sábado, 15 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6395: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (4): Politicamente incorrecto…

1. Mensagem de José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2010:

Camaradas,

Remeto mais um trabalho do nosso amigo e camarada de armas Pacífico dos Reis, hoje Coronel na reforma, com mais uma das suas divagações.

Anexo segue o relatório da operação referida no texto.

Com um abraço de bom fim de semana,
José Martins
Fur Mil, Trms da CCAÇ 5

DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

4 - Politicamente incorrecto…

Realmente a televisão é um veículo de transporte e incentivador das divagações de um reformado. Ultimamente, veio à luz do dia, nos telejornais, a notícia que um conhecido treinador de futebol teria sido hospitalizado por efectuado uma lipoaspiração. Este facto veio recordar-me os bons tempos em que nós fazíamos na Guiné 20 a 30 Km diários em nomadização. Era a nossa lipoaspiração.
Realmente o nosso país está um espanto e perdeu-se a noção da realidade. É a lei do facilitismo. Um indivíduo que devia pugnar pela saúde através do desporto cai na via mais fácil para a perda de alguns “quilitos”.
Durante a minha permanência no T.O. da Guiné, a nossa Companhia tinha directivas do Batalhão para efectuar operações na área a seu cargo, geralmente três a cinco dias por semana. Essas operações eram frequentemente complementadas com outras inopinadas e mais prolongadas.
O nosso “conta-quilómetros” fazia muitas vezes mais de 200 Km por semana. Como atrás referi, era uma lipoaspiração sequencial.
Outra notícia da televisão a que temos direito, chegou através do futebol. Então o nosso país que já foi senhor de meio mundo, passou de seguida ao tamanho da Europa, regressou às fronteiras iniciais (menos Olivença, claro), é neste momento, na boca de um Dunga (nome de anão), como Brasil B.
Interessante para quem se presume de descendência lusa. É uma inversão completa, mas já esperada, depois destes últimos anos de desregramento e corrupção.
Outro assunto que me fez “divagar em velocidade de cruzeiro” foi o casamento entre homossexuais. Tal facto fez-me vir à lembrança a estória que se contava sobre o general inglês que iria abandonar definitivamente a sua pátria natal e explicava: “Dantes era crime contra-natura.
Passou a ser tolerado. Agora casam. Vou-me embora antes que seja obrigatório”. Claro que esta anedota é agora politicamente incorrecta.
Aprendi na Guiné, ao comandar uma Companhia de Africanos, que existem algumas expressões, utilizadas frequentemente durante a instrução de tropas metropolitanas, que são “politicamente incorrectas” junto do pessoal africano.
É a “ovelha negra”, “o caso está preto”, etc. Durante uma prelecção que fazia à Companhia, para realçar o discurso, comecei aquela frase que muitas vezes usava para as tropas metropolitanas: “Eu até pintava a minha cara de preto se…”
Quando comecei a proferi-la – “Eu até pintava… – olhei para as dezenas de faces à minha frente que variavam entre o castanho e o negro retinto e tive um sobressalto.
Fiz uma pausa e continuei:… os meus testículos (em vernáculo, claro) de BRANCO se…”. E respirei fundo.
Uma das imagens de marca da Guiné, são “os gilas”.
Espécie de contrabandistas, vendiam tudo, desde peles de crocodilos e cobra a tecidos e, fundamentalmente, deambulavam por todo o território o território, sendo utilizados pelos dois lados em confronto para recolha de notícias.
Uma manhã entra na tabanca (ficava ligada ao quartel) um grupo de “gilas” proveniente do Senegal, diziam eles.
Após uma breve triagem, detectamos que um dos “gilas”, “homem grande”, tinha uma cicatriz na mão esquerda, definitivamente resultado da passagem de uma bala.
Após prolongados interrogatórios, um dos elementos mais novos informou-nos que a cerca de 15 a 20 km, para leste, os “turras” tinham um acampamento temporário e eles seriam a guarda avançada para colher informações.
Enviamos informação para o COP 5 e pedimos autorização para fazer uma operação inopinada, de imediato. Antes de vir a autorização já a Companhia estava no terreno em direcção ao local.
Quando nos estávamos a aproximar do acampamento começamos a ouvir o ruído característico dum DO e pouco depois a voz do Comandaste do COP 5, no rádio, a solicitar a nossa posição.
Mandei dois berros ao microfone a dizer para sair de cima da posição, mas já era tarde. Quando entramos no acampamento só encontramos material de limpeza do armamento e algumas peças soltas de AK47 numa bancada improvisada junto às cubatas.
Os turras que, não eram deficientes auditivos, puseram-se em fuga, mal ouviram o avião. Só interrompemos a hora de limpeza do armamento e obrigamos a ir dormir para outro sítio por lhes termos queimado as cubatas.
A nossa vida na Guiné não era só operações. Também tínhamos as nossas horas culturais. Nesses curtos interregnos foi composto o Hino da C.Caç 5, que não resisto a deixar para a posteridade:

HINO DOS GATOS PRETOS [a]
I
Nós somos os GATO PRETOS
Somos JUSTOS E VALOROSOS,
No combate contra os turras
Somos os vitoriosos.
Patrulhamentos, colunas
Pelas matas da Guiné,
Somos únicos Senhores,
Desde o GABÚ ao BOÉ!


  • Refrão
    Desde que estamos todos juntos
    Todos nos dão a razão:
    Que para a guerra vencer
    É preciso união.
    E de hoje em diante
    Todos iremos lutar,
    Que é para esta terra,
    Dos turras libertar.
II
Nós somos os GATOS PRETOS
Pela justiça lutamos,
P’ra desta terra expulsar
Os turras e os cubanos
Europeus e Africanos
Temos o mesmo ideal:
Nós somos a C. Caç 5
Militares de Portugal
  • Refrão
    Desde que estamos todos juntos
    Todos nos dão a razão:
    Que para a guerra vencer
    É preciso união.
    E de hoje em diante
    Todos iremos lutar,
    Que é para esta terra,
    Dos turras libertar.
Claro que hoje, talvez, nada disto seja “politicamente correcto”, mas era vivido intensamente por todos nós. O isolamento, o perigo, o esforço diário em conjunto, o ideal comum foram a massa que cimentou a camaradagem unindo as diferenças étnicas, rácicas e sociais da nossa Companhia.
E sempre que seja necessário e possível, haverá um GATO PRETO para apoiar outro GATO PRETO.

[a] – Nota inserta no Cancioneiro de Canjadude:
Depois de ter os seus grupos de combate dispersos por Nova Lamego, Canjadude, Cabuca e Che-Che, a Companhia de Caçadores nº 5 reúne-se, em Abril de 1969, no subsector de Canjadude. É a primeira vez, desde a sua criação, que a Companhia de encontra toda reunida.
“Desde que estamos todos juntos” foi o mote para a criação deste Hino, cuja letra, ainda que em voga na época, e de um ritmo de certa forma marcial, desconhecemos o autor,

(o texto também foi publicado na revista ASMIR de Jan/Fev 10)

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “LUTA” em 14 e 15MAR69

01. Situação Particular
A Unidade encontra-se a guarnecer o Aquartelamento de Canjadude, sendo responsável pelo mesmo sector.
Acções feitas ao aquartelamento de Cabuca e tabanca de Cambajá Bentem. Em 13MAI69 02 gilas detidas em Canjadude referem a existência de um aquartelamento IN com cerca de 150 elementos localizada no Rio Buoro, a leste de Ganguiró.
02. Missão da Unidade
Aniquilar ou capturar o IN que se vem revelando na estrada Nova Lamego – Piche, apreendendo os materiais que se encontram no presumível acampamento e destruindo as suas instalações.
03. Força Executante
  • a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
  • b) 1º Grupo de Combate – Alferes Gago
    2º Grupo de Combate – Alferes Gomes
    3º Grupo de Combate – Alferes Sousa
    4º Grupo de Combate – Furriel V. Silva
    Secção Comando Dragão
  • c) 4 Grupos de Combate
    d) Secção de Comando Dragão, Comandante, 1º Grupo de Combate, 2º Grupo de Combate, 3º Grupo de Combate e 4º Grupo de Combate.


  • e) 1) 40 Carregadores.
    2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 3 elementos com dilagrama por grupo de combate.
    3) -----------------
    4) Dotação suplementar, por homem, de 40 munições 7,62 mm. Reforço de 400 munições 7,62 mm por grupo de combate.
    5) -------------------
    6) Material de Transmissões:
    1 CVHP-1
    1 PRC-10
    3 AVP-1
    2 Sharp
    Telas
04. Planos Estabelecidos
  • 1º Fase – dia D – Patrulhamento Canjadude – Canducuré – Ganguiró, montando emboscada em Ganguiró:


  • 2ª Fase – Dia D+1 – Batida da zona que margina o Rio Buoro e Golpe de Mão sobre qualquer acampamento que seja referenciado.
05. Desenrolar da Acção
Partiu-se de Canjadude em 150600MAI69, tendo a força seguido em direcção a Cansamba, para despiste da possível direcção. Depois seguiu-se para Canducuré, tendo a força chegado cerca das 10H00 a Bante (A) onde foi feito um grande alto para almoço.
Pelas 16H00 seguiu a força para Ganguiró onde chegou em 151700MAI69 tendo montado emboscada à entrada de Gangiró na mata densa.
Em 160500MAI69 a força seguiu para a nascente do Rio Buoro (que se encontra seco) tendo seguido em fila indiana pelo Rio Buoro. Mandei pôr dois pelotões em linha de batida, ficando com um pelotão de reserva.
No entanto a marcha tornou-se muito lenta, devido à mata ser muitíssimo densa, tendo o pessoal de rastejar muitas das vezes, para manter a linha de batida.
Cerca das 06H45 foram encontrados paus cortados de fresco. O gila que servia de guia não queria dizer onde ficava o acampamento, mas, à vista dos paus cortados, disse que estávamos em cima dele.
O pessoal entrou no acampamento às 07H30 tendo sido vistas 12 tabancas com camas para cerca de 6 a 8 elementos IN.
Passada revista foram queimadas as tabancas. Foi visto, sobre o trilho em direcção ao Siai, sinais de fuga apressada e recente de três elementos IN.
A força seguiu em fila indiana pelo trilho de modo a tentar apanhar aqueles elementos. Apesar de serem perseguidos durante cerca de 2 a 3 Km não foram vistos.
Foi visto um trilho de gilas do Rio Cumbera para Ganguiró, com sinais de passagem de vacas, deduzindo-se que os gilas estão a fazer o caminho Rio Cumbera – Ganguiró – Nova Lamego, tendo o IN montado o acampamento em Ganguiró para reabastecimento de carne fresca.
Seguiu-se em direcção a Ganguiró onde foi feito reabastecimento de água por helicóptero, seguindo em seguida a força para Canjadude, e por ter cerca de 10 indivíduos desidratados e que já não podiam andar, foram pedidas viaturas ao quartel com água.
A força entrou em Canjadude em 161700MAI69.
06. Resultados Obtidos
  • c) Na revista ao acampamento, foram encontrados: 2 Cantis, 1 lata de óleo de lubrificação, 1 fervedor de seringas, 1 bolsa para pistola, 1 lata de água oxigenada e álcool, 5 marmitas, 2 cunhetes de munições vazios, além de pilhas diversas de origem russa e inglesa, cadernos diários, livros escolares, cartas e diversos papeis.

  • d) Por cansaço o soldado 82º13164 Dauda Mané foi evacuado.
  • e) Segue anexo.
07. Serviços
  • a) 2 Dias de ração de combate,
  • b) -------------------
  • c) 1 Sargento enfermeiro, 1 auxiliar e 1 maqueiro.
  • d) 1 Evacuado de Heli.
08. Apoio Aéreo
  • PVC em DO 27
    T6 em alerta no solo
    Heli em Nova Lamego
09. Ensinamentos Colhidos
  • O acampamento estava feito em mata densíssima que não permitia a batida e onde o pessoal para avançar tinha que rastejar. Acampamento muito bem camuflado, impossível de ser visto pela Força Aérea. Com saídas em direcção ao Siai e Rio Cumbera. Um posto de vigia elevado virado para a bolanha de Ganguiró.
10. Diversos
  • Nada
  • Documentos Anexos
  • 1 – Motivos que originaram o extravio
    Passagem por mata muito cerrada em que obrigava a rastejar muitas das vezes, mesmo à entrada do acampamento.
  • 2 – Relação do material extraviado
    2 Abafos de pescoço,
    1 Cantil m/964.
Um abraço,
Pacífico dos Reis
Coronel na reforma
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5987: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(3): “Divagações de reformado - 3” É a vida… (José Martins)

Guiné 63/74 - P6394: Tabanca Grande (219): Alcides Silva, ex-1º Cabo Estofador (e não ex-Sold Cond Auto...), CCS / BART 1913, Catió, 1967/69

Fotos: © Alcides Silva (2010). Direitos reservados

1. Mensagem de Alcides Silva,


Data: 14 de Maio de 2010 17:20
Assunto: Esclarecimento


 Amigo, é apenas para esclarecer que a minha especialidade  não foi a de  condutor Auto, não fui muito claro quando enviei as fotografias com o Júlio, o Madragoa. Eu fui 1º cabo estofador. 

O meu 1º trabalho quando chegamos a Catió,  foi reconstruir os bancos da viatura do nosso 1º comandante de Batalhão, Coronel Santiago Cardoso, que já faleceu, creio que em 2008. Os bancos foram reconstruídos com molas dos bancos das viaturas de que tinha sido pedida  a evacuação pelo Batalhão anterior. E as capas para os bancos foram feitas com o aproveitamento da lona das capotas das mesmas viaturas que aguardavam a evacuação para Bissau.

Depois de reparada a viatura do 1º comandant, e tive o trabalho igual para a do 2º comandante, este não me recordo o nome, sei que era major.

Um abraço.
Alcides Moreira da Silva

2. Mensagem anterior do Alcides, com data de 12 do corrente:



Luís Graça, junto três fotos minhas, a 1ª ainda não tinha sido mobilizado, a 2ª foi do Natal de 1967,  já em Catió, a 3ª é actual, já começo a estar um pouco enferrujado, já são 66 anos que os irei completar a 10 de próximo mês de Junho.

 Quanto à questão que coloquei sobre o Fernando, dizes que os contactos são com ex-Fur Mil Victor Condeço,  recordo-me perfeitamente dele pelo nome, estava com ele na secção de armamento um colega de Espinho,  o Camarinha,  que tenho estado algumas vezes com ele. 


A minha morada é: Rua das Mangas, 130, 
3720-509 SANTIAGO DE RIBA-UL. 

Eu ultimamente juntei algumas fotografias relativamente ao tempo de tropa, referente às localidades por onde passei que foram: Aveiro, Entroncamento, RI 6, Senhora da Hora, Porto, depois Viana do Castelo para formar Batalhão e Guiné. Fiz um pequeno filme com as mesmas, se tiveres interesse para as relíquias, manda-me a tua morada e eu envio uma cópia do DVD.

Um abraço.
Alcides

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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P6393: Convívios (153): Na Tabancas dos Melros... encontrando malta nossa, além de malta da FAP, BA 12, Bissalanca, do meu tempo (Miguel Pessoa)


1. O nosso Camarada Miguel Pessoa (*), ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 13 de Maio de 2010: Guiné 63/74 - P6391: Convívios (152): Convívio da família CCAÇ 816 (Rui Silva)

NA TABANCA DOS MELROS
Aproveitando a organização do almoço anual do curso de enfermagem da Giselda (da antiga Escola de Enfermagem do Hospital de S. João, no Porto), que decorreu em Braga no passado dia 9, decidimos aproveitar a oportunidade e alinhar num convívio da Tabanca dos Melros, no Choupal dos ditos, em Fânzeres, no dia anterior.
Para além da conveniência de datas - em dias seguidos, 8 e 9 - acresce o facto de contar encontrar no local alguns dos tabanqueiros que vou contactando por aí - Portojo, Carlos Silva, Carvalho, Eduardo Campos, Miguel Falcão e outros - e ainda poder rever o anfitrião/dono do Choupal, o Gil Moutinho, nosso antigo companheiro nas andanças pelos ares da Guiné.
E se o encontro cumpriu conforme prometia, não deixei de ter duas surpresas curiosas, decorrentes de conversas que tive com dois dos participantes no almoço. Ei-los nesta foto, numa conversa particular, o Armando Martins e o Manuel Quelhas, que foram há muito tempo observadores atentos de episódios em que eu também estive envolvido.
Bom, no meio de uma conversa que estava a ter com o Armando Martins, constatei que tínhamos estado nos mesmos sítios e na mesma época.
Assim, antes de embarcarmos para a Guiné, no fim de 1972, estivemos ambos colocados na Base Aérea de Monte Real, eu tirando o curso operacional no F-86 e Fiat G-91, ele colocado no serviço de incêndios (bombeiros).
E, tendo ele referido este facto, lembrei-me de um episódio decorrido durante a minha qualificação, numa altura em que já tinha começado a minha adaptação ao Fiat G-91.
Nessa altura iniciava-se a utilização regular dos "drop-tanks"* de 120 galões em substituição dos antigos drops de 69 galões (naturalmente com o objectivo de aumentar a autonomia do avião e o tempo disponível na zona do objectivo).


O sistema deveria sofrer de alguns problemas de juventude, pois só sei que na recuperação de uma passe na carreira de tiro da Base um dos "drops" resolveu ir-se embora sem que eu tivesse tido qualquer interferência nesse facto...
Devo confessar que tivemos alguma sorte neste incidente - eu e os bombeiros que estavam a fazer a segurança ao local, bem próximos do local em que o "drop"acabou por cair...
Felizmente conseguiu-se provar que não tinha havido nabice da minha parte - o que neste caso foi o primeiro pensamento dos veteranos Falcões face à periquitice do Abibe**...
Lembrei-me então de perguntar ao Armando Martins se ele se recordava deste incidente e fiquei surpreendido quando ele confirmou que estava lá naquele dia...
A esta distância é realmente curioso como as nossas vidas se vão cruzando com a de outros e só ao fim de muito tempo é que nos damos conta disso...
O Manuel Quelhas surpreendeu-me igualmente.
Explicava-me ele que tinha estado em Mansabá no ano de 1973 e, lembrando-me eu de um incidente ocorrido com um dos nossos Fiats numa operação no Morés - que obrigou o piloto a ejectar-se - perguntei ao Quelhas se ele se lembrava desse episódio.
A veemência com que me respondeu surpreendeu-me, mas depois fiquei esclarecido.
Essa operação que eu refiro enquadrava-se numa heli-colocação que tinha sido organizada em pleno Morés, iniciada com um bombardeamento na zona da heli-colocação, avançando depois os helicópteros com pessoal, para os largar no terreno.
Eu era o nº2 da formação e a coisa correu bem até à entrada ao passe do nº4.

Por motivos que se desconhecem o avião desse piloto ficou subitamente descontrolado, forçando o piloto a ejectar-se.
Imagine-se agora o que é seis ou sete helis dirigindo-se para o local e verem subitamente um avião despenhar-se mesmo à sua frente e um piloto a descer lentamente no seu pára-quedas.
É claro que a heli-colocação foi abortada e a primeira preocupação foi recuperar o piloto.
Lá seguiram os helis atrás do chefe e vá de pousar os estojos no chão, onde fosse possível.
A verdade é que a coisa não correu nada bem e, cancelada a missão, acabámos por perder quase todo o dia a recuperar os helicópteros danificados nessa aterragem inesperado em local difícil.
Vá lá, ao fim do dia o saldo era minimamente positivo - o piloto foi recuperado de imediato pelo primeiro helicóptero e os helicópteros danificados tinham conseguido regressar à Base, à custa do esforço dos mecânicos e dos pilotos que foi preciso manter no local... e por cima, para garantir a segurança da operação...
É aqui que entra o nosso camarada Quelhas na história - ele aguardava o regresso dos helis para ser integrado numa segunda leva que iria colocar mais pessoal no terreno.
E foi do local em que se encontrava que viu o avião a despenhar-se. O problema com que se deparou foi o facto de ninguém ter acreditado nele...
Segundo me confessou, ao longo dos anos foi começando a desconfiar do estado dos seus neurónios...
Calcule-se por isso a sua enorme satisfação ao ver confirmada por mim a sua história... ao fim de 37 anos...
Não duvido que estes convívios, para além da sã confraternização entre os ex-combatentes, permitem por vezes momentos curiosos como estes que hoje aqui relato.
Notas:

* "Drop-tanks" são depósito externos transportados nos suportes existentes por baixo das asas. Como o nome indica, podem ser ejectados em voo, em caso de necessidade.
** Falcões, assim eram chamados os pilotos operacionais da Esquadra. Os Abibes (uma ave de fraca figura) eram os pilotos em curso, que ainda tinham tudo para provar... (Eram os periquitos lá do sítio...).

Um abraço,
Miguel Pessoa
Ten Pilav da BA 12
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:

14 de Maio de 2010 >

Guiné 63/74 - P6392: Histórias de Carlos Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (1): Nós e os mandingas de Buba, que colaboravam com o PAIGC, e que foram evacuados para Bubaque em Abril de 1969

1. Comentário deixado por  Carlos Nery (foto à direita) (*) ao poste  P2172 (**) e que transformamos bnº 1º poste da nova série Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCQAÇ 2382:

A CCaç 2382 esteve sediada em Buba desde 12 de Agosto de 1968 até 29 de Outubro de 1969. Transcrevo da História da Unidade por mim elaborada:

"Durante o Mês de Abril (1969) foi decidido pelo Comando-Chefe a evacuação de parte dos habitantes de Buba para Bubaque dado haver suspeitas de que alguns desses elementos colaboravam com o inimigo.

"Tal medida provocou natural abalo no moral da população a evacuar,  sendo notório o desejo de todos em ficar em Buba.


"Após a evacuação, como esta se fez sentir na sua quase totalidade na etnia mandiga, a etnia fula (sobretudo milícias) não escondia o seu contentamento pelo facto".


A questão prendeu-se efectivamente com as fortíssimas suspeitas de que os Mandigas informavam o PAIGC daquilo que se passava em Buba.

Recordo-me de dois factos:

Em 2 de Janeiro de 1969 apresentou-se ali a 15ª Companhia de Comandos, comandada pelo Cap Garcia Lopes, apoiado pelo Ten Robles. No dia seguinte, um dos pescadores mandingas saíu cedo, de manhã, para a pesca, só regressando a Buba muito tarde, já noite, quando parte da guarnição, no cais, aguardava a ver o que acontecia. Na altura pouco nos interessava que o PAIGC soubesse ou não da vinda dos Comandos mas tomámos nota do incidente e fizemos sentir aos "homens-grandes" mandingas o nosso descontentamento.

Passado pouco mais de um mês, em 17 de Fevereiro de 1969, perante a suspensão prolongada dos reabastecimentos IN na zona do Cruzamento, a Companhia efectuou um reconhecimento à variante dos Rios Jassonca/Uaja. Transportados por LDM, desembarcámos efectuando cuidadoso reconhecimento. Perto da nascente do Jassonca encontrámos três canoas de grandes dimensões, escondidas no tarrafo e guardadas por sentinelas que se puseram em fuga. Destruímos as canoas e transportámos para a LDM diverso material capturado.

Acontece que os pescadores mandingas, em noite próxima, deixaram ir rio abaixo duas ou três das suas canoas, alegando depois terem-nas prendido mal sem querer...

É evidente que não estávamos vocacionados para policiar a actividade dos mandigas em Buba, nem simpatizávamos com a ideia de chamar a Pide para o fazer, mas trocando impressões com o Carlos Fabião concordámos no perigo que a situação começava a constituir.

Deslocados os Mandingas, o inimigo passou a ter um total desconhecimento daquilo que se passava em Buba e convenhamos que, numa situação de guerra, o que lhes aconteceu foi o menos mau daquilo que podia ter acontecido.

_______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6183: Tabanca Grande (213): Carlos Nery Gomes de Araújo, ex-Cap Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)


(...) Sou o Carlos Nery Gomes de Araújo, fui o comandante da CCaç 2382. Capitão Miliciano, portanto. Teria muita coisa a contar da minha experiência de Guiné... Por vezes, até, tenho a sensação de que nem saberia por onde começar (...).


(**)  Vd. poste de 10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6391: Convívios (238): Convívio da família CCAÇ 816 (Rui Silva)

1. O nosso Camarada Rui Silva (ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 816 - Bissorã, Olossato, Mansoa -, 1965/67), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 12 de Maio de 2010, dando-nos notícias do encontro anual da sua Companhia:

Convívio da família da CCAÇ 816

Os velhotes da 816 na foto da praxe à porta da Estalagem.
Camaradas,
Recebam um grande abraço, assim como os maiores votos de boa saúde e boa disposição.
No passado dia 8, a CCaç 816 (Guiné 1965/1967) reuniu-se em mais uma festa de Convívio Anual e uma vez mais na Estalagem Zende em Esposende.
O evento começou, como é habitual, com uma missa numa Capela local, em memória dos nossos camaradas falecidos na Guiné (Silva e Manso) e pelos outros que infelizmente nos foram deixando ao longo deste tempo.
Seguiu-se um almoço na dita Estalagem, onde a família 816 confraternizou numa alegre e divertida reunião.
O Convívio acabou com a habitual alocução do Comandante da Companhia, Capitão Riquito, que, como sempre, se nos dirigiu com palavras de afecto, estima e incentivo.
O Capitão Riquito na sua habitual alocução em fim de festa
O Alferes Soares da CCac 2419, que operou em Moçambique, também com o Capitão Riquito na qualidade de Comandante de Companhia, e que, como convidado de honra, foi convidado a partir o tradicional bolo
Um panorama geral da Sala que serviu ao Convívio
O Jorge (ex-Mamadú) já com os seus 51 anos, que veio connosco da Guiné no já longínquo ano de 1967
Um abraço,
Rui Silva
Fur Mil At Inf da CCAÇ 816
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Nota de MR:
Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P6390: Agenda cultural (76): Memória do Campo de Concentração - Tarrafal, até 27 de Agosto no Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Maio de 2010:


Guineenses no Campo de Concentração do Tarrafal

Beja Santos

Em 1935, Salazar determinou a criação do Campo de Concentração do Tarrafal destinado a presos políticos e sociais. Por este campo passaram 357 deportados, na sua maioria portugueses. O Tarrafal só deixou de funcionar como colónia penal para criminosos políticos em Janeiro de 1954, tendo nele morrido 32 antifascistas. Em 1961, foi reaberto o Tarrafal, agora com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom. Em Fevereiro de 1962 chegou os primeiros 31 presos políticos, oriundos de Angola, e em Setembro desembarcam mais 100 nacionalistas guineenses. Entre 1968 e 1971, foram também ali encarcerados 20 presos políticos cabo-verdianos. No total, estiveram ali aprisionados 227 nacionalistas das ex-colónias de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Em 1 de Maio de 1974, pôs-se termo a mais de 30 anos de funcionamento do chamado “Campo da Morte Lenta”.

Até 27 de Agosto, é possível visitar no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, a exposição “Memória do Campo de Concentração do Tarrafal”, de colaboração com as Fundações Mário Soares e Amílcar Cabral.

Um importante catálogo permite passar em revista os desterros do Império, uma análise da consolidação do regime de Salazar, os estudos efectuados para instalar um campo de concentração para presos políticos, a natureza dos castigos e trabalhos forçados, a vida no campo, os mecanismos da solidariedade e como se repercutiu a acção dos movimentos de libertação na vida do Tarrafal. É assim que ficamos a saber que antes mesmo do início da luta armada (no calendário do PAIGC, Janeiro de 1963) 100 presos políticos guineenses foram deportados para o Tarrafal. De facto, em 13 de Março de 1962, a PIDE assaltou uma casa clandestina do PAIGC nos arredores do Bissau, prendendo os dirigentes Rafael Barbosa, Mamadu Turé e Albino Sampa. Na sequência destas prisões muitas outras se sucederam. Em Setembro desse ano chegaram ao Tarrafal 100 prisioneiros guineenses (entre os quais um cabo-verdiano) transportados no navio “África Ocidental”, escoltado pelo “Vouga”. O catálogo mostra importantes documentos referentes a estas prisões. Em 1969, numa tentativa de reconciliação, largas dezenas desses presos guineenses regressaram à Guiné.

A exposição mostra o dia-a-dia destes presos políticos, os protestos e castigos, as provas de solidariedade internacional. Morreram dois guineenses no Tarrafal, ambos em Novembro de 1962: Cutubo Cassamá e Biaba Nabué.
O catálogo ficará a pertencer à biblioteca do blogue.

Capa do catálogo da exposição patente até Agosto no Museu do Neo-Realismo
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6383: Agenda cultural (75): Iniciativas culturais na Livraria Verney e no Palácio da Independência (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6389: Bombolom XVI (Paulo Salgado): Morreu o Gomes - O anti-herói

Bissau > 31 de Agosto de 2004

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado* (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 8 de Maio de 2010:

Meus Caros Editores e camaradas e tertulianos
Se achardes bem, postai esta singela homenagem.

Saudações
Paulo salgado


Bombolom II (1)

Morreu o Gomes – o Anti-Herói


Soube há dias que o antigo soldado do meu grupo de combate, o Gomes, faleceu em Lisboa.

Vítima de doença cardíaca, partiu para algum além que nós, humanos, não sabemos onde é – os crentes (ainda que mais ou menos crentes) acreditam que há um além, um ser superior, como dizem os narcóticos anónimos – deixou-nos e eu quero deixar uma homenagem pública (neste nosso espaço que é público) a um anit-herói.

Depois do regresso, apenas o vi num almoço de confraternização da minha Companhia – a CCAV 2721, que todos os anos se reencontra. Andava com uma vontade enorme de o rever, como de rever o Novais, o Correia e tantos outros que me acompanharam pelas matas e bolanhas vizinhas do Morés (repito: vizinhas, para que fique bem claro, pois das pouquíssimas vezes que ousámos penetrar foi um arraial de pancadaria com consequências gravíssimas que me escuso de contar – já disse ao nosso primeiro Editor, Luís Graça que me recuso a mostrar a história da Companhia, a não ser por razões de feitura de trabalho investigatório…).

O Gomes era um senhor na vida civil. Ao sábado, mecânico de camiões, com bom salário, comia o seu bife a cavalo no Galeto, na Av. da República, Lisboa… como ele se divertia falando dos bifalhões, quando comíamos as sardinhas com feijão enlatado…lá no Olossato.

Estava na guerra absolutamente consciente de que os meses tinham que passar, estava na guerra porque não fugira para os bidonville algures em Paris; estava na guerra com um desprezo total do que se passava à sua volta; estava na guerra com uma postura de apenas fazer o mínimo. Um dia, queixou-se de que estava doente: teria paludismo e, portanto, não poderia fazer o patrulhamento. Claro que ficou na caserna. No final da actividade, fui à caserna saber da sua saúde. Lá estava, preparando uns passarinhos para ele e para a sua equipa Sentença do alferes: dois reforços de sentinela às 2 horas da madrugada – o castigo!

Vim a saber depois: ele conseguira levantar-se e preparar algo para os companheiros. Fui injusto.

O Gomes, pela sua postura, ensinou-me muito. Era preciso ter calma, era preciso ver as coisas profundamente. E sempre achei que ele sabia muito mais da vida do que eu. Nunca me esqueci da sua presença serena, meio malandra e meio sarcástica, também.

Pois é. Revi os três (o Novais, com quem tive uma maca que nunca nos esqueceu, a ambos; o Correia e o Gomes) passados 37 anos após o nosso regresso. Como habitualmente, levei uma prenda das muitas que trouxe comigo para ofertar, e que trouxe aquando das minhas viagens à Guiné-Bissau. Fez-se o sorteio… e, quer o destino destas coisas: a estatueta saiu ao Gomes…

Gomes: lá onde estiveres, fazes parte da minha história pessoal, não apenas pela por força da passagem pela guerra, como alguém que era um anti-herói, mas pela forma como abordavas a maneira de viver. Ou serias herói?

Paulo Salgado
Ex-Alf Mil Op Esp
CCAV 2721
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6360: Convívios (150): Encontro do pessoal da CCAV 2721, dia 28 de Maio de 2010 em Almeirim (Paulo Salgado)

Guiné 63/74 - P6388: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (8): Promessas

1. Do nosso Camarada Torcato Mendonça, ex-Alf Mil AT Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69:

AO CORRER DA BOLHA - VIII

PROMESSAS


Espaço enorme.

Espaço bem definido, tendo num topo uma Basílica em construção e a antiga no outro. Entre as duas aquele espaço enorme, o lugar de culto com a pequena capela com a Senhora. Os visitantes e peregrinos, muitos, andavam por ali em oração ou, como eu, poucos, certamente, em observação.

Ainda vi um ou outro camuflado, gente a caminhar de joelhos para admiração minha, gente de rostos sulcados pelas rugas e curtidos por mil sóis, em contraste com outros muito bem tratados. A diversidade era enorme quer no aspecto social quer no aspecto etário.

Ia observando e procurava a explicação para tudo o que me envolvia. Senti, talvez pela educação católica outrora recebida, por saber a história do local ou, certo é que algo me transmitia um misto de paz, de tranquilidade e de inquietação, uma necessidade de compreender. Sentia ser difícil de explicar aquele choque de sentimentos sentidos.

Observava uma grande espiritualidade e simultaneamente o peso enorme da parte material, o negócio, o dinheiro que por ali corria. Ia pensando, meditando em tudo e tentar explicação certamente para o inexplicável.

De repente vi-o. Estava parado, absorto nos seus pensamentos. Dirigi-me para ele e quase lhe toquei. Só então me olhou. Olhar vago, vazio, olhar impróprio nele.

Cumprimentamo-nos e nem esboçou um sorriso.

- Que fazes aqui, perguntou-me.

- Vim tratar de um assunto pessoal. E tu? Estranho ver-te aqui.

- Fácil de explicar, respondeu-me. Estou aqui porque, como tu, estive na Guiné. Hoje, vinha do Porto para Lisboa e virei para cá.

Vamos tomar um café e falamos um pouco.

Senti nele a necessidade de desabafar, de contar algo.

Sentados frente a frente deixei-o então falar. Se bem me lembro disse:

- Há muitos anos atrás, numa fria e enevoada manhã de Dezembro, aportei a Lisboa vindo da Guiné. Não tive grande dificuldade em encontrar meus pais no meio daquela multidão. Confesso que foi um encontro a marcar-me para sempre. Nunca tinha sentido aquela forma como me olhavam, abraçavam, tocavam. Tentava manter-me calmo. Falávamos a querer dizer tudo, a falar de forma estranha como se o tempo se fosse esgotar, como se alguém viesse impedir que falássemos. Difícil de explicar.

Claro que não posso fazer analogia com a partida. Nesse dia, a pedido meu, não tinha ninguém lá.

Mostraram, mais minha mãe, o desejo de aqui vir antes do regresso a casa.

Disse ser difícil para mim. Só estaria disponível dois ou três dias depois. Não sabia ao certo. Um dia viríamos. Um dia. Ainda falamos um pouco mais e escuso de referir. Falamos, posteriormente, em vir aqui algumas vezes.

Vi-o beber o café já frio.

- Nunca cá vieste, pois não? Perguntei-lhe

- Não. Vim hoje porque senti necessidade. Respondeu-me.

Mudou de tema e falamos de outros assuntos. Assuntos triviais, assuntos a dizerem não querer falar mais do porquê da visita ali.

Pouco depois despedimo-nos.

Ainda fiquei e pedi mais um café. Precisava. Se estava, digo mesmo, um pouco confuso, talvez agora sentisse uma maior necessidade de compreender certos porquês.

Enquanto bebia o café relembrava a forte religiosidade existente no meu Grupo de Combate, na minha Companhia.

Quantos, depois de voltar da Guiné ali teriam vindo?

Lá, quando caíam numa emboscada, faziam um assalto, sofriam um ataque ao aquartelamento, pensariam em religião? Qual seria o seu peso antes das operações?

Todos os Grupos tinham, se a memória me não atraiçoa, uma Senhora a quem rezavam em maioria.

E do outro lado, do lado dos nossos adversários ou inimigo, maioritariamente de outra religião, como pensariam?

Um dia, se isso for possível, tentarei perguntar aos camaradas do meu grupo.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas

Guiné 63/74 - P6387: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (2): o ataque à coluna Bissau-Teixeira Pinto, em 16 de Junho de 1970 (II Parte)



Guiné > Região do Oio > s/d > CCP 121 / BCP 12 (1969/71) > Algures no Morés > O Hoss com a MG 42


Guiné > s/l > s/d > CCP 121 / BCP 12(1969/71) >  Um soldado paraquedista  "gravemente ferido com uma roquetada que rebentou por cima dele numa árvore", e que foi assistido pelo Sold Enf Pára Sílvio Abrantes, mais  conhecido pelo seu nome de guerra,  Hoss.

Fotos (e legendas): © Sílvio Abrantes (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Sílvio Faguntes Abrantes,  membro da nossa Tabanca Grande, conhecido na Guiné como o  Hoss. Pertenceu à CCP 121 / BCP 12, comandada primeiro pelo então Cap Pára Terras Marques e depois pelo Cap Pára Mira Vaz. Foi soldado e enfermeiro, frazendo questão de andar com a MG 42.


2. Recordações do Hoss (Sold Pára Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) > 16 de Junho de 1970 > Ataque a uma coluna Bissau-Teixeira Pinto (2ª parte)

Resumo da I Parte:

Seguíamos de Bissau para Teixeira Pinto,  de coluna, quando fomos atacados cerca de 3 km. do Pelundo,à saída duma curva. O resultado cifrou-se em 6 mortos e 9 feridos, alguns com gravidade. (...)

 
As  companhias [de caçadores paraquedistas] 121 e 122,  quando comandadas pelo meu amigo ex-Capitão Terras Marques, hoje Coronel na reforma,  sempre foram companhias bem armadas, desde os RPG às MG havia de tudo, eram companhias fortemente armadas.

A talho  de foice,  em poucas palavras , um dia chegamos a Bolama, comandados pelo Terras Marques, fomos recebidos pelo comandante chefe, um Sr. Coronel que ficou pasmado com o armamento que nós trazíamos ao ponto de pedir para que fosse disparado um tiro de RPG7 em frente à porta de armas onde estávamos formados.

Depois de avisado do que aconteceria a seguir,  o nosso homem não se importou, quis foi ver o róquete disparado. Imaginem o que aconteceu a seguir.

Acabada a comissão do  ex-Capitão Terras Marques , veio outro comandante de companhia, que no discurso de apresentação a  certa altura diz:
- Na  Guiné não há guerra.

Ainda  hoje essas palavras bailam no meu cérebro e de muitos dos meus colegas. Não tardou muito que fossem retiradas à companhia armas pesadas, pois não havia guerra. Mas há uma coisa, eu quero que fique bem explícito, nós não culpamos o comandante de companhia pelo sucedido, que fique bem claro.

Junto envio duas fotos. Uma minha,  com a magnânima MG, algures no Morés, e outro dum colega gravemente ferido com uma roquetada que rebentou por cima dele numa árvore. Ficou com as pernas e as costas totalmente crivadas de estilhaços. Perdeu muito sangue ao ponto de eu não poder meter o soro no braço devido à falta de pressão nas  veias. Tive que fazer uma coisa que antes nunca tinha feito,  foi às escuras que o fiz,  meter  o soro numa veia das costas da mão, mas graças a Deus correu bem.

Horas amargas, mais amargas do que o fel.  O que será feito deste  bravo? Será vivo? Continua a sofrer? Não teria sido melhor eu tê-lo deixado morrer? Passados estes anos todos,  ainda penso muito nele. Gostava de o ver, mas não me lembro do seu nome.

Depois da resfrega e feitas as evacuações, e com  tudo a postos,  retomámos a viagem para Teixeira Pinto com uma paragem no Pelundo, onde estava a rapaziada toda à nossa espera pois já sabiam do sucedido. No meio da parada havia um fontanário com água a correr, dirigimos-nos para lá a fim de nos refrescar. Entretanto há uma voz que atrás de mim diz:

- Ó Fagundes,  o que é que tens na cabeça?

Era um colega de escola, furriel do exército. Passo a mão na cabeça e vem sangue  seco. Foi o tal zumbido que ouvi quando estava em cima da viatura e ver onde o IN estava emboscado. Mais um centímetro à direita e hoje o Hoss já não era lembrado.

Com tantos ferido ficámos sem medicamentos. Passados 2 ou 3 dias,  passa um avião T6 e apanho boleia para Bissau para ir buscar medicamentos. Quando aterramos  em Bissau,  diz o piloto:
- Gostaste da viagem?
- Claro que gostei ! - respondo eu com as pernas a tremer,  que mais pareciam bandeiras desfraldadas ao vento.

Vejam só,  o Hoss armado em cagarola e dias antes tinha andado aos tiros na guerra como se andasse a caçar coelhos numa coutado no Alentejo. É que o piloto daquela coisa voadora fez tudo para me enjoar,  mas não foi capaz.

Da pista sigo para a enfermaria para fazer a devida requisição dos medicamentos,  na passagem páro na secção fotográfica da Base Aérea para deixar os rolos de fotos que tínhamos tirado na emboscada. Pelo caminho reparo que,  quando o pessoal quando me via,  fugia. 

Chego à secção fotográfica e ao balcão estava um cabo que,  quando me viu,  fugiu, parecia que tinha visto um fantasma.  Do lado de dentro do balcão e à direita havia uma porta, espero um pouco,  aparece o sargento a espreitar. Eu pergunto:
-  Que é que se passa,  meu sargento? Já não me conhece, não sabe quem eu sou?

Então o bom do amigo,  muito excitado,  diz:
- Corre a voz que tu morreste.

Enigma resolvido. Imaginem. Dali sigo para a enfermaria,  quando entro fez-se silêncio. Ninguém disse nada, então eu quebrei o gelo e disse:
- Ainda não morri,  estou aqui bem vivo.

A tenente enfermeira Zulmira  e a sargento Maria do Céu,  emocionadas,  deram-me um forte abraço. Feita a encomenda,  sigo à procura do ex-Capitão Terras Marques  e ex-comandante da companhia. Fui encontrá-lo na messe dos oficiais. Quando me viu,  disse:
- Foram os meus homens que morreram.

Mais palavras para este homem? Creio que não são necessárias.

A Sargento Maria do Céu nunca mais a vi. A Tenente Zulmira encontrei-a há 23 anos,  no Dia da Unidade,  em S. Jacinto – Aveiro. Imaginem como foi o nosso reencontro.

Hoss


[ Fixação / revisão de texto: L.G.]
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Guiné 63/74 – P6386: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (32): Loureiro, Oliveira e passados…

1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66) e enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 11 de Maio de 2010:

Camaradas,
Estou a recuperar a minha boa forma - depois de ter andado algumas semanas com um joelho "ao peito" - e envio-vos uma nova história, que tem a ver com um recente convívio da minha C.Caç. 675 e festejou o seu 44º. Convívio no passado dia 9 de Maio, na E.P.I., em Mafra.
Entretanto aproxima-se o nosso V Encontro de Monte Real e a possibilidade de vos dar um abraço.

Loureiro, Oliveira e passados…
Nem sempre o que parece é!
Nesta história de vida, que nos propomos dar à estampa, o Loureiro, o Oliveira não são árvores mas apelidos de dois ex-militares que se conheceram na Guiné na década de 60.
Também nesta história os “passados” nada têm a ver com os frutos secos, que se costumam comer a partir do final do Outono, mas com “tempos” diferentes de vida…
Aqui os passados reportam-se a tempos recentes e distantes que circunstâncias diferentes da vida fizeram cruzar…
Em passado recente, mais propriamente no passado dia 9 de Maio, o Loureiro e o Oliveira encontraram-se em Mafra, na E.P.I. (Escola Prática de Infantaria) num convívio de ex-militares da sua Companhia da Guiné.
Cabe aqui esclarecer, para os menos conhecedores do “meio”, que estes convívios são muito frequentes de norte a sul do País e a maioria deles ocorre durante o mês de Maio.
O Loureiro e o Oliveira estiveram assim no 44º. Convívio da C.Caç. 675, que foi a “família” de 170 jovens militares no período de 1964 a 1966.
Em relação à viagem de regresso - de Bissau a Lisboa em 3 de Maio de 1966 - já lá vão portanto 44 anos…
Regressando a esse passado distante é tempo de dizer que o Loureiro é natural da Marinha Grande. O responsável por estas linhas – o tal Oliveira do título – é de Alcobaça.
Personalizando…
O facto de sermos vizinhos na vida civil facilitou a nossa proximidade “militar”numa relação que, a correr bem, ia durar pelo menos dois anos.

Da esquerda para a direita: Furriéis Loureiro, Oliveira e Moreira, e o 2º Sargento Marques no Café do Bento, em Bissau
O Loureiro - Leonel João Gil Loureiro de seu nome completo – era o Furriel das Transmissões.
O facto de na sua missão ser obrigado a sigilo, por lidar com informações e documentos confidenciais, explica (de algum modo) o seu comportamento reservado para com a maioria dos camaradas. Independente disso era de facto um tipo “fechado”, mas com quem sempre tive um bom relacionamento.
Não muito íntimo mas um relacionamento leal e amigo, que norteou a nossa vivência num aquartelamento de dimensões reduzidas.
Foi pois com surpresa que descobri em 9 de Maio de 2010 um Loureiro que falou de si e da sua vida – sem parar – mais de uma hora.
E aconteceu por motivos imprevistos. Avaria do carro do Loureiro que obrigou a uma viagem a dois.
Obviamente que, logo que soube que o Loureiro estava “apeado”, lhe ofereci uma boleia até aos nossos sítios, pois continuamos a viver nas terras onde nascemos – Alcobaça e Marinha Grande, separadas por 30 kms.

E foi nessa viagem de retorno às origens que conheci um “novo”Loureiro.
Bem mais velho que o dos tempos da Guiné mas “novo”… porque já não se mostrava “fechado”.
Quarenta e tal anos depois de Binta estava sentado no meu carro, ao meu lado, um Loureiro que falava “pelos cotovelos”…
O Loureiro falou, falou…e durante 100 Kms quase que não abri a boca.
Fiquei a saber que o Loureiro teve desde jovem uma vida dura. Nascido na Marinha Grande passou, como muita gente do seu tempo, pelas “artes do fogo”, trabalhando na indústria vidreira...
Viveu portanto, desde cedo, à entrada do “inferno”…pois quem se iniciava na indústria passava longas horas nas proximidades dos fornos, que cozem a altas temperaturas.
Estudou durante a noite num curso de comércio. Conseguiu arranjar um emprego melhor mas nunca teve uma vida desafogada.
Em termos familiares passou por grandes traumas.
Seu pai, vítima de doença prolongada, pôs fim à vida. E sua mãe faleceu meses depois quando o Loureiro já cumpria serviço militar na Guiné.
Nesta fase do seu regresso ao passado o Loureiro confessa o desgosto por não se ter despedido da sua mãe.
Não o fez simplesmente… porque não foi capaz.
Sabia que lhe ia dar um grande desgosto e… encarregou uma tia, com quem tinha uma relação muito próxima, de informar a mãe que ia para a guerra do Ultramar.
E só escreveu à mãe… quando já estava na Guiné!
E foi em Binta, no Norte da Guiné, que veio a receber a dolorosa notícia da morte da sua mãe.
O Furriel Loureiro refugiou-se no seu trabalho de transmissões e aguentou o desgosto sozinho.
Como amigo, e também como enfermeiro, não me lembra de um único queixume do Loureiro. Era rijo o homem da Marinha Grande…
Cumpriu os seus dois anos de Guiné e, quando regressou, apressou-se a cumprir o doloroso dever de visitar a campa de sua mãe. Na Marinha Grande, na terra onde tinha visto pela última vez viva a sua mãe. Mãe de que não se tinha despedido…
Depois… começou “as lutas” da vida civil.
Novo emprego, casamento, pequeno empresário, filhos, divórcio… Altos e baixos numa vida de luta…
Voltava “à guerra” uma vez por ano nos convívios da sua Companhia da Guiné.
E os anos iam passando.
Em 1989 morre uma sua irmã. Em relação à morte da sua mãe tinham passado 24 anos.
O Loureiro sentiu de novo na pele o desgosto da perda de mais um familiar. No dia do velório da sua irmã resolveu a certa altura ir ao cemitério para ver como estavam a correr as coisas.
Chegou junto do coveiro que estava a abrir a cova para a sepultura da sua irmã.
O coveiro interrompeu o seu trabalho e disse ao Loureiro que havia um problema.
- Olhe que se calhar vamos ter que atrasar o funeral. Acabei de encontrar o caixão da sua mãe que está “inteiro”.Não vai caber aqui outro caixão.
O Loureiro ficou sem palavras e sem saber o que fazer.
Ali estava, à vista, o caixão de sua mãe… de que ele não se tinha despedido…
Passou-lhe uma coisa pela cabeça e pediu ao coveiro para abrir a tampa do caixão.
Foram momentos em que quase não respirou.
Retirada a tampa do caixão viu o corpo da sua mãe. Inteiro. Mirrado mas sem sinais de decomposição.
Até tirei as mãos do volante e… disse finalmente alguma coisa.
- Eh pá, que coragem tiveste!
O Loureiro continua e descreve o momento com tranquilidade.
- Parecia que tinha estado ali todos aqueles anos à minha espera. Consegui finalmente despedir-me da minha mãe e… senti uma paz imensa…
Questionei o meu amigo e companheiro da C.Caç. 675:
- Vês alguma coisa de místico, de sobrenatural no facto do corpo da tua mãe estar intacto?
- Eh pá não pensei nisso. Não sei explicar. Naquele dia senti que tinha que ir ao cemitério antes do funeral. E vi a minha mãe. E ganhei uma paz que não tinha…
Pensei cá com os meus botões:
- Para um tipo calado, fechado que nem uma ostra, naqueles cento e poucos quilómetros que tínhamos percorrido juntos, o Loureiro tinha falado mais que em dois anos de Guiné!

Quarenta e tal anos… conheci um novo Loureiro.
Despedimo-nos com um grande abraço e com uma fotografia. Para mais tarde recordar…
A história está a chegar ao fim.
Apesar de algumas referências à morte acho que é uma extraordinária história de vida…
Quanto ao futuro… costuma dizer-se que a Deus pertence.
No dia do convívio da C.Caç. 675 ouvi dizer (e fixei…) que só tem futuro quem honra o passado…
Acho que o Loureiro o fez.
Em nome do passado – e para efeitos futuros – aqui fica o meu testemunho.

Um grande abraço de Alcobaça
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6385: Estórias avulsas (34): Ataque a Jumbembem no dia de Carnaval de 1974 (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp 2ª CCAÇ/BCAÇ 4512)


1. O nosso Camarada Fernando Costa Gomes de Araújo* (ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 10 de Maio de 2010:

Jumbembem - Ataque ao quartel (ao arame) no dia de Carnaval

2 das páginas da minha agenda/diário da Guiné
25-02-1974:
O meu 2º pelotão fez a picagem a Sare Tenem, para se realizar a coluna ao destacamento de Canjambari.
Tudo correu normalmente durante o dia não se tendo feito o patrulhamento nesta área, porque no decorrer da picagem pareceu-nos tudo normal.
Como era dia de Carnaval (velha tradição metropolitana), fugi às normas que eu próprio havia estabelecido para mim e fui-me vestir à civil, assim como outros camaradas da Companhia, apenas com a ideia de mudar de visual, umas 2 ou 3 horas e matar saudades das roupas civis.
Ao contrário do que era esperado, por volta das 20h00, fomos surpreendidos com um forte ataque ao quartel (com o IN junto ao arame).
Ouvi as primeiras rajadas das “costureirinhas”, logo de seguida o som estridente dos rebentamentos de granadas de morteiro 82 mm e RPG, e corri para a vala para me proteger.
Logo que pude corri (mais rápido do que na instrução em Lamego) de novo para o meu quarto, já arrependido de me ter equipado com roupa civil e equipei-me com o camuflado, as cartucheiras e a G3, em +/- 1 minuto.
Saí em corrida em direcção à vala mais próxima do meu quarto, ainda a apertar o cinturão, e aguardei até que amainasse novamente o ataque, que foi o primeiro deste tipo a ser dirigido ao nosso quartel.
Como as morteiradas explodiam muito perto instalou-se o caos no pessoal da companhia, com este ataque surpresa, que, em correrias desnorteadas, procurava rapidamente as valas e os abrigos, construídos em vários pontos do quartel, e que, obviamente, eram os refúgios preferidos da quase totalidade da malta.
Entretanto eu saí da vala onde me havia instalado, para tentar chegar à caserna do meu 2º pelotão. Como o quartel estava sendo fortemente iluminado por “very-lights” lançados pelo IN, se nos movimentássemos, de pé, éramos alvos fáceis.
As granadas dos RPGs assobiavam por cima de mim e só tive tempo de me lançar para uma vala, perto do posto de transmissões, que estava repleta de homens e onde além dos rebentamentos ouviam-se alguns gemidos, com vários palavrões à mistura, dos que estavam por baixo a suportar o peso dos que se iam amontoando, em cima deles, e lhes dificultavam a respiração.
Alguns dos militares estavam feridos, principalmente devido a quedas durante as corridas para a vala e ao lançarem-se para dentro desta.
Por instantes o ataque abrandou e eu saí da vala, começando a correr em direcção á caserna do meu pelotão, ao encontro dos meus homens. No entanto tive que parar, outra vez, porque recomeçou o “fogachal” vendo-se os clarões de novos “very-lights”, rajadas de costureirinhas, morteiradas de 82 mm e granadas de RPGs a estourarem por perto.
Por momentos consegui abrigar-me perto do depósito da água, onde os soldados da companhia habitualmente tomavam o seu duche, e dei comigo a observar aquele cenário de iluminação, fogo tracejante e os “flashes”das explosões, como um filme cujo guião só poderia ter derivado de uma mente mestrada em ficção, terror, destruição e morte, um misto de Nicolau Maquiavel e Dante Alighieri.
Voltei à realidade e notei que dali até à caserna distavam +/- 40 metros. Como os “very-lights” continuavam a iluminar bem aquela zona (parecia dia), e eu via o rasto das balas tracejantes a cruzarem o ar por cima da minha cabeça, decidi rastejar alguns metros… mas, como a área era muito descoberta, comecei a pensar que me ia expor demasiado a ser atingido, no percurso entre o depósito da água e o meu pelotão.
Assim, resolvi que seria mais útil colocar-me na zona frontal e central da parada, onde calculei que seria o ponto fulcral, para qualquer investida que fosse feita pelo IN, para dentro dos arames.

Jumbembem > 1973 > Parada do quartel
Entretanto apagaram-se todas as luzes do quartel, certamente para não sermos referenciados.
Naquela escuridão, todos os “gatos eram pardos”.
Eu via vultos a deslocarem-se à minha frente no meio da parada, mas não distinguia bem quem eles eram, de modo que só quando se aproximavam mais de mim, eu apontava a G3 e perguntava: “Quem vem lá?”
Vá lá que todos me foram respondendo.
Depois de refeitos da surpresa, começamos então a responder com o morteiro de 81 mm, com o armamento instalado no posto nº 2 (salvo erro), a “Dreyse”que estava colocada à saída para a picada de Canjambari e a “Bazuca” posicionada no posto nº 3 à saída para a picada de Cuntima (se não estou errado).
Só o obus é que não entrou em acção, dada proximidade do inimigo.
Começamos então a reagir melhor e a concentrar mais acertadamente o nosso fogo, para a zona de onde iniciara e se referenciara o ataque, entre a picada de Canjambari e a picada de Cuntima, calculando que o IN devia estar entre +/- entre 50 a 100 metros do arame farpado e nós, inicialmente, estávamos a “bater” uma zona mais para trás.
Só posteriormente fomos rectificando a distância do tiro da “Bazuca” a partir, como disse, do posto nº3 (?).
O IN não atingiu as instalações como tencionava, apenas me recordo de 1 RPG entrar no telhado do edifício de comando ao lado do meu quarto, onde estava instalado o nosso 1º Sargento Teixeira, caindo a empenagem no meio da cama e o copo da dentadura ficar perfurado com estilhaços, que teve muita sorte em não estar lá nessa altura.
Pode-se ver o pormenor da beira do telhado no edifício de comando destruída, em duas fotografias que estão colocadas no poste P6271, dedicado à ocupação de tempos livres, em que estou a marcar um “penalty” num jogo de andebol contra a CCAÇ 4616.
Pela manhã, fomos fazer o reconhecimento nas imediações do arame farpado, de onde o inimigo disparara e para onde tínhamos concentrado o nosso poder de fogo (mais destruidor com a bazuca), e detectamos além de vestígios de sangue, vários objectos dos quais já não recordo nada e as marcas no terreno da instalação dos morteiros de 82 mm.
Que me lembre, este ataque não nos causou qualquer ferido, nem danos relevantes no aquartelamento, nem na tabanca.
Este é o relato que mantenho gravado na memória desse explosivo dia de Carnaval.

Jumbembem > 1974 > Pessoal deambulando pela parada num qualquer domingo
Um abraço,
Fernando Araújo
Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512
Fotos: © Fernando Araújo (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em: