresentou como pertencente ao pelotão de milícias de Candamã, perguntou por ele. Amanhã, em Samba Juli, começarei as inquirições de que ele me incumbiu.
A minha vida mudou: jantar cedo, deitar cedo, levantar cedo. À cautela, tirei uma fotografia do pôr-do-sol, no Bairro Joli, sobre as bolanhas de Finete e Chicri. Deixara, em definitivo, o chão multiétnico de Bissau, pé entre pé estava a mergulhar no meu mundo.
Amanhã de manhã, vou atravessar Bambadinca sempre com os olhos rasos de lágrimas.

Um abraço do
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (3)

DIA 21 DE NOVEMBRO DE 2010

Este edifício era a Missão do Sono, sediada no Bambadincazinho. Depois do ataque de 28 de Maio de 1969, o Bambadincazinho, tal como a ponte do rio Udunduma, passou a fazer parte do plano defensivo, todas as noites um pelotão ficava aqui acantonado, na presunção de dissuadir qualquer ataque do PAIGC a partir do flanco do Xitole. À frente do edifício da missão, havia um gigantesco U com bidões cheios de terra e cobertura de cimento, seria a estrutura defensiva contra o ataque do IN. Aqui vieram “acampar” vários Pel Caç Nat, todos os pelotões da CCaç 12, isto entre 1969 e 1970. Ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, o Bambadincazinho e a Missão do Sono ficaram a fazer parte dos eventos funestos do Tangomau. Passava das 5 e meia da manhã quando chegou o Xabregas (Mário Dias Perdigão) vinha buscar o contingente de duas secções do Pel Caç Nat 52. Sentei-me ao lado do Xabregas, Uam Sambu sentou-se ao meu lado e estendeu a mão a Quebá Sissé para o ajudar a subir. A fatalidade veio imediatamente. No momento em que o Unimog arranca sucedem-se vários tiros e Uam Sambu caiu-me no colo a esvair-se em sangue: “Ai, me alfero, mim muri…”. E morreu mesmo, para desgosto de nós todos e para a penitência de Quebá Sissé, que metera inadvertidamente a patilha na posição de fogo e, ao dar balanço ao corpo, meteu o dedo no gatilho.

Foi neste sombreado que se deu a tragédia ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. O Unimog partiu à desfilada, como numa grotesca Pietá, eu levava Uam Sambu em agonia, o nosso médico, Joaquim Vidal Saraiva, tudo tentou, mas hemorragias provinham de órgãos vitais. Rapidamente evacuado, Uam Sambu terá já chegado morto ao HM 241. O Tangomau procurou falar com a sua viúva e lavadeira, Binta Sambu, vive para os lados de Gabu, foi o que lhe disseram. Deixou-lhe saudades e até um grande abraço do Cherno, pura mentira, pareciam o cão e o gato, ela partia todos os botões, ele protestava pois tinha que comprar material substituto e cozê-los. Estamos a menos de 50 metros da casa de Fodé Dahaba, na actualidade.

Quando cheguei às 8:30 do dia 21 a casa do Fodé, tinha um comité de recepção à minha espera. O “homem grande” é Alai Fuma, paizinho de Fodé. Combateu ao lado dos portugueses em Canhabaque, nos Bijagós, em 1936. Está rodeado de vários familiares e dois deficientes das Forças Armadas. Houve abraços e a sessão de cumprimentos terminou proverbialmente com uma oração dirigido a um Deus todo misericordioso que na sua bondade alegra o coração dos homens, reencontrando-os imprevistamente.

A segunda sessão de boas vindas juntou sobretudo mulheres e crianças das famílias Dahaba e Fati, a viverem na órbita do organizador do evento. O Tangomau pede desculpa pela pouca visibilidade da imagem, havia já uma luz tão crua que ele procurou pôr este comité de recepção no recato de uma boa sombra… e excedeu-se.

Findas as duas cerimónias de recepção, Fodé Dahaba deu largas à sua hospitalidade, começavam a chegar os milícias de Finete da sua secção. Aí o meu coração começou a tremer quando apareceu Samba Gêbo ou Samba Baldé, sempre pressuroso e afável, eternamente gaiato. O Tangomau escreveu no seu caderno: “Abracei-o a chorar, era o encontro da minha juventude, o Samba pedia-me livros, era um leitor infatigável. Não me admirei quando me perguntou: “Trouxeste livros para mim?”. Em voz alta, Fodé começou a dar ordens, anunciou que iriam a Amedalai continuar a ver a família. Seguiram todos num carro de combate disfarçado de viatura civil. Enquanto se conversa e naturalmente o Tangomau é questionado quanto ao número de mulheres e filhos (quantos machos, quantas fêmeas?), passam baratas e formigas que dão ferroadas. Na comitiva seguirão três filhos da terceira mulher de Fodé: Calilo, Iaguba e Braima.

Quando o Tangomau procurou a área correspondente ao antigo destacamento da ponta do rio de Udunduma encontrou a nova tabanca, com o mesmo nome. As mulheres dançavam, tanto quanto lhe foi dado perceber celebrava-se um corte de cabelo feminino, todas as mulheres posaram para a fotografia. Até se pode imaginar que nunca houve aqui um destacamento, é ainda por cima odiado por todos que aqui tinham que prestar serviço.

Samba Gêbo em pose sobre a velha ponte do rio de Udunduma. Era aqui que se situava um dos buracos mais infectos que dava por nome de destacamento. O Luís Graça e a CCaç 12 sabem do que falam. Talvez até o Jorge Cabral, não sei. Na retirada da flagelação de 28 de Maio de 1969, as forças do PAIGC tentaram destruir a ponte que cedeu ligeiramente na outra margem. À cautela, todas as noites um pelotão pernoitava perto da ponte em condições inenarráveis: camas a boiar em poças de água, abrigos com seteiras impróprias para responder ao fogo do inimigo, um arremedo de refeitório onde o corpo ficava ainda mais picado à hora do almoço e do jantar. Com a nova estrada Xime-Bambadinca, este caminho e esta ponte só servem a tabanca de Udunduma, que o Tangomau foi visitar, antes de chegar a Amedalai.

Uma perspectiva da nova ponte sobre o rio Udunduma a partir da velha estrada Xime-Bambadinca.

Era obrigatório, chegados a Amedalai, que o Tangomau perguntasse por um dos seus mais dilectos amigos, Mamadu Djau, o 126, bazuqueiro de elite, aquele que na noite de 16 de Outubro de 1969 dera a sua palavra de honra (e cumprira) que defenderia até à morte a coluna de sinistrados que o Tangomau lhe deixara à porta. Djau partira na antevéspera para um choro em Bissau e anunciara à família que tinha de voltar rapidamente para receber nosso alfero. Quando se chegara a Amedala, o Tangomau fora interpelado pelo homem que está sentado no centro, primeiro cabo José Carlos Suleimane Baldé, da CCaç 12. E dera a seguinte ordem: “Mostre-lhes a minha fotografia, quero que saibam que ainda existo, que penso em todos eles e que lhes mando um abraço”. Por detrás, temos a morança de Mamadu Djau e a sua família.

Quando perguntei pelo Mamadu Djau e alguém me disse que ele não estava, apresentou-se um jovem que disse ser “o macho mais velho”. O Tangomau disse-lhe que devia ter muito orgulho no seu pai, tanto pela sua bravura como pelas suas qualidades de carácter. Ele tudo ouviu sem fazer um comentário mas no final disse-lhe: “Tira fotografia, eu e os meus irmãos não temos uma fotografia juntos, é para lembrar a viagem do branco de quem o nosso pai está sempre a falar”. Embargado pelo pedido, o Tangomau não se fez rogado, aqui estão os Djaus, machos e fêmeas.

É o que resta da estrada do Xime, junto ao porto, reduzido a meia dúzia de estacas. O Tangomau pretende mostrar homenagem a quem alcatroou esta estrada que está adubada em sangue. São incontáveis os feridos nas emboscadas e minas. Este porto e esta estrada transformaram-se num ponto vital para o abastecimento do Leste, em finais de 1969. Por ironia, Mato de Cão perde a sua importância, os barcos de maior calado aportavam ao Xime, a partir de 1970 só atracam em Bambadinca as pequenas embarcações civis. A comitiva viera de Amedalai até ao Xime, na povoação o Tangomau foi novamente apresentado à família Fati, conheceu a viúva de Mankaman Biai, um guia muito competente que ele fez louvar quando foi responsável pela operação “Rinoceronte Temível”, que ocorreu em 8 e 9 de Março de 1969. E daqui partiu-se para Ponta Varela. Nas suas notas, o Tangomau escreveu, a este propósito: “Como é bom voltar a esta estrada que se viu crescer e que se protegeu ininterruptamente durante semanas, em Junho e Julho de 1970. Gostei muito de ver as novas tabancas dos manjacos em Taliurá e Ponta Coli”.

O Tangomau fora três vezes a Ponta Varela. Naqueles tempos de guerra, saia-se do Xime, ia-se por um caminho perto do rio Geba, flanqueava-se a bolanha através do interior de um palmar e depois subia-se pela velha tabanca. A partir daí, e sempre a corta-mato (o PAIGC tinha vários caminhos minados) seguia-se ou para o Poindom e depois Ponta do Inglês, ou atravessava-se a estrada Xime-Ponta do Inglês em direcção seja a Madina Colhido, Gundaguê Beafada ou mesmo Baio ou Buruntoni. Eram recordações tão impressivas, havias tantas e tais lembranças dos ataques às embarcações em Ponta Varela que o Tangomau fez questão de ir exactamente ao local do crime. Acontece que o local do crime está a sensivelmente a três quilómetros da actual tabanca de Ponta Varela. Foi uma viagem inesquecível, os raios solares, cor de ouro, infiltravam-se pelos cajueiros, atravessaram-se hortas, avistaram-se mangais, palmares, até que se chegou ao tarrafo do Geba. O Tangomau veio acolitado por um jovem de nome Mussá e Calilo Dahaba andou sempre na minha sombra, o pai não queria que me acontecesse qualquer desgraça… para que fique gravado para todo o sempre, os ataques às embarcações ocorriam neste ponto onde está um pilar em cimento que permitia a leitura das marés, é um pilar semelhante ao que está em Mato de Cão. Havia igualmente pilastras em cimento que suportavam uma escada em madeira: as pilastras estão lá, a madeira foi devorada pelos furores do tempo. Trata-se de uma obra dos anos 50, decorrente das actividades da segunda missão geo-hidrográfica da Guiné, coordenada por Manuel Pereira Crespo, que chegou a ministro da Marinha.

O leitor que se prepare, vai ver variações deste pôr-do-sol, tendo como fundo Finete e Chicri. Foi um dia de emoções, o Tangomau levantou-se cedo, tomou um banho de caneco, bebeu chá de erva cidreira, comeu doce de papaia, eram 8 horas quando chegou Fodé, Calilo, Iabuba e Braima. Os eventos sociais de Bambadinca deixaram marcas. A recepção dos Fati em Amedalai foi demorada, pela primeira vez na sua vida o Tangomau explicou o modo como Fodé Dahaba se sinistrara perto de Madina, no amanhecer de 22 de Fevereiro de 1969. A grande surpresa foi a viagem entre a tabanca de Ponta Varela e o local do Geba onde as forças do PAIGC atacavam as embarcações. Vezes sem conta, em Mato de Cão, o Tangomau ouvira o foguetório e algumas vezes recolheu vítimas que chegaram ao Cuor. Há mais duas variações desta fotografia, ficarão à disposição de quem as solicitar.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010