A história é a narração de factos sociais, políticos, económicos, militares, etc. Aquilo que na Tabanca Grande se vem fazendo é extremamente importante para a nossa memória colectiva e a par dos outros "sítios", um contributo para esclarecimento daquilo que aconteceu aos jovens Portugueses nascidos entre 1940 e 1955 e que largaram a pele na Guiné, em Angola e Moçambique.
Sou o ex-Fur Mil Eduardo Estrela e enquadrei o início da CCaç 14, originalmente CCaç 2592.
Embarcámos para a Guiné em 24 de maio de 1969 e depois de termos dado instrução aos militares africanos que compunham a Companhia (dado e recebido, pois muitos deles já tinham experiência de combate), partimos em 3 de novembro de 1969 para a zona operacional que nos tinha sido destinada, Cuntima, junto à linha de fronteira do Senegal.
Ainda em Bolama, onde a instrução foi dada e recebida e depois de uma operação mal programada para a zona de S. João, onde as CCaç 13 e CCaç 14 podiam ter sofrido sério revés, face ao local de desembarque escolhido, extremamente lodoso e onde vi camaradas atolados até à cintura, ainda em Bolama dizia, sofremos, à hora da saída da LDG, um ataque onde o PAIGC utilizou pela primeira vez foguetões terra-terra. Ninguém sabia que tipo de armamento o PAIGC utilizara e só em Bissau, no dia seguinte, nos foi comunicado o tipo de arma.
Em Cuntima, a actividade operacional era intensa pois estavam no mato permanentemente 2 ou mais grupos de combate, por períodos de 48 horas. A guarnição de Cuntima normalmente composta por 2 Companhias operacionais, Pelotão de Obuses e Pelotão de Milícias, para além das interdições ao corredor de Sitató, fazia picagens à estrada, escolta às colunas para Farim, segurança próxima e afastada ao aquartelamento e as operações militares que obrigavam a utilização de maiores meios.
Eduardo Estrela em Cuntima
Aquando do reordenamento de Cuntima, as colunas a Farim eram diárias e o desgaste físico e psíquico muito grande, pois volta não volta o PAIGC aparecia. O meu grupo de combate foi o primeiro a transitar para Farim, no início de dezembro de 1970 e não no fim de dezembro como já vi indicado, e durante um mês estivemos a reforçar a CCaç 2549 estacionada em Nema, a qual tinha estado anteriormente connosco em Cuntima.
Em Farim fazíamos interdição ao corredor de Lamel, numa época em que o PAIGC estava muito activo. De tal modo activo que entre o início de dezembro de 1970 e meados de janeiro de 1971, a guarnição do Batalhão 2879 sofreu na zona de Lamel 14 mortos, uns em combate e outros por acidente resultante de actividade operacional. Para além dos camaradas falecidos, também houve muitos feridos.
No final de 1970, o meu grupo de combate regressou a Cuntima e só no início de fevereiro de 1971 a CCAÇ 14 foi para Farim, tendo o meu grupo ficado em Cuntima para dar sobreposição à Cart 3331, até ao fim de fevereiro.
Mas a "actividade operacional" que mais me agradava, eram os "golpes de mão" que fazíamos à messe ou ao bar e onde através duma "emboscada" bem montada, agarrávamos a amizade a fraternidade e a comunhão de alegrias e tristezas, partilhadas por irmãos que fomos e que sei, continuamos a ser.
Vista panorâmica de Cuntima. Uma povoação com gentes de várias origens (não faltavam os comerciantes libaneses).
Foto: © Vítor Silva (2008). Direitos reservados.
Na Guiné todos deixámos dois anos da nossa juventude, mas eu para além disso deixei também o meu coração. Habituei-me a gostar daquela gente e ainda hoje me preocupo com tudo o que diga respeito aos meus irmãos guinéus.
Às vezes fecho os olhos e deixo as lembranças viajarem ao encontro daquela terra vermelha. Então, sinto os sons os cheiros e os sabores da Guiné e os meus sentidos ficam inundados pela beleza daquele bocado de África. Aqueles que calcorrearam os matos e as bolanhas da Guiné sabem bem do que falo. Por isso a Guiné é para mim como que uma segunda Pátria, lamentavelmente cheia de problemas.
A todos os nossos irmãos camaradas da Tabanca Grande e de todas as outras Tabancas, o meu abraço fraterno. Aproveito para dar ao ex-Alf Mil Virgínio Briote uma triste notícia. O camarada Heitor que foi Fur Mil duma das equipas de Comandos que o Briote comandou, faleceu há mais ou menos dois anos aqui em Faro.
Um abraço para ti, Luís, e oportunamente mandarei as fotos.
Eduardo Estrela,
ex-Fur Mil
CCaç 14
2. Comentário de CV:
Caro camarada Eduardo Estrela, em nome do Luís Graça, dos restantes editores e da tertúlia em geral, recebe um abraço de boas vindas.
Estou a receber-te nesta caserna virtual a que chamamos Tabanca Grande, onde os camaradas que combateram ou cumpriram a sua comissão de serviço na Guiné em funções menos bélicas, são recebidos de braço abertos, porque todos nós os que pisámos aquele chão de África, temos em comum o amor àquele povo irmão e àquele país que nos marcou para sempre. Fomos para lá meninos e regressámos homens feitos pelo sacrifício imposto, pela fome, pelo sangue derramado e pela saudade dos que connosco fizeram a viagem de ida, mas não nos acompanharam no regresso pela perda da sua jovem vida, por evacuação motivada por ferimentos recebidos em combate ou doença grave adquirida em campanha.
Honrando a memória dos que hoje não podem falar, cabe-nos deixar aqui o nosso testemunho e contarmos o porquê do seu sacrifício. Morreram ou ficaram estropiados, mas não foram esquecidos. Contamos contigo para nos ajudares a complementar este registo. E para trazer novos camaradas para a Tabanca Grande!
Para completar a tua apresentação, por favor manda-nos as fotos da praxe que serão em devido tempo acrescentadas a este poste. Passas a ser o tabanqueiro nº 541.
Por agora é tudo, recebe um abraço do teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9456: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (50): Em busca do Joaquim Fernandes (ex-Fur Mil, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), meu camarada da recruta e da especialidade do CISMI, Tavira (Eduardo Estrela, ex-Fur Mil, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71)
Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9493: Tabanca Grande (321): João José Alves Martins, ex-Alf Mil Art.ª, BAC 1 (Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1971/74)