1. Mensagem da nossa tertuliana Maria Dulcinea (NI)*, esposa do nosso camarada Henrique Cerqueira) que esteve em Bissorã nos anos de 1973/74, com data de 24 de Maio de 2011:
Olá Carlos Vinhal
No seguimento do tema "As nossas Mulheres de Guerra", vou tentar o mais sintetizado possível descrever como fui parar à Guiné para me juntar ao meu marido.
NI
COMO FUI PARAR À GUINÉ
Tudo começou em 25 de Agosto de 1968, dia de Festa do São Bartolomeu na Foz do Douro.
Aí conheci o Henrique e jamais nos separamos. Casamo-nos em 1970 e em 1971 o Henrique foi para a tropa.
Quando ele estava nas Caldas da Rainha em Setembro desse ano nasceu o nosso Miguel Nuno.
Logo depois o Henrique foi para Tavira de seguida para Elvas e antes da Guiné foi para Évora.
Em Junho de 1972 e vésperas do seu aniversário, recebo um telefonema do meu marido para passar o fim de semana em Évora (já o nosso filho tinha 10 meses) .
Lá fui para Évora saltando de comboio em comboio, isto porque antigamente ir do Porto a Évora era uma autêntica odisseia.
Em Évora lá estava o Henrique e até aí tudo bem. O pior foi no Domingo, quando juntamos alguns camaradas para um almoço a festejar o aniversário do meu marido, embora com uma antecipação de um dia, pois que ele embarcaria no dia seguinte, dia do seu aniversário, o que eu não sabia.
Durante o almoço um dos camaradas disse:
- Então amanhã a esta hora já estamos longe.
Olhamos uns para os outros em silêncio e foi aí que percebi que embarcavam com destino à Guiné no dia seguinte.
Fiquei sem fala porque já sabia que ele iria para a Guiné, só que não sabia quando, mas não chorei.
No dia seguinte (19/06/1972) pela manhã e aproveitando uma boleia dum alferes nosso amigo e que era de Lisboa, fomos todos de automóvel até ao aeroporto e o resto da malta foi toda em viaturas do Exército. E assim, após a partida do avião, fiquei de novo só.
Fui para Santa Apolónia onde apanhei o comboio para o Porto e, deixando transvasar a minha tristeza, chorei toda a viagem.
Passou um ano e o Henrique ainda veio gozar férias em Junho do ano seguinte. Voltou à Guiné e passado uns tempos convida-me para ir ter com ele. Eu nem hesitei.
Entretanto o nosso amigo Alferes Santos veio a Portugal casar com a Zinha. Combinamos fazer a viagem para a Guiné juntos, levando o nosso Miguel que tinha feito já dois anos em Setembro. Embarcamos em Outubro de 1973.
Quando o avião sobrevoava a Guiné, achei aquela terra linda me parecendo "Um Jardim rodeado de Rios".
Quando desembarcamos o calor sufocante, a terra seca e poeirenta foi uma desilusão. Para agravar, o Henrique estava irreconhecível de tão magro, fumava, coisa que eu desconhecia, mas passado essas impressões menos felizes e após a alegria do reencontro, fizemos uma ida a Bissau para embarcarmos no transporte que o meu marido arranjou, que foi viajarmos todos dentro de uma Ambulância Militar que ia nesse dia para Mansoa. Vieram depois de Bissorã nos buscar pois que já era quase noite quando chegamos a Bissorã. Pelo vistos foi um pouco complicado arranjarem coluna de protecção, mas os amigos ajudaram.
Quando chegamos a Bissorã e entro na nossa "CASA" fiquei espantada pois estava decorada com assentos dum carocha, as camas eram da tropa, tínhamos um frigorifico a petróleo, a casa de banho eram dois bidões de chapa. Tínhamos chuveiro pois o Henrique conseguiu ir buscar água bem longe (daí a explicação do seu estado de magreza pois que arranjou casa, fez uma abrigo, decorou a casa e sempre fazendo a sua actividade militar, porque na CCAÇ 13 não se mandriava.
Quanto à nossa alimentação, foi organizada do seguinte modo: as refeições dos adultos vinham duma espécie de restaurante (O LABINAS) que tinha um acordo com a tropa, mas as refeições do nosso Miguel era eu que as confeccionava com artigos comprados na messe e outros sempre que possível na população.
Entretanto eu e o Henrique tiramos a Carta de Condução no mesmo dia em Bissau. Não pensem que nos facilitaram a vida, não, pelo contrário, foram bem exigentes no exame em Bissau.
Para além de ter tido um Natal muito especial em 1973, com pinheirinho (uma folha de palmeira enfeitada), rabanadas e aletria, tudo isto foi enviado pela família da metrópole. Mas o que mais gostei foi ter partilhado esse Natal com outros soldados que invadiram a nossa casa que até se esqueceram que havia algures por ali uma Guerra.
Entretanto veio o 25 de Abril, e tive a oportunidade de ir cumprimentar o pessoal do PAIGC ainda no seu estado de combatentes inimigos. Uns dias antes os "patifes" tinham-nos bombardeado com foguetões, porque pareciam não estarem satisfeitos com o susto que me pregaram em Dezembro, ao infligirem-nos um bruto ataque que foi o meu baptismo de fogo. Logo lhes perdoei, até porque depois eram todos simpatia. Enfim eram contingências de uma situação que a nada nos dizia em termos de futuro, mas isso são outros "Quinhentos".
Em Junho regresso a Portugal com o Miguel, e em Julho regressa o Henrique, e uma vez mais fui ter com ele a Lisboa ao RALIS onde foi (fomos) definitivamente desmobilizado.
Depois disto tudo, continuamos juntos, com mais um filho e um neto que é filho do Miguel.
Pronto, terminei. Foi longo eu sei, mas é assim, as recordações são muitas e há sempre tanto para escrever.
Antes de acabar, lembro que em Bissorã viviam mais senhoras, esposas de militares, ou seja dum soldado, dum furriel e de um capitão que tinha uma menina linda de quem vou tomar a liberdade de publicar a foto, junta com o meu Miguelito.
Um beijinho para todos os tertulianos e em especial para algum que tenha estado em Bissorã nessa altura e tenha sido nosso amigo.
Maria Dulcinea (NI)
Ni com fato Mandinga em pose nos aposentos da nossa casa. Tínhamos camas, secretária, mosquiteiro para o Miguel e quintal. Além da cozinha (não tenho fotos), abrigo à porta, cavado no chão e protegido com troncos.
Ni de costas com o Miguel e outra esposa de soldado numa visita a Mansoa
Ni e Miguel no centro de Bissorã
O Miguel com amizades na população masculina de Bissorã
Miguel no nosso quintal com linda filha de um Capitão da CCS
Miguel a brincar com a nossa macaca "Gasolina", de seu nome
Ni e Miguel ao pequeno almoço
Ni e Miguel na Pensão Central de Bissau
[Fotos e texto de Maria Dulcinea]
[Edição de fotos, revisão e fixação do texto de Carlos Vinhal]
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 18 de Maio de 2011 >
Guiné 63/74 - P8291: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (7): Agradecimento pelas palavras simpáticas que me foram dirigidas (NI)
Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2011 >
Guiné 63/74 - P8324: As mulheres que, afinal, foram à guerra (10): O pungente testemunho da irmã do nosso malogrado camarada Martinho Gramunha Marques, morto em Madina do Boé, em 30 de Janeiro de 1965