1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 14 de Maio de 2013:
Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Apesar do pouco tempo transcorrido desde o termo da guerra civil de 1998-1999, é muito interessante a coletânea de textos que foi publicada pela “Soronda”, revista de Estudos Guineenses, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau em finais de 2000, num número especial dedicado ao conflito.
Muito embora os textos não sejam todos de igual valia e alguns primarem mesmo, pela especulação pura, vale a pena dedicar alguma atenção ao que escreveu, por exemplo, Fafali Koudawo ou Tcherno Djaló.
Os diferentes artigos traçam-nos uma panorâmica do que pensava (e, presumivelmente, ainda pensa) a elite culta bissau-guineense e alguns especialistas estrangeiros sobre aquele devastador conflito armado.
Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf Mil de Infª.
CCaç 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)
Soronda – um exercício a várias vozes sobre a guerra civil
Em Dezembro de 2000, a revista “Soronda”, revista de estudos guineenses do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa de Bissau, publicou na sua nova série, um número especial totalmente dedicado à guerra civil de 1998-1999 (Soronda, 7 de Junho. Revista de Estudos Guineenses. Bissau: INEP, Nova Série, n° 2, dezembro 2000).
Trata-se do que podemos designar por um exercício a várias vozes, nem sempre concordantes entre si e de qualidade variável. Todavia, há que se louvar o esforço, pois trata-se do único documento – ou, se se quiser da única colectânea de documentos que se conhece - em que de uma forma séria e minimamente rigorosa se pretendem abordar as grandes questões suscitadas pela guerra civil. Há a acrescentar que, na altura da publicação, o tempo transcorrido, desde o termo do conflito ainda era muito curto e os diferentes participantes no exercício amiúde não escondem as suas simpatias por uma ou outra das fações beligerantes.
Como é bem sublinhado logo na introdução, o INEP, a cerca de um quilómetro da linha da frente, foi ocupado pela soldadesca durante 9 meses e aí estiveram aquartelados militares senegaleses que, como se soube na época, saquearam o edifício e serviram-se dos livros e de outro material como combustível para a confeção das suas refeições. O INEP foi milagrosamente reabilitado em pouco tempo, logo após a cessação de hostilidades, muito embora se tenha perdido uma parte importante do seu espólio.
A guerra é abordada em 3 grandes capítulos:
(a) as origens remotas e imediatas do conflito;
(b) os ângulos internos e externos do desenrolar das hostilidades ao longo de 11 meses de campanha;
(c) o impacto do conflito em distintos aspectos da vida bissau-guineense.
No artigo “A crise no PAIGC: um prelúdio à guerra”,
Caterina Gomes Viegas e
Fafali Koudawo analisam a crise interna do partido então no Poder, designadamente entre as fações encabeçadas, por um lado, por “Nino” Vieira e pelos seus acólitos e, por outro, por Saturnino Costa/Malan Bacai Sanhá, com reflexos tribalistas e racistas (opondo-se os últimos, que se consideravam
pretus nok – ou seja, guineenses puros - aos
burmedjus – mestiços – que integravam as hostes ninistas). Estas rivalidades entre antigos companheiros de luta não prenunciavam nada de bom. As lutas internas que datavam do tempo da luta de libertação, mas que se agudizaram nos anos 80 e 90, os sucessivos adiamentos do congresso do PAIGC e o impasse que se gerou quando este teve lugar com a aparente, mas, como se veio a saber, pirrónica vitória de “Nino” conferiam à situação uma gravidade que não podia ser escamoteada. Por outro lado, o PAIGC – e o Congresso era disso prova cabal – ignorava, deliberadamente, os grandes problemas com que o país e a sociedade se debatiam: o tráfico de armas para Casamansa, a instabilidade nas Forças Armadas e a respetiva reforma, a situação dos antigos combatentes, etc. Para os autores, o impasse do VI Congresso do PAIGC constituiu o prelúdio para guerra.
Tcherno Djaló, em “Lições e legitimidade nos conflitos políticos na Guiné-Bissau”, considera que a “a história contemporânea da Guiné-Bissau tem sido uma sucessão de actos de violência política e institucional”(p. 25). Faz a análise dos processos de legitimação dos constantes atos de violência na Guiné-Bissau, desde o movimento de independência que é pela sua própria natureza violento, mas legítimo, ao 14 de novembro de 1980 e ao levantamento de 7 de junho de 1998, cuja legitimidade é menos clara, mas que se reclamam sempre, quer num caso, quer noutro, da herança de Cabral. O agravamento da situação económica e o crescente divórcio entre a classe dirigente e o povo, agravado por um forte sistema repressivo estarão na origem do 14 de novembro. Fatores étnicos que vinham de trás terão contribuído para o desfecho. Todavia, há que sublinhá-lo, os fatores pessoais também pesaram, com a supressão do cargo de Primeiro-ministro que “Nino” detinha e a sua consequente despromoção. Tratou-se, pois, de transformar uma racionalidade individual numa ação coletiva. Quanto ao 7 de Junho, Tcherno Djaló descarta os fatores etno-tribais como estando na origem do levantamento, encontra fundamentos pessoais, nas posições de Ansumane Mané e a primeira razão da sua legitimidade consiste na intervenção estrangeira: “a chegada do corpo expedicionário das tropas da Guiné-Conakri e do Senegal desencadeou de imediato uma onda de nacionalismo e patriotismo que há muito não se via na Guiné” (p. 31). A gestão “empresarial” dos negócios do Estado em proveito próprio e da “clique” de “Nino” Vieira terão contribuído para a imagem negativa do regime junto da opinião pública. A legitimidade do Chefe de Estado contrastava com a ilegalidade da intervenção militar estrangeira. Em termos de consequências, o 7 de Junho representa, em primeiro lugar, o fim do regime de “Nino” Vieira, em segundo lugar, a implosão do PAIGC, em terceiro, a reabilitação das Forças Armadas e dos antigos combatentes. Todavia – e este aspeto, na nossa opinião, é da maior relevância - ,
“doravante, conscientes da força que representam no seio da sociedade, os militares passam não a reivindicar, mas a exigir os seus direitos”. Do ponto de vista político, as regras do jogo são invertidas, permitindo o acesso ao poder de uma formação política maioritariamente balanta, em detrimento da elite luso-cristianizada e mestiço-crioula que havia desde sempre dominado o país. Outras consequências são, igualmente, analisadas, quer económicas, quer a nível da sub-região, quer ainda em termos da credibilidade externa da própria Guiné-Bissau. O autor conclui, repisando a mesma argumentação utilizada para o 14 de Novembro, a ação política violenta é motivada por uma dinâmica pessoal que “transforma a racionalidade individual numa ação coletiva.”
Roy van der Drift apresenta um relato de caráter quase jornalístico sobre o conlfito, intitulado “Democracy: Legitimate warfare in Guinea-Bissau”, em que entremeia descrições meramente factuais com muita especulação e algumas frases bombásticas da sua lavra. Entre estas últimas, destaca-se, por exemplo, o não ter havido qualquer guerra civil na Guiné-Bissau, o que é um contra senso, quando não uma inverdade, e que se está perante uma relação inter-étnica harmoniosa, o que contraria frontalmente o que nos diz a história e a antropologia. Para o autor, os diferentes episódios de beligerância, ao longo de 11 meses são uma espécie de escaramuças intermitentes (!). No que respeita às especulações, Van der Drift, alega que a França e o Senegal estariam por detrás da destituição do brigadeiro Ansumane Mané, o que nos parece descabido; que a rápida chegada do corpo expedicionário senegalês já estaria planeada desde há muito, uma vez que o primeiro contingente avançou para Bissau logo a 7 de Junho (aqui, a questão levantada afigura-se-nos pertinente); que os franceses terão posto à disposição de “Nino” Vieira e dos seus aliados, na fase final da guerra, canhões de 155 mm e que, segundo um padre italiano, cerca de 100 “conselheiros militares” franceses teriam estado envolvidos na ofensiva de Janeiro-Fevereiro de 1999, asserções que carecem totalmente de provas. O autor dá claramente a entender que a Guiné-Bissau sob “Nino” Vieira se integrava gradualmente na francofonia, o que, em nosso entender, é uma presunção, esta, sim, com algum fundamento, mas não era ainda um dado adquirido. Em suma, há que ler-se com algum distanciamento e as devidas cautelas este relato.
Fodé Abulai Mané apresenta-nos um artigo intitulado “O Conflito Político-militar de 7 de Junho de 1998: a Crise de Legitimação”. O autor começa por analisar a posição da Comunidade Internacional quando o pleito se iniciou para em seguida passar à análise jurídica da argumentação invocada pelas partes e pelos demais actores no decurso do conflito para fundamentar as diferentes posições. Tem como base de partida os documentos assinados antes da guerra – designadamente com o Senegal e com a Guiné-Conacri - e depois enumera e analisa os textos negociados durante o período de hostilidades. Vamos apenas aflorar os acordos subscritos com os países vizinhos, remetendo o leitor para o texto quanto aos demais documentos. Relativamente aos instrumentos internacionais subscritos com o Senegal, Abulai Mané refere-se ao Acordo em matéria de Segurança e Defesa de 1990 e ao respetivo Protocolo adicional, que precisa aquele, ambos invocados invariavelmente pela parte afeta a “Nino” Vieira para justificar a intervenção senegalesa. Para o autor, “no citado protocolo, não se encontrou disposição alguma que permitisse a entrada das forças armadas de um país no outro para resolução de um conflito interno” (p. 75). A. Mané conclui: “ Se o recurso à violência por parte dos próprios militares para a resolução de uma situação interna é ilegítimo, a resposta adoptada pelas autoridades também não foi a permitida pelo direito interno.” (p. 76). Quanto ao Tratado de Amizade e Cooperação com a Guiné-Conacri de 1994, trata-se de um texto mais político do que jurídico, com o emprego de expressões e frases vagas, abrindo porém a porta para outros textos mais precisos, que não terão chegado a ver a luz do dia. Mané refere: “percorrendo todas as disposições do Tratado, não se destaca nenhuma norma jurídica capaz de limitar o comportamento de um Estado na sua cooperação com o outro, o que nos leva a alinhar com os tratadistas internacionais que consideram textos desta natureza de menor importância jurídica.” (p. 77). Dada a amizade entre Lansana Conte, o presidente da Guiné-Conacri e “Nino” Vieira, bastou que este, num acto voluntarista, pedisse a intervenção do exército da Guiné-Conacri para que aquele anuísse, “sem a cobertura de qualquer suporte jurídico” (p.78).
Carlos Cardoso assina um texto intitulado “Compreendendo a crise de 7 de junho na Guiné-Bissau”. Sem descartar outras hipóteses, Cardoso “vê na crise de Estado a razão principal do levantamento popular conduzido por Ansumane Mané” (p. 89). São pelo menos curiosas as designações empregues relativamente à guerra civil, para além de conflito, fala em crise (o que é no mínimo vago), para depois mencionar “rebelião armada”. Parece que em inúmeros casos – este não é, como sabemos, único - há como que um medo irracional de chamar os bois pelos nomes. Ao procurar as causas remotas do conflito encontra duas ordens de fatores, por um lado, sociais – o descontentamento nas Forças Armadas e nas camadas mais desprotegidas da sociedade – e, por outro, políticos – a rejeição de um regime anti-popular centrado no Presidente da República, com a concomitante “erosão do Estado”, em que os dirigentes do PAIGC gravitavam em torno de interesses económicos próprios e do tráfico de influências. Carlos Cardoso fala também na “ausência de Estado”, com excepção do aparelho repressivo que se mantinha plenamente operacional. Menciona ainda a clivagem verificada nas Forças Armadas entre os antigos combatentes e os oficiais mais jovens. No seu entender regista-se um desvio em relação às linhas orientadoras do pensamento de Amílcar Cabral. Adianta ainda que o processo de democratização de 1991 nunca foi plenamente assumido em que se regista um desrespeito pelo princípio da separação de poderes. De certo modo, afasta as motivações pessoais que terão contribuído para Ansumane Mané pegar em armas contra o Chefe de Estado. A este respeito, refere: “ a sublevação militar levada a cabo por Ansumane Mané parece ter motivações pessoais, mas as razões que levaram à adesão esmagadora e à revolta da população prendem-se com a ausência de orgânica de Estado, em que os interesses do pais eram relegados para um plano inferior, onde as instituições funcionavam com muita debilidade, ou praticamente não existiam, porque tudo dependia do PAIGC e do seu presidente.” (p. 97).
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Maio de 2013 >
Guiné 63/74 - P11581: Notas de leitura (481): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (2) (Mário Beja Santos)