1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (12)
O Madragoa
O Madragoa era um militar com quem todos simpatizavam.
Nasceu na capital de Portugal, no bairro da Madragoa, e
falava com um sotaque que todos tentavam imitar. Ao
falar, quase que cantava, e mexia os lábios duma
maneira que o tornava único. Sabia boxe, e ao caminhar,
com um jeito gingão, balançando o corpo, cigarro “três vintes”
na boca, sempre tinha uma maneira diferente de saudar os
militares por quem passava.
E os militares que por ele passavam, já diziam, tentando
imitá-lo:
- Tásss booom, hó pááá.
Ele ria-se, e dizia, debaixo dum sorriso matreiro:
- Touuu porreiroooo, embora aqui não haja “garinas”, tááá.
“Garinas”, creio que era garotas.
Bem, mas vamos à história.
Para os lados do norte, na região do Oio, para lá do rio
Cacheu, depois de intensa floresta e de um pequeno rio
afluente, que não era mais do que a continuação de alguns
pântanos, havia uma aldeia considerada ponto estratégico,
devido à sua localização. Ao norte da aldeia, por alguma
extensão, não havia rios ou pântanos, era perto da fronteira com
outro país africano, era uma área com um excelente potencial,
para um futuro corredor de abastecimento das bases dos guerrilheiros, que entretanto se instalavam, com alguma
agressividade, construindo “casas mato”, que era como disignavam
as suas pequenas bases, na região do Oio.
O comando a que o Cifra pertencia, depois de trocar mensagem
atrás de mensagem, durante bastante tempo, com o comando do
território na capital da província, informando de que havia
notícias de infiltração e passagem de guerrilheiros, assim como
material de guerra, na área, ao fim de algum tempo recebe
autorização para dessa aldeia fazer um posto avançado.
E o Cifra, pensava:
- Quem serão os desgraçados dos militares que para lá vão
ser mandados?
O comando, passado mais ou menos uma semana depois de receber
autorização, destacou para essa área, primeiro, parte de uma
companhia de infantaria que tinha chegado há pouco à província,
portanto com pouca experiência no conflito, mas reforçada com
uma secção de alguns militares de um pelotão de morteiros, já
com alguma experiência em combate.
Para ajudar na instalação destes militares, colaborou a Armada com duas lanchas de patrulha dos rios e pântanos, que os
transportou, assim como algum equipamento militar.
Depois de os militares se instalarem um pouco distantes da
referida aldeia, num local onde o terreno era seco, que ficava
um pouco ao norte mas quase encostados ao tal afluente de rio,
que não era mais do que um pântano, que já aqui falámos, que
quando a maré subia aumentava o volume do seu caudal, formando
uma extenção de água que se estendia para sul, por bastante
distância, e onde entenderam que era o lugar ideal, construiram
um pequeno acampamento com paredes feitas com sacos de terra e
cobertas com alguns troncos de palmeiras e folhas de zinco, onde
por sua vez, também colocavam sacos de terra, para mais
protecção; alguns abrigos, abertos no chão onde o terreno era mais seco, também cobertos com troncos de palmeiras, folhas de
zinco e sacos de terra. Enfim, de pouco a pouco, construiram
uma pequena fortaleza, onde se instalaram.
O único meio de transporte que tinham para se deslocar, e
ter contacto, com qualquer unidade militar avançada na zona, era
uma pequena lancha com motor fora de bordo, com capacidade para
no máximo cinco pessoas, atravessarem o rio e pântanos, e virem
de encontro a essa mesma unidade, que previamente avisada pelo
serviço de transmissões, os esperavam em terra firme.
Era assim que eram abastecidos, semanalmente de alguns
víveres e géneros de primeira necessidade, assim como o correio.
Estavam praticamente isolados. A maior parte dos militares,
para passarem o tempo, aprendiam algumas habilidades. Por
exemplo, com uma simples bola de futebol, davam umas centenas de
toques, sem deixarem a bola tocar no chão. Outros, depois de
algum treino, bebiam líquidos com a boca aberta. Corriam, dando
saltos mortais, como nos jogos olímpicos. Com a G3 davam
tiros, com a arma no ombro, para trás, acertando no alvo com a
ajuda de um espelho. Quase todos deixavam crescer a barba e
grandes bigodes, competiam entre si, a ver qual apresentava o
maior bigode.
Passado uns meses, alguns militares começaram a adoecer. A
principal causa era uma espécie de paludismo. Febre,
tonturas, vomitar, cor amarelada da pele do corpo, e logo lhe
diziam:
- “Estás apanhado”.
Eles queriam água limpa, pura, para beber, mas não havia.
Era a dos bidons que se tirava do rio, turva, e depois assentava
no fundo, ao fim de umas horas, que se fervia alguma, outra não.
Nessa altura, começou a funcionar o meio de transporte de
emergência, que era o helicóptero, e começou a evacuá-los. Vinham dois e três de cada vez. Iam para o hospital da capital
da província.
Como até aquela data não fora detectada qualquer presença,
vestígios ou possível movimento de guerrilheiros na área, pelo
menos não havia reportes nesse sentido, pelas forças militares
que lá se encontravam, pois se os guerrilheiros se movimentassem
na zona, não era durante o dia, mas sim de noite, e de noite,
não havia patrulhas, e também não iam atacar a pequena
fortaleza, pois com essa atitude iam denunciar a sua
movimentação na referida zona, e com toda a certeza que depois
disso acontecer, os militares iriam ser reforçados, iriam
dificultar toda a sua movimentação, mas continuando com a
narração, o comando, decide fazer regressar quase todos os
militares.
No seu lugar, deslocou para lá, duas secções de combate, uma
duma companhia de infantaria e outra dum pelotão de morteiros,
de mais ou menos sete ou oito homens, cada uma, que seriam
rendidos todas as semanas.
Aqui, começou a trabalhar o tráfico de influências.
Das secções de combate nomeadas, uns não queriam ir, davam
baixa de doentes, outros queriam ir, porque era pura liberdade
nessa semana. Levavam vinho, comida, ninguém lhes dava ordens,
dormiam quando queriam, não tinham que sair, quase todos os
dias, a bater as zonas nas matas próximas do aquartelamento.
Enfim, o costume, nestas situações. Havia os que davam dez
maços de cigarros, para não irem, e os que davam quinze, para
irem no lugar de outros.
Já lá vão quase dois meses, não houve situação de perigo, a
zona, afinal era sossegada, a semana passa rápido, já iam com
muito mais prevenção, e não adoeciam como os primeiros. A
população local, era mais ou menos conhecida, já havia alguns que iam duas vezes por mês, e tinham lá namorada, como era o
caso do Madragoa.
(A história de acção, que se segue, o Cifra teve conhecimento
pelos relatórios que lhe passavam pelas mãos, de informadores
que os militares tinham em diversas zonas da província, pois
muitas vezes era por essas informações que os militares
movimentavam tropas no terreno)
Por volta das duas horas da manhã, uma coluna a pé,
possivelmente vinda da fronteira com outro país, segue em fila
indiana. Esta coluna é composta por guerrilheiros e
transportadores de material de guerra. Na frente vão nove
guerrilheiros, fardados, de metralhadora pronta a disparar e
catana à cinta. O primeiro vai distanciado do segundo,
aproximadamente vinte metros, o segundo do terceiro, mais ou
menos dez metros, os restantes sete, mais ou menos dois metros
uns dos outros. Seguem-se vinte e sete mulheres guerrilheiras,
com a mesma distância, de aproximadamente os mesmos dois metros,
umas das outras, transportando à cabeça, alguns pesados fardos,
outras cestos e caixas de material de guerra, seguidas por
outros nove guerrilheiros, fardados, de metralhadora pronta a
disparar, e de catana à cinta, com a mesma distância de dois
metros um do outro, excepto os dois últimos, que mantinham a
coreografia do primeiro e do segundo.
O Madragoa, que já dormia com a namorada na palhota da
aldeia, que ficava um pouco retirada do acampamento, ouvindo um
pequeno barulho que lhe parecia passos constantes, vem cá fora
espreitar.
Escuta, avança uns passos com curiosidade. Não viu mais
nada. Foi golpeado, no lado esquerdo, pelo golpe de forte
catanada que lhe atingiu o coração. Levou mais uns tantos
golpes, mas deverá de ter morrido ao primeiro golpe.
Nesse momento, mais dois militares dormiam nas palhotas da
aldeia, que regressaram ao acampamento, pela madrugada, com
sempre faziam, sem suspeitarem de nada.
Ninguém sabe se foi a curiosidade do Madragoa que o matou,
o que é certo é que pela manhã, a namorada tinha
desaparecido da aldeia.
O Comando, quando recebeu o reporte da morte do Madragoa,
mencionava que ele ia dormir com a sua namorada sem o
comandante da secção ter conhecimento, pois ia para a aldeia,
pela calada da noite, e regressava ao acampamento pela
madrugada, pelo menos era esta a versão do reporte oficial.
Nunca foi mencionado nada a respeito dos outros dois, que deviam
ter aprendido a lição com o exemplo do companheiro morto à
catanada. E era natural que o comandante da secção não soubesse, ou se
sabia, colaborava, pois era natural entre companheiros
facilitar a vida uns aos outros.
Mais tarde, pela rádio de uma emissora, que todos diziam,
funcionava num país vizinho, que, com o seu programa
patriótico, insentivava os naturais à luta e desmoralizava as
tropas de Portugal, descreveu toda a história, dizendo entre
outras coisas que: Mais uma mulher patriótica e corajosa, que depois de matar
o invasor militar que a raptou, libertou-se, e com a ajuda dos
nossos corajosos combatentes, que não dormem, para abastecer as
nossas bases, e que estão sempre vigilantes nesta luta de
libertação..., esta mulher patriótica, juntou-se, vindo reforçar
o nosso movimento, blá, blá, blá.
Propaganda. Só Deus sabia.
O Cifra, ao ter conhecimento da morte do Madragoa, com quem
confraternizava, e com quem algumas vezes treinava boxe, e
sempre lhe dizia:
- Olha-me nos olhos. Os olhos é que comandam os meus
movimentos.
Sim os seus olhos ficaram gravados para sempre na sua
memória. O Cifra sofria, chorava sem lágrimas, perante todo este
cenário, de morte e de guerra, em que estava envolvido, sem ter
dado um passo, para que ela existisse.
E nas suas meditações, algumas vezes falava alto, dizendo: Por que razão me tiraram do meu vale do Ninho d’Aguia,
onde ouvia todas as manhãs o meu comboio das seis e meia, o
berrar das minhas ovelhas pedindo mais erva, da minha família,
da minha represa no lameiro, do meu rio e da companhia
das minhas amigas, que pelo menos mostravam que
gostavam de mim.
E continuava, virando a cara para o céu: Se é que existe alguma divindade aí em cima, a que nós
terrestres chamamos Deus, por favor liberta-me e tira-me deste
sofrimento.
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Nota de CV:
Vd último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10419: Do Ninho D'Águia até África (11): Zarco, o combatente (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Guiné 63/74 - P10437: Agenda cultural (216): Apresentação do livro "Crónicas dos (Des)Feitos da Guiné", de Francisco Henriques da Silva, dia 3 de Outubro de 2012, pelas 18 horas na Sociedade Histórica da Independência de Portugal
APRESENTAÇÃO DO LIVRO "CRÓNICAS DOS (DES)FEITOS DA GUINÉ"
SOCIEDADE HISTÓRICA DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL
LARGO DE SÃO DOMINGOS, N.º 11
- LISBOA
3 DE OUTUBRO,
4.ª FEIRA, PELAS 18H00
A Edições Almedina e o autor convidam V. Exa. para a apresentação do livro “Crónicas dos (Des)Feitos da Guiné”, de Francisco Henriques da Silva.
O evento contará com a presença do autor Francisco Henriques da Silva e o livro será apresentado pelo Professor Doutor Armando Marques Guedes e pelo Dr. Mário Beja Santos.
O autor combateu na Guiné (1968-1970), onde foi depois embaixador (1997-1999) num momento de extrema convulsão, durante a guerra civil. O país conheceu a ocupação de forças estrangeiras, populações em fuga e Bissau transformada em carreira de tiro, sujeita ao fogo cruzado das forças leais ao presidente e respectivos aliados que se confrontavam com a Junta Militar do brigadeiro Mané, seu antigo companheiro de armas, que encabeçava um vasto movimento insurrecional. Tratou-se de um conflito truculento e dramático que cavou divisões que continuam a fraturar a sociedade local.
____________
Notas de CV:
Francisco Henriques da Silva foi Alf Mil na CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 que esteve em Có, Mansabá e Olossato, nos anos de 1968 a 1970, e embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999.
Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10434: Agenda cultural (215): 8.º Ciclo "Fim do Império: Olhares Sobre a Guiné" (Manuel Barão da Cunha)
Guiné 63/74 - P10436: Notas de leitura (411): "Rumo a Fulacunda", de Rui Alexandrino Ferreira (Belarmino Sardinha)
1. Mensagem do nosso camarada Belarmino Sardinha (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74), com data de 21 de Setembro de 2012:
Luís e Carlos,
Junto envio a minha opinião sobre o que li e achei que devia partilhar com o blogue, do livro Rumo a Fulacunda do Rui Alexandrino Ferreira.
Se entenderem que devem publicar, força.
Um abraço,
BS
Começo por dizer que não conheço pessoalmente o Rui Ferreira*, melhor dito, ainda não o conheço, espero em breve poder ultrapassar essa situação e poder dar-lhe um abraço, agradecer-lhe e trocar com ele algumas palavras, até porque a minha curiosidade, depois de ter lido este livro, leva-me a procurar saber a verdadeira razão que o levou a enveredar pela carreira militar, mesmo dizendo ele não se ter adaptado à vida civil.
Há muito que procurava encontrar este livro e confesso, nem no círculo de amigos o consegui. Contrariado, por dar a entender o que não era, vi-me forçado, perdi a vergonha e escrevi-lhe dando-lhe conhecimento do meu interesse e dos intentos frustrados na aquisição do livro. O Rui Ferreira, assim quer que o trate, de pronto respondeu e disse-me estar o livro esgotado, ter apenas alguns exemplares, mas mostrou-se logo disponível para o enviar gratuitamente por correio e assim fez.
Passemos então ao livro.
Começa a narrativa contando como foi parar ao serviço militar na Metrópole (na altura), diga-se já que o Rui é nascido em Angola, Sá da Bandeira, como cadete e depois aspirante a oficial miliciano que se vai remetendo a dar instrução a novos recrutas até ao dia em que a sorte lhe reserva o prémio de ser eleito a ocupar um lugar numa das frentes da batalha de então, a Guiné.
Mas não se pense que o autor descura pormenores. Conta-nos como são distribuídas as condecorações e os louvores e como eram atribuídas as antigas colónias aos militares, como a política se fazia e ainda hoje se faz sentir. Cuidado e minucioso, não deixa para mão alheia e lembra o passado e o presente, quer dizer, o antes e o após 25 de Abril de 1974.
Sem rodeios ou “papas na língua” não omite e critica severamente a incompetência e o comportamento de responsáveis e decisores da vida ou morte dos seus subordinados, sem se esquecer de enaltecer aqueles que para ele o merecem.
É neste contexto que nos relata a sua mobilização para a Guiné, a ele, nascido e criado em Angola, onde esperava poder regressar e dar o seu contributo como militar, pois tendo-se oferecido nunca foi aceite o seu pedido.
Após o desembarque, descreve-nos como vê ou era o movimento da cidade de Bissau, dependente dos militares e por força destes o Hospital Militar, o seu pessoal, dedicando-lhe palavras de apreço e reconhecimento, o seu verdadeiro e essencial papel nas vida de todo o militar que teve a infelicidade de ter que por lá passar (infelicidade termo da minha responsabilidade, por entender que, por muito bem tratado, o necessitar-se foi uma infelicidade).
Na continuação da sua viagem por terras da Guiné, conta-nos como foi parar a Fulacunda e o que diziam. Descreve-nos o que se via antes e depois de aterrar. Fala-nos da sua aceitação num grupo desfalcado pela perda do seu comandante e os laços que envolviam e fortaleciam as ligações do grupo e o quanto eram/são importantes e necessárias.
Uma vez mais não se escusa a confrontos e emite a sua opinião sobre aqueles com quem conviveu e partilhou missões e decisões ou a falta destas.
Sem fazer a sua defesa ou estimular esse tipo de procedimentos, descreve de forma soberba sentimentos e formas de sentir, estar e até proceder, perfeitamente desumanas, só possíveis em determinadas alturas e perante situações vividas (chegadas ao conhecimento de quem não as viveu, ou que, sem escrúpulos ou por outros interesses utilizam a exceção para denegrirem tudo o que lá se fez ou aconteceu ao longo de treze anos de guerrilha. Nota da minha responsabilidade), após a morte de um furriel que tentava desativar e levantar uma mina.
Aproveitando as narrativas sobre o desenrolar da sua atividade operacional, não esquece e individualmente dedica uma palavra de apreço, gratidão ou de simples amizade a todos que fizeram parte do seu grupo de combate.
Relembra-nos com era o sol e o calor, a humidade e as baixas temperaturas noturnas, os mosquitos, a transpiração, o mato e o seu emaranhado de árvores e vegetação, as trombas de água e os seus relâmpagos, dignos de filmagem para qualquer espetáculo, enfim, descreve tudo por que muitos foram obrigados a passar e viver durante 24 meses, meses que pareciam não ter fim.
Sendo estas notas escritas de acordo com a narrativa do Rui no decorrer do livro, tomo a liberdade de aqui com ele concordar inteiramente sobre o que diz acerca dos militares em convalescença e lembrar que já nessa época, da sua primeira comissão, era arrepiante o depósito de indisponíveis, de feridos e estropiados que passavam ou eram deixados na Rua Artilharia 1, em Lisboa, e que devia fazer envergonhar qualquer ser humano, mas assim continuou mesmo depois de 25 de Abril de 1974 até há poucos anos…
Aquando das suas férias, faz-nos uma descrição minuciosa da sua terra, Angola, mais propriamente de Sá da Bandeira, onde nasceu e viveu até à vida militar, uma vez que não conseguiu ali fazer a sua comissão como oficial miliciano cujo destino foi a Guiné.
Já para o final conta-nos umas histórias que servem para nos distraírem e aliviarem a pressão com que estas obras nos carregam, na procura de uma melhor disposição para de novo regressarmos à Guiné a sabermos como foi o final da sua comissão.
Com a mesma frontalidade com que nos brinda ao longo das páginas do seu livro, dá-nos a sua opinião sobre o 25 de Abril de 1974 e sobre alguns dos envolvidos, bem como o que achou da forma como foi feita a descolonização e as pessoas que ocuparam os lugares de responsabilidade na condução dos povos tornados independentes.
Assim conclui a leitura de Rumo a Fulacunda. Entendo-o como uma autobiografia da sua primeira comissão na Guiné, com algumas variantes sobre a sua origem e recordações, mas onde nunca ficam esquecidos o coletivo e menos ainda a amizade estabelecida por força das circunstâncias, laços de amizade que são, segundo o autor, mantidos até hoje.
Em condições tão adversas como a guerra, onde impera a necessidade de unir esforços, acontecia, por vezes, com alguns, lembrarem-se disso apenas e só enquanto metidos no mesmo inferno, imediatamente a separação de classes se fazia serenados os ânimos. Parece não ser o que se passou com o Rui, agraciado pelos militares do seu próprio grupo, distinção a que ele dá o máximo valor, muito embora tenha recebido muitas medalhas e louvores ao longo da sua carreira que, não menos importantes e até mais sonantes, relega para segundo plano.
Resta-me agradecer ao Rui Ferreira ter-me proporcionado a leitura do seu livro e dar-me a oportunidade de dizer-me seu amigo, depois de o conhecer um pouco melhor através da sua escrita.
Um abraço,
BS
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Notas de CV:
(*) Rui Alexandrino Ferreira foi Alf Mil Inf.ª na CCAÇ 1420, Fulacunda, nos anos de 1965 a 1967 e Cap Mil Inf.ª na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, nos anos de 1970 a 1972.
"Rumo a Fulacunda" de Rui Alexandrino Ferreira, foi editado por Palimage Editores
Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10431: Notas de leitura (410): "A Viagem de Tangomau", de Mário Beja Santos, ou um livro de afectos e de plena reconciliação (Armor Pires Mota)
Luís e Carlos,
Junto envio a minha opinião sobre o que li e achei que devia partilhar com o blogue, do livro Rumo a Fulacunda do Rui Alexandrino Ferreira.
Se entenderem que devem publicar, força.
Um abraço,
BS
Começo por dizer que não conheço pessoalmente o Rui Ferreira*, melhor dito, ainda não o conheço, espero em breve poder ultrapassar essa situação e poder dar-lhe um abraço, agradecer-lhe e trocar com ele algumas palavras, até porque a minha curiosidade, depois de ter lido este livro, leva-me a procurar saber a verdadeira razão que o levou a enveredar pela carreira militar, mesmo dizendo ele não se ter adaptado à vida civil.
Há muito que procurava encontrar este livro e confesso, nem no círculo de amigos o consegui. Contrariado, por dar a entender o que não era, vi-me forçado, perdi a vergonha e escrevi-lhe dando-lhe conhecimento do meu interesse e dos intentos frustrados na aquisição do livro. O Rui Ferreira, assim quer que o trate, de pronto respondeu e disse-me estar o livro esgotado, ter apenas alguns exemplares, mas mostrou-se logo disponível para o enviar gratuitamente por correio e assim fez.
Passemos então ao livro.
Começa a narrativa contando como foi parar ao serviço militar na Metrópole (na altura), diga-se já que o Rui é nascido em Angola, Sá da Bandeira, como cadete e depois aspirante a oficial miliciano que se vai remetendo a dar instrução a novos recrutas até ao dia em que a sorte lhe reserva o prémio de ser eleito a ocupar um lugar numa das frentes da batalha de então, a Guiné.
Mas não se pense que o autor descura pormenores. Conta-nos como são distribuídas as condecorações e os louvores e como eram atribuídas as antigas colónias aos militares, como a política se fazia e ainda hoje se faz sentir. Cuidado e minucioso, não deixa para mão alheia e lembra o passado e o presente, quer dizer, o antes e o após 25 de Abril de 1974.
Sem rodeios ou “papas na língua” não omite e critica severamente a incompetência e o comportamento de responsáveis e decisores da vida ou morte dos seus subordinados, sem se esquecer de enaltecer aqueles que para ele o merecem.
É neste contexto que nos relata a sua mobilização para a Guiné, a ele, nascido e criado em Angola, onde esperava poder regressar e dar o seu contributo como militar, pois tendo-se oferecido nunca foi aceite o seu pedido.
Após o desembarque, descreve-nos como vê ou era o movimento da cidade de Bissau, dependente dos militares e por força destes o Hospital Militar, o seu pessoal, dedicando-lhe palavras de apreço e reconhecimento, o seu verdadeiro e essencial papel nas vida de todo o militar que teve a infelicidade de ter que por lá passar (infelicidade termo da minha responsabilidade, por entender que, por muito bem tratado, o necessitar-se foi uma infelicidade).
Na continuação da sua viagem por terras da Guiné, conta-nos como foi parar a Fulacunda e o que diziam. Descreve-nos o que se via antes e depois de aterrar. Fala-nos da sua aceitação num grupo desfalcado pela perda do seu comandante e os laços que envolviam e fortaleciam as ligações do grupo e o quanto eram/são importantes e necessárias.
Uma vez mais não se escusa a confrontos e emite a sua opinião sobre aqueles com quem conviveu e partilhou missões e decisões ou a falta destas.
Sem fazer a sua defesa ou estimular esse tipo de procedimentos, descreve de forma soberba sentimentos e formas de sentir, estar e até proceder, perfeitamente desumanas, só possíveis em determinadas alturas e perante situações vividas (chegadas ao conhecimento de quem não as viveu, ou que, sem escrúpulos ou por outros interesses utilizam a exceção para denegrirem tudo o que lá se fez ou aconteceu ao longo de treze anos de guerrilha. Nota da minha responsabilidade), após a morte de um furriel que tentava desativar e levantar uma mina.
Aproveitando as narrativas sobre o desenrolar da sua atividade operacional, não esquece e individualmente dedica uma palavra de apreço, gratidão ou de simples amizade a todos que fizeram parte do seu grupo de combate.
Relembra-nos com era o sol e o calor, a humidade e as baixas temperaturas noturnas, os mosquitos, a transpiração, o mato e o seu emaranhado de árvores e vegetação, as trombas de água e os seus relâmpagos, dignos de filmagem para qualquer espetáculo, enfim, descreve tudo por que muitos foram obrigados a passar e viver durante 24 meses, meses que pareciam não ter fim.
Sendo estas notas escritas de acordo com a narrativa do Rui no decorrer do livro, tomo a liberdade de aqui com ele concordar inteiramente sobre o que diz acerca dos militares em convalescença e lembrar que já nessa época, da sua primeira comissão, era arrepiante o depósito de indisponíveis, de feridos e estropiados que passavam ou eram deixados na Rua Artilharia 1, em Lisboa, e que devia fazer envergonhar qualquer ser humano, mas assim continuou mesmo depois de 25 de Abril de 1974 até há poucos anos…
Aquando das suas férias, faz-nos uma descrição minuciosa da sua terra, Angola, mais propriamente de Sá da Bandeira, onde nasceu e viveu até à vida militar, uma vez que não conseguiu ali fazer a sua comissão como oficial miliciano cujo destino foi a Guiné.
Já para o final conta-nos umas histórias que servem para nos distraírem e aliviarem a pressão com que estas obras nos carregam, na procura de uma melhor disposição para de novo regressarmos à Guiné a sabermos como foi o final da sua comissão.
Com a mesma frontalidade com que nos brinda ao longo das páginas do seu livro, dá-nos a sua opinião sobre o 25 de Abril de 1974 e sobre alguns dos envolvidos, bem como o que achou da forma como foi feita a descolonização e as pessoas que ocuparam os lugares de responsabilidade na condução dos povos tornados independentes.
Assim conclui a leitura de Rumo a Fulacunda. Entendo-o como uma autobiografia da sua primeira comissão na Guiné, com algumas variantes sobre a sua origem e recordações, mas onde nunca ficam esquecidos o coletivo e menos ainda a amizade estabelecida por força das circunstâncias, laços de amizade que são, segundo o autor, mantidos até hoje.
Em condições tão adversas como a guerra, onde impera a necessidade de unir esforços, acontecia, por vezes, com alguns, lembrarem-se disso apenas e só enquanto metidos no mesmo inferno, imediatamente a separação de classes se fazia serenados os ânimos. Parece não ser o que se passou com o Rui, agraciado pelos militares do seu próprio grupo, distinção a que ele dá o máximo valor, muito embora tenha recebido muitas medalhas e louvores ao longo da sua carreira que, não menos importantes e até mais sonantes, relega para segundo plano.
Resta-me agradecer ao Rui Ferreira ter-me proporcionado a leitura do seu livro e dar-me a oportunidade de dizer-me seu amigo, depois de o conhecer um pouco melhor através da sua escrita.
Um abraço,
BS
____________
Notas de CV:
(*) Rui Alexandrino Ferreira foi Alf Mil Inf.ª na CCAÇ 1420, Fulacunda, nos anos de 1965 a 1967 e Cap Mil Inf.ª na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, nos anos de 1970 a 1972.
"Rumo a Fulacunda" de Rui Alexandrino Ferreira, foi editado por Palimage Editores
Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10431: Notas de leitura (410): "A Viagem de Tangomau", de Mário Beja Santos, ou um livro de afectos e de plena reconciliação (Armor Pires Mota)
Guiné 63/74 - P10435 Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (1): População de Guileje
De cima para baixo: fotos nº 38a (e 38), 39, 40, 41, 42 e 43a (e 43). São fotos reveladoras da grande sensibilidade que este nosso camarada revelava em relação à vida quotidiana e à cultura da população (neste caso, de etnia fula) que vivia no perímetro de Guileje.
Dezenas de fotos, a preto e branco, foram cedidas pelo Armindo Batata ao nosso amigo Pepito, integrando hoje o Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Temos cópia desse arquivo há mais de cinco anos. Fomos revisitá-lo e ficámos surpreendidos com a qualidade da fotografia e com o seu interesse documental.
O Armindo Batata é também um dos nossos grã-tabanqueiros mais antigos, do tempo da I Série do nosso blogue (*). Infelizmente não temos tido notícias dele, mais recentes. Esperando que ele nos esteja a seguir e a ler, daqui vai um abraço longo para ele.
A título de curiosidade, refira-se que a origem do Pel Caç Nat 51 remonta a setembro de 1966, tendo-se mantido ao serviço até abril de 1974, pelo menos. Da mesma época, e portanto, também os mais antigos são os Pel Caç Nat 52, 53, 54, 55 e 56. Eram pelotões de recrutamento local. Desconhecemos a composição étnica do Pel Caç Nat 51. Já agora, acrescente-se que o mais novo dos Pel Caç Nat era o 70, formado já em Novembro de 1973.
Fotos: © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados.
[ As fotos aqui publicadas foram objeto de edição, como é prática de resto habitual no nosso blogue: melhoria da resolução, do brilho, do contraste, do enquadranento, etc.].
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Nota do editor:
(*) Vd. poste da I Série > 28 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCX: Ex- Alferes Miliciano Batata (Guileje e Cufar, 1969/70): Pel Caç Nat 51, presente!
(...) Texto do Armindo Batata (ex- Alf Mil, Pel Caç Nat 51, Guileje e Cufar, 1969/70)
De início foi um grande esforço para esquecer o mais rapidamente possível. Agora é a sensação das memórias que se vão esbatendo.
Fui Alferes Miliciano Atirador de Artilharia. Estive em Guileje (de Janeiro de 1969 a Janeiro de 1970) e em Cufar (de Janeiro de 1970 a Dezembro de 1970), comandando o Pel Caç Nat 51.
Pretendo integrar a Tertúlia de ex-combatentes da Guiné (1963/74) mas não encontrei local para inscrever os dados. Estou também vivamente interessado em participar no Projecto Guileje. Umas dicas sobre como o fazer seriam benvindas.
Abraço. Armindo Batata. (...)
[ As fotos aqui publicadas foram objeto de edição, como é prática de resto habitual no nosso blogue: melhoria da resolução, do brilho, do contraste, do enquadranento, etc.].
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Nota do editor:
(*) Vd. poste da I Série > 28 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCX: Ex- Alferes Miliciano Batata (Guileje e Cufar, 1969/70): Pel Caç Nat 51, presente!
(...) Texto do Armindo Batata (ex- Alf Mil, Pel Caç Nat 51, Guileje e Cufar, 1969/70)
De início foi um grande esforço para esquecer o mais rapidamente possível. Agora é a sensação das memórias que se vão esbatendo.
Fui Alferes Miliciano Atirador de Artilharia. Estive em Guileje (de Janeiro de 1969 a Janeiro de 1970) e em Cufar (de Janeiro de 1970 a Dezembro de 1970), comandando o Pel Caç Nat 51.
Pretendo integrar a Tertúlia de ex-combatentes da Guiné (1963/74) mas não encontrei local para inscrever os dados. Estou também vivamente interessado em participar no Projecto Guileje. Umas dicas sobre como o fazer seriam benvindas.
Abraço. Armindo Batata. (...)
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Guiné 63/74 - P10434: Agenda cultural (215): 8.º Ciclo "Fim do Império: Olhares Sobre a Guiné" (Manuel Barão da Cunha)
1. Mensagem de Manuel Barão da Cunha*, encaminhada pelo nosso camarada Virgínio Briote ao nosso Blogue:
Caríssimos camaradas e amigos,
Espero que estejais tendo merecidas férias com saúde.
Anexo convites para próximas actividades das tertúlias «Fim do Império», em Oeiras, Lisboa e Estremoz, bem como capa de próximo livro que integra 30 autores dos 3 Ramos das Forças Armadas e civis, incluindo quatro ex-alferes milicianos e dois ex-furriéis milicianos.
Em Estremoz a colecção será apresentada por general Barrento.
As tertúlias de Oeiras e Lisboa serão sobre a Guiné e incluirão livros de ex-alferes milicianos.
Talvez possam ir, serão bem-vindos, e também agradecemos que ajudem a divulgar este trabalho de voluntários.
Abraços de
Manuel Barão da Cunha
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Nota de CV:
(*) Manuel Júlio Matias Barão da Cunha foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705 que esteve na Guiné entre os anos de 1964 e 1966
Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10415: Agenda cultural (214): O festival Todos'12: Este fim de semana, no eixo Poço dos Negros: Os sabores, os cheiros, as cores, as gentes, a música da Guiné-Bissau, Cabo Verde e outros países lusófonos
Caríssimos camaradas e amigos,
Espero que estejais tendo merecidas férias com saúde.
Anexo convites para próximas actividades das tertúlias «Fim do Império», em Oeiras, Lisboa e Estremoz, bem como capa de próximo livro que integra 30 autores dos 3 Ramos das Forças Armadas e civis, incluindo quatro ex-alferes milicianos e dois ex-furriéis milicianos.
Em Estremoz a colecção será apresentada por general Barrento.
As tertúlias de Oeiras e Lisboa serão sobre a Guiné e incluirão livros de ex-alferes milicianos.
Talvez possam ir, serão bem-vindos, e também agradecemos que ajudem a divulgar este trabalho de voluntários.
Abraços de
Manuel Barão da Cunha
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Nota de CV:
(*) Manuel Júlio Matias Barão da Cunha foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705 que esteve na Guiné entre os anos de 1964 e 1966
Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10415: Agenda cultural (214): O festival Todos'12: Este fim de semana, no eixo Poço dos Negros: Os sabores, os cheiros, as cores, as gentes, a música da Guiné-Bissau, Cabo Verde e outros países lusófonos
Guiné 63/74 - P10433: Blogpoesia (302): Viva Portugal: poema de Felismina Mealha (ou Costa); voz de Fernando Reis Costa
Poema de Felismina Mealha (FM), voz de Fernando Reis Costa (FRC) (*). Ficheiro.mp3 original de FM e FRC. Vídeo de Luis Graça (2012). Imagem de fundo: o poema de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia" (poema XX, do Guardador de Rebanhos) (**), grafado na ciclovia Cais do Sodré-Belém, na margem norte do Tejo, em Lisboa. Foto de Luís Graça (25 de abril de 2010).
Vídeo (2' 26''): Alojado em You Tube > Nhabijoes
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Notas do editor:
(*) ÚLtimo poste da série > 24 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10425: Blogpoesia (301): Parassuicídio(s)... (Luís Graça)
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
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Notas do editor:
(*) ÚLtimo poste da série > 24 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10425: Blogpoesia (301): Parassuicídio(s)... (Luís Graça)
(**) Alberto Caeiro > O Guardador de Rebanhos >
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Fonte: Alberto Caeiro: Poesia. Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 53-54.
Guiné 63/74 - P10432: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (12): A minha primeira noite no Jol
1. Mensagem do nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), com data de 20 de Setembro de 2012:
Olá Camarada e Amigo Carlos Vinhal
Antes de mais, espero que tudo esteja bem contigo e família.
Esta coisa de todos os dias fazermos pelo menos uma visita ao blogue, dá nisto. Uma lembrança de um camarada sobre determinado acontecimento, leva-nos sempre a recordar algo semelhante que igualmente nos aconteceu. É este o caso, e cai vai mais uma estória relacionada com a minha passagem pela Guiné, mais propriamente por Jolmete.
Junto também mais algumas fotos do meu álbum. Quando entenderes haver espaço e oportunidade, agradeço a sua publicação. Como sempre, estás à vontade para fazer as alterações que considerares oportunas.
Um Grande e Forte Abraço
Augusto Silva Santos
ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (12)
A minha primeira noite no Jol
Foi em meados de Janeiro de 1971 que cheguei à sede do BCAÇ 3833 no Pelundo, com uma breve passagem por Có, sendo o meu destino final a CCAÇ 3306 em Jolmete. Estando o meu irmão colocado na CCAÇ 3307 no Pelundo, não foi difícil encontrar uma óptima recepção por parte de todo o pessoal, sentindo-me nesse aspecto praticamente em “casa”, como se costuma dizer.
Tirando esta parte boa, não foi porém fácil o primeiro dia, pois nunca consegui perceber até hoje o porquê de alguém chegar de “fresco” a uma unidade, e porem-no de imediato de serviço à mesma, sem estar minimamente identificado com ela e muito menos preparado para os possíveis perigos a enfrentar. Naquela altura eu era um “pira” sem qualquer preparação, pois tinha ali chegado em rendição individual, e à noite já estava escalado para fazer serviço. Numa situação de ataque, desconhecia por completo os meios de defesa e mecanismos a accionar e os seus posicionamentos. Eram assim que as coisas estupidamente funcionavam (o tal facilitismo), não sendo de admirar que, por vezes, se dessem acidentes, que depois se lamentavam. Era o velho esquema a funcionar do “periquito” chegou, amochou.
A minha chegada a Jolmete não foi infelizmente muito diferente do atrás referido, pois mal ali cheguei puseram-me também logo a alinhar, embora me tivessem dado pelo menos um dia (uma noite) de folga, e foi a propósito da estória do nosso camarada Juvenal Amado sobre o seu amigo Silva e do seu “periquito” (P10305), que me lembrei dessa minha primeira noite de chegada ao quartel de Jol(mete).
Lembro-me perfeitamente que, mal cheguei à unidade, toda a gente parecia que já me conhecia há muito tempo, e todos já sabiam (inclusive alguns elementos nativos, o que me surpreendeu bastante), que eu era irmão do “Chefe”, como era conhecido o meu irmão Arménio Silva Santos, Furriel Mec. Auto colocado no Pelundo, conforme referi anteriormente.
Só me interrogava como é que, com a diferença de apenas um dia e uma distância de cerca de 18 kms, toda aquela gente já sabia quem eu era? No que respeita ao pessoal militar, não era de admirar mas, em relação ao pessoal da tabanca, era de ficar preocupado (pensava eu na altura).
Mas felizmente era apenas e só a minha preocupação de “pira” a funcionar, pois nada de anormal se passou, só que, ao contrário do que aconteceu com o “pira” do Juvenal, no meu caso era ver quem mais “álcool” me conseguia fazer beber e, obviamente, pagar.
Tanto quanto foi possível lá me fui aguentando, normalmente tentando disfarçar as grandes quantidades de whisky com coca-cola à mistura. Como sabia e “escorregava” bem, consegui manter-me durante um bom par de horas a ouvir alguns dos acontecimentos mais significativos dos últimos 12 meses (a eterna tentativa de “acagaçar” os recém chegados), e sinceramente não dei conta que já me encontrava muito perto dos limites.
Enquanto estive sentado, a coisa correu bem, o pior foi mesmo quando fiz mais do que uma tentativa para me levantar, e as pernas não me obedeciam. A minha intenção de evitar apanhar uma primeira bebedeira em terras da Guiné, definitivamente não tinha resultado. Estava mesmo embriagado e, só com alguma ajuda, lá me consegui pôr a caminho do meu abrigo. Pelo meio fui “apanhado” pelo Cabo da ronda que, “simpaticamente” me perguntou se precisava de ajuda, depois de me ver de joelhos e a vomitar. Bonito exemplo logo no primeiro dia, pensei eu…
Mas a “praxe” tinha sido cumprida e, no outro dia, era como se nada se tivesse passado. Nunca mais ninguém falou nisso, eu é que durante largos meses, nunca mais pude ver à minha frente aquela “maldita combinação” de whisky com coca-cola. Foi mesmo de arrasar…
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10385: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (11): Futebol, coraminas, e não só...
Olá Camarada e Amigo Carlos Vinhal
Antes de mais, espero que tudo esteja bem contigo e família.
Esta coisa de todos os dias fazermos pelo menos uma visita ao blogue, dá nisto. Uma lembrança de um camarada sobre determinado acontecimento, leva-nos sempre a recordar algo semelhante que igualmente nos aconteceu. É este o caso, e cai vai mais uma estória relacionada com a minha passagem pela Guiné, mais propriamente por Jolmete.
Junto também mais algumas fotos do meu álbum. Quando entenderes haver espaço e oportunidade, agradeço a sua publicação. Como sempre, estás à vontade para fazer as alterações que considerares oportunas.
Um Grande e Forte Abraço
Augusto Silva Santos
ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (12)
A minha primeira noite no Jol
Foi em meados de Janeiro de 1971 que cheguei à sede do BCAÇ 3833 no Pelundo, com uma breve passagem por Có, sendo o meu destino final a CCAÇ 3306 em Jolmete. Estando o meu irmão colocado na CCAÇ 3307 no Pelundo, não foi difícil encontrar uma óptima recepção por parte de todo o pessoal, sentindo-me nesse aspecto praticamente em “casa”, como se costuma dizer.
Tirando esta parte boa, não foi porém fácil o primeiro dia, pois nunca consegui perceber até hoje o porquê de alguém chegar de “fresco” a uma unidade, e porem-no de imediato de serviço à mesma, sem estar minimamente identificado com ela e muito menos preparado para os possíveis perigos a enfrentar. Naquela altura eu era um “pira” sem qualquer preparação, pois tinha ali chegado em rendição individual, e à noite já estava escalado para fazer serviço. Numa situação de ataque, desconhecia por completo os meios de defesa e mecanismos a accionar e os seus posicionamentos. Eram assim que as coisas estupidamente funcionavam (o tal facilitismo), não sendo de admirar que, por vezes, se dessem acidentes, que depois se lamentavam. Era o velho esquema a funcionar do “periquito” chegou, amochou.
A minha chegada a Jolmete não foi infelizmente muito diferente do atrás referido, pois mal ali cheguei puseram-me também logo a alinhar, embora me tivessem dado pelo menos um dia (uma noite) de folga, e foi a propósito da estória do nosso camarada Juvenal Amado sobre o seu amigo Silva e do seu “periquito” (P10305), que me lembrei dessa minha primeira noite de chegada ao quartel de Jol(mete).
Lembro-me perfeitamente que, mal cheguei à unidade, toda a gente parecia que já me conhecia há muito tempo, e todos já sabiam (inclusive alguns elementos nativos, o que me surpreendeu bastante), que eu era irmão do “Chefe”, como era conhecido o meu irmão Arménio Silva Santos, Furriel Mec. Auto colocado no Pelundo, conforme referi anteriormente.
Só me interrogava como é que, com a diferença de apenas um dia e uma distância de cerca de 18 kms, toda aquela gente já sabia quem eu era? No que respeita ao pessoal militar, não era de admirar mas, em relação ao pessoal da tabanca, era de ficar preocupado (pensava eu na altura).
Mas felizmente era apenas e só a minha preocupação de “pira” a funcionar, pois nada de anormal se passou, só que, ao contrário do que aconteceu com o “pira” do Juvenal, no meu caso era ver quem mais “álcool” me conseguia fazer beber e, obviamente, pagar.
Tanto quanto foi possível lá me fui aguentando, normalmente tentando disfarçar as grandes quantidades de whisky com coca-cola à mistura. Como sabia e “escorregava” bem, consegui manter-me durante um bom par de horas a ouvir alguns dos acontecimentos mais significativos dos últimos 12 meses (a eterna tentativa de “acagaçar” os recém chegados), e sinceramente não dei conta que já me encontrava muito perto dos limites.
Enquanto estive sentado, a coisa correu bem, o pior foi mesmo quando fiz mais do que uma tentativa para me levantar, e as pernas não me obedeciam. A minha intenção de evitar apanhar uma primeira bebedeira em terras da Guiné, definitivamente não tinha resultado. Estava mesmo embriagado e, só com alguma ajuda, lá me consegui pôr a caminho do meu abrigo. Pelo meio fui “apanhado” pelo Cabo da ronda que, “simpaticamente” me perguntou se precisava de ajuda, depois de me ver de joelhos e a vomitar. Bonito exemplo logo no primeiro dia, pensei eu…
Mas a “praxe” tinha sido cumprida e, no outro dia, era como se nada se tivesse passado. Nunca mais ninguém falou nisso, eu é que durante largos meses, nunca mais pude ver à minha frente aquela “maldita combinação” de whisky com coca-cola. Foi mesmo de arrasar…
Jolmete, Maio de 1972 > Traseiras do meu abrigo
Jolmete, Junho de 1972 > Trilhos do Pioce
Pelundo, Julho de 1972 > Junto ao Memorial do BCAÇ 2884
Jolmete, Agosto de 1972 > Emboscada em Gel
Jolmete, Agosto de 1972 > Trilhos de Gel - Caláque
Jolmete, Outubro de 1972 > O final estava próximo...
Cumeré, Dezembro de 1972 > A despedida ao BCAÇ 3833
Cumeré, Dezembro de 1972 > Primeira foto à civil
____________Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10385: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (11): Futebol, coraminas, e não só...
Guiné 63/74 - P10431: Notas de leitura (410): "A Viagem de Tangomau", de Mário Beja Santos, ou um livro de afectos e de plena reconciliação (Armor Pires Mota)
1. Mensagem de Armor Pires Mota enviada a Mário Beja Santos, a propósito de "A Viagem do Tangomau", livro de autoria deste nosso camarada:
Meu caro Tangomau, perdão, Mário Beja Santos:
Acabei de ler o seu monumental livro cuja temperatura foi subindo à medida que caminhava para a visita aos lugares míticos e neles entrava com lágrimas suas e de toda a gente. Gostei imenso. É uma memória muito completa e minuciosa. Nada lhe escapou. Felizmente. O que penso do livro vai no texto abaixo, que se divide em duas partes e assim elaborado para que, se quiser dele dispor, publicando-o no Luis Graça, já esteja pronto, embora possa ser corrigido, aqui e ali, se alguma coisa não estiver correcta. Tem toda a liberdade.
Apresento-lhe os parabéns e rejubilo pela obra.
Um abraço
Armor
“A Viagem do Tangomau – Memórias da guerra colonial que não se apagam”
Ou um livro de afectos e de plena reconciliação
Este livro é uma viagem ao passado guerreiro de Mário Beja Santos, na pele de Tangomau, difíceis e atribulados dias, que lhe continuam presentes no coração e na carne das palavras. Uma guerra que se trave deixa sempre uma ferida, sempre dói. É o remate feliz dos anteriores testemunhos, inscritos em dois Diários de Guerra - “Na Terra dos Soncó” (1968-1969) e “O Tigre Vadio” (1969-1970), na medida em que faz o pleno: é o livro da reconciliação sem reticências, total, entre homens que, há quarenta anos, se guerrearam e bateram na mata, cada qual com os seus objectivos e armas.
Pode dizer-se mesmo que é, sobretudo, um livro de afectos – e mais do que isso, é a sua confissão plena e exultante – de um alferes miliciano para com os seus subordinados, valorosos soldados nativos, exemplos de audácia, e para com as populações para quem quis e fez sempre o melhor, dentro dos condicionalismos reinantes. E vice-versa. Mas não só. Reflecte uma serena e descomplexada paixão por aquelas terras, com as suas paisagens deslumbrantes, manhãs de púrpura quente e muito luminosa e ocasos fantásticos, com o sol transformado em bola de fogo, tombando “lesto-lesto” no horizonte, é a mostra de uma ternura especial e universal por aquelas gentes, nutridas de uma enorme afabilidade. Neste patamar, os afectos, com laços fortes, marcados a fogo, no lume daquele tempo, chegam a atingir a sublimação, quando considera irmãos de coração alguns deles. Por sua vez, os seus soldados, com o beneplácito contente das populações, consideravam o combatente e destemido operacional Mário Beja Santos não apenas “o branco de Missirá”, mas N´Baké”, o que significa a maior prova de amizade e consideração para com outro… O mar verde e temível da mata de galeria e as ondas contínuas das dificuldades geraram relações indestrutíveis entre todos.
Pode dizer-se, sem sofismas, que se trata igualmente de um libelo contra a má preparação das tropas, (a lembrar um pouco António de Cértima, na sua Epopeia Maldita, a propósito das forças portuguesas em Moçambique, durante a I Grande Guerra) o seu quase total desconhecimento sobre a Guiné no tocante a história, usos e costumes, lealdades e insurreições, terrenos e actuação do IN. Um libelo contra o vergonhoso abandono de milhares de milícias locais que combateram ao lado das tropas portuguesas. Um libelo contra certos pormenores da descolonização. Apressada da parte dos negociadores portugueses quando “os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, podiam estar deslumbrados pela independência, mas não tinham ilusões de que não dispunham de estruturas administrativas capazes” (p.510).
Livro escrito com paixão, lágrimas, sangue e saudade, não podia deixar de ser um livro comovente em muitas das suas páginas, nos diálogos travados, nos gestos naturais, sem encenações, e pungente noutras situações. Quem andou pela Guiné lê-o com prazer e encanto. Em cada página perpassam cores em delírio, em todos os tons, os incontornáveis odores, as falas calorosas e os mistérios infindáveis das matas, cujos rumores fixa em belas imagens e plasma numa linguagem perfeita, adequada, assumindo, aqui e ali, o tom poético. Nas suas páginas nada há de romanesco, é tudo de conhecimento próprio. O autor dá-se ao trabalho de voltar a Mafra, às casernas e corredores húmidos, aos locais de instrução, às marchas forçadas e esforçadas. Volta à difícil recruta. Mas não só, vai também aos Arrifes, Açores, onde dera duas recrutas antes da mobilização. E regressa, em 2010, carregado de memórias no baú da saudade, mais uma vez à Guiné, onde estivera, em 1990 e 1991. Este chão ficou-lhe na alma. Para sempre, como de resto reconhece. Não será o único caso, mas é aquele que, apesar de tudo, faz uma declaração, em voz alta, de amizade, amor e reconciliação.
Mário Beja Santos queria visitar especialmente os lugares onde combatera entre 1968-1970 (Missirá, Finete, Mato de Cão e Canturé). Tendo transmitido esse desejo a alguns dos seus audazes soldados em Lisboa, logo estes o desencorajaram, dizendo que não fosse. Temiam o choque pela destruição e pela pobreza que iria encontrar. Não desistiu. Precisava de ir para um último adeus, visitar gentes e amigos do Cuor, um território que o fascinou desde sempre. É um amor “pessoal e intransmissível”, confessa (p.470). Houve um tempo de guerra; cristão, chegara o tempo da definitiva reconciliação, a descoberta e contacto com os que um dia lhe montaram emboscadas. Pretendia fazer a memória destes lugares. E em nenhum deles houve azedume algum, “era só um dever de memória”, escreve Beja Santos (p. 4678). Os antigos guerrilheiros “guardavam a serenidade das contas feitas, nada de fantasmas nem de rancores” (p.469).
Visita lugares míticos, encontra-se com o antigo comandante de Madina, Mamadu Jaquité, hoje coronel, que deixava bilhetinhos em Canturé, provocando-o e ameaçando-o de morte, mas de quem na visita recebeu só provas de afabilidade. O que também sucedia em muitas tabancas onde eram organizadas grandes recepções, como se de familiar se tratasse. Braços estendiam-se francos e sucediam-se abraços fortes e sentidos. Umas vezes, brotavam lágrimas de fogo, outras, conseguia retê-las. Havia mensagens de boas-vindas, discursos de congratulação e louvor, que o deixavam ainda mais fraternal e comovido. Os terreiros enchiam-se para ver e cumprimentar “o branco de Missirá”. Vai recebendo também notícias da morte de alguns subordinados. São murros no estômago do comandante de Missirá e Finete. Em algumas aldeias vai com o povo â mesquita agradecer a Deus os dias da peregrinação, orar pelos mortos e pelo melhor futuro de todos. É inegável que é um livro cheio de humanidade e ternura. Depois, enchem-lhe as mãos das maiores diversas solicitações: dinheiro, vistos para Portugal, emprego, bolsas de estudo, livros, tantas coisas, as mais inverosímeis, como se fosse um príncipe rico e tivesse poder em Lisboa. E isso fazia-o sofrer porque, sabedor da sua impossibilidade, não tinha a varinha do condão nem o poder de multiplicar os indispensáveis benefícios. Os ex-milícias chegam a pedir-lhe pensões de guerra...
Sofre choques brutais. Quando percorre Bambadinca, cujo quartel encontra destruído, bebe o maior “cálice de fel”. A bela rampa de acesso ao antigo quartel sobe-a e desce-a várias vezes. O coração parece querer rebentar-lhe contra o muro do peito. Vê outros destroços da antiga Bambadinca que se lhe apresenta agónica, “tudo lhe parece uma povoação fantasma”. Nem o porto escapou ao abandono. E chora mais uma vez. Tangomau “não compreende esta fúria destruidora”. De visita ao quartel, na companhia do comandante, tenente-coronel, Seco Mané, alcançam o sítio da messe e é aqui que “apanha um grande safanão”, “ali se quebrou o ânimo, o Tangomau soluça alto e bom som, desabam-se emoções nem ele próprio supusera tal transformação (p.452). O anfitrião pede-lhe para não chorar, nos olhos dos seus soldados há comiseração, “percorre os espaços com o olhar enlouquecido, ocorrem-lhe imagens, sente cheiros, pressente vultos, vai resfolegando e só acalma à saída”. E recupera, quando, a caminho do mercado, teve uma surpresa: “Sadjo avança para ele em majestade, os olhos estampados de alegria”, abraçam-se, Sadjo mostra-lhe os ferimentos que sofreu na operação “Tigre Vadio”. E Beja Santos, reportando-se a este momento e a outros de idêntico calor humano e de boa lembrança, declara que já valera a pena ter regressado ao chão do Cuor, ao chão guinéu. Teve, ao longo da viagem, horas inesquecíveis que apagaram desilusões, dificuldades (deslocou-se nos transportes habituais, toca-toca, candonga e motoreta, cada qual o pior, vive peripécias, é tocado pelo cansaço e come banana-maçã com bolacha pelas tabernas e aí dormita), mas o que viveu de positivo no campo da amizade e dos afectos bastou para encher-lhe o coração de uma indescritível satisfação.
Esta peregrinação (capítulos “Lesto Lesto” e “Gandaressa”) a locais concretos está plasmada de emoções que pingam forte sobre o avivar da memória e acontecimentos que ocorreram, nos dois anos que permaneceu na zona, e que ele revive, na serenidade dos dias, no grande capítulo Xaianga. Onde fala dos dias difíceis, do sangue derramado, das operações conseguidas e das operações falhadas; do dia a dia na construção de Missirá e das embocadas montadas e sofridas. Mas também do amor, quando recorda o seu casamento na catedral de Bissau, com a presença inesperada e discreta da mãe e de uma das irmãs de Amílcar Cabral, que, muito solícitas, ajudaram a noiva a aconchegar um ramo de orquídeas no altar de Nossa Senhora. Por Bissau, cidade que já achou descaracterizada em 1990 e 1991 e cuja degradação se acentua, deambula, aproveitando as viagens ao QG, descrevendo paisagens, gentes, sonhos, cores, cheiros, locais, movimento, que também é o lúdico e lúcido recheio deste livro que, no seu todo, mostra na pequenez da sua quadrícula, a dimensão perigosa e mortífera da guerra nesta ex-colónia. Constitui-se assim um inegável contributo e muita valia para a sua cabal história.
Só uma mágoa lhe restou desta notável e arrojada viagem-peregrinação aos locais da guerra, (matas e bolanhas) onde nem sequer falta o registo de aspectos de cariz etnográfico: o tempo não chegou para visitar todos os lugares que gostaria de rever e os amigos recusam-se a acreditar que seja o derradeiro adeus, que Beja Santos fez querer que fosse. A despedida, trocando as voltas ao autor, uma partida dos ex-milícias, foi em local mítico, Mato de Cão, para onde corriam constantemente, de modo a permitirem a navegação no rio Geba…Houve rios de comoções e emoções, quentes lágrimas e fortes abraços.
Um livro que se lê de fio a pavio, de alma em ânsias, um testemunho que comove e empolga, páginas que desnudam também a alma lusitana, na universalidade das emoções e do esquecimento de factos que lhe foram adversos, um apelo muito profundo a todos quantos, um dia, andaram de armas na mão, para uma reconciliação consigo próprios e com os outros que lutaram em trincheiras opostas. Afinal, uma grande e ousada prova de amor que a história jamais esquecerá.
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Notas de CV:
(*) Armor Pires Mota foi Alf Mil na CCAV 488, Mansabá, ilha do Como, Bissorã e Jumbembem, nos anos de 1963 a 1965, autor de inúmeros livros entre os quais: Guiné, Sol e Sangue, Tarrafo, Bagabaga, Cabo Donato Pastor de Raparigas, A Cubana que Dançava Flamenco, Estranha Noiva de Guerra.
Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)
Meu caro Tangomau, perdão, Mário Beja Santos:
Acabei de ler o seu monumental livro cuja temperatura foi subindo à medida que caminhava para a visita aos lugares míticos e neles entrava com lágrimas suas e de toda a gente. Gostei imenso. É uma memória muito completa e minuciosa. Nada lhe escapou. Felizmente. O que penso do livro vai no texto abaixo, que se divide em duas partes e assim elaborado para que, se quiser dele dispor, publicando-o no Luis Graça, já esteja pronto, embora possa ser corrigido, aqui e ali, se alguma coisa não estiver correcta. Tem toda a liberdade.
Apresento-lhe os parabéns e rejubilo pela obra.
Um abraço
Armor
“A Viagem do Tangomau – Memórias da guerra colonial que não se apagam”
Ou um livro de afectos e de plena reconciliação
Este livro é uma viagem ao passado guerreiro de Mário Beja Santos, na pele de Tangomau, difíceis e atribulados dias, que lhe continuam presentes no coração e na carne das palavras. Uma guerra que se trave deixa sempre uma ferida, sempre dói. É o remate feliz dos anteriores testemunhos, inscritos em dois Diários de Guerra - “Na Terra dos Soncó” (1968-1969) e “O Tigre Vadio” (1969-1970), na medida em que faz o pleno: é o livro da reconciliação sem reticências, total, entre homens que, há quarenta anos, se guerrearam e bateram na mata, cada qual com os seus objectivos e armas.
Pode dizer-se mesmo que é, sobretudo, um livro de afectos – e mais do que isso, é a sua confissão plena e exultante – de um alferes miliciano para com os seus subordinados, valorosos soldados nativos, exemplos de audácia, e para com as populações para quem quis e fez sempre o melhor, dentro dos condicionalismos reinantes. E vice-versa. Mas não só. Reflecte uma serena e descomplexada paixão por aquelas terras, com as suas paisagens deslumbrantes, manhãs de púrpura quente e muito luminosa e ocasos fantásticos, com o sol transformado em bola de fogo, tombando “lesto-lesto” no horizonte, é a mostra de uma ternura especial e universal por aquelas gentes, nutridas de uma enorme afabilidade. Neste patamar, os afectos, com laços fortes, marcados a fogo, no lume daquele tempo, chegam a atingir a sublimação, quando considera irmãos de coração alguns deles. Por sua vez, os seus soldados, com o beneplácito contente das populações, consideravam o combatente e destemido operacional Mário Beja Santos não apenas “o branco de Missirá”, mas N´Baké”, o que significa a maior prova de amizade e consideração para com outro… O mar verde e temível da mata de galeria e as ondas contínuas das dificuldades geraram relações indestrutíveis entre todos.
Pode dizer-se, sem sofismas, que se trata igualmente de um libelo contra a má preparação das tropas, (a lembrar um pouco António de Cértima, na sua Epopeia Maldita, a propósito das forças portuguesas em Moçambique, durante a I Grande Guerra) o seu quase total desconhecimento sobre a Guiné no tocante a história, usos e costumes, lealdades e insurreições, terrenos e actuação do IN. Um libelo contra o vergonhoso abandono de milhares de milícias locais que combateram ao lado das tropas portuguesas. Um libelo contra certos pormenores da descolonização. Apressada da parte dos negociadores portugueses quando “os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, podiam estar deslumbrados pela independência, mas não tinham ilusões de que não dispunham de estruturas administrativas capazes” (p.510).
Livro escrito com paixão, lágrimas, sangue e saudade, não podia deixar de ser um livro comovente em muitas das suas páginas, nos diálogos travados, nos gestos naturais, sem encenações, e pungente noutras situações. Quem andou pela Guiné lê-o com prazer e encanto. Em cada página perpassam cores em delírio, em todos os tons, os incontornáveis odores, as falas calorosas e os mistérios infindáveis das matas, cujos rumores fixa em belas imagens e plasma numa linguagem perfeita, adequada, assumindo, aqui e ali, o tom poético. Nas suas páginas nada há de romanesco, é tudo de conhecimento próprio. O autor dá-se ao trabalho de voltar a Mafra, às casernas e corredores húmidos, aos locais de instrução, às marchas forçadas e esforçadas. Volta à difícil recruta. Mas não só, vai também aos Arrifes, Açores, onde dera duas recrutas antes da mobilização. E regressa, em 2010, carregado de memórias no baú da saudade, mais uma vez à Guiné, onde estivera, em 1990 e 1991. Este chão ficou-lhe na alma. Para sempre, como de resto reconhece. Não será o único caso, mas é aquele que, apesar de tudo, faz uma declaração, em voz alta, de amizade, amor e reconciliação.
Mário Beja Santos queria visitar especialmente os lugares onde combatera entre 1968-1970 (Missirá, Finete, Mato de Cão e Canturé). Tendo transmitido esse desejo a alguns dos seus audazes soldados em Lisboa, logo estes o desencorajaram, dizendo que não fosse. Temiam o choque pela destruição e pela pobreza que iria encontrar. Não desistiu. Precisava de ir para um último adeus, visitar gentes e amigos do Cuor, um território que o fascinou desde sempre. É um amor “pessoal e intransmissível”, confessa (p.470). Houve um tempo de guerra; cristão, chegara o tempo da definitiva reconciliação, a descoberta e contacto com os que um dia lhe montaram emboscadas. Pretendia fazer a memória destes lugares. E em nenhum deles houve azedume algum, “era só um dever de memória”, escreve Beja Santos (p. 4678). Os antigos guerrilheiros “guardavam a serenidade das contas feitas, nada de fantasmas nem de rancores” (p.469).
Visita lugares míticos, encontra-se com o antigo comandante de Madina, Mamadu Jaquité, hoje coronel, que deixava bilhetinhos em Canturé, provocando-o e ameaçando-o de morte, mas de quem na visita recebeu só provas de afabilidade. O que também sucedia em muitas tabancas onde eram organizadas grandes recepções, como se de familiar se tratasse. Braços estendiam-se francos e sucediam-se abraços fortes e sentidos. Umas vezes, brotavam lágrimas de fogo, outras, conseguia retê-las. Havia mensagens de boas-vindas, discursos de congratulação e louvor, que o deixavam ainda mais fraternal e comovido. Os terreiros enchiam-se para ver e cumprimentar “o branco de Missirá”. Vai recebendo também notícias da morte de alguns subordinados. São murros no estômago do comandante de Missirá e Finete. Em algumas aldeias vai com o povo â mesquita agradecer a Deus os dias da peregrinação, orar pelos mortos e pelo melhor futuro de todos. É inegável que é um livro cheio de humanidade e ternura. Depois, enchem-lhe as mãos das maiores diversas solicitações: dinheiro, vistos para Portugal, emprego, bolsas de estudo, livros, tantas coisas, as mais inverosímeis, como se fosse um príncipe rico e tivesse poder em Lisboa. E isso fazia-o sofrer porque, sabedor da sua impossibilidade, não tinha a varinha do condão nem o poder de multiplicar os indispensáveis benefícios. Os ex-milícias chegam a pedir-lhe pensões de guerra...
Sofre choques brutais. Quando percorre Bambadinca, cujo quartel encontra destruído, bebe o maior “cálice de fel”. A bela rampa de acesso ao antigo quartel sobe-a e desce-a várias vezes. O coração parece querer rebentar-lhe contra o muro do peito. Vê outros destroços da antiga Bambadinca que se lhe apresenta agónica, “tudo lhe parece uma povoação fantasma”. Nem o porto escapou ao abandono. E chora mais uma vez. Tangomau “não compreende esta fúria destruidora”. De visita ao quartel, na companhia do comandante, tenente-coronel, Seco Mané, alcançam o sítio da messe e é aqui que “apanha um grande safanão”, “ali se quebrou o ânimo, o Tangomau soluça alto e bom som, desabam-se emoções nem ele próprio supusera tal transformação (p.452). O anfitrião pede-lhe para não chorar, nos olhos dos seus soldados há comiseração, “percorre os espaços com o olhar enlouquecido, ocorrem-lhe imagens, sente cheiros, pressente vultos, vai resfolegando e só acalma à saída”. E recupera, quando, a caminho do mercado, teve uma surpresa: “Sadjo avança para ele em majestade, os olhos estampados de alegria”, abraçam-se, Sadjo mostra-lhe os ferimentos que sofreu na operação “Tigre Vadio”. E Beja Santos, reportando-se a este momento e a outros de idêntico calor humano e de boa lembrança, declara que já valera a pena ter regressado ao chão do Cuor, ao chão guinéu. Teve, ao longo da viagem, horas inesquecíveis que apagaram desilusões, dificuldades (deslocou-se nos transportes habituais, toca-toca, candonga e motoreta, cada qual o pior, vive peripécias, é tocado pelo cansaço e come banana-maçã com bolacha pelas tabernas e aí dormita), mas o que viveu de positivo no campo da amizade e dos afectos bastou para encher-lhe o coração de uma indescritível satisfação.
Esta peregrinação (capítulos “Lesto Lesto” e “Gandaressa”) a locais concretos está plasmada de emoções que pingam forte sobre o avivar da memória e acontecimentos que ocorreram, nos dois anos que permaneceu na zona, e que ele revive, na serenidade dos dias, no grande capítulo Xaianga. Onde fala dos dias difíceis, do sangue derramado, das operações conseguidas e das operações falhadas; do dia a dia na construção de Missirá e das embocadas montadas e sofridas. Mas também do amor, quando recorda o seu casamento na catedral de Bissau, com a presença inesperada e discreta da mãe e de uma das irmãs de Amílcar Cabral, que, muito solícitas, ajudaram a noiva a aconchegar um ramo de orquídeas no altar de Nossa Senhora. Por Bissau, cidade que já achou descaracterizada em 1990 e 1991 e cuja degradação se acentua, deambula, aproveitando as viagens ao QG, descrevendo paisagens, gentes, sonhos, cores, cheiros, locais, movimento, que também é o lúdico e lúcido recheio deste livro que, no seu todo, mostra na pequenez da sua quadrícula, a dimensão perigosa e mortífera da guerra nesta ex-colónia. Constitui-se assim um inegável contributo e muita valia para a sua cabal história.
Só uma mágoa lhe restou desta notável e arrojada viagem-peregrinação aos locais da guerra, (matas e bolanhas) onde nem sequer falta o registo de aspectos de cariz etnográfico: o tempo não chegou para visitar todos os lugares que gostaria de rever e os amigos recusam-se a acreditar que seja o derradeiro adeus, que Beja Santos fez querer que fosse. A despedida, trocando as voltas ao autor, uma partida dos ex-milícias, foi em local mítico, Mato de Cão, para onde corriam constantemente, de modo a permitirem a navegação no rio Geba…Houve rios de comoções e emoções, quentes lágrimas e fortes abraços.
Um livro que se lê de fio a pavio, de alma em ânsias, um testemunho que comove e empolga, páginas que desnudam também a alma lusitana, na universalidade das emoções e do esquecimento de factos que lhe foram adversos, um apelo muito profundo a todos quantos, um dia, andaram de armas na mão, para uma reconciliação consigo próprios e com os outros que lutaram em trincheiras opostas. Afinal, uma grande e ousada prova de amor que a história jamais esquecerá.
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Notas de CV:
(*) Armor Pires Mota foi Alf Mil na CCAV 488, Mansabá, ilha do Como, Bissorã e Jumbembem, nos anos de 1963 a 1965, autor de inúmeros livros entre os quais: Guiné, Sol e Sangue, Tarrafo, Bagabaga, Cabo Donato Pastor de Raparigas, A Cubana que Dançava Flamenco, Estranha Noiva de Guerra.
Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P10430: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (1): A origem do nome, Palmeirins (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)
Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > Cachil > 1966 > Interior do aquartelamnento
Foto: © Benito Neves (2008). Todos os direitos reservados.
1. Mensagem, de 1 de setembro, do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66).
Olá Luís!
Aqui te mando parte duma novela escrita em memória do nosso saudoso camarada [Mário} Sasso (*). Talvez se enquadre no nosso blogue.
Um grande abraço, extensivo aos tertulianos todos.Joaquim Mendes Gomes
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FICOU UM PALMEIRIM NAS BOLANHAS DA GUINÉ… > PLANO
1.- A Origem do Nome – “PALMEIRINS”
2.- A Cidade Moçambicana da Beira
3.- A Barra do Tejo
4.- Os Cheiros de Lisboa
Chapter 1
&.- 1 – A Feira Popular
&.- 2 - Uma Sardinhada em Cacilhas
&.- 3 – As Brumas (Ruelas) Fadistas de Alfama e Madragoa
&.- 4 – As Palmeiras da Estufa Fria
&.- 5 – As Vielas da Ameixoeira
&.- 6 – A Feira da Ladra
&.- 7 – A Baixa às ordens de Pombal
&.- 8- O Jardim do Campo Grande
&.- 9- A Estrela Real
&.-10 - Os Bosques de Monsanto
por J. L. Mendes Gomes [, foto atual à direita]
“Os Palmeirins” foi o nome de guerra que a companhia de caçadores 728, aplaudiu, em peso, perfilada no sítio habitual do quartel da Ilha do Como, diante do comandante.
Cerca de 200 homens, na flor da juventude, a maioria, alentejanos, viviam, ali, dentro das 4 paliçadas, de toros de palmeira, carcomidos pelos 2 anos de exposição ao rigor tropical dos elementos, já quase reduzidos à carcaça exterior.
Serviam mais de confortável albergue às possantes ratazanas que abundavam e de cortina, muito frágil, p´ra tapar as vistas, do que de desejado fortim protector para a metralha que, a qualquer hora, poderia chover, grossa e medonha, a partir das matas espessas, lá ao fundo.
A companhia já ia, quase, no final do primeiro ano da comissão. Era preciso arranjar-lhe um nome de guerra, como tinham as mais antigas. Deveria ser um nome que, por si, sugerisse ou tivesse alguma coisa a ver com a companhia, em concreto.
O capitão Silva lançara o repto, de um modo especial, aos 18 sargentos e 5 alferes, como era de esperar. Era pena. Mas, ainda havia muitos analfabetos.
Ao fim de uns dias, o comandante do 2º pelotão, o alferes Mendes Gomes, por sinal e feitio, o alferes que já se tinha revelado mais virado para essas questões, ─ passava a maior parte do tempo livre, a mexer e remexer livros, de história, literatura ou de direito, tinha andado no seminário até muito perto do fim, dera aulas de português aos voluntários, da companhia ─ apresentou ao capitão o nome de “PALMEIRINS”…
O capitão riu…Nem sim, nem não… E ficou à espera da explicação. Nunca tinha ouvido falar na novela de cavalaria do Palmeirim de Inglaterra, famosa, pelo menos, para quem tenha estudado história da literatura portuguesa.
Conta a história de uma figura da cavalaria inglesa na Idade Média, semelhante ao nosso lendário, herói e aguerrido cavaleiro, Nuno Álvares Pereira.
Esta relação histórica com o herói de Aljubarrota e a conotação natural da companhia com o mundo das palmeiras, omnipresentes, transformadas na matéria prima por excelência para tudo que era essencial à segurança e ao conforto, conquistou, logo, a simpatia do comandante, dos alferes e dos sargentos.
─ Vamos reunir a companhia, a ver o que eles pensam. “Palmeirins”, é um nome que até soa bem ao ouvido ─ , acrescentou.
─ Vamos reunir a companhia, a ver o que eles pensam. “Palmeirins”, é um nome que até soa bem ao ouvido ─ , acrescentou.
Momentos depois de acabar o bem conhecido toque de corneta, os duzentos homens, tresmalhados pelo universo variado daquele mundo, pequeno mas completo, começaram a formar a companhia, em tronco nú e de chicatas de esponja, nos pés, ( o traje habitual que se imponha a toda a gente) apreensivos com o motivo daquele toque inesperado.
Chegou o último soldado, - era sempre o mesmo, o castiço e pacholas soldado Faria, parecia um pouco atrasado da bola, mas não, era assim mesmo, um ensonso, com a sua regra muito pessoal e sem remédio, por mais que o comandante o repreendesse.
─ Ó meu comandante, eu estava a dar de cadeiras quando ouvi o toque a corneta…e não podia… ─atalhou ele com a habitual inocência.
Uma gargalhada geral. Agora toda a gente sabia o que era isso de dar de cadeiras…como se dizia no Alentejo…
─ Meus senhores. A nossa companhia já não é maçarica. Também não é velhadas…Ainda vai ter de aguentar mais uns anitos, por estas bandas…
Ouviu-se um urro geral, respeitoso, em uníssono, saído daqueles pulmões bem puxados e bravios…─ Anos?… Nunca. Só uns mesitos. Sim…─ gritou um dos mais atrevidos, como os há sempre.
E o capitão continuou. Todas as companhias precisam de um nome de guerra, em vez do número que lhe deram.
─ 728 é lá para os “mangas” da CCS (Os serviços administrativos)
─ É verdade. ─ crescentou alguém, lá do meio.
─ Aqui, o nosso alferes Mendes Gomes pensou num nome que me parece bem. Vamos ver o que é que vós pensais dele. Ele vai explicar.
─ Então qual é?…gritou um dos tais que nunca conseguem conter-se.
O alferes Mendes Gomes avançou para a frente da companhia, postada, de olhos arregalados e orelhas arrebitadas…
O alferes Mendes Gomes avançou para a frente da companhia, postada, de olhos arregalados e orelhas arrebitadas…
─ O nome que encontrei é “ OS PALMEIRINS”.
Uma risada geral, entrecortada de um nervoso miudinho , logo interrompida, para ouvirem bem a explicação. O nome soava bem mas não lhes dizia nada. Ainda se fosse o nome de algum animal feroz, de meter medo ou respeito a toda a gente…Os Leões…Os Lacraus…Os Panteras… Palmeirins, que é isso?…Deve ter alguma coisa a ver com palmeiras, mas mais nada…
Foram as interrogações que o alferes começou a avançar como sendo as que lhes estava a ler na cara deles. Começou então a contar os traços essenciais da época famosa da cavalaria, nos tempos recuados da Idade Média, em todos os países da Europa e, principalmente, na Inglaterra e Portugal . Citou o exemplo conhecido da maioria, apesar dos muitos analfabetos que havia, do nosso D. Nuno Álvares Pereira, o vencedor da Batalha de Aljubarrota.
Via-se que as coisas já estavam a ganhar algum sentido. Pois bem, quem estudou a História da Literatura Portuguesa, ouviu falar dum romance famoso que conta história de um guerreiro inglês, chamado “ O Palmeirim de Inglaterra”. Foi um livro tão famoso e lido pelas pessoas daquele tempo, como agora se lê a história do Tio Patinhas… [Vd. à esquerda capa da Crónica de Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, ed. 1786, publicada originalmente em Lisboa, em 1592, cortesia do sítio Open Library]
De novo, uma gargalhada rebentou. Bom sinal…
De novo, uma gargalhada rebentou. Bom sinal…
Esse Palmeirim era um guerreiro terrível para conquistar castelos. Nem um só lhe resistiu. O simples boato de que o Palmeirim e o seu pelotão de cavaleiros andavam, por perto, era o bastante para toda a gente fugir dos campos e aldeias e se fechar a sete chaves nas muralhas do castelo, até a onda de terror passar.
─ Era um “gajo fodido”, meu alferes. ─ avançou, inesperadamente, de forma interrogativa e a resumir, bem à sua moda, aquela lengalenga duma cavalaria, atrasada, movida a fardos de palha que já não dizia nada a ninguém ─ um dos habituais soldados, desavergonhados, mas com a malandrice toda deste mundo meida na cabeça.
─ Era um “gajo fodido”, meu alferes. ─ avançou, inesperadamente, de forma interrogativa e a resumir, bem à sua moda, aquela lengalenga duma cavalaria, atrasada, movida a fardos de palha que já não dizia nada a ninguém ─ um dos habituais soldados, desavergonhados, mas com a malandrice toda deste mundo meida na cabeça.
O alferes, que ainda continuava a ser, um tanto, púdico, demais para a maioria, apenas esboçou um ligeiro sorriso, o bastante para se peceber o seu acordo, parcial e continuou a descrever as virtudes daquele energúmeno, inglês, na tentativa de conquistar não só a simpatia como a admiração e orgulho do novo patrono de guerra…Diga-se que sentiu medo de o não vir a conseguir e, no seu íntimo, chegou a arrepender-se de o ter indicado.
Mas quando se lembrou, sentiu tanta alegria e certeza que nunca imaginaria que não fosse aceite. Se o não fosse, seria porque não tinha sido capaz de o apresentar à rapaziada. O capitão gostou logo, lembrou-se, de si para si, num esforço íntimo de se mostrar mais convincente.
De repente, uma salva de palmas irrompeu inesperada e estrepitosa. Estava consagrado o acordo de toda a gente. Nem era preciso mais histórias. Que alívio invadiu o alferes Mendes Gomes, já quase a esgotar as ligeiras recordações que ainda se encontravam na memória. Não tinha ali um só livro de literatura, onde pudesse ir beber qualquer coisinha.
Guiné > Região de Tombali > Pendão da CCAÇ 728, Os Palmeirins (1964/66)
Foto: © J. L. Mendes Gomes (2006). Todos os direitos reservados
Pronto. Agora, havia que desenhar o emblema para a bandeira dos “PALMEIRINS”. Desenho, isso, já não era para a sua mão pesada e cegueta…
Alguém haveria de arranjar um desenho. E arranjaram. A tempo de o nosso famoso Primeiro Sargento, de carreira, levar consigo, para mandar fazer na metrópole, quando fosse de férias…em Julho seguinte. Um fundo preto. Duas palmeiras, fera, altas e esguias, ao centro de um quadrilátero em movimento . Uns traços sugestivos, a amarelo e vermelho e ali estava o futuro símbolo daqueles guerreiros, com muito sangue na guelra, mas que, - a verdade é para se dizer- ainda não tinham tido o seu baptismo de fogo !…
Foto: © J. L. Mendes Gomes (2006). Todos os direitos reservados
Pronto. Agora, havia que desenhar o emblema para a bandeira dos “PALMEIRINS”. Desenho, isso, já não era para a sua mão pesada e cegueta…
Alguém haveria de arranjar um desenho. E arranjaram. A tempo de o nosso famoso Primeiro Sargento, de carreira, levar consigo, para mandar fazer na metrópole, quando fosse de férias…em Julho seguinte. Um fundo preto. Duas palmeiras, fera, altas e esguias, ao centro de um quadrilátero em movimento . Uns traços sugestivos, a amarelo e vermelho e ali estava o futuro símbolo daqueles guerreiros, com muito sangue na guelra, mas que, - a verdade é para se dizer- ainda não tinham tido o seu baptismo de fogo !…
Mais uns tempos e já era corrente o uso fraternal de palmeirim, no trato matinal e saudação de cada novo encontro dentro da companhia.
A ideia do alferes fora um sucesso.
A ideia do alferes fora um sucesso.
(Continua)
____________Nota do editor:
/*) Vd. poste de 29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
(...) 2.15. O dia final do alferes Sasso
As densas matas do Cantanhez, só de ouvir o seu nome, causavam calafrios aos mais corajosos… Aí, se acoitava uma forte concentração de casas mansas, uns verdadeiros fortins inexpugnáveis, mesmo à força da intensa metralha de artilharia. Podia dizer-se que ali se encontrava o quartel general, inimigo, da zona sul da Guiné.
De lá saíam expedições constantes de grupos a espalhar a insegurança por todos os nossos aquartelamentos, quer por emboscadas quer por ataques às unidades isoladas.
Além disso, controlavam uma população nativa muito numerosa que, voluntariamente ou não, trabalhava os campos, fonte principal do seu abastecimento.
Por todas estas razões tornou-se premente efectuar uma grande operação que desagregasse aquele bastião. Foi o que se pretendeu com a Operação Tornado.
Os três batalhões sitiados no sul, com as unidades de artilharia e cavalaria, mais um grupo de fuzileiros e uma LDM, ajudados pela força aérea, ficaram responsáveis por esse objectivo.
A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo.
Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló.
Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [na carta de Cacine, Darsalam]. De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso.
A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou. À frente, nada se tinha passado.
Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi. (...)
A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo.
Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló.
Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [na carta de Cacine, Darsalam]. De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso.
A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou. À frente, nada se tinha passado.
Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi. (...)
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Guiné 63/74 - P10429: Blogues da nossa blogosfera (56): Novas da Guiné-Bissau
1. O blogue Novas da Guiné-Bissau já existe desde 2009. E tem já mais de 726 mil visualizações. Também está no Facebook, onde tem já quase 1800 amigos, entre os quais alguns membros da nossa Tabanca Grande, mas a maior parte devem ser guineenses da diáspora...
O autor do blogue, que não sabemos quem é (a não ser que deve ser guineense e takvez músico), diz que se de trata de um "site de informação, sem fins lucrativos e apartidário" (sic). É do sexo masculino, vive em Lisboa, e tem outro blogue (Braga por um canudo): é tudo o que podemos saber através da consulta do seu "perfil completo" no Blogger.. Está entretanto a construir uma página só dedicada à Música Africana.
Hoje, 24 de setembro de 2012, saudou o dia da República da Guiné.Bissau, nestes termos, desencantados mas com uma ponta de humor (negro):
(...) Calorosas saudações para todos os que estejam a comemorar a independência da Guiné-Bissau. apesar de não haver [nada] que comemorar!!
Hoje completamos 14,040 dias da nossa independência. (...).
2. Todos os povos têm direito à dignidade e à esperança. E ao seu dia de festa. Apesar da descrença e do desencanto generalizados em relação ao presente (e ao futuro) da Guiné-Bissau, queremos também deixar aqui um abraço fraterno a todos os membros da nossa Tabanca Grande, de nacionalidade guineense, a todos os nossos amigos que lá vivem, bem como a todos os nossos antigos camaradas de armas, guineenses, que ainda lá vivem, e lá têm conseguido sobreviver, apesar das muitas dificuldades do presente.
Recordo que, de acordo com as regras do nosso blogue, procuramos não nos intrometer "na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção)", sem que isso signifique a negação do "direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo)"... Acima de tudo, queremos preservar e celebrar a amizade entre os nossos dois povos. (LG)
________________
Nota do editor:
Último poste da série > 24 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10427: Blogues da nossa blogosfera (55): Memórias de Bissum-Naga, no blogue de Quim Santos (CCAÇ 2781, 1970/72)
Recordo que, de acordo com as regras do nosso blogue, procuramos não nos intrometer "na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção)", sem que isso signifique a negação do "direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo)"... Acima de tudo, queremos preservar e celebrar a amizade entre os nossos dois povos. (LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 24 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10427: Blogues da nossa blogosfera (55): Memórias de Bissum-Naga, no blogue de Quim Santos (CCAÇ 2781, 1970/72)
Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2012:
Queridos amigos,
Nem sempre uma reportagem de gabarito se pode converter numa peça novelística do mesmo nível, no caso em apreço, o comandante Hussi sai vencedor nos dois processos de escrita, Jorge Araújo pusera a criança a percorrer Bissau sempre a sonhar com a sua bicicleta, nesta história que podia ter começado por “Era uma vez…”, a luminosidade da criança ganha encanto, e o que antes fora uma reportagem de alta intensidade converte-se agora numa narrativa encantadora e imaginativa.
A Guiné-Bissau e os acontecimentos de 1998-1999 são presentes nos dois cenários. As ilustrações de Pedro Sousa Pereira valorizam todo o texto, adoçam o que já é terno, acrescentam, nas suas linhas por vezes pueris, uma densidade que potencia a fantasia do texto.
Mas será mesmo fantasia o objetivo da narrativa? Compete ao leitor ajuizar de tanta capacidade de sonho.
Um abraço do
Mário
Comandante Hussi
Beja Santos
Foi a ler “Reportagem, uma antologia” (por José Vegar, Assírio & Alvim, 2001) que tive conhecimento do soberbo trabalho de Jorge Araújo, uma peça intitulada “Comandante Hussi”, e publicada no jornal O Independente, numa edição de Fevereiro de 1999. O jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo assentou arraiais em órgãos de comunicação social portugueses como O Independente, TVI e Correio da Manhã. Presentemente, é editor do “Actual”, caderno do semanário Expresso.
Comandante Hussi é o seu primeiro romance e venceu em 2003 o Prémio Gulbenkian para a Qualidade Literária. Este romance foi publicado recentemente entre nós (Clube de Autor, Novembro de 2011). O ponto de partida foi a reportagem em que Jorge Araújo percorreu a Guiné em chamas durante o conflito político-militar de 1998-1999. Como escreveu José Vegar, “Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta. Uma história única possibilitou uma reportagem de escrita avassaladora".
Pode descrever-se assim: António Hussi vivia na miséria absoluta mas tinha um tesouro, uma bicicleta pintada de lama, pedais amputados, celim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor; um dia, o menino foi obrigado a abandonar a sua bicicleta, as balas caiam do céu, a guerra civil veio com toda a força, a mãe partiu e levou a família, o pai ficou a combater, ao lado de Ansumane Mané; António Hussi não quis ficar em Nhacra, regressou a Bissau e pôs-se à procura do pai. A escrita de Jorge Araújo mistura o pungente com a candura, as ruas desertas, asfaltadas de cadáveres, casas abandonadas feridas de balas, almas penadas vestidas de medo; é numa atmosfera de demência e irracionalidade que por ali andam abutres em voo picado sobre corpos em decomposição, paisagem mais desoladora não há: famílias divididas, vidas destruídas, uma cidade inteira a sangrar de dor.
António Hussi a todos vai perguntando por onde anda o pai, dá-se o reencontro o pai está furioso, António não cede perante a pancadaria que levou do pai e este, resignado pela determinação do filho, cede-o ao campo de batalha, ele fica obrigado a fazer tudo como se fosse um homem grande. E Jorge Araújo escreve: “E ele fez. Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante cozinheiro. Não matou mas viu morrer. Passeou pelos horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas de Bissau”. António assiste à internacionalização da guerra, vê gente de outros países a morrerem ao lado dos homens fiéis de Nino Vieira. E em 6 de Maio de 1999, as forças de Ansumane Mané levam tudo de roldão, Nino Vieira refugiou-se na embaixada de Portugal. Segue-se uma descrição dantesca, naquela Bissau em chamas o Palácio Presidencial era vandalizado: “Assistiu ao saque e à ira da população. Subiu as escadas do velho edifício colonial, atravessou as portas imponentes, vagueou pelas enormes salas abandonadas, vasculhou destroços calcinados, distribuiu abraços pelos soldados vencedores, tropeçou em Kalashknikovs que adormeciam pelo chão”. António é tratado por todos por “comandante Hussi”. A guerra acabara, voltou à sua casa no bairro de Santa Luzia. O seu tesouro mais valioso estava são e salvo: “pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor, a sua bicicleta estava suja e abandonada, mas era a sua bicicleta”.
O romance pega nesta trama, reconverte os factos e os feitos numa arquitetura onde cabe o mirífico e a possibilidade lendária. A família vive em Porto dos Batoquinhos, ali existe o Batuque Futebol Clube, eterno rival dos Saguessugas, o orgulho do Cais da Sombra. Em dia de futebol rebenta uma guerra, a Guerra do Balão. Entra em cena o brigadeiro Raio de Sol. O pai de Hussi, Abdelei, vestiu a farda militar e mandou a família para outro local. A bicicleta fica ali escondida, angustiado, Hussi parte ao lado de Dona Geca, a sua mãe, e dos irmãos, vão rumo à aldeia dos seus antepassados. Hussi ganha coragem e regressa a Bissau, a todos vai perguntando onde está Abdelei Sissé. É neste ponto que surgem as divergências entre o romance e a reportagem. Aquela Guerra do Balão parece estar empatada, entrara mesmo na rotina, com bombardeamentos à hora marcada, as mesmas conversas nos bunkers improvisados, os ataques à frente leste depois da frente norte, as pausas das tardes de sábado para se poderem beber os relatos da bola. O brigadeiro Raio de Sol tem como feroz opositor o comandante Trovão que acreditava que a guerra estava no fim. É desenhado como um déspota sanguinário, cercado por uma clique de bajuladores, e sobre ele o autor escreve: “O comandante Trovão era uma personagem gorda, tão pesada que o chão tremia com as suas passadas de elefante. O seu rosto era uma cascata em alvoroço, tanto era o suor que lhe escorria pela testa. Tinha um olhar de pitbull anestesiado, dentes pontiagudos, desalinhados, a pele mais gordurosa do que o óleo de palma. Os dedos eram pequenos e redondos. Talvez por isso usasse sempre luvas de boxe forradas de cetim vermelho e se recusasse cumprimentar os visitantes com um aperto de mão”.
A arquitetura da escrita vai resvalando para as considerações moralizadoras, este Trovão vive em perpétuo autoelogio, nunca suportou a traição da bela Ayassa, a menina dos seus olhos, que o trocou pelo brigadeiro Raio de Sol. Convocados os generais, o chefe do Estado Maior informa que estavam empatados, eles controlavam a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra batida. Furioso, Trovão liquida-o com um tiro de pistola e exige ao major Katinga que lhe traga no dia seguinte o crânio do brigadeiro Raio de Sol. A história desenvolve-se à volta de profecias, era preciso apreender uma bicicleta mágica do filho de Abdelei Sissé, é este o ícone que protege os combatentes. Por portas e travessas, lá se arranjou uma bicicleta qualquer, decapitaram-lhe o selim, e serviram-na ao comandante Trovão sobre uma bandeja de prata. O déspota parece aliviado e volta a ditar mais uma ordem mirabolante: quem for apanhado a pensar numa bicicleta será imediatamente fuzilado. Hussi apercebe-se de que morrera uma bicicleta e logo se afligiu, podia ser a sua, patrulhou o local onde vivera, era tudo um amontoado de destroços. E o menino chorou desesperado pela perda do seu tesouro. Passaram-se os dias e o jovem Hussi descobriu que o inimigo não conseguia ganhar a guerra.
Chegara entretanto o momento da ofensiva final na linha da frente. Assiste ao descalabro dos derrotados em fuga, viu os mercenários estrangeiros a fugirem, viu livros a serem consumidos pelas chamas assassinas. Os vencedores chamavam ao menino herói. A guerra de Hussi não terminara com o fim dos combates, porque os seus pensamentos continuavam estrangulados pelo desaparecimento da bicicleta. E a história edificante termina como deve ser: Hussi recupera a sua bicicleta, ser vivo e objeto conversam, aliás tinham muito que falar, e tudo termina em absoluta concórdia, de acordo com as regras de qualquer história com moral: “Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guiador, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim, sentiu-se outra vez dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade”.
Lê-se a narrativa e é com desgosto que se fecha a última página. A mascote dos revoltosos da Guiné-Bissau é agora personagem com direito a uma eternidade, tal e tanto é o amor que vota à sua bicicleta.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)
Queridos amigos,
Nem sempre uma reportagem de gabarito se pode converter numa peça novelística do mesmo nível, no caso em apreço, o comandante Hussi sai vencedor nos dois processos de escrita, Jorge Araújo pusera a criança a percorrer Bissau sempre a sonhar com a sua bicicleta, nesta história que podia ter começado por “Era uma vez…”, a luminosidade da criança ganha encanto, e o que antes fora uma reportagem de alta intensidade converte-se agora numa narrativa encantadora e imaginativa.
A Guiné-Bissau e os acontecimentos de 1998-1999 são presentes nos dois cenários. As ilustrações de Pedro Sousa Pereira valorizam todo o texto, adoçam o que já é terno, acrescentam, nas suas linhas por vezes pueris, uma densidade que potencia a fantasia do texto.
Mas será mesmo fantasia o objetivo da narrativa? Compete ao leitor ajuizar de tanta capacidade de sonho.
Um abraço do
Mário
Comandante Hussi
Beja Santos
Foi a ler “Reportagem, uma antologia” (por José Vegar, Assírio & Alvim, 2001) que tive conhecimento do soberbo trabalho de Jorge Araújo, uma peça intitulada “Comandante Hussi”, e publicada no jornal O Independente, numa edição de Fevereiro de 1999. O jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo assentou arraiais em órgãos de comunicação social portugueses como O Independente, TVI e Correio da Manhã. Presentemente, é editor do “Actual”, caderno do semanário Expresso.
Comandante Hussi é o seu primeiro romance e venceu em 2003 o Prémio Gulbenkian para a Qualidade Literária. Este romance foi publicado recentemente entre nós (Clube de Autor, Novembro de 2011). O ponto de partida foi a reportagem em que Jorge Araújo percorreu a Guiné em chamas durante o conflito político-militar de 1998-1999. Como escreveu José Vegar, “Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta. Uma história única possibilitou uma reportagem de escrita avassaladora".
Pode descrever-se assim: António Hussi vivia na miséria absoluta mas tinha um tesouro, uma bicicleta pintada de lama, pedais amputados, celim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor; um dia, o menino foi obrigado a abandonar a sua bicicleta, as balas caiam do céu, a guerra civil veio com toda a força, a mãe partiu e levou a família, o pai ficou a combater, ao lado de Ansumane Mané; António Hussi não quis ficar em Nhacra, regressou a Bissau e pôs-se à procura do pai. A escrita de Jorge Araújo mistura o pungente com a candura, as ruas desertas, asfaltadas de cadáveres, casas abandonadas feridas de balas, almas penadas vestidas de medo; é numa atmosfera de demência e irracionalidade que por ali andam abutres em voo picado sobre corpos em decomposição, paisagem mais desoladora não há: famílias divididas, vidas destruídas, uma cidade inteira a sangrar de dor.
António Hussi a todos vai perguntando por onde anda o pai, dá-se o reencontro o pai está furioso, António não cede perante a pancadaria que levou do pai e este, resignado pela determinação do filho, cede-o ao campo de batalha, ele fica obrigado a fazer tudo como se fosse um homem grande. E Jorge Araújo escreve: “E ele fez. Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante cozinheiro. Não matou mas viu morrer. Passeou pelos horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas de Bissau”. António assiste à internacionalização da guerra, vê gente de outros países a morrerem ao lado dos homens fiéis de Nino Vieira. E em 6 de Maio de 1999, as forças de Ansumane Mané levam tudo de roldão, Nino Vieira refugiou-se na embaixada de Portugal. Segue-se uma descrição dantesca, naquela Bissau em chamas o Palácio Presidencial era vandalizado: “Assistiu ao saque e à ira da população. Subiu as escadas do velho edifício colonial, atravessou as portas imponentes, vagueou pelas enormes salas abandonadas, vasculhou destroços calcinados, distribuiu abraços pelos soldados vencedores, tropeçou em Kalashknikovs que adormeciam pelo chão”. António é tratado por todos por “comandante Hussi”. A guerra acabara, voltou à sua casa no bairro de Santa Luzia. O seu tesouro mais valioso estava são e salvo: “pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor, a sua bicicleta estava suja e abandonada, mas era a sua bicicleta”.
O romance pega nesta trama, reconverte os factos e os feitos numa arquitetura onde cabe o mirífico e a possibilidade lendária. A família vive em Porto dos Batoquinhos, ali existe o Batuque Futebol Clube, eterno rival dos Saguessugas, o orgulho do Cais da Sombra. Em dia de futebol rebenta uma guerra, a Guerra do Balão. Entra em cena o brigadeiro Raio de Sol. O pai de Hussi, Abdelei, vestiu a farda militar e mandou a família para outro local. A bicicleta fica ali escondida, angustiado, Hussi parte ao lado de Dona Geca, a sua mãe, e dos irmãos, vão rumo à aldeia dos seus antepassados. Hussi ganha coragem e regressa a Bissau, a todos vai perguntando onde está Abdelei Sissé. É neste ponto que surgem as divergências entre o romance e a reportagem. Aquela Guerra do Balão parece estar empatada, entrara mesmo na rotina, com bombardeamentos à hora marcada, as mesmas conversas nos bunkers improvisados, os ataques à frente leste depois da frente norte, as pausas das tardes de sábado para se poderem beber os relatos da bola. O brigadeiro Raio de Sol tem como feroz opositor o comandante Trovão que acreditava que a guerra estava no fim. É desenhado como um déspota sanguinário, cercado por uma clique de bajuladores, e sobre ele o autor escreve: “O comandante Trovão era uma personagem gorda, tão pesada que o chão tremia com as suas passadas de elefante. O seu rosto era uma cascata em alvoroço, tanto era o suor que lhe escorria pela testa. Tinha um olhar de pitbull anestesiado, dentes pontiagudos, desalinhados, a pele mais gordurosa do que o óleo de palma. Os dedos eram pequenos e redondos. Talvez por isso usasse sempre luvas de boxe forradas de cetim vermelho e se recusasse cumprimentar os visitantes com um aperto de mão”.
A arquitetura da escrita vai resvalando para as considerações moralizadoras, este Trovão vive em perpétuo autoelogio, nunca suportou a traição da bela Ayassa, a menina dos seus olhos, que o trocou pelo brigadeiro Raio de Sol. Convocados os generais, o chefe do Estado Maior informa que estavam empatados, eles controlavam a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra batida. Furioso, Trovão liquida-o com um tiro de pistola e exige ao major Katinga que lhe traga no dia seguinte o crânio do brigadeiro Raio de Sol. A história desenvolve-se à volta de profecias, era preciso apreender uma bicicleta mágica do filho de Abdelei Sissé, é este o ícone que protege os combatentes. Por portas e travessas, lá se arranjou uma bicicleta qualquer, decapitaram-lhe o selim, e serviram-na ao comandante Trovão sobre uma bandeja de prata. O déspota parece aliviado e volta a ditar mais uma ordem mirabolante: quem for apanhado a pensar numa bicicleta será imediatamente fuzilado. Hussi apercebe-se de que morrera uma bicicleta e logo se afligiu, podia ser a sua, patrulhou o local onde vivera, era tudo um amontoado de destroços. E o menino chorou desesperado pela perda do seu tesouro. Passaram-se os dias e o jovem Hussi descobriu que o inimigo não conseguia ganhar a guerra.
Chegara entretanto o momento da ofensiva final na linha da frente. Assiste ao descalabro dos derrotados em fuga, viu os mercenários estrangeiros a fugirem, viu livros a serem consumidos pelas chamas assassinas. Os vencedores chamavam ao menino herói. A guerra de Hussi não terminara com o fim dos combates, porque os seus pensamentos continuavam estrangulados pelo desaparecimento da bicicleta. E a história edificante termina como deve ser: Hussi recupera a sua bicicleta, ser vivo e objeto conversam, aliás tinham muito que falar, e tudo termina em absoluta concórdia, de acordo com as regras de qualquer história com moral: “Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guiador, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim, sentiu-se outra vez dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade”.
Lê-se a narrativa e é com desgosto que se fecha a última página. A mascote dos revoltosos da Guiné-Bissau é agora personagem com direito a uma eternidade, tal e tanto é o amor que vota à sua bicicleta.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)
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